Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 115/2023-T
Data da decisão: 2023-11-03  IRS  
Valor do pedido: € 148.346,59
Tema: IRS – Liquidação com base em factos fixados em sentença penal condenatória – Eficácia probatória extraprocessual da sentença penal transitada e não transitada em julgado – Artigos 623º e 624º do CPC.
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ACÓRDÃO

 

 

Sumário: I – A eficácia probatória extraprocessual da sentença penal condenatória, traduz-se no estabelecimento de presunção ilidível da existência de factos constitutivos de obrigações tributárias do arguido e contribuinte. II – Esta eficácia probatória só releva com o trânsito em julgado dessa sentença (artigo 623.º do CPC).

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Acordam os árbitros que integram este Tribunal Coletivo, José Poças Falcão (Presidente), José Carreira e Ricardo Rodrigues Pereira (Adjuntos):

 

I – RELATÓRIO

 

  1. A... e B..., com os NIF’s ... e ..., residentes na Av. ..., ..., ..., ..., ...-... Aveiro, alegando terem  sido notificados das liquidações adicionais referentes a IRS e JC (juros compensatórios)  de 2004, 2005 e 2006, requerem a constituição de tribunal arbitral em matéria tributária, ao abrigo do art.º 10.º n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 11/2011, de 20 de Janeiro, pedindo  a pronúncia sobre a  (alegada) ilegalidade daquelas liquidações e o decretamento da sua anulação, sendo entidade requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (ATA), com base nos factos e nos fundamentos de direito que alegam e que são, em síntese e no essencial, os seguintes:
  • As liquidações citadas violam o artigo 74º-1 da LGT porque a AT não cumpriu o ónus de prova que sobre ela impendia, considerando a presunção de veracidade das declarações entregues pelo sujeito passivo, nos termos do nº1 do art.º75 da LGT.
  • Com efeito, no que respeita à eficácia das decisões proferidas no âmbito de processos criminais, estabelece o art.º 623º do CPC que «a condenação definitiva proferida no processo penal constitui, em relação a terceiros, presunção ilidível no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como dos que respeitam às formas do crime em  quaisquer ações cíveis em que se discutam relações jurídicas dependentes da prática da infração».
  • Por sua vez, dispõe o art.º 624º do mesmo diploma que «a decisão penal transitada em julgado, que haja absolvido o arguido com fundamento em não ter praticado os factos que lhe eram imputados, constitui, em quaisquer ações de natureza civil, simples presunção legal da inexistência desses factos, ilidível mediante prova em contrário» (nº 1) e que tal «presunção prevalece sobre quaisquer presunções de culpa estabelecidas na lei civil» (nº 2)
  • A eficácia probatória da sentença penal condenatória transitada em julgado no processo civil em que se discutam relações jurídicas dependentes da prática da infração, nos termos do artigo 623º do CPC, traduz-se no seguinte: em relação a terceiros, aquela sentença constitui presunção ilidível no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como dos que respeitam às formas do crime. Decorre implicitamente desta norma, sob pena de não fazer sentido a ressalva dela constante quando se trate de terceiros, que, em relação aos próprios arguidos, os factos referidos na mesma norma devem ser considerados provados no processo civil.
  • Assim, «provada, no processo penal, a prática dum acto criminoso que constitua ilícito civil, o titular do interesse ofendido não tem o ónus de provar na acção civil subsequente o acto ilícito praticado nem a culpa de quem o praticou, sem prejuízo de continuar onerado com a prova do dano sofrido e do nexo de causalidade» - Lebre de Freitas/Montalvão Machado/Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, 2ª edição, Coimbra Editora, 2008, p. 727, em comentário ao artigo 674º-A do CPC, revogado.
  • Só que o acórdão referido no relatório de inspecção não transitou em julgado, pelo que os factos no mesmo referidos são factos apenas indiciários, todos carentes de prova da sua existência, o que não foi feito.
  • O Código das Sociedades Comerciais (CSC), no seu artigo 297.º, n.º 1, prevê que nas sociedades anónimas sejam feitos aos accionistas adiantamentos sobre lucros, desde que observadas as seguintes regras: «a) O conselho de administração ou o conselho de administração executivo, com o consentimento do conselho fiscal, da comissão de auditoria ou do conselho geral e de supervisão, resolva o adiantamento; b) A resolução do conselho de administração ou do conselho de administração executivo seja precedida de um balanço intercalar, elaborado com a antecedência máxima de 30 dias e certificado pelo revisor oficial de contas, que demonstre a existência nessa ocasião de importâncias disponíveis para os aludidos adiantamentos, que devem observar, no que seja aplicável, as regras dos artigos 32.º e 33.º, tendo em conta os resultados verificados durante a parte já decorrida do exercício em que o adiantamento é efectuado; c) Seja efectuado um só adiantamento no decurso de cada exercício e sempre na segunda metade deste; d) As importâncias a atribuir como adiantamento não excedam metade das que seriam distribuíveis, referidas na alínea b).  2 - Se o contrato de sociedade for alterado para nele ser concedida a autorização prevista no número anterior, o primeiro adiantamento apenas pode ser efectuado no exercício seguinte àquele em que ocorrer a alteração contratual».
  • Embora o CSC não contenha disposição idêntica para as sociedades por quotas (caso da impugnante), o certo é que a admitir- se tal possibilidade também nesta modalidade societária, sempre haveriam de observar-se as regras a que está sujeito o adiantamento sobre os lucros nas sociedades anónimas – cfr. Acórdão do TCA Norte, de 09/06/2016, proferido no âmbito do processo n.º 545/10.4BECBR.
  • E analisadas tais regras, logo se vê que o adiantamento por conta dos lucros supõe a transferência de disponibilidades financeiras geradas em resultados do exercício, da sociedade para os sócios.
  • Ora, os resultados das empresas decorrem da diferença entre os proveitos e os custos apurados no exercício.
  • Como decorre do disposto no n.º 1 do artigo 17.º do CIRC, «O lucro tributável das pessoas colectivas e outras entidades mencionadas na alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do exercício e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não reflectidas naquele resultado, determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos deste Código».
  • Estriba a AT a sua actuação no art.º 5º, n.º 2, al. h), do CIRS, que dispõe: “Os lucros e reservas colocados à disposição dos associados ou titulares e adiantamentos por conta de lucros, com exclusão daqueles a que se refere o artigo 20.º”.
  • Começando pela aferição do sentido normativo de tais preceitos, cumpre desde já observar que tratando-se de uma norma de incidência (sujeita, como tal, ao princípio da tipicidade fechada como decorrência material do princípio da legalidade fiscal), da mesma resulta apenas abrangidos como rendimentos de capitais, na parte pertinente para o caso sub judice, os valores que uma entidade sujeita a IRC tenha colocado à disposição do sócio, a título de adiantamento por conta de lucros, pressupondo-se, obviamente, a escrituração formal dessa realidade, materializada numa deliberação societária que assim qualifique a transferência de valores para a disponibilidade dos sócios, porquanto a norma de incidência não prescinde formal ou teleologicamente da verificação e prova do “título” que justifica um qualquer lançamento em favor de um sócio.
  • Ou seja, de acordo com essa norma de incidência, uma qualquer qualquer transferência patrimonial não será susceptível de preencher a fattispecie normativa se não se encontrar efectivamente titulada nos termos legais, isto é, se não for efectuada a “título de adiantamento por conta de lucros”.
  • Assim, o facto de uma determinada verba destinada à sociedade se encontrar na esfera de disponibilidade fáctica de um seu sócio não preenche o tipo normativo e, consequentemente, o facto tributário aí recortado.
  • Por outro lado, entrando mais densamente na norma, cumpre verificar que o “título” subjacente ao facto tributário, não é passível de aferição subjectiva por banda dos agentes da administração, em termos de lhes permitir qualificar, tour court, uma qualquer transferência patrimonial como correspondendo a um “adiantamento por conta de lucros”. Por outras palavras: na ausência de uma transferência rotulada e justificada como tal, a AT, com base apenas nesta norma, não pode,  nem assumir nem presumir,  que a mesma é feita a título de adiantamento por conta de lucros, porquanto a causa jurídica é, aqui, elemento do tipo e esta carece de declaração expressa ou de justificação formal.
  • Não se objecte, porém, que, com tal configuração do facto tributário, a lei deixa em aberto uma “via verde” para obstacularizar à qualificação de quaisquer transferências não tituladas como rendimentos de capitais.
  • Efectivamente, estamos perante uma norma de incidência que afirma serem rendimentos de capitais os “adiantamentos por conta de lucros”, sendo este um conceito jurídico claramente determinado, que assume a pré-existência de uma causa jurídica declarada, não havendo aqui que entrar em linha de conta com os casos em que a lei presume a existência desses adiantamentos.
  • Se formalmente não existir uma situação de adiantamentos por conta de lucros, jamais se poderá determinar que uma dada realidade corresponde a um adiantamento por conta de lucros, na ausência dessa prévia determinação, ou seja, fixando o Tribunal a causa jurídica subjacente a factos que não se encontram tipicamente definidos na norma de incidência como correspondendo à hipótese legal ou sendo a esta equiparados ou passíveis de equiparação.
  • Assim, violará o princípio da legalidade fiscal, na dimensão de princípio da taxatividade, a norma ao artigo 5.º, n.º 1, e n.º 2, al. h), quando interpretada no sentido de que, não tendo uma transmissão sido efectuada ou justificada a título de adiantamento por conta de lucros, o Tribunal pode qualificar como tal factos que não se encontrem previstos nas normas de incidência objectiva como correspondentes ou equiparados a “adiantamentos por conta de lucros”.
  • No caso, não vem provado que tenha sido deliberado pela sociedade C... ou por outras a distribuição de lucros.
  • Percorrendo a norma que se refere aos rendimentos da categoria E:

                     - Consideram-se rendimentos de capitais os frutos e demais vantagens económicas, qualquer que seja a sua natureza ou denominação, sejam pecuniários ou em espécie, procedentes, directa ou indirectamente, de elementos patrimoniais, bens, direitos ou situações jurídicas, de natureza mobiliária, bem como da respectiva modificação, transmissão ou cessação, com excepção dos ganhos e outros rendimentos tributados noutras categorias.

                     - Os frutos e vantagens económicas referidos no número anterior compreendem, designadamente:

                     -Os juros e outras formas de remuneração decorrentes de contratos de mútuo, abertura de crédito, reporte e outros que proporcionem, a título oneroso, a disponibilidade temporária de dinheiro ou outras coisas fungíveis;

                     -  Os juros e outras formas de remuneração derivadas de depósitos à ordem ou a prazo em instituições financeiras, bem como de certificados de depósitos;

                     -  Os juros, os prémios de amortização ou de reembolso e as outras formas de remuneração de títulos da dívida pública, obrigações, títulos de participação, certificados de consignação, obrigações de caixa ou outros títulos análogos, emitidos por entidades públicas ou privadas, e demais instrumentos de aplicação financeira, designadamente letras, livranças e outros títulos de crédito negociáveis, enquanto utilizados como tais;

                      - Os juros e outras formas de remuneração de suprimentos, abonos ou adiantamentos de capital feitos pelos sócios à sociedade;

                     - Os juros e outras formas de remuneração devidos pelo facto de os sócios não levantarem os lucros ou remunerações colocados à sua disposição;

                     -  O saldo dos juros apurado em contrato de conta corrente;

                     -  Os juros ou quaisquer acréscimos de crédito pecuniário resultantes da dilação do respectivo vencimento ou de mora no seu pagamento, sejam legais sejam contratuais, com excepção dos juros devidos ao Estado ou a outros entes públicos por atraso na liquidação ou mora no pagamento de quaisquer contribuições, impostos ou taxas e dos juros atribuídos no âmbito de uma indemnização não sujeita a tributação nos termos do n.º 1 do artigo 12.º; (Redacção da Lei n.º 67- A/2007, de 31/12)

                     - Os lucros das entidades sujeitas a IRC colocados à disposição dos respectivos associados ou titulares, incluindo adiantamentos por conta de lucros, com exclusão daqueles a que se refere o artigo 20.º;

                     - O valor atribuído aos associados na amortização de partes sociais sem redução de capital; (Redacção da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro)

                     - Os rendimentos das unidades de participação em fundos de investimento;

                     - Os rendimentos auferidos pelo associado na associação em participação e na associação à quota, bem como, nesta última, os rendimentos referidos nas alíneas h) e i) auferidos pelo associante depois de descontada a prestação por si devida ao associado;

                     - Os rendimentos provenientes de contratos que tenham por objecto a cessão ou utilização temporária de direitos da propriedade intelectual ou industrial ou a prestação de informações respeitantes a uma experiência adquirida no sector industrial, comercial ou científico, quando não auferidos pelo respectivo autor ou titular originário, bem como os derivados de assistência técnica;

                     - Os rendimentos decorrentes do uso ou da concessão do uso de equipamento agrícola e industrial, comercial ou científico, quando não constituam rendimentos prediais, bem como os provenientes da cedência, esporádica ou continuada, de equipamentos e redes informáticas, incluindo transmissão de dados ou disponibilização de capacidade informática instalada em qualquer das suas formas possíveis; Os juros que não se incluam em outras alíneas deste artigo lançados em quaisquer contas correntes;

                     - Quaisquer outros rendimentos derivados da simples aplicação de capitais;

                     - O ganho decorrente de operações de swaps cambiais, swaps de taxa de juro, swaps de taxa de juro e divisas e de operações cambiais a prazo.(Redacção da Lei n.º 109-B/2001 , de 27 de Dezembro)

                     - A remuneração decorrente de certificados que garantam ao titular o direito a receber um valor mínimo superior ao valor de subscrição (Aditada pela Lei nº 32-B/2002. Redação com natureza interpretativa de acordo como o artigo 26º-4)

                     - Consideram-se ainda rendimentos de capitais a diferença positiva entre os montantes pagos a título de resgate, adiantamento ou vencimento de seguros e operações do ramo 'Vida' e os respectivos prémios pagos ou importâncias investidas, bem como a diferença positiva entre os montantes pagos a título de resgate, remição ou outra forma de antecipação de disponibilidade por fundos de pensões ou no âmbito de outros regimes complementares de segurança social, incluindo os disponibilizados por associações mutualistas, e as respectivas contribuições pagas, sem prejuízo do disposto nas alíneas seguintes, quando o montante dos prémios, importâncias ou contribuições pagos na primeira metade da vigência dos contratos representar pelo menos 35 % da totalidade daqueles: (Redacção do Decreto-Lei n.º 292/2009 - 13/10 - efeitos a 01/01/2009)

                     - São excluídos da tributação um quinto do rendimento, se o resgate, adiantamento, remição ou outra forma de antecipação de disponibilidade, bem como o vencimento, ocorrerem após cinco e antes de oito anos de vigência do contrato;

                     - São excluídos da tributação três quintos do rendimento, se o resgate, adiantamento, remição ou outra forma de antecipação de disponibilidade, bem como o vencimento, ocorrerem depois dos primeiros oito anos de vigência do contrato.

 - Para efeitos da alínea b) do n.º 2, consideram-se remunerações derivadas de depósitos à ordem ou a prazo os ganhos, seja qual for a designação que as partes lhe atribuam, resultantes de contratos celebrados por instituições de crédito que titulam um depósito em numerário, a sua absoluta ou relativa indisponibilidade durante o prazo contratual e a garantia de rentabilidade assegurada, independentemente de esta se reportar ao câmbio da moeda.

- Para efeitos da alínea c) do n.º 2, compreendem-se nos rendimentos de capitais o quantitativo dos juros contáveis desde a data do último vencimento ou da emissão, primeira colocação ou endosso, se ainda não houver ocorrido qualquer vencimento, até à data em que ocorra alguma transmissão dos respectivos títulos, bem como a diferença, pela parte correspondente àqueles períodos, entre o valor de reembolso e o preço de emissão, no caso de títulos cuja remuneração seja constituída, total ou parcialmente, por essa diferença.

- Sem prejuízo do disposto no número seguinte, nos casos previstos na alínea q) do n.º 2, o ganho sujeito a imposto é constituído: (i) tratando-se de swaps cambiais ou de operações cambiais a prazo, pela diferença positiva entre a taxa de câmbio acordada para a venda ou compra na data futura e a taxa de câmbio à vista verificada no dia da celebração do contrato para o mesmo par de moedas; (ii) tratando-se de swaps de taxa de juro ou de taxa de juro e divisas, pela diferença positiva entre os juros e, bem assim, no segundo caso, pelos ganhos cambiais respeitantes aos capitais trocados

- Havendo lugar à cessão ou anulação de um swap ou de uma operação cambial a prazo, com pagamento e recebimento de valores de regularização, os ganhos respectivos constituem rendimento para efeitos da alínea q) do n.º 2. (Redacção da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro)

- Estando em causa instrumentos financeiros derivados, o disposto no n.º 10 do artigo 49.º do Código do IRC é aplicável, com as necessárias adaptações, para efeitos de IRS. (Redacção da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro)

- No caso de cessões de crédito previstas na alínea a) do n.º 2, o rendimento sujeito a imposto é constituído pela diferença positiva entre o valor da cessão e o valor nominal do crédito. (Aditado pela Lei 109-B/2001 de 27 de Dezembro)

 

  • O adiantamento por conta dos lucros supõe a transferência de disponibilidades financeiras geradas em resultados do exercício, da   sociedade   para   os   sócios.
  • A qualificação como adiantamento por conta dos lucros, in casu, enferma de erro nos pressupostos, pois no caso, não se recolheram factos (índice) suficientes de que foram feitos depósitos pela sociedade na conta de sócio alicerçado nos resultados do exercício da sociedade.
  • A própria fundamentação da AT é eloquente:

 

  • Não está, portanto,  demonstrado ter ocorrido qualquer transferência da sociedade para sócio de fundos próprios gerados em resultados.
  • O que consta do relatório a fls. 3 é que:

 

  • Sendo a AT quem se pretende prevalecer da norma em causa (da previsão do n.º 5 do artigo 45.º da LGT), seria ela quem, nos termos do artigo 74.º/1 da LGT, estava onerada com a demonstração da coincidência entre os factos tributários e os factos relativamente aos quais foi instaurado inquérito criminal, o que não logrou.
  • Razão porque se mostram caducados os impostos em causa, face ao que dispõe o n.º 1 do art.º 45º da LGT.

Subsidiariamente alega e conclui o Requerente:

  • A atividade levada a cabo pela AT não constitui uma mera ação de recolha de informação, antes se traduzindo no início de uma ação de inspeção externa, de óbvio cariz investigatório, parecendo claro que a AT não observou as exigências legais que o RCPIT lhe impõe, concretamente no que toca à notificação prévia (cfr. artigos 49º, nº1 e 50/1,a) do RCPIT), à ordem de serviço e também no que respeita ao período do procedimento, de seis meses, sem prejuízo da possibilidade de prorrogação, disso se notificando o sujeito passivo (cfr. artigo 36º, nºs 2, 3 e 4 do RCPIT).
  • Ora, estes factos – falta de notificação prévia da inspeção (artigo 49º-1, do RCPIT) – não pode deixar de traduzir vício determinante de anulabilidade.
  • Alega ainda o Requerente a preterição pela AT de várias outras obrigações legais e constitucionais geradoras da falta de competência e credenciação para a prática dos mencionados atos inspetivos.
  1. À luz do disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
  2. Ulterior e oportunamente, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o tribunal arbitral coletivo ficou constituído em 10-5-2023.
  3. Para o efeito notificada, a Autoridade Tributária e Aduaneira respondeu ao requerimento inicial apresentado, contestando-o, concluindo pela sua total improcedência.
  4. A reunião do Tribunal com as partes prevista no artº 18º, do RJAT, foi dispensada sem oposição das partes, por ser reconhecida a sua inutilidade no caso.
  5. As partes apresentaram alegações finais escritas.

 

Posição da Requerida, Autoridade Tributária e Aduaneira (AT)

 

  1.  Na resposta, a Autoridade Tributária e Aduaneira vem alegar, no essencial e em síntese:
    1. A 08-09-2022 a Direção de Serviços da Investigação da Fraude e de Ações Especiais (DSIFAE), solicitou à Direção de Finanças de Aveiro que efetuasse as liquidações de impostos relativamente às vantagens patrimoniais indevidas obtidas pelo arguido (ora demandante) A..., NIF ..., com relação ao IRS dos anos de 2004, 2005 e 2006 (cf. anexo 1);
    2. Para efeitos de cumprir com o solicitado foi aberto o despacho no DI2022... .
    3. O contribuinte A..., ora Requerente, foi notificado do projeto de relatório de inspecção tributária, para efeitos do exercício do direito de audição em 13-10-2022, não se tendo pronunciado sobre a aplicação de métodos indirectos nos termos das alíneas b) e f) do nº 1,  do artº 87º e alínea a) do nº 5 do artº 89º-A, ambos da LGT (manifestações de fortuna) (cf. anexo 2)
    4. O ora Requerente foi notificado do relatório de inspecção tributária, em 04-11-2022
    5. Foram assim elaborados os respetivos documentos de correção incluindo os valores reconhecidos no acórdão proferido pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, no âmbito do processo .../07...TELSB, tendo dado origem às seguintes liquidações:

a. Ano 2004 – Liquidação no 2022.... (declaração modelo 3 de de IRS...)

b. Ano 2005 – Liquidação no 2022... (declaração modelo 3 de IRS...)

c. Ano 2006 – Liquidação no 2022... (declaração modelo 3 de IRS...)

  1. A 10-11-2022 o sujeito passivo apresentou reclamação graciosa das liquidações mencionadas no ponto anterior, a qual ficou registada na SICAT sob o no ...2022..., tendo a mesma sido extinta por decisão em recurso hierárquico.
  2. No seguimento do e-mail remetido a 24-11-2022, pela Direção de Serviços de Consultadoria  Jurídica e Contencioso (DSCJC), foi proferida em 25-11-2022 a anulação do despacho de inspecção no DI2022..., do subsequente relatório de inspecção e liquidações de IRS de 2004, 2005 e 2006.
  3. Da referida anulação foi o contribuinte notificado em 05-12-2022 (cf. anexos 4, 5 e 6)
  4. A 26-11-2022 foi apresentado pelo ora Requerente recurso hierárquico tendo por base as liquidações reclamadas, o qual ficou registado no SICAT com o no ...2022..., tendo o mesmo sido extinto por arquivamento. (cf. anexo 7)
  5.  Na sequência daquela anulação foram elaborados os documentos de correção com vista a repor a liquidação original conforme apresentada inicialmente pelo contribuinte:
  • Ano 2004 – Liquidação nº 2022... (declaração modelo 3 de de IRS...)
  • Ano 2005 – Liquidação nº 2022... (declaração modelo 3 de IRS...)
  • Ano 2006 – Liquidação nº 2022... (declaração modelo 3 de IRS...)
  1. A 06-01-2023 foi elaborada informação com vista a efetuar as liquidações adicionais de IRS dos anos de 2004, 2005 e 2006, conforme solicitado pela DSIFAE, na sequência da comunicação efectuada pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, no âmbito da sentença proferida no Acórdão do processo no .../07...TELSB, desta feita enquadrando as vantagens patrimoniais indevidas na categoria E de rendimentos de IRS.
  2. O ora Requerente foi notificado a 16-01-2023, para efeitos do exercício do direito de audição, das liquidações projectadas de IRS 2004, 2005 e 2006, em conformidade com os valores resultantes da sentença proferida naquele Acórdão, tendo exercido o direito de audição, que analisado pelos serviços competentes, não obteve provimento (cf. anexos 8 e 9).
  3. O sujeito passivo foi notificado a 06-02-2023, do despacho proferido pelo Director de Finanças a 27-01-2023, bem como do parecer e informação dos serviços (cf. anexo 10)
  4. Assim, foram elaboradas as liquidações adicionais para acolher os rendimentos determinados no Acórdão proferido no âmbito do processo no .../07...TELSB, as quais foram objecto do pedido de pronúncia arbitral objeto destes autos:

Ano 2004 – Liquidação nº 2023... (declaração modelo 3 de IRS ...- ...-... -...)

Ano 2005 – Liquidação nº 2023... (declaração modelo 3 de IRS ...- ...-... -...)   

Ano 2006 – Liquidação nº 2023... (declaração modelo 3 de IRS ...- ...-... -...)

  1. De acordo com a comunicação efetuada ao Requerente pelo Tribunal judicial da Comarca de Lisboa, no âmbito da sentença proferida no proc. nº .../07...TELSB, na qual ficou provado que o arguido e ora Requerente, integrou no seu património pessoal de forma ilegítima, através de créditos em conta bancária por si titulada na Caixa Geral de Depósitos, o montante de € 510.000,00, repartidos pelos anos de 2004, 2005 e 2006, que não foram alvo de declaração à AT,  os serviços da AT concluíram, fundamentadamente, que aqueles montantes foram atribuídos a título de distribuição ou participação nos lucros da sociedade "C...", de que era sócio gerente, ou de cada uma das sociedades em que, em seu próprio nome ou em nome desta, prestou serviços, pelo que foram considerados como adiantamentos por conta de lucros, nos termos da alínea h), do n° 2, do artº, 5o do CIRS.
  2. Assim sendo, os SIT, nos termos do nº 4 do artº 65º, do CIRS, procederam à alteração dos rendimentos declarados pelo Requerente em cada um dos anos em causa, tendo o rendimento tributável em sede de IRS, sido corrigido nos seguintes valores:

2004: € 40.000,00

2005: € 106.325,00

2006: € 109.000,00;

  1. Em consequência, foram emitidas liquidações adicionais relativas aos anos de 2004, 2005 e 2006, com os nºs 2023...,  2023... e  2023..., as quais o Requerente vem agora contestar.
  2. Não obstante, o referido Acórdão ainda não ter transitado em julgado, devido à interposição de recurso, uma vez que nele não foi deduzido pedido de indemnização civil, foram efetuadas as liquidações dos impostos devidos, em sede de IRS dos anos 2004, 2005 e 2006, relativamente às vantagens ilegítimas obtidas pelo arguido, conforme ficou evidenciado nas folhas 300 e seguintes do Acórdão, no qual ficou provado que o Requerente integrou no seu património pessoal de forma ilegítima, através de créditos em conta bancária por si titulada no banco Caixa Geral de Depósitos, o montante de, pelo menos, € 510.000,00, repartidos pelos anos em causa (2004, 2005 e 2006), que não foram alvo de declaração à AT, conforme é demonstrado na informação da Direcção de Finanças de Aveiro que sustenta as alterações aos rendimentos declarados pelo Requerente nos referidos anos, nos termos do nº 4 do artº 65º, do CIRS.
  3. Quanto aos adiantamentos por conta de lucros (pontos 10 a 37 do ppa), conforme resulta da  mencionada sentença, foi na qualidade de sócio e gerente da sociedade “C..., Lda,” NIF..., que o Requerente prestou serviços de contabilidade e consultoria às diversas sociedades dominadas pela sociedade D..., SGPS, na qual, durante os anos aqui em questão, integrou o conselho de administração, e que, através dessa mesma sociedade, exerceu de facto a administração financeira e o controlo da contabilidade de todas essas sociedades.
  4. Conforme ficou provado no processo de inquérito em referencia, foram transferidos para uma conta bancária da Caixa Geral de Depósitos, titulada pelo Requerente, passando a integrar o seu património pessoal, os montantes indicados na tabela do ponto 1 da informação que sustenta a alteração de rendimentos declarados, nos termos do nº 4 do artº 65º,  do CIRS, que, conforme se pode verificar pelos valores declarados para efeitos de IRS, transcritos nas tabelas do ponto 3.1 do Anexo 10, ora junto aos Autos e correspondente à Decisão final sobre as liquidações ora em dissídio, não foram, efectivamente, objecto de manifesto fiscal.
  5. Não havendo quaisquer dados, documentos ou elementos que possam tipificar os rendimentos em questão e permitam o seu enquadramento noutra qualquer categoria de IRS, só pode concluir-se que os mesmos foram atribuídos a título de distribuição ou participação nos lucros da sociedade "C...", de que era sócio gerente, ou de cada uma das sociedades em que, em seu próprio nome ou em nome desta, prestou serviços, passando, por esse facto a constituir-se, nos termos da alínea h) do nº 2 do artº 5º, do CIRS, como rendimentos da categoria E (redação já em vigor à data dos factos).
  6. Efectivamente, o arº 5º, do CIRS, considera como rendimentos de capitais os frutos e demais vantagens económicas, qualquer que seja a sua natureza ou denominação, sejam pecuniários ou em espécie, procedentes, directa ou indirectamente, de elementos patrimoniais, bens, direitos ou situações jurídicas, de natureza mobiliária, termos em que os rendimentos em causa encontram, seguramente, enquadramento.
  7. A qualificação tributária destas transferências patrimoniais, enquadram-se como rendimentos de capitais nos termos do n° 1 do artº 5º,  do CIRS, que considera como rendimentos, os frutos e demais vantagens económicas, qualquer que seja a sua natureza ou denominação, sejam pecuniários ou em espécie, procedentes, directa ou indirectamente, de elementos patrimoniais, bens, direitos ou situações jurídicas, de natureza mobiliária.
  8. Os frutos e vantagens económicas referidos compreendem nos termos da alínea h) do n.° 2 do artº 5º, do CIRS, os lucros colocados à disposição dos respectivos associados ou titulares.

 

Saneamento

 

  1. Este Tribunal arbitral é materialmente competente.
  2. As partes são legítimas e capazes e estão legalmente representadas.
  3. Não enferma o processo de vícios invalidantes e não há exceções ou questões prévias a apreciar e decidir.

 

Cumpre apreciar o mérito do pedido.

 

 

II. FUNDAMENTAÇÃO

 

De facto

 

Factos provados

  1. Consideram-se provados os seguintes factos relevantes para a decisão:

 

  1.  A 8-9-2022 a DSIFAE (Direção de Serviços de Investigação da Fraude e de Ações Especiais), solicitou à Direção de Finanças de Aveiro que fossem efetuadas as liquidações de impostos relativamente às vantagens patrimoniais, indevidas, obtidas pelo ora Requerente, em relação ao IRS dos anos de 2004, 2005 e 2006 (cfr anexo I, junto pela AT) e...
  2. ... que resultavam do  acórdão penal condenatório proferido no processo nº .../07...TELSB do Tribunal Judicial da comarca de Lisboa;
  3.  Foram em consequência efetuadas as liquidações adicionais de IRS nºs 2022..., 2022... e 2022..., dos anos de 2004, 2005 e 2006, respetivamente...
  4. Consta do citado relatório o seguinte:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

  1.   Com base ou fundamentado no citado relatório foi proferido o seguinte despacho:

 

 

  1.  O contribuinte, co-arguido naquele processo criminal e ora demandante, A..., foi notificado do projeto de relatório de inspeção tributária, para efeitos do exercício do direito de audição, em 13-10-2022, não se tendo pronunciado sobre a aplicação de métodos indirectos nos termos das alíneas b) e f) do no 1 do art.º87º e alínea a) do nº 5 do artº 89º-A, ambos da LGT (manifestações de fortuna) (cf. anexo 2);
  2. O projeto citado foi transformado em relatório e notificado, como tal, aos Requerentes em 4-11-2022;
  3. Em 10-11-2022 foi apresentada reclamação graciosa das sobreditas liquidações, registada na SICAT sob o nº ...2022... extinta por decisão, notificada em 5-12-2022, do seguinte e teor:

ANULAÇÃO DE ATO – Despacho de Inspeção nº DI2022..., subsequente relatório de inspeção e liquidações de IRS de 2004, 2005 e 2006. - Proc. no …/22.4BEAVR - SICJUT nº ...2022...

Nome: A... Morada: AV ...– IRS – 2004, 2005 e 2006

I - INTRODUÇÃO

Foram os sujeitos passivos A... e B..., detentores dos números de identificação fiscal ... e ..., respetivamente, notificados de relatório final de inspeção tributária em 2022/11/03 e subsequentes liquidações adicionais de IRS dos anos de 2004, 2005 e 2006, todos consubstanciados no despacho de inspeção DI2022... e na sentença proferida no acórdão do processo .../07...TELSB com data de 2021/07/15. Na sequência de tal os sujeitos passivos antes identificados deduziram recurso da decisão de avaliação por método indireto, ao abrigo do n.o 7 do artigo 89.o-A LGT e do artigo 146.o-B do CPPT, constituindo-se o processo n.o …/22.4BEAVR.

II - MATÉRIA FACTUAL

O despacho de inspeção n.o DI2022... foi emitido em 2022/09/23, visando a “Consulta, recolha e cruzamento de elementos”, estando assim limitado em consonância com os números 4 e 5, do artigo 46.o, do RCPITA, inexistindo à data desta informação, ordem de serviço nos termos previstos nos termos do número 3, do citado articulado, com o âmbito (IRS) e extensão (2004, 2005 e 2006) antes indicados.

Em 2022/11/03 é elaborado relatório de inspeção tributária, referenciando-se a esse despacho de inspeção e no qual são promovidas correções em sede de IRS e aos anos de 2004, 2005 e 2006, assentes na qualificação de factos apurados no processo de inquérito n.o .../07...TELSB como tratando-se de incrementos patrimoniais não justificados, com alusão à avaliação indireta prevista nos termos dos artigos 87.o, 88.o e 89.o-A, todos da LGT.
Não obstante tal alusão, verifica-se a inexistência dos requisitos procedimentais necessários à aplicação de tal normativo, designadamente o previsto no n.o 11, do artigo 89.o-A, da LGT.

Assim e considerando, a falta de credenciação para a realização das correções em apreço, em concreto, ordem de serviço de inspeção e, bem assim, o incumprimento dos necessários procedimentos à aplicação de avaliação indireta nos termos do artigo 89.o-A, conclui-se pela ilegalidade dos atos administrativos aqui praticados, colocando em causa, subsequentemente, as liquidações promovidas.

III - MATÉRIA DE DIREITO

Tal como sucedia anteriormente à reforma operada em 2015, o Novo Código do Procedimento Administrativo (doravante NCPA) consagra, no que concerne à ilegalidade do ato administrativo, duas modalidades: a nulidade e a anulabilidade.

Sabendo-se que o legislador pretendeu reservar a nulidade para o sancionamento dos vícios mais graves do ato administrativo, temos por assente que a anulabilidade se reporta àqueles casos em que os vícios não se prefiguram como adequados a integrar aquele âmbito, dado que o ato anulável, apesar de inválido, é eficaz, não obstante os seus efeitos jurídicos poderem vir a ser destruídos retroativamente se ocorrer a sua anulação, por decisão proferida pelos tribunais administrativos ou pela própria Administração (artigo 163.o n.o 2 do NCPA).

Com efeito, a anulação administrativa destina-se a eliminar da ordem jurídica um ato anulável e, consequentemente, a reintegrar ou repor a legalidade violada, o que ocorrerá de forma retroativa, querendo isto significar que as consequências ilegalmente advindas do ato sobre o qual incide a anulação administrativa são destruídas ab initio.

No que tange à iniciativa, prevê-se no artigo 169.o n.o 1 do NCPA que a anulação pode desencadear-se oficiosamente, desencadeada pelos órgãos competentes, ou mediante solicitação dos interessados, através de reclamação graciosa ou recurso administrativo.

Em relação à competência para proceder à anulação administrativa, estabelece-se nos n.os 3 a 6 daquele artigo 169.o que a mesma se encontra atribuída ao órgão que praticou o ato ou ao seu superior hierárquico, ao órgão delegante ou subdelegante, bem como ao delegado ou subdelegado, quando estejam em causa atos praticados ao abrigo de uma delegação ou subdelegação de poderes, aos órgãos com poderes de superintendência ou tutela ou ao órgão competente para a prática do ato, nos casos de atos administrativos praticados por órgão incompetente.

Por sua vez, os condicionalismos aplicáveis à anulação administrativa encontram-se consagrados no artigo 168.o do NCPA, no qual se prevê, na parte que aqui nos importa, que aquela pode ocorrer no prazo de seis meses contados desde a data do conhecimento, pelo órgão competente, da causa de invalidade ou, nos casos de invalidade resultante de erro do agente, desde o momento da cessação do erro, impondo o legislador que, quer num caso quer noutro, não tenham ainda decorrido cinco anos a contar da emissão do acto.

IV. CONCLUSÃO

Em face do exposto, atendendo a que foi praticado um ato ilegal, que esse ato é anulável, e que se encontram preenchidos os pressupostos de que a lei faz depender a sua anulação administrativa, anulo os atos de credenciação consubstanciados no despacho de inspeção DI2022..., a subsequente notificação de relatório de inspeção tributária e, bem assim, as liquidações adicionais surgidas a partir dos mesmos.

Aveiro, 25 de novembro de 2022

O Diretor de Finanças,

  1. O Requerente foi notificado em 16-1-2023 para exercer o direito de audição relativamente às liquidações ora objeto de impugnação elaboradas em conformidade com os valores resultantes do acórdão penal não transitado em julgado e acima mencionado;
  2. Não tendo provimento os argumentos ou razões invocadas em sede de exercício desse direito de audição, foram os Requerentes notificados, em 6-2-2023, do despacho proferido pelo Diretor de Finanças de Aveiro em 27-1-2023 e do parecer e informação dos Serviços (cfr supra, 11.2 e 11.3, dos factos provados;
  3. O acórdão penal proferido no processo nº .../07...TELSB não transitou em julgado;
  4. Em 27-2-2023, os Requerentes apresentaram o pedido de pronúncia arbitral que dá origem a estes autos.

 

Factos não provados

 

  1. Não se surpreendem quaisquer outros factos de entre os alegados que se revelem relevantes ou essenciais para o objeto do litígio, provados e/ou não provados.

 

 Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

 

  1. Relembra-se preliminarmente que o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada [cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 659.º, n.º 2 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT].
  2. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito [cfr. artigo 511.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT].
  3. À luz do exposto, o quadro factual relevante no caso sub juditio é o que se deixou descrito.
  4. Para o estabelecer, ponderou o Tribunal, conjugadamente, as posições das partes nos respetivos articulados bem como todo o acervo documental incorporado no processo, incluindo cópia do processo administrativo instrutor e relatório inspetivo, com o valor probatório decorrente da não impugnação das asserções e conclusões que dele constam (Cfr. v. g.,  Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de  26-06- 2014, proferido no processo 07148/13: “o valor probatório do relatório da inspecção tributária (..) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas".
  5. Ponderou ainda o Tribunal que no âmbito do direito fiscal, o ónus probatório não tem a dimensão subjetiva doutros ramos do direito, mas sim objetiva, no sentido de que o que interessa para a decisão do mérito da causa, quer no procedimento administrativo quer no processo judicial, é o que relevar da verdade dos factos alcançada, independentemente da parte que tenha o ónus de tal prova, atenta a predominância do princípio do inquisitório constante dos art.ºs 99.º da LGT e 13.º do CPPT.
  6. Ponderou final e igualmente o Tribunal que, pese embora não estar legalmente estabelecido o efeito cominatório decorrente da não impugnação específica e/ou especificada de factos alegados, a verdade é que, não contestados, os mencionados factos consideram-se provados, especialmente se não estiverem em contradição com a defesa como um todo, como acontece no caso sub juditio.
  7. É a esta luz que, em conjugação com a mencionada prova documental, o Tribunal considerou provados os factos supra elencados, alegados pelas Requerentes e não contestados, impugnados ou postos de algum modo em causa pela Requerida, designadamente que o acórdão proferido no mencionado processo nº .../07...TELSB, não transitou em julgado.
  8. Ou, dito doutro modo: tendo em consideração o exposto e as posições assumidas pelas partes e a prova documental apresentada e não reciprocamente impugnada, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, considerando o thema decidendum.

 

II. FUNDAMENTAÇÃO (cont.)

 

O Direito

 

  1. Como abordagem preliminar para a fundamentação jurídica, recorde-se o que há muito vem sendo o entendimento da Jurisprudência quanto ao dever de apreciação dos argumentos apresentados pelas partes e que se traduz na não obrigatoriedade de os Tribunais os apreciarem (Cfr., inter alia, Ac do Pleno da 2.ª Secção do STA, de 7-6-1995 (Recurso nº 5239, in DR – Apêndice,  de 31 de Março de 1997, pgs. 36-40 e Ac do STA – 2ª Sec – de 23 -4-1997, in Diário da República – Apêndice,  de 9-10-1997, p. 1094).  O Tribunal tem tão só apenas o dever de decidir o litígio de harmonia com o pedido e à luz da Lei e do Direito, após julgamento da matéria de facto.

 

O objeto do pedido

  1. O objeto destes autos reconduz-se, se bem entendemos, a sindicar a invocada (i)legalidade, por vício de violação de lei por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, de atos de liquidação  adicionais de IRS praticados pela AT com base ou fundamento em acórdão penal condenatório do Requerente e, subsidiariamente, em alegada caducidade do direito de liquidação e na invalidade do procedimento inspetivo por verificação de diversos vícios formais.

 

Apreciando o mérito do pedido

 

  1. A questão fulcral que cumpre começar por apreciar é a de saber qual a eficácia extraprocessual da decisão penal, maxime em termos de matéria de facto, e, designada e concretamente, se um quadro factual verificado ou reconhecido por um tribunal penal, pode fundamentar uma liquidação adicional de IRS de contribuinte, arguido naquele processo, ainda que o faça na base de mera presunção ilidível ou juris tantum.
  2. Sobre esta matéria impõe-se trazer à colação o disposto no artigo 623º do CPC, normativo que regula a eficácia probatória extraprocessual da sentença penal condenatória transitada em julgado (sublinhado nosso), que dispõe no sentido de que a condenação definitiva proferida em processo penal constitui, relativamente a terceiros, presunção ilidível (sublinhado nosso) no que concerne à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, as formas do crime, em quaisquer ações cíveis em que se discutam as relações jurídicas dependentes da prática da infração.
  3. Esta questão conduz-nos por sua vez à problemática do ónus da prova em matéria tributária e, designadamente, à regra que impõe e dispõe que o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos quer da AT quer dos contribuintes recai sobre quem os invoque – cfr artigo 74º, da LGT.
  4. Pois bem, a esta luz será inquestionável, no caso sub juditio, que o direito de tributar da AT tinha de ser estribado em factos constitutivos desse direito e que à AT competia provar ou em presunções que ao contribuinte competiria ilidir.
  5. Ou seja: competia à AT demonstrar os pressupostos da presunção e ao contribuinte ilidir essa presunção.
  6. Quanto à presunção, os pressupostos no caso seriam, como se viu, a prolação de acórdão penal transitado em julgado (sublinhado nosso).
  7. Ora como é evidente, o trânsito em julgado da decisão penal não está alegado nem demonstrado; pelo contrário, ambas as partes aceitam que tal não ocorre quer através das posições que assumem no processo quer dos documentos juntos pela AT com a Resposta.
  8. Duma decisão penal não transitada em julgado apenas uma presunção se pode extrair: a da inocência do arguido (em matéria penal) e da não verificação dos factos em que se estriba a condenação.
  9. Por outro lado, sempre será ónus da AT, comprovar ou demonstrar os factos constitutivos do direito de tributação, nos termos, entre outros normativos, do artigo 74º-1 da LGT e contrariar, fundadamente, as declarações apresentadas pelos contribuintes.
  10. Não estando demonstrados os factos em que se estribam as liquidações adicionais sub juditio e validamente contrariadas as declarações apresentadas pelos Requerentes relativas a IRS dos anos de 2004, 2005 e 2006, aquelas liquidações adicionais enfermam de vício de violação de lei por erro sobre os pressupostos de facto e de direito e são consequentemente anuláveis.
  11. Daí a procedência total do pedido.

 

Questões com apreciação prejudicada

  1. A procedência do mencionado vício invalidante das liquidações adicionais, dispensa, à luz do disposto no artigo 124º do CPPT (aplicável subsidiariamente à arbitragem tributária por força do artigo 29º do RJAT), o conhecimento dos demais vícios subsidiariamente alegados pelos Requerentes.

 

III – DECISÃO

 

Em consequência do exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

  1. Julgar totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral formulado por A... e B..., 

e, em consequência,

  1. Anular as seguintes liquidações adicionais de IRS, acima identificadas:

Ano 2004 – Liquidação nº 2023... (declaração modelo 3 de IRS ...- 2004-... -...)

Ano 2005 – Liquidação nº 2023... (declaração modelo 3 de IRS ...- 2005-...-...)           

Ano 2006 – Liquidação nº 2023... (declaração modelo 3 de IRS ...- 2006-... -...)

  1. Julgar prejudicadas as demais questões suscitadas nos autos e
  2. Condenar a Requerida nas custas do processo atento o seu decaimento.

*

  • Valor do processo: De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2 do CPC e artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de EUR 148.346,59.
  • Custas: Fixa-se o montante das custas em EUR 3.060,00 (tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária), ficando o respetivo pagamento a cargo da Requerida, conforme decidido supra (artigo 22º-4 do RJAT).

 

                  Lisboa e CAAD, 3 de novembro de 2023

 

O Tribunal Arbitral Coletivo,

 

José Poças Falcão

(Presidente)

 

 

José Carreira

(Árbitro Adjunto)

 

Ricardo Rodrigues Pereira

(Árbitro Adjunto)