Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 101/2023-T
Data da decisão: 2023-11-06  IRS  
Valor do pedido: € 4.187,02
Tema: IRS - Residência fiscal; art.º 16.º do Código do IRS; dupla residência; CDT entre Portugal e os Países Baixos, artigo 12.º- A do CIRS; o regime fiscal dos ex-residentes.
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SUMÁRIO

  1. A qualificação como residente para efeitos fiscais em Portugal é determinada pela correta subsunção nos critérios constantes do art.º 16.º do Código do IRS, sendo que, se a qualidade de residente, nos termos da respetiva al. a) resulta, automaticamente, de um critério fáctico, meramente numérico, a al. b) exige, pela falta de maior presença no território nacional, um elemento adicional de intenção.
  2. O artigo 12.º-A do Código do IRS estabelece uma medida excecional de caráter automático, não estando a sua aplicação dependente de qualquer ato de reconhecimento por parte da AT. Porém, depende da declaração do sujeito passivo de beneficiar do regime, o que será feito aquando do preenchimento do modelo 3 da declaração de IRS do ano seguinte ao ano de regresso a Portugal.
  3. O sujeito passivo para beneficiar deste benefício fiscal estabelecido no artigo 12.º-A do Código do IRS, além de ter sido residente em território português antes de 31 de dezembro de 2015, ter a sua situação tributária regularizada, também terá de não ter sido residente em território português em qualquer dos três anos anteriores ao ano de regresso a Portugal e não ter solicitado a sua inscrição como residente não habitual.
  4.  Não existe qualquer norma legal, nomeadamente no Código do IRS, que condicione/limite os meios de prova de que o contribuinte se pode servir para comprovar a sua residência fiscal, designadamente exigindo a apresentação de um certificado de residência fiscal emitido pelas autoridades fiscais de outro país.

 

DECISÃO ARBITRAL

O Árbitro João Santos Pinto, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (adiante designado apenas por CAAD) para formar o Tribunal Arbitral Singular, constituído em 03 de Maio de 2023, decide no seguinte:

 

1. Relatório

 

A..., NIF..., residente na Rua ... - ... n.º..., ...-... Lisboa, (adiante designado por “Requerente”), requereu a constituição de Tribunal Arbitral e apresentou pedido de pronúncia arbitral (“PPA”), nos termos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, adiante designado por “RJAT”), em que é Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (adiante designada por “AT” ou “Requerida”).

 

O Requerente peticiona ao Tribunal Arbitral que declare a ilegalidade, e a consequente anulação da decisão da reclamação graciosa e da liquidação de imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS) de 2020, no montante de 4.187,02 Euros.

 

O requerimento de constituição do Tribunal Arbitral foi apresentado a 22 de Fevereiro de 2023, tendo sido aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD na mesma data e seguido a sua normal tramitação.

 

Em conformidade com os artigos 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT, o Conselho Deontológico do CAAD designou o árbitro do Tribunal Arbitral Singular, aqui signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

Em 12 de Abril de 2023, foram as Partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

 

Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral Singular foi constituído em 03 de Maio de 2023.

 

No dia 08 de Maio de 2023, foi a Requerida notificada para apresentar Resposta nos termos do artigo 17.º do RJAT.

 

Em 09 de Junho de 2023, a Requerida apresentou Resposta, e juntando aos autos o processo administrativo no mesmo dia.

 

Em 25 de Setembro de 2023, o Tribunal Arbitral proferiu o seguinte Despacho Arbitral:

1. Notifique-se as Partes de que a reunião do Tribunal Arbitral prevista no artigo 18.º, n.º 1, do RJAT se encontra agendada para o dia 18-10-2023, pelas 9h45, e de que a inquirição das testemunhas arroladas pela Requerente terá lugar na mesma.

2. Notifique-se o Requerente para, no prazo de 10 dias, informar o CAAD sobre se as testemunhas serão apresentadas nas instalações do CAAD no Porto ou em Lisboa, bem como para no mesmo prazo indicar sobre que factos incidiria a inquirição das testemunhas por si arroladas.

3. Notifique-se as Partes para, no prazo referido no número anterior, informarem o CAAD sobre a sua vontade em se deslocar às instalações do CAAD, no Porto ou em Lisboa, ou, em alternativa, participar na diligência on-line, via WEBEX.

4. Terminada a produção de prova as partes produziram as respetivas alegações orais.

A inquirição teve lugar no dia 18 de Outubro de 2023, na sede do CAAD em Lisboa e via CISCO WEBEX MEETINGS.

 

No final da inquirição, o Requerente e a Requerida apresentaram alegações orais, tendo o Tribunal, fixado prazo para a prolação da decisão final, o termo do prazo fixado no artigo 21.º n.º 1 do RJAT e convidou o Requerente a proceder ao pagamento da taxa de justiça subsequente e comunicar o pagamento ao CAAD nos termos do n.º 3 do artigo 4.º do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

A audiência foi gravada e dela foi lavrada acta junta aos autos.

 

No dia 03 de Novembro de 2023 foi proferido o seguinte Despacho Arbitral:

1.Atento o facto de o prazo de seis meses para emitir a decisão arbitral, segundo o estatuído no n.º 1 do artigo 21.º do RJAT, incluir períodos de férias judiciais e atenta a tramitação e a complexidade do processo, não é possível proferir decisão naquele prazo.

2.Assim, nos termos do n.º 2 do mesmo preceito, prorroga-se o prazo da arbitragem por 2 meses e indica-se como data limite para ser proferida a decisão o dia 3 de Janeiro de 2024, sem prejuízo de ser expectável que a decisão seja proferida em 15 dias.

Do presente despacho notifiquem-se ambas as partes.

 

Posição do Requerente

 

Resumidamente, o Requerente alega que foi residente fiscal nos Países Baixos entre 2017 e 2020, tendo regressado a Portugal em 2020.

 

Por essa razão, apresentou em 26 de Junho de 2021 a declaração de modelo 3 do IRS relativa a 2020, com a opção pelo regime a que alude o artigo 12.º-A do CIRS - “Programa Regressar”, não tendo possível submeter por constar como residente fiscal em 2017.

 

Em consequência, apresentou nova declaração já sem essa opção, do qual resultou a declaração impugnada.

 

Por outro lado, sustenta que relativamente ao ano de 2017 não permaneceu em território português por mais de 183 dias, nem dispunha de habitação em condições que fizessem supor a sua intenção de a manter e ocupar como sua residência habitual.

 

Na sua opinião, seria residente em 2017 na Holanda, posto que, nesse mesmo ano, o centro de interesses vitais do Requerente se localizou neste último país onde concentrou a fonte maioritária dos seus rendimentos, sendo solteiro e sem ascendentes ou descendentes a seu cargo em Portugal.

 

Sustenta que, ainda que se considerasse o mesmo como residente fiscal em Portugal em 2017, que o critério vertido na alínea a) do n.º 1 do artigo 12.º-A do CIRS do CIRS se refere aos 3 anos anteriores, contados desde o dia que antecedeu o seu regresso a Portugal, e não nos três anos fiscais anteriores e que, por seu turno, se deverá entender este requisito como preenchido.

 

Posição da Requerida

 

Sumariamente, a AT considera que nos termos do n.º 4 do artigo 16.º do CIRS “a perda da qualidade de residente ocorre a partir do último dia de permanência em território português […]”, pelo que se verifica que o Requerente foi residente em Portugal no ano de 2017, mais concrectamente, até 2017.07.03.

 

No seu entender, o legislador pretendeu referir-se a qualquer residência, seja pela totalidade do ano ou apenas uma parte do mesmo.

 

Sustenta que, ao pedido não foi junto documento idóneo para comprovar a sua residência no estrangeiro pela totalidade do ano, nomeadamente o certificado de residência fiscal ao abrigo do artigo 4.º da Convenção para Evitar a Dupla Tributação celebrada entre Portugal e a Holanda.

 

Defende igualmente que à interpretação e alcance da expressão “em qualquer dos três anos anteriores”, deve ser interpretado no sentido do ano fiscal, pelo que se deve considerar que a norma se refere aos três anos fiscais anteriores.

 

Desta forma, entende não se verificar os pressupostos para aplicação do regime fiscal previsto para os ex-residentes para o ano de 2020, nos termos do artigo 12.º-A do CIRS, nomeadamente a não residência em território nacional no ano de 2017.

 

Por último, conclui que, não se verifica qualquer ilegalidade na liquidação contestada.

 

2. Saneamento

O Tribunal Arbitral Singular é competente e foi regularmente constituído.

 

As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas (cf. artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º, ambos do RJAT, e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

 

O processo não enferma de nulidades.

 

3. Matéria de Facto

3.1. Factos Provados

Analisada a prova produzida no âmbito do presente Processo Arbitral, este Tribunal Arbitral Singular considera provados, com relevo para a presente Decisão Arbitral, os seguintes factos:

  1. No final de 2016 o Requerente recebeu uma oferta de trabalho nos Países Baixos, que formalizou através de contrato de trabalho por período indefinido a 1 de Maio de 2017.
  2. De acordo com o contrato de trabalho em causa, a relação laboral teria início a 01 de Julho de 2017 (Cf. Doc. n.º 9 da PI).
  3. Em 08 de Junho de 2017 o Requerente alterou o seu domicílio fiscal para Lisboa, mantendo a sua residência no território nacional.
  4. No dia 1 de agosto de 2017, o Requerente celebrou contrato de arrendamento de um apartamento em ... na Holanda, onde viria a residir.
  5. Enquanto residente na Holanda o Requerente submeteu as suas declarações de rendimentos relativos aos anos em que residiu nesse país, incluindo o ano de 2017.
  6. Em 28 de Novembro de 2018 alterou, no cadastro fiscal em Portugal, a sua residência para o estrangeiro.
  7. Em 27 de Setembro de 2021 alterou, no cadastro fiscal em Portugal, a residência para o estrangeiro (Holanda), com produção de efeitos à data de 03 de Julho de 2017.
  8. Em 27 de Setembro de 2021 alterou, no cadastro fiscal em Portugal, a residência para o território nacional (Lisboa), com produção de efeitos à data de 06 de Novembro de 2020.
  9. Em 26 de Junho de 2021 o Requerente apresentou, relativamente ao ano de 2020, a declaração modelo 3 do IRS n.º ... 2020 - ... - ... – conjuntamente com B... (cônjuge) NIF... com os anexos A, F, e J (três), na qual mencionou ser residente em território nacional no período de 21 de Setembro de 2020 a 31 de Dezembro de 2020, com a opção pelo regime a que alude o artigo 12.º-A do CIRS - ‘Programa Regressar’.
  10. Contudo, em virtude de constar do registo de contribuintes como residente fiscal em território português durante parte do ano de 2017, não conseguiu submeter a sua primeira declaração de IRS de 2020, com a opção pelo referido regime.
  11. Da apresentação da aludida declaração resultou a liquidação n.º 2021..., de 12.11.2021, com a colecta total de € 4.187,20 e o valor a reembolsar no montante de € 1.888,64 (paga por transferência bancária em 23.11.2022).
  12. Em 23 de Janeiro de 2022, procedeu à entrega da declaração de IRS de substituição n.º ...2020 - ... - ..., respeitante ao período de 21.09.2020 a 31.12.2020, a qual, por ter dado origem aos erros J88 e Z10 – Regime Fiscal Ex-Residente não permitido/Reside em PT.
  13. Em 23 de Março de 2022, apresentou junto do Serviço de Finanças de Lisboa-..., procedimento de reclamação graciosa contra a liquidação n.º 2021..., de 12.11.2021, requerendo a aplicação do regime previsto no artigo 12.º-A do CIRS.
  14. Em 13 de Outubro de 2022 foi o ora Requerente notificado do projeto de decisão de indeferimento da reclamação graciosa do IRS de 2020.

3.2. Factos Não Provados

Não há factos relevantes para esta Decisão Arbitral que não se tenham provado, com excepção do facto de que o Requerente tenha apenas permanecido em Portugal até ao dia 27 de Junho de 2017.

 

3.3. Fundamentação da Fixação da Matéria de Facto

A matéria de facto foi fixada por este Tribunal Arbitral Singular e a sua convicção ficou formada com base nas peças processuais e requerimentos apresentados pelas Partes e nos documentos juntos pelas Partes ao presente Processo Arbitral.

 

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de selecionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta(m) o pedido formulado pelo autor, conforme n.º 1 do artigo 596.º e n.º 2 a 4 do artigo 607.º, ambos do Código Processo Civil (CPC), aplicável ex vi alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, e consignar se a considera provada ou não provada, conforme n.º 2 do artigo 123.º Código do Procedimento e do Processo Tributário (CPPT), aplicável ex vi alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.

 

Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação às provas produzidas, na sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme n.º 5 do artigo 607.º do CPC. Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g. força probatória plena dos documentos autênticos, conforme artigo 371.º do Código Civil) é que não domina, na apreciação das provas produzidas, o princípio da livre apreciação.

 

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas Partes e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja validade terá de ser aferida em relação à concreta matéria de facto consolidada.

 

A factualidade provada teve por base os documentos juntos ao processo e na prova testemunhal. As testemunhas depuseram, no essencial, de forma coerente, sustentada e reveladora de domínio das razões de ciência com relevo para a prestação de informação.

 

Contudo, a única prova documental que suscita dúvidas, são as reservas dos hotéis a que se referem os documentos n.º 10 a 12 da PI. Pelo que cabe a este Tribunal tomar posição concrecta sobre tal prova, na senda da divergência da posição assumida pelas partes, mormente para apurar o dia exacto em que o Requerente terá deixado de ser residente fiscal em Portugal.

 

Para o efeito, o Requerente alegou que apenas permaneceu no território português até ao dia 28 de Junho de 2017 - data da saída do território Português, o que implicaria 178 dias de permanência em Portugal. Contudo, recorde-se que foi precisamente o próprio Requerente em 27 de Setembro de 2021 por sua iniciativa, portanto em data posterior ao seu regresso a Portugal, que solicitou a alteração da residência para a Holanda com produção de efeitos à data de 03 de Julho de 2017. Ou seja, assumindo assim que teria sido residente fiscal em Portugal até ao dia 02 de Julho de 2017. Ora, tal pedido é efectuado junto da AT através da competente Modelo B (exclusivo para cidadãos portadores do cartão do cidadão), sendo necessária a junção de documentação de suporte, que se presume que tenha sido apresentada. Assim, foi o próprio Requerente que veio validar junto da AT a residência em Portugal até ao dia 02 de Julho de 2017, o que é aliás coerente com o inicio das funções laborais na Holanda a partir do dia 03 de Julho de 2017.

 

Em todo o caso, é certo que nada impediria de nos presentes autos vir-se a determinar factualidade diferente, conquanto fosse produzida a prova necessária para o efeito. A este propósito, veio o Requerente, para defesa da posição assumida, juntar comprovativos de reservas de um itinerário de Portugal até à localidade de ... na Holanda. Contudo, ao tratar-se de meras reservas e não de faturas/recibos, que poderiam inclusivamente ser objecto de cancelamento, não oferece ao Tribunal convicção suficiente para determinar que o mesmo se tenha ausentado do território nacional a partir do dia 28 de Junho de 2017, pelo que tal factualidade terá que se dar como não provada.

 

Inexistem outros factos com relevo para apreciação do mérito da causa que não se tenham provado.

 

4. Matéria de Direito

Veio defender o Requerente com a impugnação do acto de liquidação em causa que o mesmo beneficia do chamado programa “Regressar”, conforme previsto no artigo 12.º-A do CIRS.

 

Trata-se de uma norma que, embora inserida no CIRS, consubstancia um benefício fiscal automático e temporário, enquanto medida de caráter excecional instituída tendo em vista incentivar o regresso “daqueles que tiveram de sair do país em consequência da crise económica que afetou Portugal”, enquadrada no Programa Regressar (de acordo com as “Medidas Fiscais de Apoio às Famílias” incluídas no Relatório do Orçamento do Estado para 2019 – pág. 42), interesse público extrafiscal, cuja proteção o legislador considerou superior ao da própria tributação que impede.

 

De acordo com a redacção do aludido artigo na versão à data dos factos:

 

Artigo 12.º-A

Regime fiscal aplicável a ex-residentes

1 - São excluídos de tributação 50% dos rendimentos do trabalho dependente e dos rendimentos empresariais e profissionais dos sujeitos passivos que, tornando-se fiscalmente residentes nos termos dos n.os 1 e 2 do artigo 16.º em 2019 ou 2020

a) Não tenham sido considerados residentes em território português em qualquer dos três anos anteriores;

b) Tenham sido residentes em território português antes de 31 de dezembro de 2015;

c) Tenham a sua situação tributária regularizada.

2 - Não podem beneficiar do disposto no presente artigo os sujeitos passivos que tenham solicitado a sua inscrição como residente não habitual.

 

A questão controvertida prende-se única e exclusivamente com o ano de 2017 em que tem de se aferir se o Requerente foi ou não residente fiscal em Portugal nesse ano, dado que, quanto aos anos de 2018 e 2019 a AT não coloca em causa que o Requerente tenha sido residente fiscal na Holanda.

 

Assim, antes sequer de se analisar o Direito Convencional, cumpre antes demais aferir se o Requerente foi ou não residente fiscal em Portugal à luz do direito interno. Isto para aquilatar se faz sentido debruçar-se em maior detalhe sobre as regras de desempate (tie-breaker rules) previstas no artigo 4.º n.º 2 do Acordo de Dupla Tributação (ADT) entre Portugal e os Países Baixos/Holanda. Dado que, tal situação apenas deverá ser considerada, caso o beneficiário seja residente em ambos Estados Contratantes à luz das normas internas de cada uma das jurisdições. Ou seja, as regras de desempate, como refere Rui Duarte Morais “[a]s convenções internacionais sobre dupla tributação aceitam tal competência (…) limitando-se a estabelecer regras de «desempate» que permitem qualificar um contribuinte como residente em (apenas) um dos Estados contratantes quando ambos (por força das divergências entre as respetivas leis) o considerem como tal.” (Cf. Rui Duarte Morais, Sobre o IRS, Coimbra: Almedina, 2016, 3.ª Edição, p. 12.). Dito de outro modo, significa isto que a aplicação de tais regras apenas ocorrerá numa situação de dupla residência fiscal, dado que, um dos desideratos de um ADT é precisamente o de evitar a dupla tributação fiscal.

 

Assim sendo, analisaremos de seguida as regras do direito interno Português.

 

Em Portugal, o código do IRS (CIRS) prevê o n. 1 do artigo 15.º que “Sendo as pessoas residentes em território português, o IRS incide sobre a totalidade dos seus rendimentos, incluindo os obtidos fora desse território.”

Por seu turno, o n.º 1 e n.º 2 do artigo 16.º do CIRS estipulam que:

1. São residentes em território português as pessoas que, no ano a que respeitam os rendimentos:

a) Hajam nele permanecido mais de 183 dias, seguidos ou interpolados, em qualquer período de 12 meses com início ou fim no ano em causa;

b) Tendo permanecido por menos tempo, aí disponham, num qualquer dia do período referido na alínea anterior, de habitação em condições que façam supor intenção atual de a manter e ocupar como residência habitual;

c) Em 31 de dezembro, sejam tripulantes de navios ou aeronaves, desde que aqueles estejam ao serviço de entidades com residência, sede ou direção efetiva nesse território;

d) Desempenhem no estrangeiro funções ou comissões de carácter público, ao serviço do Estado Português.

2 - Para efeitos do disposto no número anterior, considera-se como dia de presença em território português qualquer dia, completo ou parcial, que inclua dormida no mesmo.

 

Centremo-nos na análise das alíneas a) e b) supra referidas, porquanto as alíneas c) e d) não são aplicáveis ao caso em discussão.

 

Quanto ao critério da alínea a) é pacífico na doutrina e na jurisprudência que o respectivo pressuposto se cinge à presença física (corpus) no território nacional em que o Requerente teria de ter permanecido mais de 183 dias. Veja-se a título meramente exemplificativo as Decisões arbitrais prolatadas no Processo n.º 332/2016-T e 809/2022-T, ambas do CAAD.

 

Assim, o Requerente a ter sido residente fiscal até ao dia 02 de Julho de 2017 (a 03 de Julho já constava no cadastro com a morada holandesa), significa que permaneceu no território Português precisamente 183 dias. Pelo que, não foi residente fiscal em Portugal nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 16.º do CIRS, por não ter excedido 183 dias.

 

Quanto à alínea b) com vista a assegurar uma conexão efectiva com o território nacional tem de se proceder a uma análise casuística, dado que terá de se apurar em primeira instância a i) a permanência em Portugal, ii) a disposição de uma habitação e iii) a verificação de condições que façam supor que a habitação será mantida e ocupada como residência habitual.

 

Assim, a al. b) do n.º 1 do art. 16.º do Código do IRS serve duas funções essenciais: em primeiro lugar, considerar residente em Portugal um indivíduo que apenas deslocalize a sua residência para o território nacional, no segundo semestre do ano, de forma a que já não seja possível cumprir com o critério dos 183 dias; e, em segundo lugar, considerar residentes os indivíduos que, apesar da sua ligação ao território, verificada através de um local onde residem habitualmente, possam intencionalmente contornar a regra da permanência (Cf. André Salgado de Matos, Código do Imposto do Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) Anotado, Lisboa: Instituto Superior de Gestão, 1999, pp. 206-207).

 

É de notar que a intenção que se pretende aferir, na al. b) do n.º 1 do art. 16.º do Código do IRS, não é uma intenção de, no futuro, ocupar, ou não, a habitação como residência atual, mas sim, como refere Manuel Faustino uma intenção atual (Cf. Manuel Faustino, “Os residentes…op. cit.”p. 125), que deve ser aferida mediante manifestações externas dessa vontade.

 

Neste sentido como bem assinala o Acórdão Arbitral processo nº 457/2021-T:

A residência habitual é, assim, igualmente um critério fáctico determinado pela permanência regular (habitual) numa determinada habitação e, onde, como tal se presume ter organizada a sua vida.

 

Voltando ao caso dos autos, dúvidas não restam que o Requerente alterou a sua residência para a Holanda, com efeitos a partir de 03/07/2017, tendo permanecido em Portugal até 02/07/2017. O que aliás foi aceite pela própria AT no pedido efectuado com efeitos retroactivos.

 

Por contraposição, inexiste qualquer prova nos autos que em 2017 pudesse indiciar que o Requerente teria mantido qualquer tipo de habitação à sua disposição em Portugal, e muito menos que teria tido a intenção de a manter como sua residência habitual. Ao invés, mudou-se para a Holanda, tendo sido feita prova que passou a trabalhar nesse país para uma empresa holandesa, tendo provado inclusivamente de que mantinha aí uma habitação e que cumpriu com as suas obrigações fiscais.

 

Sempre se dirá que a provar-se realidade distinta, o ónus da prova competiria à AT nos termos do art.º 74 .º da LGT, o que não se verificou.

 

Portanto, sem mais delongas, dúvidas não restam de que não se verificam as condições previstas na alínea b) do n.º 1 do artigo 16.º do CIRS.

 

Veio ainda a AT alegar que o Requerente não apresentou documento idóneo - certificado de residência fiscal com vista a comprovar a sua residência fiscal ao abrigo do artigo 4.º do ADT Portugal/Países Baixos.

 

Antes de mais, cumpre assinalar que inexiste qualquer norma legal, mormente no CIRS, que limite os meios de prova de que o contribuinte se pode socorrer para comprovar a sua residência fiscal.

 

Não resulta, igualmente do ADT que o Requerente só através de um certificado de residência fiscal poderia provar a sua residência fiscal na Holanda, dada a remissão para a Lei interna quanto à definição de residente prévia à aplicação do ADT.

 

Dito de outro modo, nada impede que um contribuinte possa provar a sua residência fiscal num determinado país, através de outros meios de prova para além de um certificado de residência fiscal.

 

In casu, o Requerente juntou vários documentos dos quais se prova a sua residência fiscal na Holanda em 2017 - contrato de trabalho (o qual não prevê o trabalho remoto), contrato de arrendamento e declaração fiscal anual apresentada junta das Autoridades Fiscais Holandesas relativamente aos rendimentos de trabalho relativos ao ano de 2017, compreendendo os meses de Julho a Dezembro.

 

Destarte, dúvidas não restam que o Requerente foi residente fiscal na Holanda em 2017, ainda que não tenha apresentado o competente certificado de residência fiscal.

 

Assim, em face do exposto, retomemos novamente a análise do artigo 12.º-A do CIRS.

 

Recorde-se que o ponto de divergência cinge-se unicamente ao critério previsto na respectiva alínea a) - Não tenham sido considerados residentes em território português em qualquer dos três anos anteriores, no que tange em concrecto a residência relativa ao ano de 2017.

 

Nesta sede, veio ainda o Requerente, por cautela de patrocínio, para no caso de se vir a entender que o mesmo fosse considerado residente fiscal em 2017, defender que o sentido da expressão três anos anteriores prevista na respectiva alínea a) é a de se referir ao período de 3 anos contados desde o dia o dia que antecedeu o regresso a Portugal. Ao invés, a AT vem defender que a norma deve ser interpretada no sentido de ano fiscal, referindo-se aos três fiscais anteriores.

 

Contudo, a análise desta questão fica precludida, dado que o Tribunal considerou que o Requerente não foi residente fiscal em Portugal no ano de 2017.

 

Assim, verifica-se a condição prevista na alínea a), no sentido de que o requerente não foi residente em território português em qualquer dos três anos anteriores ao seu regresso a Portugal, a saber, 2017, 2018 e 2019.

 

As restantes alíneas b) e c) não foram sequer contestadas pela AT, pelo que se dão por verificadas.

 

Assim, o Requerente:

- não foi residente fiscal em 2017 a 2019 (critério da alínea a), art.º 12-A CIRS);

- não foi residente fiscal foi residente em território português antes de 31 de dezembro de 2015 (critério da alínea b), art.º 12-A CIRS);

- Tem a sua situação tributária regularizada (critério da alínea c), art.º 12-A CIRS).

 

Pelo que, o Requerente reúne os requisitos para poder beneficiar do regime aplicável a ex-residente previsto no Programa “Regressar”, nomeadamente quanto ao ano de 2020.

 

Destarte, pelo facto de não ter sido considerado o artigo 12.º-A do CIRS, o acto de liquidação em causa é ilegal por erro nos pressupostos de direito, o que implica a sua anulação nos termos do n.º 1 do artigo 163.º do Código do Procedimento Administrativo.

 

No caso sub judice, dada a anulação da liquidação de IRS impugnada, deve ser restabelecida a situação que existiria se o acto tributário objeto da anulação ora decretada não tivesse sido praticado, por força dos citados arts. 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT.

 

5. Decisão

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

 

  1. julgar procedente, nos termos expostos, o pedido objecto da presente pronúncia arbitral e em consequência anular a liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares n.º 2021... relativa ao ano de 2020, com as legais consequências, devendo ser restabelecida a situação que existiria se o acto tributário objeto da anulação ora decretada não tivesse sido praticado;
  2. condenar a Requerida nas custas processuais.

 

6. Valor do processo

Tendo em consideração o disposto nos artigos 306.º, n.º 2 do CPC, artigo 97.º-A, n.º 1 do CPPT e no artigo 3.º, nº. 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor do processo em 4.187,02.

 

7. Custas arbitrais

Nos termos do disposto na Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor das custas do Processo Arbitral em € 612,00, a cargo da Requerida, de acordo com o artigo 22.º, n.º 4, e 13.º, n.º 1, ambos do RJAT.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 6 de Novembro de 2023

 

O Árbitro,

João Santos Pinto