Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 127/2023-T
Data da decisão: 2023-11-10  Selo  
Valor do pedido: € 55.717,49
Tema: IS - Gestão Centralizada de Tesouraria – Isenção art. 7º, n.º 1, h) do CIS – Ónus da Prova.
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SUMÁRIO

  1. Relativamente aos acordos de “cash pooling”, incumbirá à AT a prova da existência de uma operação de utilização de crédito tributável em sede de Imposto do Selo e à Requerente a prova dos pressupostos da isenção de tal tributação, prevista no artigo 7.º, n.º 1, alínea h), do CIS.
  2. Nesse âmbito, de acordo com as regras de repartição do ónus da prova, incumbe ao sujeito passivo a prova da existência de contrato de gestão centralizada de tesouraria que regule o modo e condições de funcionamento, bem como a existência de uma relação societária de domínio entre as sociedades participantes e a centralizadora no contrato de gestão centralizada de tesouraria.
  3. Por seu turno, recai sobre a AT a prova do incumprimento do prazo de empréstimo não superior a um ano, como pressuposto da tributação.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

 

I – RELATÓRIO

 

1. A... LDA, anteriormente denominada B... Lda,, titular do número único de pessoa coletiva ..., com sede em ... ...–..., ..., ...-...,  ..., apresentou, em 01-03-2023, pedido de constituição do tribunal arbitral, nos termos dos artigos 2º e 10º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em conjugação com o artigo 102º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada apenas por Requerida).

 

2. A Requerente pretende, com o seu pedido, a declaração de ilegalidade da decisão de indeferimento da reclamação graciosa que apresentou relativamente às autoliquidações de Imposto do Selo (“IS”), referentes aos meses de maio, junho, julho, agosto, setembro, outubro, novembro e dezembro de 2021, e dos meses de janeiro, fevereiro, março, abril, maio e junho de 2022, efetuados através das declaração mensais de imposto de Selo (“DMIS”) n.º..., n.º ..., n.º ..., n.º ..., n.º..., n.º ..., n.º ..., n.º..., n.º ..., n.º..., n.º..., n.º ..., n.º ...  e n.º ..., no total global de 55.717,49 €(cinquenta e cinco mil setecentos e dezassete euros e quarenta e nove cêntimos), com a restituição da quantia paga.

 

3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 02-03-2023.

 

3.1. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou o signatário como árbitro do tribunal arbitral, o qual comunicou a aceitação da designação dentro do respectivo prazo.

 

3.2. Em 19-04-2023 as partes foram notificadas da designação do árbitro, não tendo sido arguido qualquer impedimento.

 

3.3. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11º do RJAT, o tribunal arbitral foi constituído em 10-05-2023.

 

3.4. Nestes termos, o Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído para apreciar e decidir o objecto do processo.

 

3.5. Por despacho de 10-07-2023 foi dispensada a realização da reunião e, com a anuência das partes, da apresentação de alegações.

 

4. Com o pedido de pronúncia arbitral manifesta a Requerente a sua inconformidade com o indeferimento à reclamação graciosa que apresentou, relativamente a actos de autoliquidação de imposto do selo.

Sustenta, com tal fundamento, em suma:

- Assumir assume a forma jurídica de sociedade por quotas de direito português, com sede e direcção efectiva neste território, tem como objecto a produção, importação, exportação, armazenagem, distribuição e comercialização de medicamentos, produtos químicos, produtos cosméticos e de higiene corporal, produtos de saúde – CAE 46460.

- Integra o Grupo C..., grupo económico internacional.

- O seu capital social é detido pela D... B.V., entidade residente, para efeitos fiscais, nos Países Baixos, em aproximadamente 82% (quota de Euro 21.992.515); e pela E..., entidade residente, para efeitos fiscais, em França, em aproximadamente 18% (quota de Euro 4.822.500).

- O Grupo C... implementou um acordo de gestão de tesouraria, ao nível das suas subsidiárias destinado a assegurar a gestão centralizada de tesouraria das diferentes entidades do Grupo residentes em diferentes países.

- A Requerente aderiu ao acordo em causa no dia 20 de Outubro de 2008, sendo que a contraparte em causa é a F..., S.A. (“F... França”, anteriormente denominada H..., S.A. à data de celebração do acordo), entidade residente, para efeitos fiscais, em França, e detentora, a título indireto, de cerca de 92% do capital social da A..., Lda.: A F..., S.A., detém 100% do capital social da D... B.V. (detém 82% da A..., Lda) e 55,7% da G..., Lda).

- Atendendo aos valores apurados, foram pagos o segundo e o terceiro pagamentos por conta de acordo com o valor efetivamente devido, isto é, € 40.751,00.

- O sistema de gestão centralizada de tesouraria implementado baseia-se no princípio de saldo nulo (“Zero Balance Scheme”), no âmbito do qual, sempre que aplicável, o saldo positivo da conta bancária da A..., Lda, deverá ser automaticamente transferido para a conta bancária da F..., numa base diária, reduzindo assim a zero o saldo da conta bancária da primeira.

- Esta centralização de fundos tem sido registada contabilisticamente, na sua esfera, como saldo devedor (v.g., ativo) sobre a F... .

- Nos períodos a que os actos de autoliquidação de Imposto do Selo respeitam,  A..., Lda, encontrou-se numa situação de excesso de fundos/tesouraria, circunstância que determinou, ao abrigo do mencionado acordo de gestão de tesouraria a transferência dos fundos na sua conta bancária local para a F... .

- As transferências de fundos da impugnante para a F... foram tratadas enquanto concessões de crédito da primeira entidade à segunda, sendo o sujeito passivo, nos termos da alínea b) do artigo 2.º do CIS, a entidade concedente do crédito, devendo proceder à liquidação do imposto e repercuti-lo no titular do interesse económico do facto tributário, isto é, no titular do encargo do imposto, que na concessão de crédito corresponde ao utilizador do crédito.

- Consequentemente, a impugnante tem vindo a liquidar Imposto de Selo, mensalmente, de acordo com uma taxa de 0,04%, prevista na verba 17.1.4 da Tabela Geral do Código deste imposto. De facto, pese embora o encargo do imposto tenha recaído sobre o utilizador do crédito, isto é, a F..., a obrigação de liquidação e entrega do imposto em causa ao Estado Português recai sobre o credor, a A... Portugal.

- Este procedimento foi adoptado pela impugnante naquelas datas, na ausência de uma isenção específica em sede de Imposto do Selo que abrangesse expressamente a concessão de crédito ao abrigo do contrato de gestão centralizada de tesouraria, circunstância que viria a ser alterada no decurso de 2020.

- Com a entrada em vigor da Lei do Orçamento do Estado para 2020, em 1 de Abril de 2020, foi aprovada uma “nova” isenção, em sede de Imposto do Selo, na alínea h) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS.

- A redacção dada pela Lei OE 2020 à alínea h) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS passou a abranger “[o]s empréstimos, incluindo os respectivos juros, por prazo não superior a um ano, quando concedidos por sociedades, no âmbito de um contrato de gestão centralizada de tesouraria, a favor de sociedades com a qual estejam em relação de domínio ou de grupo”. Foi aditado o n.º 8 do artigo 7.º que determina que “existe relação de domínio ou grupo, quando uma sociedade, dita dominante, detém, há mais de um ano, directa ou indirectamente, pelo menos, 75% do capital de outra ou outras sociedades ditas dominadas, desde que tal participação lhe confira mais de 50 % dos direitos de voto”.

- Assim, desde 1 de Abril de 2020, passaram a estar isentos de Imposto do Selo os empréstimos e respectivos juros, por prazo não superior a um ano, quando concedidos por sociedades no âmbito de um contrato de gestão centralizada de tesouraria, a favor de sociedades com a qual estejam em relação de domínio ou de grupo, que se verifica com a existência de uma participação, direta ou indireta, de, pelo menos, 75% do capital social, que lhe confira a maioria dos direitos de voto – tal como sucede com a operação de financiamento implementada ao nível do Grupo C... .

- A nova isenção seria assim limitada pelo n.º 2 do mencionado artigo 7.º do CIS [inalterado pela referida Lei OE 2020], nos termos do qual tal isenção é inaplicável “(…) quando qualquer dos intervenientes não tenha sede ou direção efetiva no território nacional, com excepção das situações em que o credor tenha sede ou direção efetiva noutro Estado membro da União Europeia ou num Estado em relação ao qual vigore uma convenção para evitar a dupla tributação sobre o rendimento e o capital acordada com Portugal, caso em que subsiste o direito à isenção, salvo se o credor tiver previamente realizado os financiamentos previstos nas alíneas g) e h) do n.º 1 através de operações realizadas com instituições de crédito ou sociedades financeiras sediadas no estrangeiro ou com filiais ou sucursais no estrangeiro de instituições de crédito ou sociedades financeiras sediadas no território nacional”.

- Isto é, de acordo com o referido n.º 2, apenas se encontram abrangidos pela (nova) isenção de IS, aplicável às concessões de crédito ao abrigo de contrato de gestão centralizada de tesouraria, as situações em que o credor “(…) tenha sede ou direcção efectiva noutro Estado membro da União Europeia”, razão pela qual vem agora requerer a anulação dos actos de autoliquidação de IS por si praticados desde Abril de 2020 a Abril de 2021, no montante global de Euro 55.717,49 (cinquenta e cinco mil setecentos e dezassete euros e quarenta e nove cêntimos.

- Apresentou reclamação graciosa aos actos de autoliquidação a qual foi objecto de indeferimento.

 

5. A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta, por impugnação, nos seguintes termos:

- Veio a Requerente juntar às Declarações Mensais de Imposto do Selo a cópia do “Cash Management Agreement” celebrado em 20 de outubro de 2008, sem juntar a devida tradução em português, e ainda o documento intitulado “Saldos de Tesouraria” composto por duas imagens que refletirão os fluxos financeiros ocorridos na conta daquela nos anos de 2021 e 2022.

- Relativamente aos financiamentos sujeitos a Imposto do Selo em Portugal o aproveitamento da isenção prevista na alínea h) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS só opera quando:

            i) Exista de um contrato de gestão centralizada de tesouraria que regule o seu modo e condições de funcionamento;

            ii) Exista uma relação societária, de domínio ou de grupo nos termos do n.º 8 do mesmo artigo, entre as sociedades participantes e a centralizadora no contrato de gestão centralizada de tesouraria;

            iii) O prazo que medeia a transferência dos fundos e o seu reembolso não deve ultrapassar um ano;

            iv) Não se verifiquem as limitações impostas pelos n.ºs 2 e 3 do mesmo artigo

- Da análise à documentação apresentada não é possível concluir com suficiente grau de certeza que os requisitos enunciados na alínea h) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS se encontram preenchidos, acolhendo-se, assim, na íntegra, as conclusões alcançadas na informação n.º 458-ISCPS1/2022, cujo teor damos aqui por reproduzidos, para os devidos efeitos legais.

- Cabia à Requerente fazer prova da natureza das operações financeiras em apreço, o que não sucedeu.

- Face à ausência de registos e documentos contabilísticos não resta outra conclusão que não seja aquela que considere não terem sido juntos aos autos, meios de prova suficientes, capazes de demonstrar que as operações financeiras em causa têm por base excedentes de liquidez do grupo ou se decorrem de linha de crédito junto de instituições financeiras, ou sequer que os fluxos financeiros cumpriram os prazos previstos na norma de isenção.

- Conclui, pois, a Requerida no sentido de se dever manter o indeferimento da reclamação graciosa.

 

II – SANEAMENTO

 

6.1. O tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído.

6.2. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas (artigos 4º e 10º, n.º 2, do RJAT e artigo 1º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

6.3. O processo não enferma de nulidades.

6.4. Não foram suscitadas excepções que obstem ao conhecimento do mérito da causa.

 

III – MATÉRIA DE FACTO E DE DIREITO

 

- Matéria de facto

 

A) Importa, antes de mais, salientar que o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cf. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.ºs 3 e 4, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Nesse enquadramento, consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

  1. A impugnante é uma sociedade por quotas, com sede em Portugal, que tem como objecto a produção, importação, exportação, armazenagem, distribuição e comercialização de medicamentos de uso humano, para uso hospitalar e ambulatório, medicamentos genéricos, medicamentos imunológicos e medicamentos experimentais para ensaios clínicos; produtos químicos, produtos cosméticos e de higiene corporal; produtos de saúde, nomeadamente dispositivos médicos activos e não activos; de todas as classes e dispositivos para diagnóstico "in vitro" – CAE 46460 – , integrando o Grupo C..., grupo económico internacional.
  2. O seu capital social é detido pela D... B.V., entidade residente, para efeitos fiscais, nos Países Baixos, em aproximadamente 82% (quota de 21.992.515 €) e pela E..., entidade residente, para efeitos fiscais, em França, em aproximadamente 18% (quota de 4.822.500 €).
  3. O Grupo C... implementou um acordo de gestão de tesouraria, ao nível das suas subsidiárias – sediadas em mais do que uma jurisdição – incluindo a Requerente, destinado a assegurar a gestão centralizada de tesouraria das diferentes entidades do Grupo residentes em diferentes países (comummente designado por acordo/estrutura de “cash-pooling”).
  4. Acordo a que a Requerente aderiu em 20-10-2008 em que é contraparte a F..., S.A. (“F... França”, anteriormente denominada H..., S.A. à data de celebração do acordo), entidade residente, para efeitos fiscais, em França, e detentora, a título indireto, de cerca de 92% do capital social da A..., Lda.
  5. Nos termos do referido acordo, a Requerente aderiu ao sistema de gestão centralizada de tesouraria implementado pela F... e baseada no princípio de saldo nulo (“Zero Balance Scheme”), no âmbito do qual, sempre que aplicável, o saldo positivo da conta bancária da Requerente deverá ser automaticamente transferido para a conta bancária da F..., numa base diária, reduzindo assim a zero o saldo da conta bancária da primeira
  6. Esta centralização de fundos tem sido registada contabilisticamente, na esfera da Requerente, como saldo devedor sobre a F... .
  7. As transferências de fundos da Requerente para a F... foram por ela tratadas enquanto concessões de crédito da primeira à segunda, sendo o sujeito passivo, nos termos da alínea b) do artigo 2.º do CIS, a entidade concedente do crédito.
  8. Consequentemente, a Requerente tem vindo a liquidar mensalmente Imposto do Selo, de acordo com a taxa de 0,04%, prevista na verba 17.1.4 da Tabela Geral do Código do Imposto do Selo.
  9. Nesse contexto, a Requerente procedeu à autoliquidação de Imposto do Selo, referentes aos meses de Maio, Junho, Julho, Agosto, Setembro, Outubro, Novembro e Dezembro de 2021 e dos meses de Janeiro, Fevereiro, Março, Abril, Maio e Junho de 2022, efectuados através das declaração mensais de imposto de Selo (“DMIS”) n.º..., n.º ..., n.º..., n.º..., n.º ..., n.º ..., n.º ..., n.º ..., n.º ..., n.º ..., n.º ..., n.º..., n.º ... e n.º ..., no valor global de 55.717,49 € (cinquenta e cinco mil setecentos e dezassete euros e quarenta e nove cêntimos).
  10. Por entender, entretanto, não haver lugar a tal liquidação de imposto, a Requerente apresentou reclamação graciosa, a qual foi tramitada sob o n.º ...2022... .
  11. Sobre tal reclamação graciosa recaiu despacho de indeferimento que, em suma, consta do seguinte teor:

Na informação n.º 458-ISCPS1/2022, emitida pela Unidade dos Grandes Contribuintes (UGC), entendeu-se que a prova apresentada juntamente com o pedido, era insuficiente. Mais se constatou que a ausência de registos e documentos contabilísticos, não permitiram inferir que as operações financeiras em causa têm por base excedentes de liquidez do grupo ou se decorrem de linha de crédito junto de instituições financeiras, disponibilizada através da conta da entidade centralizadora, o que inviabilizaria o benefício fiscal. Cabendo ao contribuinte o ónus da prova dos factos tributários que alega como fundamento do seu direito, a inexistência ou insuficiência da sua demonstração teria como consequência a sua desconsideração. Impossibilitada a verificação do preenchimento dos pressupostos de que dependia a concessão do benefício fiscal, conclui-se que aquele não poderia usufruir do mesmo.

  • A Requerente foi notificada da decisão de indeferimento da aludida reclamação gracioso, através do ofício .../2022, de 28-12-2022, da Unidade de Grandes Contribuintes da Divisão de Justiça Tributária.

 

B) Não há factos relevantes para a decisão da causa que não se tenham provado.

 

Fundamentação da matéria de facto:

 

A matéria de facto dada como provada assenta no exame crítico da prova documental apresentada e não contestada, que aqui se dá por reproduzida.

 

 

 

- Matéria de Direito

 

Está em causa no presente pedido arbitral, apurar se se mostram ou não preenchidos os pressupostos de que depende a aplicação da isenção de Imposto do Selo prevista no artigo 7.º, n.º 1, alínea h), do CIS.

A Requerente pretende fazer valer o seu direito à isenção de tributação, ao abrigo da indicada norma do CIS, centrando a questão ao nível da aplicação do princípio da territorialidade, acolhido no n.º 1 do art.º 4º do CIS, no âmbito de uma operação de financiamento realizada entre entidades com afinidades societárias: a mutuante, residente em Portugal e as mutuárias, residentes fora do território nacional, bem como a incompatibilidade do n.º 2 do art. 7º daquele diploma, com a legislação comunitária.

Por seu turno, a Requerida desvaloriza os argumentos invocados pela Requerente, centrando o litígio numa questão de ónus da prova, alegando que esta não fez prova dos pressupostos da isenção de imposto que se arroga.

Dispõe o n.º 1 do art.º 1º do CIS que “o imposto do selo incide sobre todos os actos, contratos, documentos, títulos, papéis e outros factos ou situações jurídicas previstas na Tabela Geral, incluindo as transmissões gratuitas de bens”.

Por sua vez, estabelece o artigo 4º do mesmo diploma que “sem prejuízo das disposições do presente Código e da Tabela Geral em sentido diferente, o imposto do selo incide sobre todos os factos referidos no artigo 1º, ocorridos em território nacional”.

E, a propósito de empréstimos concedidos no âmbito de contratos de gestão centralizada de tesouraria, temos presente a seguinte isenção objectiva estatuída no artigo 7.º, n.º 1, alínea h), do CIS, na redacção da Lei 2/2020, de 31 de Março:

h) “Os empréstimos, incluindo os respetivos juros, por prazo não superior a um ano, quando concedidos por sociedades, no âmbito de um contrato de gestão centralizada de tesouraria, a favor de sociedades com a qual estejam em relação de domínio ou de grupo”.

É incontroverso que, no caso em apreço, estamos perante a concessão de crédito por parte de uma entidade residente em território nacional - a Requerente - a entidades aqui não residentes.

A este propósito, há que ter presente o que dispõe o n.º 2 do aludido artigo 7º, na redacção anterior à Lei 12/2022, de 27 de Junho:

- “O disposto nas alíneas g) e h) do n.º 1 não se aplica quando qualquer dos intervenientes não tenha sede ou direcção efectiva no território nacional, com excepção das situações em que o credor tenha sede ou direcção efectiva noutro Estado membro da União Europeia ou num Estado em relação ao qual vigore uma convenção para evitar a dupla tributação sobre o rendimento e o capital acordada com Portugal, caso em que subsiste o direito à isenção, salvo se o credor tiver previamente realizado os financiamentos previstos nas alíneas g) e h) do n.º 1 através de operações realizadas com instituições de crédito ou sociedades financeiras sediadas no estrangeiro ou com filiais ou sucursais no estrangeiro de instituições de crédito ou sociedades financeiras sediadas no território nacional”.

São várias as decisões, quer arbitrais, quer judiciais, que versam sobre as operações aqui em causa, denominadas de “cash pooling”, sobretudo no que tange à aplicação do princípio da territorialidade e a conformidade do aludido n.º 2 do artigo 7º com o direito comunitário.

Todavia, o fundamento do indeferimento da reclamação graciosa em que a Requerente estriba o pedido de pronúncia arbitral nada tem que ver com tal questão.

Pelo contrário, tal despacho de indeferimento invoca apenas a falta de verificação de requisitos para aplicação da isenção prevista naquele dispositivo legal.

Vejamos.

Resulta da aludida alínea h) do n.º 1 do artigo 7º do CIS, que a isenção aí prevista depende da verificação cumulativa dos seguintes requisitos:

1º) Existência de contrato de gestão centralizada de tesouraria que regule o modo e condições de funcionamento;

2º) Existência de uma relação societária de domínio entre as sociedades participantes e a centralizadora no contrato de gestão centralizada de tesouraria (detenção há mais de um ano, directa ou indirectamente, de, pelo menos, 75% do capital que confira mais de 50% dos direitos de voto) entre as sociedades participantes e a centralizadora no contrato de gestão centralizada de tesouraria);

3º) Prazo de empréstimo não superior a um ano.

Há ainda que ter presente a controversa limitação imposta pelo n.º 2 do artigo 7º, temática a que a Requerente se debruça exaustivamente no pedido de pronúncia arbitral.

Todavia, é questão que aqui não abordaremos por não constituir fundamento do acto impugnado, uma vez que o tribunal não pode conhecer da legalidade do acto impugnado a coberto de pressupostos que não estiveram na base da sua prática, sendo que apenas se poderão considerar como pressupostos do acto tributário aqueles que a AT fez constar da declaração fundamentadora (parte integrante do próprio acto e dele coeva) que externou aquando da prática do mesmo que, no caso, é o despacho de indeferimento da reclamação graciosa (cf. Acórdão do STA de 28- 10-2020 – Proc. 02887/13.8BEPRT).

Em suma, o que está aqui em causa é apenas a aplicação das regras relativas ao ónus da prova para funcionamento da isenção de imposto, que, no caso, a Requerida entende recair exclusivamente sobre a Requerente.

Ora, de acordo com o n.º 1 do artigo 74º da LGT, “o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque”.

Da aplicação de tal normativo, temos que à AT incumbirá a prova da existência de uma operação de utilização de crédito tributável em sede de Imposto do Selo e à Requerente a prova dos pressupostos da isenção de tal tributação (no caso, do artigo 7.º, n.º 1, alínea h), do CIS).

Nessa linha, caberá também à AT – e não à Requerente - demonstrar que, no caso, o prazo de empréstimo foi superior a um ano, assim demonstrando o pressuposto da tributação. É, isso, aliás, que decorre da jurisprudência reiterada do STA: “à Administração cumpre apenas o ónus da prova da verificação dos respectivos indícios ou pressupostos da tributação, ou seja, os pressupostos legais da sua actuação e, ao invés, cabe ao contribuinte provar a existência dos factos tributários que alega como fundamento do seu direito” (Acórdãos de 16-01-2008 – Proc. 0381/07 e de 01-06-2011 – Proc. 0211/11).

Para sustentar o incumprimento do ónus da prova por parte da Requerente alega a Requerida que aquela juntou “cópia do «Cash Management Agreement» celebrado em 20 de outubro de 2008, sem juntar a devida tradução em português, e ainda o documento intitulado “Saldos de Tesouraria” composto por duas imagens que refletirão os fluxos financeiros ocorridos na conta daquela nos anos de 2021 e 2022 …”, concluindo “não terem sido juntos aos autos, meios de prova suficientes, capazes de demonstrar que as operações financeiras em causa têm por base excedentes de liquidez do grupo ou se decorrem de linha de crédito junto de instituições financeiras, ou sequer que os fluxos financeiros cumpriram os prazos previstos na norma de isenção” (sublinhados nossos).

Quanto à falta de junção de tradução de documento em português é manifesto que tal pretensão não pode proceder. Com efeito, o oferecimento de documentos escritos em língua estrangeira só necessitará de tradução quando isso seja ordenado ou requerido (cf. artigo 134º, n.º 1 do CPC). Ora, nunca foi invocada a incapacidade de leitura de tal documento, nem em sede de reclamação graciosa nem do presente processo arbitral.

Quanto às demais exigências, designadamente, a necessidade de estarem em causa excedentes de liquidez do grupo ou de não decorrerem de linhas de crédito junto de instituições financeiras, são requisitos que não são exigidos pela alínea h) do n.º 1 do artigo 7º. Diga-se, aliás, ser contraditória a posição da Requerida neste ponto, pois na enunciação dos requisitos que faz, no artigo 6º da sua resposta. para aplicação da isenção nele prevista, nenhuma referência a esse propósito é feita.

Acresce que a invocação que a Requerida faz ao Acórdão do TCA Sul e 12-05-2022, no Proc. 352/10.4BELRS é desenquadrada de contexto, uma vez que aquele aresto aprecia a aplicação da alínea g) daquele preceito e não da alínea h), na redacção dada pela Lei 2/2020, ora em causa. Acrescente-se, aliás, que o mesmo tribunal, através do Acórdão de 24-03-2022 – Proc. 2338/11.2BELRS, considerou ser aquela alínea h) norma inovadora.

Do exposto, é forçoso concluir-se dever proceder a pretensão da Requerente e, em consequência, declarar-se a ilegalidade do acto tributário impugnado.

Fica, assim, prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas.

 

JUROS INDEMNIZATÓRIOS

 

Além da restituição da quantia indevidamente paga, pretende a Requerente que seja declarado o direito ao pagamento de juros indemnizatórios.

Tal direito vem consagrado no artigo 43º da LGT, o qual tem como pressuposto que se apure, em reclamação graciosa ou impugnação judicial - ou em arbitragem tributária – que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida em montante superior ao legalmente devido.

O reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral, resulta do disposto no artigo 24º, n.º 5 do RJAT, quando estipula que “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”.

No caso em apreço, estamos perante um erro resultante de autoliquidação. Apesar de assim ser, como decidiu o STA, “ainda que a liquidação tenha sido efectuada correctamente de acordo com os elementos de facto declarados pelo contribuinte, se este pediu a anulação da mesma mediante impugnação administrativa com fundamento em erro nos pressupostos de facto e a AT, indevidamente, lha recusa ou não cumpre os prazos de decisão, deve considerar-se que desde esse momento da decisão de indeferimento, efectiva ou presumida, a imputabilidade do erro se transferiu para a AT desde então (passando a constituir um erro dos serviços), e a determinar o pagamento por esta ao sujeito passivo de juros indemnizatórios sobre o montante pago” (Acórdão do STA DE 09-12-2021 – Proc. 01098/16.5BELRS).

Pelo que assiste à Requerente o direito ao pretendido pagamento de juros indemnizatórios, nos termos decorrentes do atrás exposto.

 

IV. DECISÃO

 

 

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

 

  1. Julgar totalmente procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência, declarar a anulação das liquidações de imposto do selo impugnadas, bem como da decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada relativamente às mesmas.
  2. Ordenar a restituição à Requerente das quantias pagas.
  3. Condenar a Requerida nas custas do processo.

 

 

V. VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se o valor do processo em 55.717,49 €, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

VI. CUSTAS

 

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em 2.142,00 €, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

 

Lisboa, 10-11-2023

 

 

O Árbitro

 

                                                                                                  

 

(António A. Franco)