Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 83/2023-T
Data da decisão: 2023-10-20  IRS  
Valor do pedido: € 11.457,38
Tema: IRS – Correções relativas a despesas com deslocações e estadas e a despesas de representação. Ónus da prova.

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Sumário:

  1. A não-dedutibilidade de um gasto em sede de IRC não permite, ipso facto e sem serem cumpridas as regras gerais do ónus da prova em procedimento tributário, sujeitar o mesmo a IRS na esfera do sócio a título de adiantamento por conta dos lucros da sociedade.
  2. A norma constante do n.º 1 do art. 100.º do CPPT é aplicável quando da prova produzida resultem fundadas dúvidas sobre a existência do facto tributário.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I. Relatório

1. A..., S.A., com o número único de pessoa colectiva e de registo na Conservatória do Registo Comercial ..., com sede na Rua ...,..., ... (doravante, “Requerente”), veio, ao abrigo do disposto na al. a) do n.º 1 do art. 2.º e dos artigos 10.º e seguintes do RJAT, requerer, em 10/2/2023, a constituição de Tribunal Arbitral e submeter pedido de pronúncia arbitral “[c]ontra (i) o ofício com o n.º 2022..., pelo qual a Requerente foi notificada em 14 de Novembro de 2022 do indeferimento da reclamação graciosa por si apresentada, a que foi atribuído o n.º de processo ...2022... [...], e, mediatamente contra (ii) a liquidação de retenção na fonte de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares («IRS») relativa a 2018 com o n.º 2021 ... e respetivas demonstrações de liquidação de juros compensatórios, apurando um total a pagar de € 2.819,20 [...]; e contra a (iii) liquidação de retenção na fonte de IRS relativa a 2019 com o n.º 2021... e respectivas demonstrações de liquidação de juros compensatórios, apurando um total a pagar de € 8.638,18”, por entender “que a decisão de indeferimento da reclamação graciosa, que ora se impugna, bem como as liquidações de retenção na fonte de IRS, são manifestamente ilegais por erro nos seus pressupostos de facto e de direito”.   

2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Requerida.

2.1. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou o presente signatário como árbitro do tribunal arbitral singular, o qual comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

2.2. As partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do disposto no artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

2.3. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 24/4/2023.

 

3. A fundamentar o seu pedido de pronúncia arbitral, a ora Requerente, alega, em síntese, o seguinte:

 

  1. «[...] a AT corrigiu a matéria coletável da Requerente para os exercícios de 2018 e 2019, quanto às despesas incorridas com deslocações e estadas, por considerar que não se trata de gastos empresariais, i.e. incorridos no interesse da Requerente, mas antes de despesas destinadas a satisfazer os interesses pessoais dos seus accionistas (entre os quais de B...).

 

  1. Em alguns casos aplicou taxas de tributação autónoma de IRC de 50% (considerando que seriam gastos não documentados), e noutros aplicou uma taxa liberatória de IRS de 28% (considerando que seriam de classificar como adiantamentos por conta de lucros).

 

  1. Na Decisão, não se faz qualquer tipo de prova que justifique a incidência de IRS ao nível do sócio, nem se demonstra que estão preenchidos os pressupostos para aplicação da tributação autónoma – nomeadamente, a falta de documentação que titule os gastos.

 

  1. No Relatório de Inspeção, bem como na Decisão, a AT parte do pressuposto que as despesas em causa foram realizadas no interesse exclusivo do administrador e acionista B... e do seu agregado familiar. [...]. Nomeadamente, a AT considerou que “[os] eventuais instrumentos financeiros que a sociedade possa deter noutros países como Itália ou Estados Unidos não implicam uma deslocação do administrador a esses locais (…)” (cfr. pág. 15 do Relatório de Inspeção [...]). Adicionalmente, refere a AT na Fundamentação que “[a]pesar das faturas terem sido emitidas em nome da empresa, o seu pagamento terá sido efectuado pelo administrador (…)” (cfr. pág. 16 do Relatório de Inspeção).

 

  1. Por estas razões, e atenta a falta de justificação (no entender da AT) para a realização daquelas deslocações, foi determinado que os gastos acima mencionados devem ser considerados adiantamentos por conta de lucros e, portanto, sujeitos a tributação através de retenção na fonte à taxa liberatória de 28%, em sede de IRS, de acordo com o disposto no artigo 5.º, n.º 1 e n.º 2, alínea h) do Código do IRS. Os gastos em causa têm subjacentes as deslocações já mencionadas, sendo faturas das agências C..., Lda. (Ref.ª 1 e 4) e D...,Lda. (Ref.ª 5) e dos hotéis E..., S.p.A. (empresa italiana) (Ref.ª 2) e F..., S.A. (Ref.ª 3 e 6). Todavia, a AT considerou no Relatório de Inspecção estar “perante despesas com carácter particular e pessoal, em benefício pessoal ou do seu agregado familiar.” (cfr. pág. 17 do Relatório de Inspeção). Também na Decisão, refere a AT que “Determina o n.º 1 do artigo 5.º do CIRS que são ‘rendimentos de capitais os frutos e demais vantagens económicas, qualquer que seja a sua natureza ou denominação, sejam pecuniários ou em espécie, procedentes, direta ou indiretamente de elementos patrimoniais, bens direitos ou situações jurídicas, de natureza mobiliária’, pelo que, no que se refere às despesas pagas e encargos suportados pela sociedade mas que foram para uso particular do sócio e eventualmente do seu agregado familiar, determinados nos termos anteriores, verifica-se que a ‘A... colocou a disposição do seu sócio, rendimentos em espécie, a titulo de adiantamento por conta de lucros, cujo valor corresponde ao montante dos pagamentos efetuados pela sociedade das faturas n.ºs 411614 de 26/10/2018 e 412297 de 19/02/2019, emitidas por ‘C..., Lda.’ faturas n.ºs 293755 de 27/05/2018 e 317248 de 05/05/2019 emitidas pelo “F..., S.A.”, fatura n.º RF11808631 de 31-10-2018 emitida por ‘E..., S.p.A’ e fatura n.º 5325 de 09/04/2019 emitida por ‘D..., Lda.’, no valor total de €19.780,04, correspondente à soma das seis faturas acima referidas.” (cfr. pág. 6 da Decisão [...]).

 

  1. Com efeito, trata-se de uma conclusão absolutamente precipitada face aos esclarecimentos dados pela Requerente e que não se baseia em qualquer elemento de prova obtido no procedimento inspetivo. De facto, a própria AT reconhece que não conseguiu provar efectivamente que estas despesas se destinaram ao uso particular do acionista e administrador, e do seu agregado familiar [...]. E, no entanto, concluiu que – à luz das normas relevantes do Código do IRS – estaríamos perante uma colocação à disposição de rendimentos em espécie ao acionista por conta de lucros, sendo assim devida retenção na fonte de IRS a uma taxa liberatória, pelo que, atenta a fundamentação exarada no Relatório de Inspeção, concluiu que: “Deste modo encontra-se em falta a retenção na fonte de IRS, devido no momento da colocação à disposição, pelos montantes de EUR 2.509,49 e EUR 3.028,92 nos períodos de 2018 e 2019, respetivamente” (cfr. pág. 17 do Relatório de Inspecção), tendo essa conclusão vindo a ser integralmente mantida na Decisão que ora se impugna.

 

  1. [A] AT aplicou, às referidas despesas, a taxa liberatória de IRS prevista no artigo 71.º, n.º 1, alínea a) do Código do IRS.
  2. Fá-lo, porém, de forma absolutamente leviana e sem fundamentar as opções jurídicas que toma e que impõe à Requerente, assim violando as regras do ónus da prova.

 

  1. Em rigor, para afastar a presunção de veracidade de que gozam as declarações dos contribuintes (prevista no n.º 1 do artigo 75.º da Lei Geral Tributária, “LGT”), a lei exige um esforço probatório muito maior à AT para que a sua actuação esteja legitimada à luz do direito aplicável, o que não foi manifestamente cumprido no caso vertente. De facto, o n.º 1 do artigo 74.º LGT é claro ao dispor que recai sobre a AT o ónus de provar os factos constitutivos dos direitos que invoca.

 

  1. [N]ão havendo uma norma que presuma que todos os gastos não-dedutíveis, para efeitos fiscais, na esfera de uma sociedade são considerados como “adiantamentos por conta de lucros” – conforme existe, por exemplo, para os lançamentos em contas correntes a favor dos sócios não relacionados com a actividade social (cfr. artigo 6.º, n.º 4 do Código do IRS) – o carácter “não-profissional” que justifica a não dedutibilidade em sede de IRC, não pode per si servir de base à aplicação de taxas liberatórias sem antes passar o crivo das regras de prova.

 

  1. Com efeito, no caso concreto, a AT bastou-se com uma parca e simples tentativa de demonstração da não-dedutibilidade dos custos em sede de IRC, assumindo que essa demonstração bastaria para que automaticamente os mesmos gastos fossem imputados como rendimentos do sócio em sede de IRS.

 

  • Esquece-se a AT que estamos perante uma verdadeira norma de incidência tributária e que terá de demonstrar (e não simplesmente enunciar) os seus pressupostos para a aplicar ao caso concreto. Na óptica da AT, existem indícios que permitem inferir que aqueles gastos poderiam ser classificados como adiantamentos por conta de lucros, e consequentemente, trata-os como rendimentos de capitais aplicando a taxa liberatória para tal prevista. Como vimos, a incidência tributária não se basta com indícios, carece de verdadeira prova dos pressupostos de direito e de facto, o que não aconteceu no caso concreto.

 

  1. [N]o presente Pedido de Pronúncia Arbitral [...] dever-se-á concluir que a ora Requerente não se limita a gerar dúvidas sobre a factualidade aduzida pela AT, logrando mesmo – nomeadamente pela explicação dos indícios alegados à luz das práticas habituais do sector em causa – a refutação integral desses indícios.

 

  • [O] vício em que incorre a Fundamentação, por não cumprir as regras do ónus da prova, inquina irremediavelmente a liquidação, que deve, portanto, ser anulada. Ademais, segundo o n.º 1 do artigo 100.º do CPPT, “sempre que da prova produzida [no processo] resulte a fundada dúvida sobre a existência e quantificação do facto tributário, deverá o acto impugnado ser anulado”. Tendo a Requerente já descrito de que modo as referidas despesas se relacionam com a prossecução dos seus interesses sociais, e não tendo a AT produzido qualquer prova em sentido contrário, no limite estaremos perante uma “fundada dúvida”, que, nos termos do referido normativo, deverá ser decidida em favor do contribuinte.

 

  • Por outro lado, [...] a AT pretende afastar o carácter de empresarialidade dos gastos em causa invocando que «As participações sociais mais relevantes que a “A...” detém e que são responsáveis pela maior parte dos rendimentos obtidos dizem respeito a empresas portuguesas – “G...” e “H...”. Os eventuais instrumentos financeiros que a sociedade possa deter noutros países como Itália ou Estados Unidos não implicam uma deslocação do administrador a esses locais (…)» (cfr. pág. 15 do Relatório de Inspecção). Noutras palavras, a AT pretende dizer que, na sua óptica, resultando o rendimento da Requerente mormente de dividendos pagos pelas suas participadas, e assumindo os seus restantes investimentos um carácter residual (em seu ver!), não poderão estas despesas, relacionadas com a gestão dos investimentos financeiros da Requerente e com a manutenção de contactos com os seus consultores e gestores de conta, ter propósito empresarial. [...]. Ora, provado que está que as despesas se destinam a assegurar o acompanhamento destes investimentos custodiados por instituições financeiras, bem como a realizar prospecções de investimento em jurisdições estrangeiras, não nos resta senão concluir que a qualificação daquelas despesas como afectas à esfera pessoal e familiar do seu acionista e administrador – e, portanto, alheias ao interesse societário da Requerente –, é manifestamente infundada. Daí decorrendo, naturalmente, que as liquidações de retenção na fonte de IRS, que ora se impugnam, são manifestamente ilegais por erro nos seus pressupostos de facto e de direito, devendo ser integralmente anuladas.

 

  1. No que toca [às] despesas [de representação], e após ter desconsiderado os gastos para efeitos de IRC, a AT aplicou a algumas delas a taxa liberatória de IRS prevista no artigo 71.º, n.º 1, alínea a) do Código do IRS, dando assim origem às liquidações de imposto que ora se impugnam. Fá-lo, porém, de forma absolutamente leviana e sem fundamentar as opções jurídicas que toma e que impõe à Reclamante, assim violando as regras do ónus da prova.

 

  1. Em rigor, para afastar a presunção de veracidade de que gozam as declarações dos contribuintes (prevista no n.º 1 do artigo 75.º LGT), a lei exige um esforço probatório muito maior à AT para que a sua actuação esteja legitimada à luz do direito aplicável, o que não foi manifestamente cumprido no caso vertente. O n.º 1 do artigo 74.º LGT é claro ao dispor que recai sobre a AT o ónus de provar os factos constitutivos dos direitos que invoca. [...]. [...] no caso concreto, a AT bastou-se com uma parca e simples tentativa de demonstração da não-dedutibilidade dos custos, assumindo que essa demonstração bastaria para que automaticamente os mesmos gastos fossem imputados como rendimentos do sócio em sede de IRS. [...]. [...] na situação em apreço, a AT demitiu-se de carrear para o procedimento inspectivo (e de verter na Decisão) quaisquer elementos ou factos demonstrativos daquela incidência em sede de IRS. Todavia, estamos perante uma verdadeira norma de incidência tributária, pelo que a AT terá de demonstrar (e não simplesmente sugerir) que os seus pressupostos de facto estão reunidos, para a aplicar ao caso concreto. Na óptica da AT, existem indícios que permitem considerar que aqueles gastos poderiam ser classificados como adiantamentos por conta de lucros, e consequentemente, trata-os como rendimentos de capitais aplicando a taxa liberatória para tal prevista. Como vimos, não só não existem quaisquer indícios nesse sentido, como a incidência do imposto não se basta com indícios, carece de verdadeira prova dos pressupostos de direito e de facto, o que não aconteceu no caso concreto.

 

  1. Tendo a Requerente já descrito de que modo as referidas despesas se relacionam com a prossecução dos seus interesses sociais, e não tendo a AT produzido qualquer prova em sentido contrário, no limite estaremos perante uma “fundada dúvida”, que, nos termos do referido normativo, deverá ser decidida em favor do contribuinte.

 

  1. [...] provado que está que as despesas se destinam a assegurar o acompanhamento destes investimentos custodiados por instituições financeiras, bem como a realizar uma prospecção de investimento no mercado imobiliário, não nos resta senão concluir que a qualificação daquelas despesas como afectas à esfera pessoal e familiar do seu acionista e administrador – e portanto alheias ao interesse societário da Requerente –, é manifestamente infundada. Daí decorrendo, naturalmente, que a decisão de indeferimento da reclamação graciosa, que ora se impugna, bem como as liquidações de retenção na fonte de IRS, são manifestamente ilegais por erro nos seus pressupostos de facto e de direito, devendo ser integralmente anuladas.»

 

3.1. A Requerente termina pedindo que o presente pedido de pronúncia arbitral seja julgado inteiramente procedente, por provado, com todas as demais consequências legais, designadamente: «a) a anulação integral da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, bem como da liquidação adicional de retenção na fonte de IRS relativa a 2018 com o n.º 2021 ... e respetivas demonstrações de liquidação de juros compensatórios, e a liquidação de IRS relativa a 2019 com o n.º 2021 ... e respetivas demonstrações de liquidação de juros compensatórios; b) ser a Requerida condenada ao pagamento de juros indemnizatórios nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 43.º da LGT, caso venha a ser considerado que houve erro imputável aos serviços de que resultou pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.»

                                                          

4. A Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, “Requerida” ou “AT”) apresentou resposta, invocando, em síntese, o seguinte:

 

  1. «A Requerente pede a anulação da decisão da AT, com fundamento na sua ilegalidade, por erro quanto aos pressupostos de facto e de direito. A AT, por sua vez, entende que as liquidações não estão feridas de ilegalidade, devendo, como tal, manter-se na ordem jurídica.

 

  1. Dever-se-ão considerar impugnados os factos alegados pela Requerente que se encontrem em oposição com a presente defesa, considerada no seu conjunto, nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 574.º do Código do Processo Civil - CPC, ex vi alíneas a ) e e) do n.º 1 do art.º 29.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária - RJAT. Com efeito, em momento algum o Requerente prova o que cauciona ao longo do seu pedido de pronúncia arbitral. O princípio do ónus da prova consubstancia-se no princípio de que quem alega um determinado facto constitutivo de um direito, tem a necessidade de prová-lo (cf. art.º 342.º do Código Civil – CC e n.º 1 do art.º 74.º da LGT).

 

  1. Suprimiu-se esta alínea.[1]

 

  1. [A] Requerente alega factos que servem de fundamento e que substancialmente configuram a alegada posição jurídica de que se arroga, sem que o prove. E é à parte que alega determinados factos que compete fornecer a demonstração da realidade dos factos alegados, necessários à procedência do pedido por si deduzido em juízo. Ademais, assente-se que prova dos factos não se faz pela insistência nem tão pouco com meras alegações e suposições, antes pela sua demonstração, que deve assentar antes de mais na realidade.

 

  1. As correções em causa estão cabalmente fundamentadas de facto e de direito nos relatórios das ações inspetivas, bem como na decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada, para onde se remete, dando o seu teor por integralmente reproduzido, pelo que resta salientar os aspetos mais relevantes para a boa decisão da causa.

 

  1. Invoca a Requerente que “Na sua ação inspetiva, a AT solicitou à Requerente que prestasse informações relativas a estes gastos, para que, nomeadamente, fossem identificadas as pessoas que teriam viajado, requerendo vários elementos da sua identificação e os motivos da deslocação para fora do local de trabalho. (...) Foi ainda solicitado à Requerente que indicasse, para as faturas referentes à prestação de serviços de agências de viagens, qual o destino final das deslocações com estas contratadas. (...) Todas estas informações foram fornecidas pela Requerente durante a inspeção tributária, quer para o exercício de 2018, quer para o de 2019.” [...] tal afirmação não tem mínima aderência com a realidade, uma vez que a Requerente se limitou a indicar que as faturas emitidas pela sociedade “C... Lda”, nos montantes de € 3.090,08 e € 9.312,56, respeitantes aos anos de 2018 e 2019, diziam respeito a viagens a Roma e aos Estados Unidos da América, respetivamente, tendo ainda referido quanto à fatura da sociedade “D... Lda” no montante de € 1.120,00 que a mesma se relacionava igualmente com uma deslocação aos Estados Unidos. Mais, questionada pelos SIT em sede de inspeção, acerca dos motivos que estiveram na origem de tais deslocações e a identificação da pessoa que as efetuou, mais uma vez, a Requerente limitou-se a alegar, sem carrear no entanto qualquer elemento documental que o comprove, que tais deslocações se deveram a viagens de negócios efetuadas pelo Administrador -B..., tendo o mesmo ficado instalado nos Hotéis “F...” e “E...”.
  2. Mais se releva que, pese embora a Requerente tente justificar a fatura referente à sociedade “C..., Lda”, com uma estadia em Roma pelo já referido administrador, (correspondendo os gastos dessa estadia à fatura identificada com a referência n.º 2), a pretexto de uma alegada reunião com um gestor de conta do Banco Intesa Sanpaolo, para discutir as condições e possível interesse de abertura de uma conta bancária junto daquela instituição financeira. [E] Alegue que as estadias no “F..., S.A”. (correspondentes às faturas identificadas pela referência n.º 3 e n.º 8), se deveram a duas estadias do mesmo administrador em Lisboa, onde alegadamente se reuniu com os seus gestores de conta do Credit Suisse, em Maio de 2018, reuniões essas que, como afirma na sua douta p.i., se sucediam com muita frequência, e ainda acrescente, que as despesas tituladas pelas faturas n.º 6 da sociedade “C..., Lda”, e n.º 7 emitida pela empresa “D..., Lda”, se referem a uma deslocação realizada aos Estados Unidos pelo seu Administrador, com o propósito de avaliar futuros investimentos em empresas sedeadas naquele pais, tendo-se reunido com gestores de fundos de investimento especializados em private equity, bem como com um banco americano para ponderar a abertura de uma conta de títulos, e ainda um family office, a verdade é que a Requerente se limita a alegar, a invocar diversas narrativas, sem no entanto, conseguir comprovar ou apresentar quer nos presentes autos, quer anteriormente em sede de Inspeção Tributária ou mesmo através da reclamação graciosa que apresentou, quaisquer documentos, designadamente contratos, orçamentos, descrição dos negócios a realizar bem como correspondência trocada com as agências e entidades indicadas, indicação das datas da estadia, elementos esses que em suma, pudessem suportar as suas indicações.

 

  1. [...] apenas com base nas indicações que ofereceu, a Requerente não logra de modo algum comprovar, como lhe competia aliás - uma vez que sobre ela recaia o ónus da prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado - cfr. art.º 74.º, n.º 1 da LGT e artigo 342.º, n.ºs 1 e 2 do Código Civil (doravante C.C.) aplicável ex vi art.º 1 do CPTA – a relação causal entre os gastos incorridos nas preditas deslocações e o seu escopo empresarial.
  2. Face ao evidenciado, necessariamente será de concluir que a Requerente, nem nos procedimentos anteriores, nem nos presentes autos conseguiu apresentar quaisquer documentos que comprovem que as despesas sub judice, tituladas pelas faturas acima elencadas, se trataram efetivamente de viagens e estadias relacionadas com a sua atividade empresarial, e tal diga-se não lhe seria especialmente difícil dada a profusão de encontros que o seu Administrador alegadamente manteve com vários agentes da banca europeia e norte-americana por um lado, e pelos diversos interesses empresariais que pretendeu discutir, por outro.

 

  1. [...] da análise efetuada, constante do ponto III.6. do Relatório de Inspeção Tributária, foi possível verificar quanto aos documentos de suporte que o descritivo das faturas emitidas pelas agências de viagens, apenas referiam “viagem com estadia internacional” e “despesas de viagem”, não identificando as pessoas que realizaram efetivamente as viagens. [...] as despesas com os hotéis “F...” e “E...” dizem respeito a deslocações às cidades de Lisboa e Roma, estando mencionado nas faturas o nome deB..., acionista e Administrador da Requerente. Ora, como resulta do RIT (pontos III.6.1. e III.6.3. do mesmo), e da douta p.i., a Requerente realmente identificou o Administrador –B..., como tendo sido a pessoa que realizou as viagens constantes das faturas emitidas pelas sociedades supra referidas, tendo ainda indicado o destino final das viagens - Roma, Lisboa e Estados Unidos da América, porém nunca concretizou especificamente os locais, as cidades que constituíram o destino final.

 

  1. Na mesma senda, os vários motivos apontados pela Requerente para a realização das preditas deslocações, além de genéricos, não se encontram nem substanciados, nem documentalmente comprovados, apenas fazendo menção a “possibilidades de investimento” e “possibilidades de abertura de contas bancárias”, estribando-se ainda em supostas reuniões com gestores de conta da instituição bancária Credit Suisse, reuniões essas que eram de tal modo importantes que obrigavam à deslocação de uns e de outros, sem contudo sequer referir as causas das mesmas. Não fosse suficiente, não se vislumbra, nem sequer a Requerente se esforça por tornar evidente, qualquer relação entre as deslocações efetuadas e a sua própria atividade, bem como a contribuição das mesmas para obter ou garantir rendimentos sujeitos a IRC.

 

  • Pelo contrário, veja-se que por um lado as participações sociais mais relevantes que a Requerente detém e que são responsáveis pela maior parte dos seus rendimentos obtidos, dizem respeito a empresas Portuguesas – “G...” e a “H...”.

 

  1. Por outra via, os eventuais instrumentos financeiros que a Requerente possa deter noutros países, não implicam necessariamente uma deslocação do seu Administrador a esses mesmos locais, dado que todas as operações relacionadas com esses ativos envolvem instituições bancárias sediadas na Suíça e Luxemburgo, como o “Julius Baer” e “Credit Suisse”, instituições essas que recebem diretamente ordens de compra ou venda de determinado ativo e agem em conformidade.

 

  • Por último, refira-se ainda que o custo das deslocações e estadas realizadas nos anos de 2018 e 2019, no montante de € 27.222,48 e € 10.817,5, não foram pagas pela ora Requerente às várias agências de viagens e hotéis acima referidos, mas sim ao seu próprio Administrador/ Acionista – B.... Da análise financeira efetuada pelos SIT, é possível verificar que, apesar das faturas terem sido emitidas em nome da Requerente, o pagamento das mesmas foi efetuado pelo Administrador/ Acionista – B..., tendo a Requerente posteriormente efetuado em 05-09-2018, 14-12-2018 e 26-06-2019 três transferências bancárias nos montantes de € 18.622,00, € 8.600,48 e € 10.817,56 respetivamente, para o mesmo. Daqui se conclui que o pagamento à agência de viagens e hotéis terá sido efetuado por B..., tendo a Requerente posteriormente efetuado transferências para B... no valor dessas mesmas despesas. In verbis, a Requerente pagou as viagens e estadias do Administrador B..., sem que existisse qualquer evidencia de negócio da empresa associado a estas mesmas deslocações, pelo que, à falta de evidência, e justificações da Requerente, os factos relatados levam-nos a concluir que se tratam de despesas de carácter particular e pessoal de B..., mas que foram pagas pela Requerente, mediante três transferências bancárias efetuadas a partir da conta bancaria de que é titular (conta n.º...– BPI).

 

  • Mais, no caso concreto estamos na presença de operações realizadas, pagamento de deslocações e estadias de foro pessoal e que foram pagas à custa das disponibilidades financeiras da Requerente, e que por isso, como é obvio, constituem uma vantagem económica para o seu beneficiário, in casu, para o Administrador –B..., no caso, uma vantagem pecuniária, consubstanciada no recebimento desses montantes, qualificados assim como rendimento de capitais nos termos do n.º 1 e alínea h) do n.º 2, ambos do artigo 5.º do CIRS.

 

  1. Desta forma, a Requerente colocou à disposição do seu acionista e administrador – B..., a título de adiantamento por conta de lucros, o valor de € 19.8780,04, montante esse correspondente à soma das faturas n.º 411614 de 26-10-2018 e n.º 412297 de 19-02-2019, emitidas por “C...Lda”, faturas nº 293755 de 27-05-2018 e 317248 de 05-05-2019 emitidas pelo “F... S.A.”, fatura n.º RF11808631 de 31-10-2018 emitida por “E... S.P.A” e fatura n.º 5325 de 09-04-2019 emitida por “D... Lda”, montante esse que constitui rendimentos de Categoria E, nos termos do n.º 1 e da alínea h) do n.º 2 do artigo 5.º do Código do IRS (CIRS). Ora, conforme é consabido os adiantamentos por conta de lucros estão sujeitos a tributação por retenção na fonte à taxa liberatória de 28%, tal como resulta da alínea a) do n.º 1 do artigo 71.º do mesmo diploma legal, a partir do momento em que são colocados à disposição do respetivo titular, conforme dispõe a subalínea 2) da alínea a) do n.º 3 do artigo 7.º do CIRS. Ante o exposto, conclui-se que se encontra em falta a efetivação de retenção na fonte de IRS, devida no momento da colocação à disposição e pelos montantes de € 2.509,49 e € 3.028,92 correspondentes aos períodos de 2018 e 2019.

 

  1. A Requerente alega ainda que a Requerida não deu cumprimento ao disposto no n.º 1 do artigo 74.º da LGT por não ter “provado” que as despesas com deslocações e estadas constituem rendimentos de Categoria E do acionista B... . De facto, aplicam-se à Requerida as regras do ónus da prova previstas no artigo 74.º da LGT, competindo-lhe fazer prova de que estão verificados os pressupostos legais que legitimam a sua atuação, ou seja, de que existem indícios sérios de que as operações constantes das faturas referentes a deslocações e estadas constituem rendimentos de Categoria E na esfera do acionista B... . [...]. [...] perante os indícios recolhidos na análise da contabilidade, a Requerida notificou a Requerente para explicar e comprovar que essas despesas tiveram outra natureza ou outro destino, e ainda, qual o efetivo beneficiário, invertendo, assim, o ónus da prova ao permitir ao sujeito passivo, vir ao procedimento inspetivo, acrescentar elementos justificativos, além dos que constam na contabilidade. Prerrogativa essa que apesar de ter sido exercida pela Requerente, e face aos motivos acima já sopesados, não se revelou suficiente, uma vez que não procedeu- como também não o faz nos presentes autos - à exibição de quaisquer documentos que demonstrem o motivo e finalidade para a realização das viagens, não obstante as razões por si indicadas quanto à finalidade destas viagens, razões essas que até pela sua própria natureza alegadamente empresarial, seriam por demais fáceis de comprovar.

 

  1. A propósito das [...] correções a título de despesas de representação, por uma questão de economia processual, desde já se remete para o invocado em sede de factualidade, que aqui se dá por integralmente reproduzida, de modo a evitar repetições inúteis.

 

  1. Constata-se [...] que os argumentos agora apresentados pela Requente para justificar os gastos em que incorreu, têm uma natureza geral e vaga e que a mesma se furtou de exibir qualquer elemento documental capaz de demonstrar os motivos e as finalidades para a realização dos acima referidos gastos, e em que medida os mesmos contribuíram para a obtenção de rendimentos por parte da Requerente. Não o fez em sede inspetiva. Nem em sede de reclamação graciosa. Em boa verdade, a Requerente limitou-se a aduzir que se trataram de reuniões, encontros com os seus gestores de conta.

 

  1. Por outro lado, os factos descritos constituem indícios sérios e credíveis que o beneficiário destes gastos, destas despesas, foi o Administrador B... e eventualmente o seu agregado familiar, tendo a Requerida dado cumprimento ao previsto no n.º 1 do artigo 74.º da LGT.

 

  1. De facto, as despesas em que a Requente incorreu, conforme acima melhor descritas, revestem-se notoriamente de um carácter particular e pessoal e terão sido efetuadas em benefício pessoal de B... . Neste conspecto, estabelece o n.º 1 do art.º 5.º do Código do Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS) que: são "rendimentos de capitais os frutos e demais vantagens económicas, qualquer que a sua natureza ou denominação, sejam pecuniários ou em espécie, procedente, direta indiretamente de elementos patrimoniais, bens direitos ou situações jurídicas, de natureza mobiliária”, pelo que, no que se refere às despesas pagas e encargos suportados pela sociedade mas que foram para uso particular do sócio e eventualmente do seu agregado familiar, determinados nos termos anteriores, verifica-se que a Requerente colocou à disposição do seu sócio, rendimentos em espécie a titulo de adiantamento por conta de lucros, cujo valor corresponde ao montante do pagamento efetuado pela sociedade da faturas n.° FR D 4025 de 29/07/2019, emitida por “I... S.A.", no valor total de €6.067,75. Ora, os adiantamentos por conta de lucros estão sujeitos a tributação nos termos do disposto na alínea h) do n.º 2 e n.º 1 do art.º 5.º do CIRS, como rendimentos de capitais – Categoria E, por retenção na fonte à taxa liberatória de 28%, tal como resulta da alínea a) do n.º 1 do art.º 71.º do mesmo diploma legal, a partir do momento em que são colocados à disposição do respetivo titular, conforme dispõe a subalínea 2) da alínea a) do nº 3 do art.º 7.º do CIRS. Deste modo, encontra-se em falta retenção na fonte de IRS, devido no momento da colocação à disposição, pelo montante de € 4.868,71, no período de 2019.

 

  1. Nos termos da legislação atrás citada [artigos 5.º, n.º 1, 7.º, n.º 1, e 71.º, n.º 1, al. a), do CIRS], conjugada com o n.º 1 do art.º 74.º da LGT, incumbia à Requerente fazer prova de que as referidas despesas (traduzidos nos registos contabilísticos e fluxos financeiros/transferências monetárias e benefícios em espécie) espelhadas nas contas de SNC “deslocações e estadas” (conta 6251) e “despesas de representação” (conta 6266) são normais e indispensáveis e concorrem para a prossecução do seu objeto social e consequentemente preenchem os requisitos previstos no art.º 23.º, nºs 4 e 6 do CIRC e art.º 36.º do CIVA para dedutibilidade à matéria coletável da sociedade (em sede de IRC). E à Requerida o ónus de provar a existência dos pressupostos de facto e de direito nos termos das normas de incidência atrás citadas.

 

  1. O facto é que a Requerente não o fez durante o procedimento inspetivo, na reclamação graciosa e muito menos carreou ao presente pedido de pronúncia arbitral, documentos de prova suficientes e justificações de forma cabal, reafirmando apenas que as referidas despesas se relacionam com normais contactos e reuniões com clientes e fornecedores (no ponto 2 do capítulo II e ponto 1 do capitulo III, páginas 6 a 10 e 19 e 20 da petição, reafirma as explicações dadas em momentos anteriores).

 

  1. [...] não acompanhamos a alegada falta de cumprimento das regras de ónus de prova (art.º 74.º, n.º 1 da LGT) bem como a presunção da veracidade de que gozam as declarações dos contribuintes (art.º 75.º, n.º 1 da LGT). Importa esclarecer que [...] nos termos do n.º 2, al. a) da referida norma, essa presunção não se verifica se as declarações, contabilidade ou escrita revelarem omissões, erros, inexatidões ou indícios fundados de que não refletem ou impeçam o conhecimento da matéria tributável real do sujeito passivo. Que é o que se verifica no caso dos autos. Tendo em conta, todo o material probatório carreado para os autos e o exposto anteriormente, é forçoso concluir que a Requerente não cumpriu com o previsto no n.º 2 do art.º 123.º do CIRC onde se estabelece que “2 – Na execução da contabilidade deve observar-se em especial o seguinte: a) Todos os lançamentos devem estar apoiados em documentos justificativos, datados e susceptíveis de serem apresentados sempre que necessário”.

 

  1. Aqui chegados, resta concluir que ficou plenamente demostrada a legalidade das correções efetuadas pelos SIT que, deverão manter-se na ordem jurídica, devendo improceder a argumentação expendida pela Requerente, por manifesta falta de prova que contrarie a fundamentação que sustenta os atos tributários impugnados.

 

  1. Finalmente, não se verificando, nos presentes autos, erro imputável aos serviços na liquidação do tributo, não deve ser reconhecido à Requerente qualquer direito a juros indemnizatórios. [...]. [...] a liquidação em causa não provém de qualquer erro dos Serviços, mas decorre diretamente da aplicação da lei. A AT limitou-se, portanto, a aplicar as consequências jurídicas, que, do ponto de vista fiscal, se impunham face à ocorrência dos pressupostos de facto subjacentes à correção efetuada, pelo que deverá ser, também, julgada improcedente a impugnação quanto aos juros peticionados.»

 

4.1. A Requerida conclui pedindo que o pedido de pronúncia arbitral seja julgado improcedente «por não provado e, consequentemente, absolvida a Requerida de todos os pedidos».

 

5. Por despacho de 10/10/2023, o Tribunal Arbitral dispensou a inquirição de testemunhas e prescindiu da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, o que fez ao abrigo dos princípios da autonomia na condução do processo e em ordem a promover a celeridade, simplificação e informalidade deste. Através do referido despacho, foi, ainda, fixado o dia 20/10/2023 para a prolação da decisão arbitral.

 

II. Saneamento

 

6. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, como se dispõe nos artigos 2.º, n.º 1, al. a), e 4.º, ambos do RJAT.

 

7. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (vd. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

 

8. Pelo exposto, e não havendo nulidades, impõe-se proceder ao conhecimento do mérito dos pedidos.

 

III. Questões a decidir

 

9. Na petição arbitral, a Requerente alega, em síntese, que: i) quer quanto às despesas incorridas com deslocações e estadas, quer quanto às despesas de representação, a AT, no Relatório de Inspeção e na Decisão, parte do pressuposto que as despesas em causa foram realizadas no interesse exclusivo do administrador e acionista B... e do seu agregado familiar; ii) tal conclusão é “absolutamente precipitada” face aos esclarecimentos dados pela Requerente e não se baseia em qualquer elemento de prova obtido no procedimento inspetivo; iii) tendo a mesma descrito de que modo as referidas despesas se relacionam com a prossecução dos seus interesses sociais, e não tendo a AT produzido qualquer prova em sentido contrário, no limite estaremos perante uma “fundada dúvida”, que, nos termos do referido normativo, deverá ser decidida em favor do contribuinte; iv) “a qualificação daquelas despesas como afectas à esfera pessoal e familiar do seu acionista e administrador – e portanto alheias ao interesse societário da Requerente –, [...] manifestamente infundada. Daí decorr[e], naturalmente, que a decisão de indeferimento da reclamação graciosa, que ora se impugna, bem como as liquidações de retenção na fonte de IRS, são manifestamente ilegais por erro nos seus pressupostos de facto e de direito, devendo ser integralmente anuladas.”

 

10. Por seu lado, a Requerida alega, em síntese, na sua resposta, que: i) “[a] Requerente alega factos que servem de fundamento e que substancialmente configuram a alegada posição jurídica de que se arroga, sem que o prove”; ii) “[a]s correções em causa estão cabalmente fundamentadas de facto e de direito nos relatórios das ações inspetivas, bem como na decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada, para onde se remete, dando o seu teor por integralmente reproduzido”; iii) “os argumentos agora apresentados pela Requente para justificar os gastos em que incorreu, têm uma natureza geral e vaga e que a mesma se furtou de exibir qualquer elemento documental capaz de demonstrar os motivos e as finalidades para a realização dos acima referidos gastos, e em que medida os mesmos contribuíram para a obtenção de rendimentos por parte da Requerente.”; iv) “ficou plenamente demostrada a legalidade das correções efetuadas pelos SIT que, deverão manter-se na ordem jurídica, devendo improceder a argumentação expendida pela Requerente, por manifesta falta de prova que contrarie a fundamentação que sustenta os atos tributários impugnados”.

 

11. Pelo exposto, conclui-se que a questão essencial a decidir nos presentes autos diz respeito ao apuramento da legalidade da decisão de indeferimento da reclamação graciosa e das liquidações de retenção na fonte de IRS ora em causa, atenta a controvertida questão da prova (ou falta dela), por parte da AT, da ligação das despesas relativas a deslocações e estadas e das despesas de representação com o interesse societário da ora Requerente – visto que a decisão e as liquidações ora em causa basearam-se no entendimento de que tais despesas não são gastos empresariais, i.e., incorridos no interesse da Requerente, antes despesas destinadas a satisfazer os interesses pessoais dos seus accionistas. Subsequentemente, decidir-se-á a questão relativa aos peticionados juros indemnizatórios.

 

IV. Fundamentação

 

IV.1. Matéria de facto

 

12. Com relevância para a decisão, consideram-se assentes e provados os seguintes factos:

A. A Requerente é uma sociedade anónima, detentora de participações sociais e outros activos financeiros, cujo capital social, nos anos respeitantes ao presente caso, era detido por B... (que é identificado nos autos, pelas partes, como B... e que assim será identificado daqui por diante) e pelos seus dois filhos, J... e K... .

B. B... e L... são, desde 2016, administradores da sociedade.

C. O objecto social da Requerente consiste na «Prestação de serviços de consultadoria de gestão, incluindo financeira e administrativa, realização e gestão de investimentos imobiliários, mobiliários e financeiros, aquisição e alienação de valores mobiliários, locação, construção, reabilitação, gestão, administração e conservação de imóveis» (vd. certidão constante de doc. n.º 4 apenso aos autos).

D. A Requerente é acionista de sociedades cotadas em bolsa como a H... , S.A. (“H...”) e a G..., SGPS, S.A. (“G...”), entre outras. No contexto da actividade prosseguida pela Requerente, frequentemente o seu Administrador tem de deslocar-se ao estrangeiro ou a outras cidades do país para se reunir com a banca de investimento ou para explorar oportunidades de negócio.

E. A Requerente detém investimentos financeiros junto de diversas instituições bancárias, com as quais tem mantido uma relação ao longo dos últimos anos, tendo depositado, junto desses bancos, uma série de activos financeiros (vd. relação de compras e vendas de instrumentos financeiros a 31/12/2019 e extractos de contas detidas junto de várias instituições financeiras no doc. n.º 9 apenso aos autos).

F. A Requerente faz uma gestão activa desses instrumentos financeiros, o que implica uma análise criteriosa dos potenciais investimentos e o acompanhamento da evolução dos mercados e dos activos, o que frequentemente requer, como acima referido, a realização de reuniões com os seus gestores de conta e investment bankers.

G. Os actos impugnados resultaram de uma acção de inspecção tributária externa de âmbito parcial, levada a cabo pela AT, a qual inicialmente incidiu sobre o IRC e IVA da ora Requerente (tendo o referido âmbito sido, no decurso da inspecção, alterado para geral) dos exercícios de 2018 e 2019, da qual resultaram as liquidações de IRS e de juros ora em causa, no valor total de €11.457,38.

H. Segundo o RIT que deu origem às liquidações de retenções na fonte de IRS aqui em causa (vd. doc. n.º 5 apenso aos autos), estas têm na sua base as seguintes correcções: i) correcção referente às despesas incorridas pela Requerente com deslocações e estadas durante os exercícios de 2018 e 2019, constante do ponto III.6 do RIT; ii) correcção referente aos gastos incorridos pela Requerente com despesas de representação durante o exercício de 2019, constante do ponto III.7 do RIT.

I. Todos os referidos gastos acima referidos estão devidamente titulados por factura, com excepção de dois registos contabilísticos relativos ao exercício de 2019, cujo documento de suporte eram recibos, e cuja contabilização se tratou de um lapso que foi prontamente corrigido.

J. Os (seis) gastos aqui em causa relativos a deslocações e estadas, analisados no RIT e respeitantes aos exercícios de 2018 e 2019, foram realizados com o propósito de: i) o Administrador da Requerente (B...) se encontrar, em Roma, com um gestor de conta do Banco Intesa Sanpaolo para decidir a possibilidade de a Requerente abrir conta junto dessa instituição financeira, através da qual seriam realizados investimentos em diversos activos financeiros (tal como já acontece com outras instituições, tais como Credit Suisse, banco Julius Baer, Millenium Banque Privée ou Banco BPI) [despesas de deslocação e alojamento em Roma (exercício de 2018) tituladas pelas facturas com as referências C..., Lda., e E..., S.p.A.]; ii) o Administrador da Requerente (B...) se encontrar, em Lisboa, com os gestores de conta do Credit Suisse, bem como com os seus consultores [despesas de estadia em Lisboa (exercícios de 2018 e 2019) tituladas com a referência F..., S.A.]; iii) o Administrador da Requerente (B...) se deslocar aos EUA, com a finalidade de avaliar a oportunidade e adequação da realização de potenciais investimentos em empresas sedeadas naquele país, reunindo-se, para o efeito, com gestores de fundos de investimento especializados em private equity, bem como com um banco americano para ponderar a abertura de uma conta de títulos, bem como com um family office [despesas de deslocação e estadia nos EUA (exercício de 2019) tituladas com as referências C..., Lda., e D..., Lda.].

L. Quanto aos (três) gastos aqui em causa relativos a despesas de representação, analisados no RIT e respeitantes ao exercício de 2019, foram realizados com o propósito de: i) o Administrador da Requerente (B...) se deslocar a Albufeira para ter reuniões tendo em vista o investimento em projectos imobiliários a desenvolver naquela zona [despesa de representação com estadia em Albufeira titulada pela factura com a referência I..., S.A.]; ii) o Administrador da Requerente (B...) se deslocar a Paris para ter reuniões com os gestores de conta do banco Julius Baer, instituição na qual a Requerente tem depositado, ao longo dos últimos anos, uma série de activos financeiros (vd. doc. n.º 10 apenso aos autos) [despesas de representação com deslocação e alojamento em Paris tituladas pelas facturas com as referências D..., Lda., e M..., B.V.].  

M. A Requerente pagou integralmente as liquidações de imposto impugnadas (liquidação de retenção na fonte de IRS 2018 n.º 2021 ... num total a pagar de €2.819,20 e liquidação de retenção na fonte de IRS 2019 n.º 2021 ... num total a pagar de €8.638,18) em 16/2/2022 (cfr. comprovativos de pagamento no doc. n.º 6 apenso).

N. A Requerente apresentou reclamação graciosa dos actos de liquidação de imposto e de juros aqui em causa, tendo sido notificada do projecto de indeferimento em 11/10/2022 (vd. doc. n.º 7 apenso aos autos) e da decisão de indeferimento da reclamação graciosa em 14/11/2022 (vd. doc. n.º 8 apenso aos autos).

O. Inconformada, a ora Requerente apresentou o presente pedido de pronúncia arbitral em 10/2/2023.

 

IV.2. Factos não provados

 

13. Inexistem factos não provados com relevo para a apreciação da causa.

 

IV.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

14. O Tribunal não tem que se pronunciar sobre todos os detalhes da matéria de facto que foi alegada pelas partes, cabendo-lhe o dever de seleccionar os factos que interessam à decisão e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada (cfr. art. 123.º, n.º 2, do CPPT, e art. 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi art. 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

15. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são seleccionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções para o objecto do litígio no direito aplicável (vd. art. 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi art. 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

 

16. A convicção do Tribunal Arbitral fundou-se na livre apreciação das posições assumidas pelas Partes (em sede de facto) e no teor dos documentos juntos aos presentes autos, não contestados.

 

IV.4. Matéria de Direito

 

IV.4.1. Questão de fundo

 

17. No entender da ora Requerente, “a decisão de indeferimento da reclamação graciosa, que ora [...] impugna, bem como as liquidações de retenção na fonte de IRS, são manifestamente ilegais por erro nos seus pressupostos de facto e de direito”.

 

18. Em maior detalhe, alega a ora Requerente, em síntese, que: i) quer quanto às despesas incorridas com deslocações e estadas, quer quanto às despesas de representação, a AT, no Relatório de Inspeção e na Decisão, parte do pressuposto que as despesas em causa foram realizadas no interesse exclusivo do administrador e acionista B... e do seu agregado familiar; ii) tal conclusão é “absolutamente precipitada” face aos esclarecimentos dados pela Requerente e não se baseia em qualquer elemento de prova obtido no procedimento inspetivo; iii) tendo a mesma descrito de que modo as referidas despesas se relacionam com a prossecução dos seus interesses sociais, e não tendo a AT produzido qualquer prova em sentido contrário, no limite estaremos perante uma “fundada dúvida”, que, nos termos do referido normativo, deverá ser decidida em favor do contribuinte; iv) “a qualificação daquelas despesas como afectas à esfera pessoal e familiar do seu acionista e administrador – e portanto alheias ao interesse societário da Requerente –, [...] manifestamente infundada. Daí decorr[e], naturalmente, que a decisão de indeferimento da reclamação graciosa, que ora se impugna, bem como as liquidações de retenção na fonte de IRS, são manifestamente ilegais por erro nos seus pressupostos de facto e de direito, devendo ser integralmente anuladas.”

 

19. Por seu lado, a Requerida alega, em síntese, na sua resposta, que: i) “[a] Requerente alega factos que servem de fundamento e que substancialmente configuram a alegada posição jurídica de que se arroga, sem que o prove”; ii) “[a]s correções em causa estão cabalmente fundamentadas de facto e de direito nos relatórios das ações inspetivas, bem como na decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada, para onde se remete, dando o seu teor por integralmente reproduzido”; iii) “os argumentos agora apresentados pela Requerente para justificar os gastos em que incorreu, têm uma natureza geral e vaga e que a mesma se furtou de exibir qualquer elemento documental capaz de demonstrar os motivos e as finalidades para a realização dos acima referidos gastos, e em que medida os mesmos contribuíram para a obtenção de rendimentos por parte da Requerente.”; iv) “ficou plenamente demostrada a legalidade das correções efetuadas pelos SIT que, deverão manter-se na ordem jurídica, devendo improceder a argumentação expendida pela Requerente, por manifesta falta de prova que contrarie a fundamentação que sustenta os atos tributários impugnados”.

 

20. Vejamos, então.

 

21. A questão essencial que aqui se coloca é a de saber se, para efeitos de aferição da legalidade da decisão de indeferimento da reclamação graciosa e das liquidações de retenção na fonte de IRS ora em causa, foi ou não feita a prova, por parte da Requerente (ou a demonstração da falta dessa prova por parte da AT), da ligação das despesas relativas a deslocações e estadas e das despesas de representação com o interesse societário da ora Requerente – visto que a decisão e as liquidações ora em causa basearam-se no entendimento de que tais despesas não são gastos empresariais, i.e., incorridos no interesse da Requerente, antes despesas destinadas a satisfazer os interesses pessoais dos seus accionistas.

 

22. A este respeito, é necessário notar, antes do mais, que, como decorre da factualidade dada como provada: i) a Requerente detém, comprovadamente, investimentos financeiros junto de diversas instituições bancárias, com as quais tem mantido uma relação ao longo dos últimos anos, tendo depositado, junto desses bancos, uma série de activos financeiros [vd. al. E) da factualidade provada]; ii) no contexto da actividade prosseguida pela Requerente, frequentemente o seu Administrador tem de deslocar-se ao estrangeiro ou a outras cidades do país para se reunir com a banca de investimento ou para explorar oportunidades de negócio; como a Requerente faz uma gestão activa desses instrumentos financeiros, que implica uma análise criteriosa dos potenciais investimentos e o acompanhamento da evolução dos mercados e dos activos, tal frequentemente requer, como se disse, a realização de reuniões com os seus gestores de conta e investment bankers [vd. als. D) e F) da factualidade provada]; iii) todos os gastos (seja os incorridos pela Requerente com deslocações e estadas, seja os incorridos com despesas de representação) que deram origem às liquidações de IRS ora em causa encontram-se devidamente titulados por factura [vd. al. I) da factualidade provada], não tendo a veracidade das mesmas sido colocada em causa nestes autos.

 

23. Tendo presente o acima exposto, cabe agora determinar se, como defende a Requerida, “[a]s correções em causa estão cabalmente fundamentadas de facto e de direito nos relatórios das ações inspetivas, bem como na decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada”, visto que, em seu entender, “os argumentos agora apresentados pela Requerente para justificar os gastos em que incorreu, têm uma natureza geral e vaga e que a mesma se furtou de exibir qualquer elemento documental capaz de demonstrar os motivos e as finalidades para a realização dos acima referidos gastos, e em que medida os mesmos contribuíram para a obtenção de rendimentos por parte da Requerente.”; ou se, como alega a Requerente, todos os gastos em causa, para além de estarem devidamente titulados por factura, estão relacionados com a prossecução dos seus interesses sociais” – razão pela qual conclui que “a AT [não] produzi[u] qualquer prova em sentido contrário” e considera que “a qualificação daquelas despesas como afectas à esfera pessoal e familiar do seu acionista e administrador – e portanto alheias ao interesse societário da Requerente –, [...] [se mostra] manifestamente infundada”.

 

24. Com base nos elementos que foram trazidos aos presentes autos, verifica-se que as despesas ora em causa se encontram justificadas porque as mesmas foram incorridas tendo em vista o interesse societário da ora Requerente [vd. als. J) e L) da factualidade provada], não tendo sido trazidos aos autos provas ou indícios fundados de que as mesmas foram realizadas no interesse exclusivo do administrador e acionista B... e do seu agregado familiar: 

 

A) Os (seis) gastos aqui em causa relativos a deslocações e estadas, analisados no RIT e respeitantes aos exercícios de 2018 e 2019, foram realizados com o propósito de: i) o Administrador da Requerente (B...) se encontrar, em Roma, com um gestor de conta do Banco Intesa Sanpaolo para decidir a possibilidade de a Requerente abrir conta junto dessa instituição financeira, através da qual seriam realizados investimentos em diversos activos financeiros (tal como já acontece com outras instituições, tais como Credit Suisse, banco Julius Baer, Millenium Banque Privée ou Banco BPI) [despesas de deslocação e alojamento em Roma (exercício de 2018) tituladas pelas facturas com as referências C..., Lda., e E..., S.p.A.]; ii) o Administrador da Requerente (B...) se encontrar, em Lisboa, com os gestores de conta do Credit Suisse, bem como com os seus consultores [despesas de estadia em Lisboa (exercícios de 2018 e 2019) tituladas com a referência F..., S.A.]; iii) o Administrador da Requerente (B...) se deslocar aos EUA, com a finalidade de avaliar a oportunidade e adequação da realização de potenciais investimentos em empresas sedeadas naquele país, reunindo-se, para o efeito, com gestores de fundos de investimento especializados em private equity, bem como com um banco americano para ponderar a abertura de uma conta de títulos, bem como com um family office [despesas de deslocação e estadia nos EUA (exercício de 2019) tituladas com as referências C..., Lda., e D..., Lda.].  

 

B) Quanto aos (três) gastos aqui em causa relativos a despesas de representação, analisados no RIT e respeitantes ao exercício de 2019, foram realizados com o propósito de: i) o Administrador da Requerente (B...) se deslocar a Albufeira para ter reuniões tendo em vista o investimento em projectos imobiliários a desenvolver naquela zona [despesa de representação com estadia em Albufeira titulada pela factura com a referência I..., S.A.]; ii) o Administrador da Requerente (B...) se deslocar a Paris para ter reuniões com os gestores de conta do banco Julius Baer, instituição na qual a Requerente tem depositado, ao longo dos últimos anos, uma série de activos financeiros (vd. doc. n.º 10 apenso aos autos) [despesas de representação com deslocação e alojamento em Paris tituladas pelas facturas com as referências D..., Lda., e M..., B.V.].

 

25. Do conjunto dos elementos acima referidos – e das considerações feitas pela AT quanto à oportunidade ou mérito das despesas em causa: “[não obstante os] instrumentos financeiros que a sociedade possa deter noutros países [...] [tal] não implic[a] uma deslocação do administrador a esses locais” (vd. pág. 15 do RIT) – decorre a conclusão de que os gastos incorridos pelo Administrador B...: i) não permitem, pelo menos à falta de prova mais consistente, a qualificação dessas despesas como tendo sido afectas à esfera pessoal e familiar do referido Administrador e, portanto, alheias ao interesse societário da Requerente; ii) não têm a sustentá-los justificações vagas ao ponto de se poder afirmar, como o faz a Requerida, que os argumentos apresentados (também nesta sede) pela Requerente têm “natureza geral e vaga e que a mesma se furtou de exibir qualquer elemento documental capaz de demonstrar os motivos e as finalidades para a realização dos acima referidos gastos, e em que medida os mesmos contribuíram para a obtenção de rendimentos por parte da Requerente”.

 

26. Quanto a este último ponto, convém relembrar, uma vez mais, que todos os gastos em causa estão devidamente titulados por factura. E que dessas facturas, bem como das explicações dadas pela Requerente, pode inferir-se, com razoabilidade, que esses gastos foram feitos no interesse da ora Requerente (e não do referido Administrador). A Requerida, por seu lado, não apresenta provas que inequivocamente demonstrem a alegada prossecução do interesse pessoal do supra referido Administrador e limita-se a invocar a falta de “quaisquer documentos, designadamente contratos, orçamentos, descrição dos negócios a realizar bem como correspondência trocada com as agências e entidades indicadas, indicação das datas da estadia [que] pudessem suportar as [...] indicações [da Requerente].”

 

27. No mesmo sentido, e como se pode ler na pág. 16 do RIT (pág. reproduzida pela Requerente e pela Requerida), a AT entende, ainda, que “[a]s informações prestadas pelo sujeito passivo em resposta à nossa notificação são demasiado generalistas ao afirmarem que o administrador se deslocou em viagem de negócios, sem identificar o negócio em concreto e em que medida o gasto suportado é necessário para que a empresa obtenha ou garanta rendimentos sujeitos a imposto”. Contudo, parece que se ignora que competia à AT, nos termos do art. 74.º, n.º 1, da LGT, fazer a prova dos pressupostos da sua acção para poder afastar a presunção de veracidade de que gozam as declarações dos contribuintes (art. 75.º, n.º 1, da LGT).

 

28. Convém ainda notar que, desde as alterações introduzidas ao art. 23.º do CIRC pela Lei n.º 2/2014, de 16/1, apenas se exige que o gasto a analisar tenha uma relação com a actividade da Requerente e que o mesmo seja incorrido para (ainda que de forma indirecta ou mediata) obter rendimentos para a Requerente; e não se prevê, nessa norma, que a AT possa decidir com base na oportunidade ou no mérito que esta vislumbra no gasto para fins de obtenção de rendimentos. Contudo, tal juízo transparece do entendimento da AT expresso no RIT apenso aos autos (e também citado pelas partes) quando esta afirma que “não se vislumbra qualquer relação entre as deslocações efectuadas e a actividade da empresa bem como a sua contribuição para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC”, nomeadamente porque “[o]s eventuais instrumentos financeiros que a sociedade possa deter [...] [na] Itália ou Estados Unidos não implicam uma deslocação do administrador a esses locais”[2].

 

29. A este respeito, e tendo presente o princípio da liberdade de gestão, ter-se-á de concluir que, pelo contrário, nada impede que os gastos com as referidas deslocações para o estrangeiro possam estar justificados em sede de IRC, desde que dos mesmos se possa extrair a ligação com o interesse societário e o propósito de visar a obtenção de rendimentos para a Requerente – sem que se tenha, ao final e obrigatoriamente, de registar a obtenção efectiva de um rendimento (do mesmo modo, também não se afigura como critério admissível a aceitação ou a recusa desses gastos em função da maior ou menor dimensão relativa dos rendimentos que, através daqueles, a Requerente poderá obter – ainda que se deva acrescentar que, no presente caso, os valores implicados em operações financeiras de compra e venda de instrumentos financeiros nos anos em causa são de valor significativo, como se pode observar pelo mapa de mais e menos-valias constante do RIT apenso aos presentes autos).

 

30. É também importante notar que, como bem refere a Requerente, “não havendo uma norma que presuma que todos os gastos [considerados] não-dedutíveis, para efeitos fiscais, na esfera de uma sociedade, são considerados como ‘adiantamentos por conta de lucros’ – conforme existe, por exemplo, para os lançamentos em contas correntes a favor dos sócios não relacionados com a actividade social (cfr. artigo 6.º, n.º 4 do Código do IRS) – o [alegado] carácter ‘não-profissional’ que justifica a não dedutibilidade em sede de IRC não pode per si servir de base à aplicação de taxas liberatórias sem antes passar o crivo das regras de prova.”

 

31. De facto, mesmo que se conclua pela eventual não-dedutibilidade de um gasto em sede de IRC, tal não permite, ipso facto e sem serem cumpridas as regras gerais do ónus da prova em procedimento tributário, sujeitar o mesmo a IRS na esfera do sócio a título de adiantamento por conta dos lucros da sociedade.

 

32. Com efeito, verifica-se, pela leitura dos presentes autos, que, não tendo havido a necessária demonstração (ou demonstração que pudesse dissipar as fundadas dúvidas que a Requerente levantou a esse respeito, também nestes autos) de que se está perante adiantamentos por conta de lucros, a AT limita-se a concluir que os gastos ora em causa (por não terem, em seu entender, justificação empresarial), configuravam, automaticamente, “despesas com carácter particular e pessoal, em [...] benefício [do Administrador acima referido] ou do seu agregado familiar”. Contudo, e em face da prova produzida nestes autos – a qual não permite sustentar ou confirmar o alegado carácter particular e pessoal das despesas em causa –, não se poderá ignorar que, nos termos do n.º 1 do artigo 100.º do CPPT, “sempre que da prova produzida [no processo] resulte a fundada dúvida sobre a existência e quantificação do facto tributário, deverá o acto impugnado ser anulado”.

 

33. No mesmo sentido expresso nesta decisão arbitral, vd., por ex.: “[tendo a recorrente sido] diligente na produção de contraprova destinada a suscitar a dúvida sobre os factos evidenciados pela AT como constitutivos do direito a que esta se arroga, [pode], sem margem para qualquer dúvida, reclamar a aplicação da regra prevista no artigo 100.º, n.º 1, do CPPT.” (Ac. do TCAN de 3/2/2022, proc. 00058/10.4BEBRG); “[...] acompanha-se o entendimento da ilegitimidade da administração pública, rectius da administração fiscal, em emitir juízos de valor sobre a bondade da gestão empresarial prosseguida, na esteira do escopo societário, mas apenas quando tal juízo de valor reflicta uma pronúncia sobre a oportunidade de determinado tipo de conduta empresarial e, por maioria de razão, sobre a orientação dessa mesma conduta, enquanto conduta devida para a obtenção de ganhos, ou seja, acolhe-se o argumento de que a emissão de um juízo de valor sobre ‘(...) a bondade da gestão empreendida (...)’, por parte da AF, é ilegítimo para qualificação de uma determinada despesa enquanto custo ao abrigo do art.º 23.º/1 se e na medida em que essa aferição repousar numa ponderação de causalidade entre o custo e os proveitos. Assim sendo, neste domínio, porque o preceito existe e tem de ter aplicabilidade prática, apenas não será de aceitar como custos fiscais relevantes e, por isso, dedutíveis, aqueles que, independentemente de corresponderem a uma correcta ou incorrecta actuação de gestão, não forem, objectivamente, adequados ao desenvolvimento da actividade da empresa. [...]. Se a decisão teve na sua génese tão só o interesse da empresa, o prosseguimento do seu objecto social, tal como os seus sócios e gestores, bem ou mal não interessa, ao tempo o interpretaram, o custo não pode deixar de ser havido como indispensável. [...]. [...] ainda que se considere que a correcção efectuada tem amparo no art. 23.º do CIRC, não resulta que de tal desconsideração se possa inexoravelmente concluir que os valores em causa se tratavam de adiantamentos por conta de lucros, sendo que era a Administração Tributária que tinha o ónus de alegar e provar factos donde se pudesse extrair a conclusão atrás referida, atento o disposto no artigo 74.º da LGT” (Ac. do TCAS de 16/10/2012, proc. 05014/11); “[se relacionadas com o objecto social da sociedade recorrida] não pode a Fazenda Pública desconsiderar como custos [...] [as] viagens e estadias do sócio [...] sem que tal correcção se deva considerar como entrando pelo campo, verdadeiramente subjectivo, da boa (ou má) gestão empresarial e da consequente e efectiva relevância dos ditos custos no conjunto dos proveitos obtidos pelo sujeito passivo [...]. Por outras palavras, é entendimento da jurisprudência e doutrina que a A. Fiscal não pode avaliar a indispensabilidade dos custos à luz de critérios incidentes sobre a oportunidade e mérito da despesa. Um custo é indispensável quando se relacione com a actividade da empresa, sendo que os custos estranhos à actividade da empresa serão apenas aqueles em que não seja possível descortinar qualquer nexo causal com os proveitos ou ganhos (ou com o rendimento, na expressão actual do código - cfr. art. 23.º, n.º 1, do CIRC), explicado em termos de normalidade, necessidade, congruência e racionalidade económica (cfr. ac. STA-2.ª Secção, 21/04/2010, rec. 774/09; ac. STA-2.ª Secção, 13/02/2008, rec. 798/07; ac. TCASul-2.ª Secção, 17/11/2009, proc. 3253/09).” (Ac. do TCAS de 16/10/2014, proc. 06754/13); “Estão vedadas à AT atuações que coloquem em causa o princípio da liberdade de gestão e de autonomia da vontade do sujeito passivo. [...]. Não tendo sido colocada em causa a efetividade das despesas, estando as mesmas devidamente suportadas em documentos idóneos, contabilizadas em conformidade e estando evidenciado o fee pago e os fins para os quais a Recorrida o suporta, e alocando-o ao objeto societário da mesma, tais despesas devem ser integralmente dedutíveis, como custos fiscais.” (Ac. do TCAS de 30/6/2022, proc. 750/09.6 BELRS).     

 

34. Assim, e em face do supra exposto, conclui-se que a decisão de indeferimento da reclamação graciosa bem como as liquidações de retenção na fonte de IRS, ora em causa, são ilegais por erro nos seus pressupostos de facto e de direito, o que determina a anulação das mesmas (e das respectivas demonstrações de liquidação de juros compensatórios).

 

IV.4.2. Juros indemnizatórios

 

35. A Requerente solicita ainda que lhe seja reconhecido o direito a juros indemnizatórios, ao abrigo do disposto no artigo 43.º da LGT. Nos termos do n.º 1 do referido artigo, serão devidos juros indemnizatórios “quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.” Decorre, ainda, do n.º 5 do art. 24.º do RJAT que o direito aos mencionados juros pode ser reconhecido no processo arbitral.

 

36. O direito a juros indemnizatórios a que alude a norma da LGT supra referida pressupõe que haja sido pago imposto por montante superior ao devido e que tal derive de erro, de facto ou de direito, imputável aos serviços da AT. Ora, no caso dos autos, é manifesto que, atendendo à ilegalidade dos actos impugnados, pelas razões apontadas, a Requerente efectuou o pagamento de importância indevida.

 

37. Assim sendo, reconhece-se à Requerente o direito aos juros indemnizatórios peticionados, contados, à taxa legal, sobre o montante indevidamente cobrado, desde a data do respectivo pagamento até ao momento do efectivo reembolso (vd. artigo 43.º, n.º 1, da LGT, e artigo 61.º do CPPT).

 

 

V. DECISÃO

 

Em face do supra exposto, o Tribunal Arbitral decide:

 

- Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, consequentemente, determinar a anulação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa e das liquidações de retenção na fonte de IRS, ora em causa, com o consequente reembolso do valor indevidamente cobrado, acrescido dos correspondentes juros indemnizatórios.

 

VI. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em €11.457,38 (onze mil quatrocentos e cinquenta e sete euros e trinta e oito cêntimos), nos termos do disposto no artigo 32.º do CPTA e no artigo 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

VII. Custas

Nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, as custas são no valor de €918,00 (novecentos e dezoito euros), a pagar pela Requerida, conformemente ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

Notifique-se.

Lisboa, 20 de Outubro de 2023.

 

O Árbitro

 

 

(Miguel Patrício)

 

 

A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.

 

 

 



[1] De acordo com o Despacho de Retificação de 2023-10-30.

[2] Em idêntico sentido, a Requerida alega, na sua resposta nestes autos, que “os vários motivos apontados pela Requerente para a realização das preditas deslocações, além de genéricos, não se encontram nem substanciados, nem documentalmente comprovados, apenas fazendo menção a ‘possibilidades de investimento’ e ‘possibilidades de abertura de contas bancárias’, estribando-se ainda em supostas reuniões com gestores de conta da instituição bancária Credit Suisse, reuniões essas que eram de tal modo importantes que obrigavam à deslocação de uns e de outros, sem contudo sequer referir as causas das mesmas. [...] não se vislumbra [...] qualquer relação entre as deslocações efetuadas e a sua própria atividade, bem como a contribuição das mesmas para obter ou garantir rendimentos sujeitos a IRC. Pelo contrário, veja-se que por um lado as participações sociais mais relevantes que a Requerente detém e que são responsáveis pela maior parte dos seus rendimentos obtidos, dizem respeito a empresas Portuguesas – ‘G...’ e a ‘H...’. Por outra via, os eventuais instrumentos financeiros que a Requerente possa deter noutros países, não implicam necessariamente uma deslocação do seu Administrador a esses mesmos locais, dado que todas as operações relacionadas com esses ativos envolvem instituições bancárias sediadas na Suíça e Luxemburgo, como o ‘Julius Baer’ e ‘Credit Suisse’, instituições essas que recebem diretamente ordens de compra ou venda de determinado ativo e agem em conformidade.” (§§ 49.º a 52.º).