Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 854/2019-T
Data da decisão: 2020-06-09  IVA  
Valor do pedido: € 272.973,13
Tema: IVA - Locação financeira e ALD; Cálculo do pro rata; Direito à dedução. Ofício-Circulado n.º 30108.
* Cf. o acórdão do STA, Processo n.º 87/20.0BALSB, que anula a decisão arbitral recorrida e fixa jurisprudência no sentido exposto em 2.2.3. do acórdão
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Decisão Arbitral

 

Os árbitros Juiz José Poças Falcão (árbitro-presidente), Dr. José Coutinho Pires e Professora Doutora Nina Aguiar (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 05-02-2020, acordam no seguinte:

         

                1. Relatório

 

A..., S.A. (doravante simplesmente “A...” ou “Requerente”), titular do número de identificação fiscal e de pessoa colectiva ..., com sede na Rua ..., ..., ...-... Lisboa (doravante, a "Requerente"), apresentou em 12-12-2019, ao abrigo do disposto no Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante “RJAT”), e no artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 81/2018, de 15 de Outubro de 2018, pedido de pronúncia arbitral tendo em vista a anulação dos actos tributários consubstanciados nas declarações periódicas de IVA respeitantes aos períodos de 2012/10, 2012/11, 2012/12.

O pedido de pronúncia arbitral foi efectuado ao abrigo do Decreto-Lei n.º 81/2018, que deu a possibilidade de submeter aos tribunais arbitrais tributários, dentro das respectivas competências, as pretensões formuladas em processos de impugnação judicial que se encontrem pendentes de decisão em primeira instância nos tribunais tributários, e que nestes tenham dado entrada até 31 de Dezembro de 2016.

No caso, ao abrigo da referida norma, a Requerente veio submeter ao Tribunal arbitral pretensão formulada no processo nº .../13...BELRS, junto do Tribunal Tributário de Lisboa, e pendente na data do pedido.

Além da anulação do atos acima referenciados, a Requerente pede ainda restituição da quantia de € 272.973,13 referente ao IVA não deduzido, acrescida dos juros legais contados desde a data da apresentação das respectivas declarações periódicas relativas aos períodos de de 2012/10, 2012/11, 2012/12, até à data da respectiva restituição.

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante também identificada por “AT” ou simplesmente “Administração Tributária”).

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 13-12-2019.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 04-02-2020, foram as Partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados das alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 05-03-2020.

A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta em que defendeu a improcedência da impugnação, além do mais, reproduzindo a contestação apresentada no processo n.º .../13...BELRS do Tribunal Tributário de Lisboa.

Por despacho de 08-05-2020, foi decidido dispensar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e alegações.

O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado na alínea e) do n.º 1 do artigo 2.º, e do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do RJAT e é competente.

As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O processo não enferma de nulidades.

 

2. Matéria de facto

2.1. Factos provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

 

A)           A Requerente é uma instituição de crédito que desenvolve simultaneamente actividade de locação financeira e aluguer de longa duração (ALD).

B)           No dia 15 de Novembro de 2012, a Requerente submeteu, via Internet, a declaração periódica de IVA relativa ao mês de Outubro de 2012 (documento n.º 1 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

C)           No dia 12 de Dezembro de 2012, a Requerente submeteu, via Internet, a declaração periódica de IVA relativa ao mês de Novembro de 2012 (documento n.º 2 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

D)           No dia 21 de Janeiro de 2013, a Requerente submeteu, via Internet, a declaração periódica de IVA relativa ao mês de Dezembro de 2012 (documento n.º 3 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

E)            A Requerente é, para efeitos de IVA, um sujeito passivo misto (realiza operações que conferem o direito a dedução e operações que não conferem direito a dedução;

F)            Nas declarações periódicas relativas aos três períodos do exercício de 2012 aqui em causa, o IVA foi determinado com base no cálculo do pro rata provisório, correspondente ao pro rata definitivo para o exercício de 2011;

G)           Na declaração do período 2012/12, apresentada a 21 de Janeiro de 2013 a Requerente corrigiu os valores deduzidos ao longo do ano de acordo com o pro rata determinado para o exercício de 2012;

H)           Nessas mesmas declarações, a Requerente, na determinação do cálculo do pro rata, excluiu do numerador as amortizações financeiras relativas aos contratos de locação financeira e os valores de alienação/abate por destruição de bens locados (documento n.º 6 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

I)             Incluindo no cálculo do pro rata o valor das amortizações financeiras e os valores de alienação/abate por destruição de bens locados apura-se o pro rata definitivo de 66% para o ano de 2011 e o valor de IVA dedutível de € 437.048,18 nos três períodos a que se referem as declarações impugnadas (documentos n.ºs 6 e 7 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos, artigos 14.º e 15.º do pedido de pronúncia arbitral, não questionados);

J)            Não incluindo no cálculo do pro rata o valor das amortizações financeiras e os valores de alienação/abate por destruição de bens locados, apura-se o pro rata definitivo de 22% para o ano de 2011 e, nos três períodos a que se referem as declarações impugnadas, fixando-se o valor de IVA dedutível em € 146.325,67 (documentos n.ºs 6 e 7 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos e artigos 14.º e 15.º do pedido de pronúncia arbitral, não questionados);

K)           A Requerente passou a desconsiderar do numerador e do denominador as amortizações financeiras relativas aos contratos de locação financeira e os valores de alienação/abate por destruição de bens locados, em virtude da posição adoptada pela Autoridade Tributária e Aduaneira no Ofício-Circulado n.º 30108, de 30-01-2009, sancionado pelo Director Geral e seguida pelos Serviços de Inspecção em sede de inspecção junto da Requerente em exercícios anteriores (documentos n.ºs 8 e 9 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos);

L)            Por força dos contratos de Leasing celebrados nos três períodos de 2012 aqui em causa, a Requerente, a solicitação e indicação do Locatário (Cliente), adquiriu determinado veículo a terceiro, procedendo ao pagamento integral e a pronto do mesmo, acrescido de IVA, entregando-o de imediato, para uso e fruição – ao abrigo e segundo os termos e condições constantes do aludido contrato – ao Locatário (documento n.º 10 e artigo 23.º do pedido de pronúncia arbitral, não questionado);

M)          Como contrapartida pela referida prestação de serviços, o Locatário fica obrigado a pagar à Requerente uma retribuição a qual assume a forma de renda, em cujo cálculo são considerados o preço de aquisição do bem (veículo), os encargos e a margem de lucro (documento n.º 10 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido e artigo 25.º do pedido de pronúncia arbitral);

N)           Nos termos do Contrato de Leasing, o Locatário pode, no final do contrato e se assim o pretender adquirir o bem ao Locador (A...) mediante o pagamento do valor residual (documento n.º 10 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido e artigo 26.º do pedido de pronúncia arbitral, não questionado);

O)           Por força dos contratos de ALD Financeiro celebrados pela Requerente nos três meses de 2012 aqui em causa, esta adquiriu determinado veículo a terceiro, procedendo ao pagamento imediato do mesmo, cedendo-o, ao abrigo e segundo os termos e condições constantes do aludido contrato, ao Locatário (Cliente da Requerente), para uso e fruição que abrangesse “a maior parte da vida útil do bem” (cópia de um contrato de ALD Financeiro que consta do documento n.º 11 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

P)           Como contrapartida pela prestação de serviços realizada no âmbito do contrato de ALD, o Locatário fica obrigado a pagar ao A... uma retribuição, a qual assume a forma de renda, para cuja determinação são considerados, designadamente, os seguintes factores: o preço de aquisição do bem (veículo), os demais encargos e a margem de lucro (documento n.º 11 e artigo 30.º do pedido de pronúncia arbitral, não questionado);

Q)           Também nos contratos de ALD Financeiro, o Locatário tem a possibilidade de, no final do contrato, adquirir o bem ao Locador (A...) mediante o pagamento de um montante adicional (documento n.º 11 e artigo 31.º do pedido de pronúncia arbitral, não questionado);

R)           Nas situações em que não houve transmissão da propriedade – quer porque os contratos de Leasing ou de ALD Financeiro foram resolvidos por incumprimento do Locatário, quer porque este, no final do contrato, não accionou a opção de compra constante dos mesmos –, os veículos foram vendidos pela Requerente a diversas entidades tendo acrescido IVA aos valores das vendas (artigos 33.º e 34.º do pedido de pronúncia arbitral, não questionados e documento n.º 12);

S)            Nos casos em que os contratos foram resolvidos por ocorrência de perda total do bem, o Locatário fica obrigado, nos termos do contrato de locação financeira, a pagar o capital em dívida (documento n.º 10 e artigo 36.º do pedido de pronúncia arbitral não questionado);

T)            Nos casos em que esta situação ocorreu, a Requerente emitiu factura pelo montante em dívida ao qual acresce, nos termos legais, o respectivo IVA (cópia da factura aqui se junta que consta do documento n.º 13 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

U)           Nas operações sujeitas, Leasing e ALD, a Requerente liquidou IVA sobre o valor total da renda (documentos n.ºs 14 e 15 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos);

V)           No caso das operações não sujeitas, como a concessão de crédito para estudo, viagens ou mobiliário, a Requerente não liquidou IVA no período em causa, sujeitando as referidas operações a Imposto do Selo (verba 17 da Tabela Geral do Imposto do Selo, doravante TGIS) na parte relativa aos juros (documentos n.ºs 16 e 17 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos e artigo 39.º do pedido de pronúncia arbitral);

W)          Em 13-02-2013, a Requerente deduziu impugnação judicial no Tribunal Tributário de Lisboa tendo por objecto as autoliquidações em causa no presente processo, dando origem ao processo n.º processo n.º .../13...BELRS, em que foi declarada extinta a instância, por sentença de 04-12-2019, ao abrigo do artigo 11.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 81/2018, de 15 de Outubro (documentos n.ºs 4 e 5 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos);

 

 

2.2. Factos não provados e fundamentação da decisão da matéria de facto

 

A fixação da matéria de facto baseia-se nos documentos juntos pela Requerente e em afirmações que faz que não são questionadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira.

A Autoridade Tributária e Aduaneira não apresentou processo administrativo.

Quanto ao cálculo do pro rata, designadamente as percentagens de dedução e os valores em causa que resultam dos dois métodos de cálculo referidos nos autos, a Autoridade Tributária e Aduaneira não impugna os documentos apresentados pela Requerente, nem apresenta quaisquer valores alternativos, pelo que se consideram provados os valores indicados pela Requerente.

Não se provou que a Requerente tenha efectuado o pagamento das quantias que, nos termos das declarações de autoliquidação, deveriam ser entregues ao Estado, nem as datas em que os eventuais pagamentos tenham ocorrido. Na verdade, não consta do processo qualquer comprovativo de pagamentos e eles, a terem ocorrido, não tinham de ser efectuados nas datas da apresentação das declarações.

 

3. Matéria de direito

 

A questão objecto do presente processo é a de saber se os valores das rendas facturadas no âmbito dos contratos de locação financeira e aluguer de longa duração e os valores de alienação/abate por destruição de bens locados no âmbito dos mesmos contratos devem ser incluídos no cálculo do apuramento do montante do imposto (imposto sobre o valor acrescentado) dedutível, quando esteja em causa um método de apuramento proporcional ou pro rata.

A Requerente defende que tais valores devem ser incluídos, invocando jurisprudência arbitral.

A Autoridade Tributária e Aduaneira, na linha das orientações genéricas que publicou, a última através do Ofício Circulado n.º 30108, de 20-01-2009, defende que tais valores não devem ser incluídos no cálculo do pro rata.

Os artigos 173.º e 174.º da Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006, estabelecem o seguinte:

Artigo 173.º

1. No que diz respeito aos bens e aos serviços utilizados por um sujeito passivo para efectuar tanto operações com direito à dedução, referidas nos artigos 168.º, 169.º e 170.º, como operações sem direito à dedução, a dedução só é admitida relativamente à parte do IVA proporcional ao montante respeitante à primeira categoria de operações.

O pro rata de dedução é determinado, em conformidade com os artigos 174.º e 175.º, para o conjunto das operações efectuadas pelo sujeito passivo.

2. Os Estados–Membros podem tomar as medidas seguintes:

               

a) Autorizar o sujeito passivo a determinar um pro rata para cada sector da respectiva actividade, se tiver contabilidades distintas para cada um desses sectores;

b) Obrigar o sujeito passivo a determinar um pro rata para cada sector da respectiva actividade e a manter contabilidades distintas para cada um desses sectores;

c) Autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na afectação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços;

d) Autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução, em conformidade com a regra estabelecida no primeiro parágrafo do n.º 1, relativamente a todos os bens e serviços utilizados nas operações aí referidas;

e) Estabelecer que não seja tomado em consideração o IVA que não pode ser deduzido pelo sujeito passivo, quando o respectivo montante for insignificante. Autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na afectação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços;

 

Artigo 174.º

1. O pro rata de dedução resulta de uma fracção que inclui os seguintes montantes:

a) No numerador, o montante total do volume de negócios anual, líquido de IVA, relativo às operações que confiram direito à dedução em conformidade com os artigos 168.º e 169.º;

b) No denominador, o montante total do volume de negócios anual, líquido de IVA, relativo às operações incluídas no numerador e às operações que não confiram direito à dedução.

Os Estados–Membros podem incluir no denominador o montante das subvenções que não sejam as directamente ligadas ao preço das entregas de bens ou das prestações de serviços referidas no artigo 73.º.

2. Em derrogação do disposto no n.º 1, no cálculo do pro rata de dedução não são tomados em consideração os seguintes montantes:

a) O montante do volume de negócios relativo às entregas de bens de investimento utilizados pelo sujeito passivo na sua empresa;

b) O montante do volume de negócios relativo às operações acessórias imobiliárias e financeiras;

c) O montante do volume de negócios relativo às operações referidas nas alíneas b) a g) do n.º 1 do artigo 135.º, se se tratar de operações acessórias.

3. Quando façam uso da faculdade prevista no artigo 191.º de não exigir a regularização em relação aos bens de investimento, os Estados–Membros podem incluir o produto da cessão desses bens no cálculo do pro rata de dedução.

 

O artigo 23.º do CIVA estabelece o seguinte, quanto ao que está em causa no presente processo:

 

Artigo 23.º

 

Métodos de dedução relativa a bens de utilização mista

 

1 - Quando o sujeito passivo, no exercício da sua actividade, efectuar operações que conferem direito a dedução e operações que não conferem esse direito, nos termos do artigo 20.º, a dedução do imposto suportado na aquisição de bens e serviços que sejam utilizados na realização de ambos os tipos de operações é determinada do seguinte modo:

 

a) Tratando-se de um bem ou serviço parcialmente afecto à realização de operações não decorrentes do exercício de uma actividade económica prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, o imposto não dedutível em resultado dessa afectação parcial é determinado nos termos do n.º 2;

 

b) Sem prejuízo do disposto na alínea anterior, tratando-se de um bem ou serviço afecto à realização de operações decorrentes do exercício de uma actividade económica prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, parte das quais não confira direito à dedução, o imposto é dedutível na percentagem correspondente ao montante anual das operações que dêem lugar a dedução.

 

2 - Não obstante o disposto da alínea b) do número anterior, pode o sujeito passivo efectuar a dedução segundo a afectação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados, com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito a dedução e em operações que não conferem esse direito, sem prejuízo de a Direcção-Geral dos Impostos lhe vir a impor condições especiais ou a fazer cessar esse procedimento no caso de se verificar que provocam ou que podem provocar distorções significativas na tributação.

 

3 - A administração fiscal pode obrigar o sujeito passivo a proceder de acordo com o disposto no número anterior:

 

a) Quando o sujeito passivo exerça actividades económicas distintas;

b) Quando a aplicação do processo referido no n.º 1 conduza a distorções significativas na tributação.

 

4 - A percentagem de dedução referida na alínea b) do n.º 1 resulta de uma fracção que comporta, no numerador, o montante anual, imposto excluído, das operações que dão lugar a dedução nos termos do n.º 1 do artigo 20.º e, no denominador, o montante anual, imposto excluído, de todas as operações efectuadas pelo sujeito passivo decorrentes do exercício de uma actividade económica prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, bem como as subvenções não tributadas que não sejam subsídios ao equipamento.

 

A Requerente é uma instituição de crédito que desenvolve simultaneamente actividade de locação financeira e aluguer de longa duração (ALD).

É um sujeito misto para efeitos de IVA, desenvolvendo operações sujeitas – designadamente as relativas à locação financeira mobiliária (leasing e ALD) - e operações isentas – nomeadamente operações de financiamento/concessão de crédito, que beneficiam da isenção prevista no n.º 27 do artigo 9.º do CIVA.

O Ofício Circulado n.º 30108, de 30-1-2009 estabeleceu, para este tipo de instituições que desenvolvem simultaneamente um dos ou os dois tipos de actividade mencionados, um regime especial relativo ao exercício do direito à dedução, por entender que «o apuramento do IVA dedutível segundo a aplicação do pro rata geral estabelecido no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA é susceptível de provocar vantagens ou prejuízos injustificados pela falta de coerência das variáveis nele utilizadas, ou seja, pode conduzir a “distorções significativas na tributação”» (ponto 8).

Por um lado, esse regime consiste, em primeira linha, em impor a este tipo especial de sujeitos passivos, relativamente aos bens de utilização mista, a dedução segundo a afectação real, nos termos do artigo 23.º, n.º 2, do CIVA, «com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços, de modo a determinar o montante de IVA a deduzir relativamente ao conjunto das actividades».

Em segunda linha, no ponto 9 daquele Ofício Circulado n.º 30108, ainda «na aplicação do método da afectação real», estabelece-se que «sempre que não seja possível a aplicação de critérios objectivos de imputação dos custos comuns, deve ser utilizado um coeficiente de imputação específico, tendo em conta os valores envolvidos, devendo ser considerado no cálculo da percentagem de dedução apenas o montante anual correspondente aos juros e outros encargos relativos à actividade de Leasing ou de ALD».

Em suma, o regime especial previsto no Ofício Circulado consiste em impor a este tipo de sujeitos passivos a dedução segundo a «afectação real», que deverá ser efectuada de duas formas:

             Preferencialmente, “com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços, de modo a determinar o montante de IVA a deduzir relativamente ao conjunto das actividades”;

             Sempre que tal não seja possível, a “afectação real” será efectuada utilizando um “coeficiente de imputação específico”, que é determinado calculando a percentagem de dedução apenas com base no montante anual correspondente aos juros e outros encargos relativos à actividade de Leasing ou de ALD, e não, como resultaria da aplicação do n.º 4 do artigo 23.º, com base em “todas as operações efectuadas pelo sujeito passivo decorrentes do exercício de uma actividade económica”.

 

A Requerente, nas autoliquidações relativas aos períodos de 2012/10, 2012/11 e 2012/12 aplicou a regra que consta do ponto 9 do referido Ofício Circulado, tendo no cálculo do pro rata de dedução definitivo, previsto no n.º 6 do artigo 23.º do CIVA, relativo a bens de utilização mista, excluído do numerador e do denominador da fracção as amortizações financeiras dos bens locados.

 

3.1. Apreciação da questão

 

a.            A posição da Autoridade Tributária vertida no Ofício Circulado n.º 30108, de 30-01-2009

 

A Requerente desenvolve actividade económica, tal como definida na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do Código do IVA, que é tributada (nomeadamente, de locação financeira e aluguer de longa duração, enquadrável no n.º 1 do artigo 4.º do Código do IVA), bem como actividade económica isenta (designadamente, concessão de crédito, nos termos do n.º 27 do artigo 9.º do Código do IVA, na redação vigente em 2012).

Em regra, o IVA suportado pelo sujeito passivo na aquisição dos meios utilizados exclusivamente na sua actividade económica tributada é totalmente dedutível.  O IVA suportado na aquisição de meios utilizados apenas na actividade isenta ou não prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do Código do IVA, não pode ser deduzido [artigo 20.º, n.º 1, alínea a), do Código do IVA e artigo 168.º da Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006].

No caso em apreço, está em causa a dedução de IVA relativamente a bens e serviços (doravante inputs) utilizados simultaneamente na actividade tributada (como é a locação financeira e o ALD), como na actividade económica isenta da Requerente (como sucede com a concessão de crédito).

Relativamente aos inputs de utilização mista, utilizados não só para operações com direito à dedução, como para operações sem direito à dedução, a regra é a de que a dedução só é permitida relativamente à parte do IVA proporcional ao montante respeitante à primeira categoria de operações (artigo 173.º n.º 1, da Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006 e n.º 1 do artigo 23.º do Código do IVA).

Esta percentagem de imposto dedutível, ou «pro rata de dedução», resulta, em regra, de uma fracção que inclui no numerador, o montante total do volume de negócios anual, líquido de IVA, relativo às operações que confiram direito à dedução e no denominador, o montante total do volume de negócios anual, líquido de IVA, relativo às operações incluídas no numerador e às operações que não confiram direito à dedução (artigos 174.º da Directiva n.º 2006/112/CE e 23.º, n.º 4, do Código do IVA).

O pro rata de dedução é determinado anualmente, sendo fixado em percentagem e arredondado para a unidade imediatamente superior, e é aplicável provisoriamente, a determinado ano, calculado com base nas operações do ano anterior ou estimado provisoriamente, pelo sujeito passivo, de acordo com as suas previsões, sob controlo da administração (artigo 175.º, n.ºs 1 e 2, da Directiva n.º 2006/112/CE e n.ºs 6, 7 e 8, do artigo 23.º do Código do IVA).

Contudo, o sujeito passivo pode optar por «efectuar a dedução segundo a afectação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados, com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito a dedução e em operações que não conferem esse direito, sem prejuízo de a Direcção-Geral dos Impostos lhe vir a impor condições especiais ou a fazer cessar esse procedimento no caso de se verificar que provocam ou que podem provocar distorções significativas na tributação» (n.º 2 do artigo 23.º do CIVA).

A utilização deste método de afetação real, em princípio opcional, passará a ser obrigatória se a Administração Tributária Fiscal o determinar, o que poderá fazer «quando o sujeito passivo exerça actividades económicas distintas» ou «quando a aplicação do processo referido no n.º 1 conduza a distorções significativas na tributação» (n.º 3 do artigo 23.º do Código do IVA na redação vigente em 2012). A Administração fiscal poderá também impor «condições especiais».

Assim, a dedução segundo a afectação real relativamente a meios de utilização mista apenas pode ocorrer por opção do sujeito passivo, ou por imposição da Administração Tributária quando: i) o sujeito passivo exerça actividades económicas distintas; ou ii) a aplicação do método do pro rata conduza a distorções significativas.

No referido Ofício Circulado n.º 30108, de 30-01-2009, a Administração Fiscal, entendeu que:

1)            Face à actual redacção do artigo 23.º, a afectação real é o método que, tendo por base critérios objectivos de imputação, mais se ajusta ao apuramento do IVA dedutível nos bens e serviços de utilização mista (ponto 7).

2)            Nesse sentido, considerando que o apuramento do IVA dedutível segundo a aplicação do prorata geral estabelecido no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA é susceptível de provocar vantagens ou prejuízos injustificados pela falta de coerência das variáveis nele utilizadas, ou seja, pode conduzir a “distorções significativas na tributação”, os sujeitos passivos que no âmbito de actividades financeiras pratiquem operações de Leasing ou de ALD, devem utilizar, nos termos do nº. 2 do artigo 23º do CIVA, a afectação real com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços, de modo a determinar o montante de IVA a deduzir relativamente ao conjunto das actividades (ponto 8).

 

Para proceder deste modo, a Autoridade Tributária, tal como é dito no próprio ofício, utilizou o poder que lhe é concedido pelo nº 3 do art. 23º do CIVA, o qual determina que:

3 - A administração fiscal pode obrigar o sujeito passivo a proceder de acordo com o disposto no número anterior:

a) Quando o sujeito passivo exerça actividades económicas distintas;

b) Quando a aplicação do processo referido no n.º 1 conduza a distorções significativas na tributação.

 

Após determinar a obrigatoriedade de os sujeitos passivos em causa adoptarem o método da afectação real com base em critérios objectivos, a Autoridade Tributária procedeu à definição das regras a seguir na aplicação de tal método.

 

De acordo com o ponto 9 da instrução administrativa, “na aplicação do método da afectação real, nos termos do número anterior e sempre que não seja possível a aplicação de critérios objetivos de imputação dos custos comuns, deve ser utilizado um coeficiente de imputação especifico, tendo em conta os valores envolvidos, devendo ser considerado no cálculo da percentagem de dedução apenas o montante anual correspondente aos juros e outros encargos relativos à actividade de Leasing ou de ALD. Neste caso, a percentagem atrás referida não resulta da aplicação do nº. 4 do artigo 23º do CIVA. “

Portanto, como se observa na decisão arbitral proferida no processo nº 765/2019-T, de acordo com o Ofício Circulado aqui em causa, os sujeitos passivos devem aplicar o método da afetação real de acordo com um dos dois seguintes métodos, que iremos designar, para clareza da exposição, por “Critério A do Ofício Circulado” e “Critério B do Ofício Circulado”.

– Critério A do Ofício Circulado

Se for possível, faz-se «a afectação real com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços, de modo a determinar o montante de IVA a deduzir relativamente ao conjunto das actividades» (ponto 8 do Ofício Circulado);

– Critério B do Ofício Circulado

Se não for «possível a aplicação de critérios objectivos de imputação dos custos comuns, deve ser utilizado um coeficiente de imputação específico, tendo em conta os valores envolvidos, devendo ser considerado no cálculo da percentagem de dedução apenas o montante anual correspondente aos juros e outros encargos relativos à actividade de Leasing ou de ALDs» (ponto 9 daquele Ofício Circulado);

O Ofício Circulado conclui que, neste segundo caso, fica afastada a aplicação da percentagem que resultaria da aplicação do n.º 4 do artigo 23º.

O nº 4 do art. 23º, referindo-se aos casos de aplicação do método do pro rata previsto na al. a) do nº1 do mesmo preceito, determina que, “tratando-se de um bem ou serviço afecto à realização de operações decorrentes do exercício de uma actividade económica prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, parte das quais não confira direito à dedução, o imposto é dedutível na percentagem correspondente ao montante anual das operações que dêem lugar a dedução.”

No caso em apreço, a Autoridade Tributária considerou não ser possível a utilização do método da afectação real, com base em critérios objectivos.

Consequentemente, aplicou o método de pro rata, mas, de acordo com as regras estipuladas no seu Ofício Circulado, aplicando um “coeficiente de imputação específico” (Critério B do Ofício Circulado), considerando no montante do volume de negócios correspondente às operações que não conferem direito a dedução apenas os “juros e outros encargos relativos à actividade de Leasing ou de ALD”, e excluindo as amortizações financeiras relativas aos contratos de locação financeira.

A Requerente sustenta que este procedimento é ilegal, por não encontrar apoio no art. 23º o CIVA.

 

b.            A jurisprudência do TJUE

 

O TJUE pronunciou-se sobre uma situação em tudo semelhante à que se aprecia nos presentes autos, atinente a instituição bancária que desenvolve actividades de locação financeira, que conferem direito à dedução a par de actividades financeiras que não conferem tal direito, no processo nº C-183/13 (Banco Mais).

No acórdão proferido sobre o mesmo em 10-07-2014, o TJUE entendeu que o artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Directiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977  «não se opõe a que um Estado-Membro, em circunstâncias como as do processo principal, obrigue um banco que exerce, nomeadamente, atividades de locação financeira a incluir, no numerador e no denominador da fração que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes, no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar».

Na referida alínea c) do terceiro parágrafo do n.º 5 do artigo 17.º da Sexta Directiva, correspondente à alínea c) do n.º 2 do artigo 173.º da Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006, estabelece-se que «os Estados-membros podem» «autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na utilização da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços».

As decisões do TJUE proferidas em reenvio prejudicial têm carácter vinculativo para os Tribunais nacionais, o que é corolário da obrigatoriedade de reenvio prejudicial prevista no artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (que substituiu o artigo 234.º do Tratado de Roma, anterior artigo 177.º).

Na linha do decidido pelo TJUE, o Supremo Tribunal Administrativo entendeu já, no acórdão de 29-10-2014, proferido no processo n.º 01075/13, que «os Bancos, cujo tipo de negócio passe também pela celebração de contratos de Leasing e ALD, v.g. de veículos automóveis, devem incluir no numerador e no denominador da fração que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes no âmbito daqueles seus contratos, que corresponde aos juros».

Assim sendo, impõe-se analisar cuidadosamente a doutrina do TJUE expendida no referido acórdão a fim de verificar a sua aplicabilidade ao caso dos autos.

Em primeiro lugar, observa-se que a situação de facto na base do acórdão do TJUE é exatamente igual à dos autos: uma instituição financeira, também portuguesa, que celebra, como serviços por si prestados, contratos de locação financeira e de aluguer de longa duração.

E também nesse caso apreciado pelo TJUE está em causa saber se o sujeito passivo, para calcular a proporção de operações com direito a dedução de imposto com base no método de pro rata, pode contabilizar no volume de negócios o montante das amortizações financeiras relativas aos contratos de locação financeira e os valores de alienação/abate por destruição de bens locados.

No seu acórdão, o TJUE diz:

16. Decorre dos elementos dos autos de que o Tribunal de Justiça dispõe que o litígio no processo principal tem por objeto a legalidade da decisão da Fazenda Pública que recalcula o direito à dedução do Banco Mais no que respeita aos bens e serviços de utilização mista, por aplicação do regime de dedução previsto no artigo 23.°, n.° 2, do CIVA.

17. Ora, segundo esta disposição, conjugada com o artigo 23.°, n.° 3, do CIVA, no caso de se verificarem distorções significativas na tributação, um sujeito passivo pode ser obrigado a efetuar a dedução do IVA em função da afetação real da totalidade ou de parte dos bens e serviços utilizados.

Posto em termos mais sucintos, o Tribunal de Justiça considera que os nºs 2 e 3 do art. 23º o CIVA português, conjugados, contêm uma norma material com o seguinte conteúdo:

“No caso de se verificarem distorções significativas na tributação, um sujeito passivo pode ser obrigado a efetuar a dedução do IVA em função da afetação real da totalidade ou de parte dos bens e serviços utilizados.”

Concordamos que esta norma material se encontra nesses preceitos da lei portuguesa.

Até, em nossa opinião, a norma poderia ser completada com um importante elemento que consta igualmente dos preceitos citados.

No seu total alcance, a norma material pode ser enunciada nos seguintes termos:

1ª parte:

No caso de, (por via da aplicação do método de pro rata), se verificarem distorções significativas na tributação, um sujeito passivo pode ser obrigado (pela Administração Tributária) a efetuar a dedução do IVA em função da afetação real,

2ª parte:

Podendo a afectação real (imposta pela Administração Tributária) ter em vista a totalidade ou apenas parte dos bens e serviços utilizados, e

3ª parte:

Podendo ainda a Administração Tributária impor ao sujeito passivo condições especiais relativamente a esse procedimento.

Mas não é esta a norma que a Autoridade Tributária aplica na situação dos presentes autos.

Nos presentes autos, a Autoridade não impôs ao sujeito passivo – ie não obrigou, como diz a norma – que adotasse o método de afetação real, nem tendo em vista a totalidade nem apenas parte dos bens e serviços utilizados.

Pelo contrário e sem margem para dúvida, a Autoridade Tributária obrigou, sim, a Requerente a utilizar o método pro rata.

Portanto, nunca poderia concluir-se pela legalidade da atuação da Autoridade Tributária com base na norma que resulta dos nºs 2 e 3 do art. 23º do CIVA, com ou sem apoio da jurisprudência do TJUE, uma vez que a Autoridade Tributária não aplica tal norma.

Com esta conclusão, não necessitamos sequer considerar a debatida problemática de saber se a decisão do TJUE partiu de um pressuposto errado sobre o conteúdo do direito interno português e em que medida a respetiva doutrina, assentando num pressuposto errado, se impõe aos tribunais nacionais.

É certo que, em discrepância com este entendimento, o Ofício Circulado n.º 30108 contém a indicação (no seu ponto 9) de que o método aí estabelecido, o qual esteve na base das autoliquidações impugnadas, é um “método de afetação real”.

Contudo, decorre das disposições aplicáveis da Diretiva IVA (art. 173º) que aí se contrapõem dois métodos de cálculo do IVA dedutível em operações mistas: o método de pro rata e o método de afetação dos bens e serviços adquiridos, ie da “afetação real”. E que se o primeiro método se baseia em determinar a percentagem em que as operações que não dão direito a dedução representam no volume de negócios total, o segundo método consiste em determinar, primeiramente quais são inputs utilizados nas operações que não dão direito a dedução do IVA e apurar o seu montante.

Tendo em conta que as instruções administrativas são normas internas da administração tributárias que apenas vinculam os serviços e não se impõem aos tribunais, o facto de o Oficio Circulado apelidar de “afetação real” um método que efetivamente consiste em encontrar uma proporção não nos obriga a afastar da conclusão de que, no caso presente, a Autoridade Tributária não aplicou um método de afetação real, mas uma proporção, e portanto não fez uso do poder que lhe é outorgado pelo nº 3 do art. 23º do CIVA.

Pensamos que, embora assentando numa argumentação formalmente distinta, a conclusão a que chegamos não está longe, em termos substanciais, da perfilhada nas decisões arbitrais nos processos nº 309/2017-T (20-11-2017) e nº 765/2019-T (20-05-2020).

Nesta última conclui-se:

Assim, a questão que se coloca reconduz-se a saber se neste n.º 2 [do art. 23º CIVA] se inclui a possibilidade de determinação da afectação real através de uma percentagem de dedução.

Neste n.º 2 apenas se prevê a «afectação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados, com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito a dedução e em operações que não conferem esse direito».

É manifesto que a determinação da afectação com base numa percentagem, qualquer que seja a forma de a determinar, não constitui um critério objectivo que permita determinar o grau de afectação de bens ou serviços. Na verdade, é evidente que com base no valor das rendas, total ou parcial, não se pode determinar, com objectividade, por exemplo, quais as percentagens das despesas de electricidade ou água ou de manutenção dos elevadores de edifícios comuns às actividades dos dois tipos que estão afectas à actividade de locação financeira.

Isto é, a aplicação de uma percentagem, qualquer que ela seja, não permite «determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito a dedução» e, por isso, não pode constituir um critério objectivo para efeitos do n.º 2 do artigo 23.º

 Sendo assim, tem de se concluir que o poder concedido à Administração Fiscal pelo n.º 3 do artigo 23.º, não inclui a possibilidade de impor ao sujeito passivo a aplicação de uma percentagem dedução.

Consequentemente, o método da percentagem de dedução só pode ser utilizado nas situações em que está previsto directamente, na alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º, e este método é o que consta do n.º 4, do mesmo artigo.

 E, nos termos deste n.º 4, esta percentagem é determinada através de «uma fracção que comporta, no numerador, o montante anual, imposto excluído, das operações que dão lugar a dedução nos termos do n.º 1 do artigo 20.º e, no denominador, o montante anual, imposto excluído, de todas as operações efectuadas pelo sujeito passivo decorrentes do exercício de uma actividade económica prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, bem como as subvenções não tributadas que não sejam subsídios ao equipamento».

Por isso, embora a Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006, permita ao Estado Português «obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na afectação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços», não foi legislativamente prevista no CIVA a possibilidade de aplicação de uma percentagem de dedução diferente da que se indica no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA.

E, não tendo essa possibilidade sido legislativamente prevista, não a pode aplicar a Autoridade Tributária e Aduaneira, pois está subordinada ao princípio da legalidade em toda a sua actuação (artigos 266.º, n.º 2, da CRP e 55º da LGT) e explicitado no artigo 3.º, n. 1, do Código do Procedimento Administrativo.

               

Na mesma linha argumentativa e sentido decisório vai, de forma praticamente unânime, a Jurisprudência arbitral mais recente – Cfr., v. g., os acórdãos proferidos nos processos nºs 498/2018-T, 354/2019-T, 383/2019-T, 384/2019-T, 396/2019-T, 400/2019-T, 404/2019-T, 469/2019-T, 498/2018-T, 505/2019-T e 769/2019-T, in WWW.CAAD.org.pt.

Além de tudo o que ficou dito, caberia ainda aflorar um último aspecto da jurisprudência do TJUE.

No parágrafo 35 do seu citado acórdão, diz o TJUE que o artigo 17.°, n.° 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Diretiva deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a que um Estado Membro, em circunstâncias como as do processo principal, obrigue um banco que exerce, nomeadamente, atividades de locação financeira a incluir, no numerador e no denominador da fração que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes, no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

Com esta última expressão, o Tribunal comete ao tribunal nacional avaliar a função económica dos contratos de locação, na atividade do locatário, a fim de averiguar se os clientes dos sujeitos passivos que recorrem a tais contratos o fazem sobretudo determinados pela função de financiamento e gestão dos contratos.

Ora, saber qual é a função económica predominante dum contrato de locação financeira – a de emprestar dinheiro ou a de proporcionar o gozo do bem – é um problema de difícil solução. Mas o certo é que o legislador português optou, no âmbito do imposto sobre o valor acrescentado, por tratar as rendas dos contratos de locação financeira como rendas pagas por um serviço de locação (art. 16º, 2-h), no que está implícito o tratamento da locação financeira como um serviço não financeiro.

E se assim é, custa aceitar que o legislador sujeite a IVA, na sua globalidade, as operações de locação financeira e aluguer de longa duração, por não as considerar como operações financeiras, e ao mesmo autorize limitar o direito de dedução do IVA em relação às mesmas operações, por se tratar de operações financeiras.

Este tribunal considera que, tendo em vista a finalidade da tributação em IVA, se deve considerar que os clientes da Requerente que recorrem a contratos de locação financeira e aluguer de longa duração não o fazem sobretudo determinados pela função de financiamento e gestão dos contratos, mas sim pela função de poder beneficiar do gozo da coisa locada.

 

c.            Falta de demonstração dos pressupostos necessários à atuação da Autoridade Tributária

 

Acompanhando o acórdão arbitral no processo 765/2019-T (20-05-20), e na linha de outras decisões arbitrais, designadamente as  proferidas nos processos nºs 498/2018-T, 309/2017-T e  acrescenta-se ainda o seguinte

 “[N]ão são indicadas nem demonstradas pela Autoridade Tributária e Aduaneira as razões por que tal método (o método de afetação real) é necessário para assegurar a “sã concorrência” ou a igualdade de todas as empresas, sendo certo que, na perspectiva do legislador nacional, a aplicação do pro rata previsto no n.º 4 do artigo 23.º é a forma adequada de assegurar o direito à dedução de todos os sujeitos passivos mistos, nos casos em que seja inviável a afectação real com critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito a dedução e em operações que não conferem esse direito.

Pelo contrário, afigura-se que «o apuramento da parcela de IVA dedutível pelo método que a administração tenta impor, provoca, ela sim, distorções significativas de tributação, pois tanto na modalidade de rendas de leasing constantes como de rendas variáveis, e uma vez que os juros se apuram e pagam antes da amortização de capital, a proporção de juros contida na totalidade da renda flutua ao longo do período contratual, originando flutuações da percentagem de dedução, que nada têm que ver com diferentes intensidades de uso dos inputs comuns e que portanto têm de ser julgadas arbitrárias e sem fundamento legal e económico» e que «pelo método imposto pela administração, a parcela de IVA dedutível fica claramente desajustada do desígnio do imposto de libertar o empresário de todo o IVA suportado a montante, quando é certo que a jusante a renda foi integralmente tributada.

Mas, mesmo que o método previsto no ponto 9 do Ofício Circulado assegurasse mais eficazmente os referidos princípios, a falta da sua previsão em diploma legislativo nacional, em matéria em que não é directamente aplicável qualquer norma de direito da União Europeia, sempre seria um obstáculo intransponível à sua aplicação, por força do princípio da legalidade, em que se insere o da hierarquia das fontes de direito, à face do qual não é constitucionalmente admissível que seja reconhecido a actos de natureza não legislativa «o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos» (artigo 112.º, n.º 5, da CRP), para mais em matéria sujeita ao princípio da legalidade fiscal, em que se está perante matéria inserida na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República [artigos 103.º, n.º 2, e 165.º, n 1, alínea i), da CRP] .

Na verdade, a força vinculativa das circulares e outras resoluções da Autoridade Tributária e Aduaneira de natureza geral e abstracta, publicitadas circunscreve-se à ordem administrativa, pois resulta somente da autoridade hierárquica dos agentes de onde provêm e dos deveres de acatamento dos subordinados aos quais se dirigem. Por isso, as orientações genéricas da Autoridade Tributária e Aduaneira, nomeadamente quanto à interpretação da lei fiscal, apenas vinculam os funcionários sobre quem o emissor tem posição superior na hierarquia, mas essas orientações não vinculam os particulares, cidadãos ou contribuintes, nem os tribunais, que devem interpretar e aplicar as leis fiscais sem qualquer dependência dos critérios adoptados pela Administração fiscal através dos referidos «despachos genéricos, das circulares e das instruções» (artigo 203.º da CRP). É com este alcance que o n.º 1 do artigo 68.º-A da LGT estabelece que «a administração tributária está vinculada às orientações genéricas constantes de circulares, regulamentos ou instrumentos de idêntica natureza, independentemente da sua forma de comunicação, visando a uniformização da interpretação e da aplicação das normas tributárias».

A isto acresce que, como decidiu o TJUE, no citado acórdão 10-07-2014, proferido no processo n.º C-183/13 (Banco Mais), a alínea c) do n.º 2 do artigo 173.º da Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006, não se opõe a que um Estado-Membro obrigue um banco que exerce, nomeadamente, actividades de locação financeira a incluir, no numerador e no denominador da fração que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes, no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, «quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contrato».

Como resulta desta parte final, na perspetiva do TJUE, não é compaginável com a alínea c) do n.º 2 do artigo 173.º da Directiva n.º 2006/112/CE [a que corresponde que alínea c) do n.º 5 do artigo 17.º da 6.ª Diretiva] a imposição aos contribuintes de uma percentagem de dedução especial de forma genérica, independentemente da comprovação da utilização real dos bens e serviços, casuisticamente apurada, como tem entendido o Supremo Tribunal Administrativo (“STA”) ao entender que decorre daquela decisão do TJUE «que sobre a matéria de facto se formule um juízo de facto sobre se a utilização desses bens e serviços de utilização mista é ou não, sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos».

A isto acresce que a jurisprudência mais recente do TJUE, repensando explicitamente o entendimento adotado no processo C-183/13, veio esclarecer que «os Estados‑Membros não podem aplicar um método de repartição que não tenha em conta o valor inicial do bem em causa no momento da sua entrega, uma vez que esse método não é suscetível de garantir uma repartição mais precisa do que o que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios» (acórdão de 18-10-2018, processo C‑153/17, Volkswagen Financial Services (UK) Ltd).

Assim, o método preconizado pela Administração Tributária, que não tem em conta o valor inicial do bem em causa no momento da sua entrega, também sob esta perspectiva é incompatível com a alínea c) do n.º 2 do artigo 173.º da Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006[a que corresponde que alínea c) do n.º 5 do artigo 17.º da 6.ª Diretiva].

Esta mais recente decisão do TJUE proferida em reenvio prejudicial tem carácter vinculativo para os Tribunais nacionais, o que é corolário da obrigatoriedade de reenvio prejudicial prevista no artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (que substituiu o artigo 234.º do Tratado de Roma, anterior artigo 177.º), como se referiu.

Ainda por outro lado, dispõe a alínea h) do n.º 2 do artigo 16.º do Código do IVA, que «[N]os casos das transmissões de bens e das prestações de serviços a seguir enumeradas, o valor tributável é: para as operações resultantes de um contrato de locação financeira, o valor da renda recebida ou a receber do locatário».”. Ou seja, o IVA deve ser liquidado sobre a totalidade da renda, sem distinção entre juro e capital, constituindo este montante global o valor tributável do imposto, nas operações de locação financeira. Assim, a solução proposta pela Administração Tributária, de expurgar, para efeitos de apuramento da percentagem de dedução, a parte da renda correspondente à amortização financeira não tem apoio directo nos textos legais.”

E com o acórdão citado conclui-se “que o método de cálculo da percentagem de dedução preconizado pela Administração Tributária, traduzido na imposição de utilização do «coeficiente de imputação específico», enferma de vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de direito, consubstanciado por ofensa do princípio da legalidade e errada interpretação dos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 23.º do Código do IVA e artigos 173.º e 174.º, n.º 1 da Directiva n.º 2006/112/CE, o que justifica a anulação das autoliquidações, nas partes em que nela assentam, de harmonia com o disposto no artigo 163.º, n.º 1, do CPA subsidiariamente aplicável nos termos da alínea c) do artigo 2.º da LGT.”

             

                4. Restituição da quantia paga em excesso e juros indemnizatórios

 

A Requerente pede a restituição da quantia de 272.973,13 € referente ao IVA não deduzido, acrescida dos juros legais contados desde a data da apresentação das respectivas declarações periódicas relativas aos períodos de 2012/10, 2012/11 e 2012/12, até à data da respectiva restituição.

Das liquidações referidas resulta, em todos os casos, imposto a entregar ao Estado, mas não foi apresentada prova de que os pagamentos respectivos tenham sido efectuados, nem as datas em que ocorreram.

A Autoridade Tributária e Aduaneira não questiona a quantificação efectuada pela Requerente.

Na sequência da ilegalidade das liquidações é manifesto que a Requerente tem direito a ser reembolsada das quantias que tiverem sido pagas indevidamente, aplicando o pro rata de 66% em vez do pro rata 22%.

Por outro lado, quanto a juros indemnizatórios, o artigo 43.º, n.º 1, da LGT estabelece que são devidos «quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido» e o n.º 2 do mesmo artigo esclarece que «considera-se também haver erro imputável aos serviços no casos em que, apesar da liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas».

O erro das autoliquidações é imputável à Autoridade Tributária e Aduaneira, nos termos do n.º 2 deste artigo, pois foram seguidas pela Requerente as orientações da Autoridade Tributária e Aduaneira, devidamente publicadas, através do Ofício Circulado n.º 30108, de 30-01-2009.

Consequentemente, a Requerente tem direito à restituição das quantias indevidamente pagas acrescidas de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º do CPPT desde as datas dos pagamentos indevidos, até ser reembolsada.

Todavia, não estando comprovado o pagamento das quantias autoliquidadas, os pedidos de reembolso e de juros indemnizatórios serão relegados para eventual liquidação em sede de execução de julgado.

 

                5. Decisão

 

Nestes termos acordam neste Tribunal Arbitral em:

A)           Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral;

B)           Anular as autoliquidações de IVA efetuadas pela Requerente nas declarações nº ... (outubro de 2012), ... (novembro de 2012) e ... (dezembro de 2012), nas partes em que têm como pressuposto um pro rata de dedução de 22%, em vez de 66%;

C)           Relegar para eventual execução do julgado os pedidos de reembolso e juros indemnizatórios formulados.

 

6. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor € 272.973,13.

 

7. Custas

 

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 4.896,00, de harmonia com a Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.          

 

Lisboa, 9-6-2020

 

Os Árbitros

 

(José Poças Falcão)

(José Coutinho Pires)

(Nina Aguiar)