Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 118/2023-T
Data da decisão: 2024-01-26  IRC IRS  
Valor do pedido: € 244.527,70
Tema: IRS / IRC – existência de rendimentos tributáveis
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SUMÁRIO:

 

- a existência de irregularidades contabilísticas não implica, necessariamente, uma omissão de declaração de rendimentos;

- existindo rendimentos a enquadrar na categoria E do IRS, a sua tributação, por retenção na fonte liberatória, apenas aconteceria quando pagos ao respetivo titular;

- não tendo ficado provada a extinção da dívida, não se pode considerar ter existido uma variação patrimonial positiva tributável.

 

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

A..., Lda., NIPC..., com sede na Rua ... n.º ... a ..., ..., ...-... Maia, veio, nos termos legais, requerer a constituição de tribunal arbitral.

É requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

 

 I - RELATÓRIO

 

A) O Pedido

 

A Requerente solicita a anulação:

- da liquidação adicional de IRS n.º 2022..., de 2022-10-11, na qual se apurou um valor a pagar de 141.913,81 euros, bem como da correspondente liquidação de juros compensatórios n.º 2022..., da mesma data, no valor de 16.034,31 euros.

- da liquidação adicional de IRC n.º 2022... de 2022-10-14, no valor total de 86.579,58 euros, sendo 79.809,95 euros de imposto e 6.769,63 euros de juros compensatórios.

 

A Requerente surge como sujeito passivo da liquidação de IRS na qualidade de substituta tributária dos seus sócios.

Relativamente à liquidação de IRC, a Requerente aceita as correções relativas a “gastos”, no valor de euros 9.194,13, impugnando as demais (as relativas a “variações patrimoniais positivas”).

 

B) O litígio

 

1- Procedimento inspetivo

 

 Em suma, a Requerente entende;

- que o procedimento inspetivo que conduziu às liquidações impugnadas revela desprezo pelos princípios do inquisitório (art.º 58.º do CPA), busca da verdade material (artigo 6.º do RCPITA) e da imparcialidade (artigo 9.º do CPA).

- que não se compreende a razão pela qual, num procedimento externo de inspeção, se recorre de forma sistemática à correspondência postal ou eletrónica para obter informações, solicitando elementos que sempre estiveram ao seu dispor na sede da empresa para os recolher ou reproduzir.

- que existem elementos de prova com origem externa à impugnante, pois foram recolhidos junto de entidades terceiras.  A sua não notificação põe em crise os direitos impugnatórios da requerente, pois está em direito a conhecer todos os elementos de prova na posse da AT para contra eles reagir com conhecimento de causa e, se for causa disso, os impugnar.

- que, por não ter sido notificada das horas e local onde o processo poderia ser consultado mais não resta portanto alternativa à aqui requerente que a título cautelar, impugnar desde já todos os elementos de prova que hipoteticamente vierem a constar do processo administrativo (que por certo irá ser junto ao presente processo) uma vez que a AT por omissão ou comissão recusou a sua consulta à Requerente.

 

2 – Correções efetuadas

Estão em causa os registos contabilísticos, adiante melhor referidos, segundo os quais os saldos credores das contas 27810001 — B..., Lda. – e 27810002 —C..., Lda., -foram anulados por débitos nos montantes de €373.503,54 e de €133.331,48, num total de €506.835,02, os quais foram transferidos, a crédito, para as contas de sócios 26812 —D... e 26813 — E....

A AT afirma que tais lançamentos a crédito nas contas dos sócios não corresponderam a entradas de meios financeiros na A... na data dos lançamentos, mas sim à diminuição de dívidas desta a entidades terceiras, B..., Lda e C..., Lda, simultaneamente fornecedoras e clientes da A... e empresas com as quais existem relações especiais.

Pelo que, por falta de justificação, a AT entendeu que tais lançamentos a crédito devem ser havidos, na esfera dos sócios, como documentando a obtenção de um rendimento da categoria E (capitais) de IRS, rendimentos provenientes de lucros ou adiantamentos por conta de lucros, nos termos do n.º 4 do artigo 6.º do CIRS. e n.ºs 1 e 2, al. h), do artigo 5.º do mesmo diploma.

Considera ainda a AT que destes movimentos contabilísticos, que anularam o registo de um passivo (dívidas da A... para com a B..., Lda. e para com a C..., Lda.), resultou um acrescento de valor à empresa, de forma gratuita; que esta diminuição do passivo da A..., sem movimentos financeiros efetivos associados, constitui, por si, um ganho, uma variação patrimonial positiva.  Assim sendo, por não caber em nenhuma das exceções taxativamente discriminadas no artigo 21° do CIRC, esta operação constitui uma variação patrimonial positiva tributável.

A Requerente impugna tais correções, entendendo que os registos em causa reduzem a realidade e que deles não resultam evidências da obtenção de rendimento tributável, quer por parte da sociedade Requerente, quer dos seus sócios.

 

C) Tramitação processual

 

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite em 2023-03-01.

Os árbitros foram designados pelo Conselho Deontológico do CAAD, aceitaram exercer tais funções, sem oposição.

O tribunal arbitral ficou constituído em 2023-05-10.

A Requerida apresentou Resposta e juntou PA.

Em 2023-12-05, realizou-se a audição das testemunhas, conforme consta da respetiva ata.

As partes apresentaram alegações, sustentando o que já haviam afirmado nos respetivos articulados.

Foram proferidos, nos termos legais, os necessários despachos de prorrogação do prazo para ser proferida decisão.

 

II – SANEAMENTO

 

O processo não enferma de nulidades ou de irregularidades.

Não foram alegadas exceções que obstem ao conhecimento do mérito da causa.

 

 

III – PROVA

  1. Consideram-se provados os seguintes factos:

 

  1. No quadro da inspeção externa que deu origem às liquidações impugnadas, o contabilista da Requerente forneceu, por correio eletrónico, a documentação solicitada pela AT, nomeadamente o ficheiro saf-t da contabilidade e outros elementos solicitados (p. ex., balancetes e mapa de depreciações e amortizações).
  2. Em 11/01/2022, a Srª Inspetora dirigiu-se à sede da Requerente para, como acordado, aí proceder ao exame da documentação contabilística.
  3. Posteriormente, a Requerente foi, por diversas vezes, notificada para prestar, por escrito, mais esclarecimentos e apresentar elementos relativos a diversas situações que suscitaram dúvidas à inspeção tributárias, entre as quais as operações em causa neste processo, o que fez.
  4. No seguimento da notificação feita por mail de 22/03/2022, em que eram pedidos mais esclarecimentos, a Requerente pretendeu aprazar uma reunião entre o seu gerente e a Srª Inspetora, a qual, por razões não apuradas, não se realizou.
  5. A Requerente dirigiu ao Sr. Diretor de Finanças do Porto um requerimento em que solicitava a «…notificação de todos os elementos de prova anexos ao relatório da IT, bem como da sua correspondência ao ponto e frase de remissão do relato notificado».
  6. Em resposta, a AT informou a Requerente de que “o RIT, assim como o respetivo Projeto de Relatório de Inspeção Tributária, não contêm em apenso quaisquer anexos, e a Inspeção Tributária no texto desses documentos não fez qualquer referência de junção.
  7. A notificação do projeto do RIT não incluía a indicação das horas e o local onde o processo poderia ser consultado.
  8. A Requerente foi constituída em 16/05/2016, iniciando a sua atividade de 'curtimento e acabamento de peles sem pelo' em 01/06/2016. 
  9. À data dos factos objeto de inspeção tributária (2019), o capital social da Requerente era detido por D... (doravante apenas D...), sócio desde a sua constituição, F..., sócio até 15/04/2019 e E... (doravante apenas E...), sócio após 15/04/2019.
  10. No decurso da sua atividade a Requerente manteve relações comerciais com duas outras sociedades, a saber: B..., Lda e C..., Lda.
  11. A primeira é detida integralmente pelos pais do sócio da Requerente, D..., sendo o pai,  G..., o gerente.
  12. Relativamente à segunda, H... , pai do sócio da Requerente, E..., foi gerente de direito, entre 16/01/2020 e 27/04/2020, e sócio a partir de 20/01/2020, com 97,5% do capital.
  13.  Das referidas relações resultaram saldos nas contas de clientes, fornecedores e, também, de outros devedores e credores.
  14. Em 31/12/2019, os registos contabilísticos inscritos na conta 268 do plano de contas Requerente, designada de ‘Acionistas/Sócios – Outras operações’, evidenciam que esta é devedora das quantias 343.758,40 euros e 133.331,48 euros, respetivamente, aos sócios D... e E... .
  15. Estes passivos da Requerente para com os sócios resultam de um registo contabilístico efetuado com data de 23/10/2019 e descrição 'Div nº Suprimentos'.
  16. Através deste registo, efetua-se o reconhecimento contabilístico de uma dívida, na quantia 373.503,54 euros, ao sócio D... e o desreconhecimento simultâneo de uma dívida, de igual quantia, à sociedade comercial B..., Lda, acima referida. De igual forma, é reconhecida uma dívida, na quantia 133.331,48 euros, ao sócio E... e o desreconhecimento simultâneo de uma dívida, de igual quantia, à parte relacionada designada de C..., Lda.
  17. O suporte documental ao referido registo contabilístico consubstancia-se na ata número 10 da assembleia geral da Requerente, datada de oito de abril de 2020, a qual indica que "ambos os sócios já realizaram suprimentos no montante de €520.393,76 (€387.062,28 realizados pelo sócio D... e €133.331,48 realizados pelo sócio E...), o que ainda se mostra insuficiente para fazer face aos desafios que se colocam”.
  18. Para além da suprarreferida ata da assembleia geral da Requerente nenhum outro documento define os termos e condições inerentes ao registo dos referidos passivos.
  19. Os sócios que por efeito do registo contabilístico referido se tornaram credores da Requerente não colocaram quaisquer verbas na Requerente, sendo que os referidos créditos consubstanciam tão somente o efeito do mencionado registo contabilístico.
  20. Na contabilidade da B..., Lda, foi efetuado um registo contabilístico, também em 23/10/2019, no qual é desreconhecido o direito a receber da Requerente na quantia de 373.603,54 euros, substituindo-se enquanto devedor dessa sociedade o seu sócio G..., pai do sócio da Requerente, D... .
  21. Em síntese, as contabilidades da Requerente e da B..., Lda, estão, à data de 31/12/2009 concordantes no que respeita às relações entre elas. A Requerente deixou de ter a pagar à B..., Lda passando ser devedora do sócio D... (filho). A B..., Lda deixou de ser credora da Requerente, ficando credora do sócio E... (Pai).

 

Os factos dados como provados resultam da documentação junta aos autos, não tendo suscitado divergência entre as partes. O litígio situa-se noutro plano, os das consequências jurídicas, em termos de impostos sobre o rendimento, dos factos provados e não provados.

 

2.2 – Factos não provados

Não ficou provado:

  1. que a quantia a pagar pela Requerente à C..., Lda (133.331,48 euros), a qual surge, na contabilidade desta, como “assumida” pelo sócio E..., tenha uma correspondência simétrica na C..., Lda, ou seja, que esta sociedade, na sua contabilidade, tenha substituído a Requente, enquanto devedora, por E....
  2. ainda relativamente a esta quantia de 133.331,48 euros, a existência de um contrato de cedência de crédito (entre a C... e o referido sócio), de suprimentos feitos por este sócio à sociedade Requerente, nem que esta tenha beneficiado de um perdão de perdão de dívida.
  3. que os registos contabilísticos de que resultou a situação descrita constituam o reflexo digráfico de um contrato de cedência de crédito ou de suprimentos.
  4.  que tenha ocorrido qualquer perdão de dívida.

 

A prova documental existente reduz-se, no essencial, aos registos contabilísticos da Requerente.

Só que a simples existência de registos contabilísticos não é suficiente para a prova dos factos de supostamente tais registos dão notícia: cada lançamento contabilístico tem que ter como suporte um documento, capaz de, pelo menos num primeiro momento, fazer prova da realidade daquilo que se registou.

O que nos permite afirmar que uma contabilidade em que figurem registos sem adequado suporte documental não é uma contabilidade em “boa ordem”, não goza, nessa medida, da dita presunção de verdade que a lei confere à contabilidade regularmente organizada.

Ou seja, concluindo: é sobre os Requerentes que incidia o ónus da prova, quer da realidade substancial dos pretensos movimentos financeiros em causa, quer das razões que os justificavam

Ora, como consta do RIT: Não foi apresentado nenhum contrato de cedência de créditos entre as empresas B... e C... e os sócios da A..., D... e E..., ou explicação de que forma a A... deixou de ter a obrigação de pagar as dívidas àquelas empresas. Das diligências efetuadas e dos elementos recolhidos, é possível ver na B..., um lançamento de transferência de saldos da conta corrente da A... para a conta corrente do sócio da B...,  D..., sem contudo, ter sido apresentado qualquer contrato, ou documento similar comprovativo da natureza dessa transferência de saldos. Não obstante, permanece por esclarecer, de que forma e por que motivo, a B... perde o direito a receber da A... a divida que lhe era exigível.

Também não foi apresentada, no decurso da lide arbitral, qualquer documentação relevante.

A prova testemunhal procurou esclarecer, sem sucesso, a “substância” os registos contabilísticos em causa.

Das “explicações” das testemunhas – que depuseram com verdade, no entender do tribunal resultou, acima de tudo o mais, uma imagem de grande “confusão patrimonial” entre as sociedades em causa (a Requerente, a B... e a C...), os respetivos sócios e entre as pessoas singulares envolvidas (“sócios-pais” e respetivos filhos). Aparecem registos contabilísticos traduzindo alterações da titularidade das posições de credores e devedores, relativos a eles próprios e/ou sociedades em que participam sem qualquer suporte, como se tudo se tivesse processado na esfera patrimonial de uma mesma pessoa. 

 

IV- O Direito

 

  1. O procedimento inspetivo

 

 

A factualidade apurada, nomeadamente através da audição do depoente e das testemunhas, não permitiu a este tribunal concluir que o procedimento inspetivo externo que deu origem às liquidações impugnadas se desviou da “normalidade” do que a lei prescreve.

Para além da realização de um ato inspetivo nas instalações da Requerente, houve um efetivo contraditório, traduzido em pedidos de esclarecimento escritos feitos pela Srª Inspetora e respostas dos seus interlocutores, nomeadamente do contabilista da Requerente. O facto de este “diálogo” ter acontecido essencialmente por escrito não se afigura merecedor de censura, até porque as informações em causa redundariam, a maioria das vezes, na junção de documentação escrita.

 

Não tem também razão a Requerente quanto às “insuficiências” do RIT que alega.

No que concerne às liquidações decorrentes de uma ação inspetiva, o RIT consubstancia a sua fundamentação. Ora, não é alegado, nem corresponde à realidade, que as liquidações impugnadas surjam fundamentadas em factos ou em normas não expressamente mencionadas no RIT.

No mais – no que excede a fundamentação das decisões (no caso, liquidações) dele decorrentes - o RIT é um documento de trabalho da AT, com relevância interna.

Reportando-nos ao caso concreto, temos que a menção no RIT de diligências inspetivas complementares apenas assumiria relevância, na esfera da Requerente, caso tivessem tido influência repercussão da fundamentação de decisões que afetem direitos ou interesses legítimos desta.

Não o tendo, não se vê razão para que elementos eventualmente colhidos nessas diligências tivessem que figurar em anexo ao RIT.

Assim sendo, não tendo ficado provada a omissão de notificação de documentação relevante, surge sem interesse substantivo a questão da falta de notificação do local e hora em que o processo poderia ser consultado (admitindo que, em procedimento tributário, tal obrigação existe estando em causa um ato tributário). Aliás, a Requerente nunca concretiza qual o prejuízo em que, para a sua defesa, redundou a omissão que invoca.

 

A “discórdia central”, como resultou quer da petição inicial quer dos depoimentos prestados, terá sido a não realização de uma reunião entre a Srª Inspetora e o representante da Requerente (d) dos factos provados.

Haverá que considerar o seguinte:

Relativamente aos procedimentos de inspeção externa, a lei não prescreve regras quanto ao exercício do contraditório nem formas de oralidade do procedimento.

O principal direito do inspecionado é o de poder acompanhar as diligências inspetivas.

A doutrina fala de um contraditório moderado pelos objetivos do procedimento inspetivo.

O certo é que a Requerente não concretiza factos que pudessem ser entendidos como tendo resultado numa diminuição das suas garantias em razão da não realização de tal reunião.

Dos depoimentos prestados ficou a convicção que o que estaria em causa seria o desejo pessoal do representante da Requerida (ou do seu pai?) em se fazer ouvir pela Srª Inspetora.

 

Assim, há que concluir que o procedimento inspetivo não padeceu de vícios ou, pelo menos, de vícios capazes de inquinar as liquidações deles decorrentes.

 

Pelo que, quanto a este ponto, improcede o peticionado

 

 

 

  1. As correções efetuadas (liquidações de IRS e de IRC)

 

A apreciação da legalidade das correções efetuadas, que deram origem às liquidações impugnadas, implica responder a duas questões, de certo modo, como veremos adiante, “simétricas”:

  1. Está provada a obtenção pelos sócios da Requerente de rendimentos, sujeitos a IRS, que cumpria a esta, atuando como substituta fiscal, liquidar e cobrar por retenção na fonte?
  2. Está provada a obtenção de rendimento (variações patrimoniais positivas) pela sociedade Requerente, sujeito a IRC?

 

Começaremos por salientar que a resposta a estas questões não decorre apenas da falta de adequado suporte dos correspondentes registos contabilísticos.

Irregularidades contabilísticas não implicam, por si só, uma omissão de declaração de rendimentos tributáveis. As irregularidades contabilísticas podem ter (têm, muitas vezes) justificações não fiscais, que podem ir desde o simples “desleixo” até à prossecução de outros objetivos, não fiscais[1].

 

(i) Quanto à primeira questão, temos que, na visão da Requerente, os lançamentos contabilísticos a favor dos seus sócios correspondem a suprimentos, ou seja, traduzem créditos destes sobre a sociedade. Créditos de que se tornaram titulares por força de terem logrado a “anulação” de dívidas, de igual montante, que a Requerente antes tinha para com duas sociedades suas fornecedoras.  Estando em causa suprimentos, não existe rendimento tributável.

Na visão da AT, não existem suprimentos (realização de “entradas) feitos pelos sócios, os registos contabilísticos em causa não têm subjacente qualquer materialidade. Assim sendo, não tendo ficado justificados os lançamentos efetuados a crédito nas contas dos sócios, haveria lugar à tributação destes por força da aplicação da presunção do n.º 4 do artigo 6.º do CRS e n.ºs 1 e 2, al. h) do artigo 5.º do mesmo diploma.

 

Considerada a prova produzida, numa primeira análise estaríamos colocados perante uma situação de dúvida quanto à existência do facto tributário, a ser resolvida por aplicação das regras do ónus da prova (o que resultaria a favor da requerente, nos termos do art. 100º, nº 1, do CPPT).

Porém, não será assim: como é sabido, o facto gerador de imposto é complexo, incluindo um elemento temporal, normalmente designado por momento da exigibilidade do imposto.

Este “momento” é diferentemente definido pela lei, quer quanto aos impostos vários sobre o rendimento, quer relativamente às diferentes categorias de rendimentos em IRS.

Relativamente aos rendimentos da categoria E (esta é a categoria em que a AT, na fundamentação da liquidação adicional a que procedeu inseriu os valores ora em causa), vigora, como regra geral,  o “princípio de caixa” : 1 - Os rendimentos referidos no artigo 5.º ficam sujeitos a tributação desde o momento em que se vencem, se presume o vencimento, são colocados à disposição do seu titular, são liquidados ou desde a data do apuramento do respetivo quantitativo, conforme os casos (art. 7º CIRS).

No caso, a existência da obrigação de pagamento do imposto sempre estaria condicionada ao pagamento pelo credor (que, na visão da AT fundamentadora da liquidação impugnada, seria a sociedade Requerente), uma vez que caberia a este, na qualidade de substituto fiscal, proceder, então, à retenção na fonte, tal como dispõe o art. 71ª. N.º 1.  do CIRS: Estão sujeitos a retenção na fonte a título definitivo, à taxa liberatória de 28 %: a) Os rendimentos de capitais obtidos em território português, por residentes ou não residentes, pagos por ou através de entidades que aqui tenham sede, direção efetiva ou estabelecimento estável a que deva imputar-se o pagamento e que disponham ou devam dispor de contabilidade organizada.

Ora, em parte alguma a AT afirma que os sócios receberam ou tinham o direito a retirar quaisquer quantias da sociedade Requerente.

O que se debateu foi se os sócios realmente “injetaram” quantias na sociedade requerente e não o contrário.

Mesmo que assim não se entendesse, o certo é que a fundamentação da liquidação em causa é totalmente omissa quanto à exigibilidade da obrigação de imposto por ela afirmada.

Assim sendo, e sem necessidade de mais nos debruçarmos sobre a questão da presumida existência de rendimento tributável em IRS, haverá que concluir pela ilegalidade da liquidação impugnada por não verificação do requisito temporal da exigibilidade do imposto.

Procede assim o pedido da Requerente quanto à liquidação de IRS impugnada.

 

 

  1. Quanto à segunda questão (existência ou não de variações patrimoniais positivas sujeitas a tributação em IRC), ela surge algo em simetria ou contraponto com a anterior.

Quanto a este ponto, a AT, constatando que os créditos em causa (créditos de que eram titulares as sociedades B... e C...) “desapareceram”, ou seja, que estas sociedades deixaram de figurar com credoras na contabilidade da Requerente, considerou ter esta obtido uma variação patrimonial positiva, no valor de tais créditos, tributável em IRC.

Ora, em todo o processo nunca foi afirmada (ou ficou provado) um qualquer perdão de dívida por parte das sociedades que, inicialmente, surgiam contabilisticamente como credoras da Requerente (créditos esses cuja realidade também não foi posta em causa).

Na tese da Requerente, houve uma “substituição” de credores, cuja realidade este tribunal não deu por provada.

A posição da AT sofre, desde logo, de incoerência evidente: dos movimentos contabilísticos em causa resulta que os mesmos valores são havidos como originando rendimentos em “duplicado”, na esfera dos sócios e na esfera da Requerente. Relativamente aos sócios, o registo contabilístico de tais valores a crédito destes (a título de suprimentos), porque tido por não justificado, é havido como rendimento tributável em IRS; relativamente à sociedade, o “desaparecimento” do registo contabilístico dos mesmos valores como créditos titulados pela B... e pela C... é tido como uma variação patrimonial positiva.

 

Coerentemente, cremos que apenas são configuráveis duas situações: ou houve uma “substituição” de credores, do que decorre que a Requerente continua a dever exatamente as mesmas quantias, não mais às sociedades B... e  C... mas sim aos seus sócios: ou, que os registos contabilísticos em causa não podem ser aceites por não traduzirem uma (nova) realidade, caso em seríamos obrigados a concluir que as Sociedades B... e  C... continuam a ser as titulares de tais créditos.

O que não se afigura coerente é afirmar que o valor de tais créditos continua a existir, originando um rendimento tributável, quando a questão é analisada na perspetiva da tributação dos sócios; e afirmar que o valor de tais créditos  não existe mais, quando a questão é analisada, em IRC, na perspetiva da sociedade.

O certo é que, não tendo ficado provada a existência de qualquer perdão das dívidas em causa de que a Requerente tenha sido beneficiária, seja por parte das entidades que inicialmente titulavam os correspondentes créditos, seja por parte dos que agora figuram contabilisticamente como titulares de tais valores. Pelo que há que concluir que não foi feita a prova da existência da variação patrimonial positiva em que se fundamenta a liquidação de IRC impugnada.

Pelo que o pedido da Requerente, neste ponto, também procede.

 

 

 

            IV - DECISÃO ARBITRAL

 

Termos em que se conclui pela total procedência dos pedidos formulados pelas Requerentes, sendo que, relativamente à liquidação de IRC se mantem a correção positiva ao lucro tributável de 9.194,13 (Gastos - Ponto III.2 do RIT) porque não impugnada.

 

 

 

VALOR:  € 244.527,70

CUSTAS, no montante de € 4.284,00, a cargo da Requerida por ter sido total o seu decaimento.

 

 

26 de janeiro de 2024

 

 

Os árbitros

 

 

 

 

 

Rui Duarte Morais (relator)

 

 

 

 

Sérgio Pontes

 

 


 

Sofia Quental 

 

 

 

 

 



[1] Assim, à luz das regras de experiência, pode admitir-se que as “motivações contabilísticas” relativas aos créditos de que era originariamente titular a sociedade C... tiveram como objetivo tentar subtrair tais créditos ao concurso de credores no processo de insolvência desta sociedade.

Como é razoável admitir um outro objetivo para tais “movimentos”: “compor” o balanço da Requerente, substituído o endividamento a fornecedores pelo endividamento a sócios.