Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 292/2023-T
Data da decisão: 2023-12-29  IRS  
Valor do pedido: € 84.503,73
Tema: IRS – mais-valias imobiliárias – regime transitório da categoria G previsto no artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de novembro.
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Sumário:

Os ganhos decorrentes da alienação onerosa de prédios que à data da entrada em vigor do Código do IRS não eram sujeitos a tributação em sede de Imposto de Mais-Valias são excluídos de tributação em sede de IRS por força da aplicação do regime transitório da Categoria G previsto no artigo 5.º, do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de novembro, independentemente da alteração da sua qualificação na data em que foram alienados.

 

ACÓRDÃO ARBITRAL

Os árbitros Carla Castelo Trindade (Presidente), Nuno Maldonado Sousa (adjunto) e Gustavo Gramaxo Rozeira (adjunto) designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral Coletivo constituído em 30-06-2023, decidem no processo identificado nos seguintes termos:

 

  1. Relatório

 

A..., NIF ..., residente em Rua..., ...-... Ericeira, doravante designada por “Requerente”, requereu a constituição de tribunal arbitral ao abrigo do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) e nos termos dos artigos 15.º, e seguintes do regime jurídico da arbitragem em matéria tributária constante do Decreto‑Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (“RJAT”).

O seu pedido consiste na anulação parcial da liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”) n.º 2023..., na parte que originou a demonstração de acerto de contas n.º 2023 ... e a compensação n.º 2023..., no valor de 82.421,27 €, e de correspondentes juros compensatórios de 2.082,46 €, atos que resultaram no total a pagar de 84.503,73 €, que satisfez. Peticiona também o reembolso da quantia de € 84.503,73, que pagou, acrescida dos correspondentes juros compensatórios, bem como das custas suportadas com as taxas de arbitragem.

Assenta o seu pedido de anulação na falta de fundamentação do ato tributário, elaborada e notificada nos termos legais, preterição do seu direito de audição e por violação da norma do artigo. 5.º, nº 1 do Decreto-Lei n.º 448-A/88 de 30 de Novembro, que, na sua interpretação, estabelece a não aplicação de IRS “à mais-valia imobiliária” de prédio adquirido em 1988 e alienado em 2021, não obstante ter alterado a sua natureza de prédio rústico em prédio urbano, em momento posterior à entrada em vigor do Código do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (“CIRS”). Insurge-se também quanto à aplicação que lhe foi feita de juros compensatórios, por falta de alegação e prova de juízo de censurabilidade, no seu comportamento pela Fazenda Pública, em violação da sua leitura da norma do artigo 60.º da Lei Geral Tributária (“LGT”).

É Requerida nestes autos a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante designada também pelas formas abreviadas “AT” ou “Requerida”, que apresentou resposta (“R-AT”) em 21-09-2023, que concluiu afirmando que o pedido da Requerente deve ser julgado improcedente, mantendo-se na ordem jurídica os atos tributários impugnados. Sustenta a legalidade da liquidação, na parte impugnada, e afirma que esta foi feita com base em procedimento administrativo prévio no âmbito do qual foram apurados os factos basilares, onde foi concedido direito de audição que, aliás, sempre seria dispensável, designadamente a inscrição do prédio na matriz como prédio urbano em 15-05-1991 e que foi a Requerente que apresentou a declaração de substituição em 22-02-2023, não tendo havido qualquer correção oficiosa e que a liquidação adicional resultou dessa declaração de substituição e que assim sendo, a fundamentação produzida cumpre com as exigências legais e que a Requerente sempre poderia ter recorrido ao pedido de fundamentação, nos termos previstos na norma do artigo 37.º, n.º 2 da LGT. Acrescenta que os juros compensatórios são devidos porque a declaração de substituição de IRS foi apresentada fora do prazo legal, o que, implica a contagem de juros como consequência, nos termos da regra do artigo 35.º, n.º 6 da LGT que considera aplicável. Relativamente à questão de fundo, que é a sujeição ou não sujeição ao regime das mais valias previsto no CIRS, dos prédios adquiridos antes da entrada em vigor deste Código, previsto no artigo 5.º, n.º 1 do respetivo regime transitório, a Requerida considera que essa não sujeição não é aplicável quando haja alteração na natureza do prédio, de rústico para urbano, em 1991, em plena vigência do CIRS. Ora, como no caso dos autos o objeto da alienação em 2021 não foi o prédio rústico existente em 1988, mas já um imóvel edificado e inscrito na matriz como tal em 1991, é esta a data relevante como “momento da aquisição do imóvel construído”.

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi feito em 20-04-2023 e aceite pelo Presidente do CAAD no mesmo dia e que também nesse dia o notificou à Requerida.

Os árbitros identificados e signatários deste acórdão, manifestaram a aceitação das suas funções no prazo legal. Em 12-06-2023 as partes foram notificadas da designação dos árbitros para constituir o Tribunal Arbitral e não manifestaram intenção de os recusar, nos termos previstos nas normas do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e nas normas dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico. Em conformidade com a disciplina constante do artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído em 30-06-2023.

 

  1. Saneamento

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído, em subordinação com as normas dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do RJAT, e é competente. O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque estando a data-limite para pagamento fixada em 10-04-2023, foi apresentado em 20-04-2023, muito antes do termo do prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do referido RJAT.

As partes estão devidamente patrocinadas, têm legitimidade e gozam de personalidade e capacidade judiciárias (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo regime e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

O processo não enferma de nulidades pelo que cumpre decidi-lo.

 

  1. Decisão da matéria de facto

 

Para decidir a ação considera-se assente:

 

Em 28-11-1988 a Requerente comprou a B..., natural da freguesia e concelho de ... e a sua mulher C..., natural da freguesia da ..., concelho de Mafra, residentes em...,  ..., França, pelo preço de 3.500.000 escudos o prédio rústico com a área de 4.374,5 m2, denominado “...”, freguesia da ..., Concelho de Mafra, descrito na Conservatória do Registo Predial de Mafra sob o número ... da freguesia da ..., com registo de transmissão a favor dos vendedores e é parte do prédio inscrito na matriz cadastral respetiva sob o artigo ..., secção F. (PPA, 11.º: respetivo doc. 2).

Em 15-05-1991 foi apresentada pela Requerente “declaração para inscrição ou alteração de prédios urbanos na matriz” através do “modelo 129” de novo prédio urbano composto de cave, para garagem, R/c e sótão para habitação, com a área coberta de 197 m2 e descoberta de 200 m2, que somam 397 m2, cujas obras foram concluídas em 15-05-1991, com o rendimento declarado de 1.000.000$00 de escudos, localizado na freguesia da ..., lugar do ..., confrontando em todos os pontos cardeais com a própria, sem que fosse preenchido no dito “modelo” o campo “número do artigo em que o prédio ou parte do prédio se encontrava inscrito na matriz”. (R-AT, 6.: PA, pp. 4-5).

Em 14-06-1993 a Requerente foi notificada por ofício de 09-06-1993 do Chefe da Repartição de Finanças do concelho de Mafra do resultado da avaliação ao artigo matricial ... da freguesia da ..., ao qual foi atribuído o valor patrimonial de 6.840.000$00 escudos. (R-AT, 6.: PA, pp. 6-7).

Em 20/12/2021 a Requerente vendeu a D..., natural do Reino Unido, de nacionalidade britânica, residente em ..., ..., o prédio em propriedade total sem andares nem divisões suscetíveis de utilização independente destinado a habitação, composto de três pisos para habitação e logradouro, sito em ..., na ..., n.º ..., ...-... Ericeira, descrito na Conservatória do Registo Predial de Mafra sob o número ... da freguesia da ..., com registo de aquisição a seu favor pela apresentação 24 de 1988/12/29, inscrito na matriz da freguesia da ... sob o artigo matricial..., com o valor patrimonial tributário de 95.115,65 €, da freguesia da ... pelo preço de 580.000,00 €, prédio que o comprador declarou destinar a sua habitação secundária. (PPA, 10.º: doc. junto pela Requerente em 18-10-2023).

Para o imóvel identificado no facto anterior foi emitida em 1991/08/07, a Licença de Utilização no ..., pela Câmara Municipal de Mafra e foi também emitido o Certificado Energético no SCE ...1016, válido até 30/11/2031. (facto com conhecimento adquirido pelo Tribunal na instrução da causa: doc. junto pela Requerente em 18-10-2023).

Através do ofício n.º ... da Direção de Finanças de Lisboa, em 23-01-2023, a AT notificou a Requerente para substituição da declaração modelo 3 de IRS do ano de 2021 nos seguintes termos (doc. 1 junto com o PPA, incompleto, e R-AT, 5 e 7: documento na versão integral no processo administrativo (“PA”), pp. 1-2):

Fica por este meio notificada para no prazo de 30 dias contados a partir da data de receção ou do 3.º dia posterior ao do registo, proceder à substituição através do Portal das Finanças, da declaração Modelo 3 de IRS do ano 2021, na qual foi declarada alienação do imóvel urbano com o artigo ... da freguesia da ..., concelho de Mafra ocorrida em 20/12/2021, no anexo G1.

 

Após consulta aos elementos constantes neste serviço, o prédio foi inscrito em 15/05/1991, através da entrega do Modelo 129, ao qual foi atribuído o valor patrimonial de €34.117,78, valor esse que deverá ser considerado como valor de aquisição, atendendo ao disposto no artigo 46.º, n.º 3 do CIRS, pelo que deverá remover o referido anexo G1 e acrescentar o anexo G.

 

Assim sendo, deverá proceder à entrega da declaração de substituição, na qual deverão constar os seguintes valores no Q4 do anexo G:

 

 

 

Caso não proceda à entrega da referida declaração, dentro do prazo estabelecido, proceder-se-á à correção do conjunto dos rendimentos sujeitos a tributação, e será levantado o correspondente auto notícia, nos termos do artigo 116.º do Código do Regime Geral das Infrações Tributárias.

 

Informa-se também, que a regularização voluntaria da situação, poderá reduzir a coima devida, atendendo ao disposto no artigo 28.º-A conjugado com o artigo 30.º, ambos do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT).

 

Com os melhores cumprimentos,

 

Por delegação do Chefe de Finanças

O Chefe de Finanças Adjunto,

 

[assinatura]

_________________________

...

A Requerente foi notificada da demonstração de liquidação de IRS n.º 2023 ..., de 24.02.2023, no valor de 84.503,73 €.

A Requerente foi notificada da demonstração de liquidação de juros compensatórios n.º 2023..., no valor de 2.082,46 €.

Em 09-03-2023 a Requerente pagou o valor de 82.261,86 €, correspondente à demonstração de acerto de contas emitida pela AT, referente à compensação n.º 2023 ... de 01-03-2023. (PPA, 17.º: respetivo doc. 3).

 

Não se consideram assentes, por falta de prova, as seguintes alegações de facto produzidas pela AT:

§1 Que previamente à liquidação objeto de impugnação tenha sido instaurado um procedimento administrativo, com vista à apreciação da declaração de rendimentos entregue pela Requerente em 2022MAI04 e que os elementos a inscrever no anexo G da declaração de substituição indicados à Requerente pela Autoridade Tributária foram calculados com base nesse procedimento administrativo. Estas afirmações da AT constam de 4., 12., 13. e 28. da R-AT mas não têm suporte inequívoco em qualquer documentação nestes autos, nem no PA junto que, embora contenha apuramentos feitos com base em dados relativos a custos incorridos pela Requerente na construção do imóvel, não elucida cabalmente a natureza, tramitação e conclusão desse alegado procedimento.

§2 Que o retardamento na apresentação da declaração de rendimentos decorra da incorreta inscrição dos valores relativos à alienação do imóvel e na necessidade de apresentação de declaração de substituição, pois falta ao Tribunal conhecer o alegado procedimento administrativo referido no parágrafo anterior.

§3 Que no âmbito do alegado procedimento administrativo foi concedido à Requerente direito de audição, como a Requerida sustenta em 29. da R-AT, que, pela inexistência desse dito procedimento no PA ou noutro local deste processo, não permite ao Tribunal apreciar se assim foi.

§4 Que a liquidação adicional do IRS de 2021 resultou de declaração de substituição apresentada pela Requerente em 2023FEV22, preenchida de acordo com indicação à Requerente pela Autoridade Tributária, como é alegado pela Requerida na R-AT, 11. e 12. Nenhuma documentação sobre esta apresentação consta dos autos, o invocado procedimento que terá levado à sua formação também não consta e sobre esta matéria a Requerente limita‑se a afirmar em 7.º e 8.º do PPA, ter “sido notificada pela AT para liminarmente e sem qualquer alternativa, apresentar uma declaração de substituição (…) sem que nada houvesse precedido tal comportamento quasi totalitário”, o que não é suficientemente expressivo para corroborar inequivocamente a afirmação da Requerida. Fica por isso o Tribunal na dúvida se a Requerente apresentou a declaração de substituição, nos termos indicados pela AT ou se a liquidação resultou afinal de liquidação oficiosa.

 

  1. Fundamentação da seleção da matéria de facto

 

Ao Tribunal Arbitral incumbe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão da causa e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada, não tendo de se pronunciar sobre todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre da aplicação conjugada do artigo 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”) e do artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT. Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, determinada com base nas posições assumidas pelas partes e nas várias soluções plausíveis das questões de direito para o objeto do litígio, conforme decorre do artigo 596.º, n.º 1 do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n. 1, alínea e), do RJAT.

Os factos dados como provados resultaram do confronto da posição manifestada relativamente a cada facto pelas Partes e da apreciação da prova documental, o que foi feito com base nas regras da experiência, da normalidade e da racionalidade, em conformidade com o previsto no artigo 16.º, alínea e) do RJAT, bem como no artigo 607.º, n.º 5 do CPC aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, das quais resulta que o julgador apreciará livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto. A prova documental encontra-se identificada relativamente a cada facto, junto ao seu relacionamento.

 

  1. Decisão da matéria de direito

 

5.1. Ordem de conhecimento dos vícios

 

A Requerente imputou aos atos de liquidação contestados no presente processo vícios de falta de fundamentação e de preterição do direito de audição, que consistem em vícios formais ou procedimentais, bem como vício de violação da norma do artigo 5.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 448-A/88 de 30 de novembro, que consiste num vício material ou substantivo.

Uma vez que os vícios formais ou procedimentais, ao contrário do que sucede com os vícios materiais ou substantivos, não obstam necessariamente à renovação do ato, e considerando o facto de a Requerente não ter determinado expressamente um relação de subsidiariedade entre os vícios que imputou aos atos contestados, o Tribunal Arbitral apreciará em primeiro lugar o vício de violação de lei e só posteriormente os restantes vícios formais, por ser esta a ordem que assegura uma mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos em conformidade com o disposto no artigo 124.º do CPPT.

 

5.2. Violação da norma do artigo 5.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 448-A/88 de 30 de novembro

 

            Quanto a este ponto cumpre essencialmente apreciar se a alienação descrita no ponto D da matéria de facto provada nos presentes autos está ou não sujeita a tributação em sede de IRS. Por um lado, entende a Requerente que não, fundamentando a sua posição na aplicação do regime transitório da categoria G previsto no artigo 5.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 448-A/88 de 30 de novembro. Por outro lado, defende a Requerida que sim, sustentando a inaplicabilidade do referido regime com base na circunstância de não ter sido alineado um prédio rústico, mas sim um prédio urbano no qual foi construído um imóvel edificado já na vigência do código do IRS. Vejamos.

            O Decreto-Lei n.º 448‑A/88 de 30 de novembro, que aprovou o Código do IRS, estabeleceu um regime transitório aplicável aos rendimentos da categoria G (mais-valias), como forma de efetivar o princípio da segurança jurídica e acautelar aplicações retroativas da lei a rendimentos que até à entrada em vigor daquele código não estavam sujeitos a tributação. No artigo 5.º do referido Decreto-Lei determinou-se, para o efeito, o seguinte:

 

1 – Os ganhos que não eram sujeitos ao imposto de mais-valias, criado pelo código aprovado pelo Decreto-Lei n.º 46 373, de 9 de Junho de 1965, bem como os derivados da alienação a título oneroso de prédios rústicos afectos ao exercício de uma actividade agrícola ou da afectação destes a uma actividade comercial ou industrial, exercida pelo respectivo proprietário, só ficam sujeitos ao IRS se a aquisição dos bens ou direitos a que respeitam tiver sido efectuada depois da entrada em vigor deste Código.

2 – Cabe ao contribuinte a prova de que os bens ou valores foram adquiridos em data anterior à entrada em vigor deste Código, devendo a mesma ser efectuada, quanto aos valores mobiliários, mediante registo nos termos legalmente previstos, depósito em instituição financeira ou outra prova documental adequada e através de qualquer meio de prova legalmente aceite nos restantes casos.

3 – Quando, nos termos dos nºs 8 e 10 do artigo 10º do Código do IRS, haja lugar à valorização das participações sociais recebidas pelo mesmo valor das antigas, considera-se, para efeitos do disposto no n.º 1, data de aquisição das primeiras a que corresponder à das últimas.”. (destaque nosso)

 

            Portanto, para que determinar se a alienação do imóvel objeto do presente processo estava abrangida por este regime de exclusão, revela-se necessário aferir se a mesma era sujeita a tributação em sede de Imposto de Mais-Valias (“IMV”), aprovado pelo Decreto-lei 46373, de 9 de junho de 1965. Ao que aqui importa, determinava-se o seguinte no artigo 1.º do código deste imposto:

 

Artigo 1.º

O imposto de mais-valias incide sobre os ganhos realizados através dos actos que a seguir se enumeram:

1.º Transmissão onerosa de terreno para construção, qualquer que seja o título por que se opere, quando dela resultem ganhos não sujeitos aos encargos de mais-valia previstos no artigo 17.º da Lei 2030, de 22 de Junho de 1948, ou no artigo 4.º do Decreto-Lei 41616, de 10 de Maio de 1958, e que não tenham a natureza de rendimentos tributáveis em contribuição industrial.

2.º Transmissão onerosa, qualquer que seja o título por que se opere, de elementos do activo imobilizado das empresas ou de bens ou valores por elas mantidos como reserva ou para fruição.

3.º Traspasse de locais ocupados por escritórios ou consultórios afectos ao exercício de profissões constantes da tabela anexa ao Código do Imposto Profissional.

4.º Incorporação de reservas no capital das sociedades anónimas, em comandita por acções, ou por quotas e emissão de acções, com reserva de preferência para os accionistas, ou, no caso de transformação de sociedades por quotas em sociedades anónimas, para os sócios da sociedade na sua forma anterior.

§ 1.º Consideram-se rendimentos tributáveis em contribuição industrial os ganhos provenientes da transmissão a título oneroso de terreno para construção até decorridos dois anos sobre a data da aquisição, quando esta se haja operado a igual título.

§ 2.º São havidos como terrenos para construção os situados em zonas urbanizadas ou compreendidos em planos de urbanização já aprovados e os assim declarados no título aquisitivo.

§ 3.º Os ganhos a que respeita o n.º 2.º, quando realizados mediante transmissão onerosa de terreno para construção ou de acções ou outras participações sociais, só ficarão sujeitos a imposto por força do que dispõem, respectivamente, os n.ºs 1.º e 4.º”. (destaque nosso)

 

Da conjugação das referidas normas resulta que não podem beneficiar do regime transitório da categoria G os ganhos com a alienação de ativos imobiliários que já eram sujeitos a tributação em sede de IMV, isto é, os ganhos resultantes da alienação onerosa de (i) terrenos para construção, (ii) elementos do ativo imobilizado das empresas ou bens ou valores por elas mantidos como reserva ou fruição e (iii) do direito de arrendamento de escritórios e consultórios.

Dito de outro modo, como os ganhos derivados da alienação onerosa de prédios rústicos e urbanos não estavam abrangidos pelo âmbito de incidência do IMV, a sua tributação em sede de IRS apenas ocorrerá se a aquisição dos prédios visados já tiver ocorrido durante a vigência do código deste último imposto, isto é, após 1 de janeiro de 1989. Por conseguinte, é indiferente para efeitos do regime transitório de exclusão que após a entrada em vigor do código do IRS se tenha verificado uma alteração na qualificação do prédio alienado, porquanto o que releva é a natureza que este tinha à data da entrada em vigor daquele código.

Este é, de resto, o entendimento que tem sido defendido na jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, designadamente no acórdão de 02 de Julho de 2014, proferido no âmbito do processo n.º 01396/13, onde se referiu o seguinte:

 

Importa agora analisar se este regime transitório da categoria G, previsto no citado n.º 1 do art.º 5º, do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro, tem ou não aplicação na situação em apreço.

Sem dúvidas, deve afirmar-se que quando entrou em vigor o CIRS, (01/01/1989) inequivocamente, o prédio em questão não estava, em caso de transmissão, sujeito a imposto, no tocante a mais-valias, pois detinha a qualidade de rústico.

É um facto indiscutível e incontestável.

No caso do tributo ora sindicado, estamos perante um facto tributário de formação sucessiva, integrado por dois momentos: o da aquisição e o da transmissão. No momento da aquisição por via sucessória o prédio tinha a qualidade de rústico a qual se mantinha na data da transmissão que ocorreu após a entrada em vigor do CIRS. Não ocorre sujeição a imposto de mais valias pois que há que considerar a referida norma transitória do artº 5º do CIRS, não podendo aplicar-se retroactivamente a lei.

Neste sentido e por todos, o acórdão de 27 de Janeiro de 2010, do STA, proferido no Proc. nº 969/09, onde se refere, cuja fundamentação se destaca e para a qual se remete “O que é decisivo para a questão da tributação em IRS, dado que para saber se se verificam os pressupostos da tributação, releva a qualidade que o bem detinha no momento da entrada em vigor do CIRS, uma vez que, como se viu, no regime transitório estabelecido para a categoria G de IRS (regime previsto no nº 1 do art. 5º do citado DL 442-A/88), se estabelece que os ganhos que não eram sujeitos ao imposto de mais-valias, só ficam sujeitos ao IRS se a aquisição dos bens ou direitos de cuja transmissão provêm se houver efectuado depois da entrada em vigor deste Código.

Daí que careça de razão a recorrente ao alegar que os ganhos são sujeitos a IRS porque estamos perante a venda de um lote de terreno para construção urbana que já nos termos do disposto no nº 1 do CIMV era tributada (cfr. art. 7º das alegações de recurso). Como se sublinha no acórdão deste STA, de 12/12/06, rec. nº 1100/05, «o que se pretendeu com a mudança de regime de tributação operada a partir de 1989 foi tributar em IRS, categoria G, todas as transmissões onerosas sobre imóveis; todavia, para evitar efeitos retroactivos, estabeleceu-se que para serem tributadas tais transmissões era necessário que os bens abrangidos fossem adquiridos e alienados dentro da vigência da nova lei, com excepção daqueles que já eram antes tributados por força do CIMV, ou seja, os terrenos para construção, os quais passariam agora a ser tributados nos termos do Código do IRS». E também no ac. de 6/6/07, deste mesmo STA, rec. nº 179/07, se escreve, a este propósito, que a não tributação em IRS - a título de mais-valias - dos ganhos obtidos com a transmissão de terrenos que à data da entrada em vigor do CIRS eram qualificados como terrenos agrícolas (citado art. 5º do DL 442-A/88) se compreende «pelo facto de, tendo-se optado pelo cálculo dos ganhos tributáveis a título de mais-valias com base na diferença entre o valor da aquisição e o valor da transmissão, a tributação em IRS da valorização de terrenos agrícolas que haviam sido adquiridos antes da sua entrada em vigor incluiria, parcialmente, a aplicação retroactiva do novo regime de tributação a ganhos obtidos com a valorização dos prédios rústicos, pois forçosamente se iriam tributar, além dos ganhos correspondentes à valorização gerada na vigência do novo Código, também alguns correspondentes à valorização que, como prédios rústicos, pode ter tido ocorrido antes da sua entrada em vigor. Ora, essa aplicação retroactiva de normas de incidência tributária, que, a partir da revisão constitucional de 1997 é absolutamente proibida pela nova redacção dada ao art. 103º, nº 3, da CRP, só era tolerável anteriormente em situações especiais em que estivesse em causa o interesse geral (Essencialmente neste sentido, pode ver-se o acórdão do Tribunal Constitucional nº 216/90, de 20-6-1990, processo nº 203/89, publicado no Boletim do Ministério da Justiça nº 398, página 207), que não se vislumbram em matéria de tributação de mais-valias» (cf. ainda, no mesmo sentido, entre outros, os acs. de 4/2/09, rec. nº 872/08 e de 29/10/08, rec. nº 539/08 e de 13/2/08, rec. nº 763/07).” (destaque nosso)

 

            Mais recentemente, reafirmando esta mesma jurisprudência, referiu o Supremo Tribunal Administrativo no acórdão de 11 de outubro de 2023, proferido no âmbito do processo n.º 0834/09.0BELRS, que:

 

como o Supremo Tribunal Administrativo vem decidindo em jurisprudência constante, o que releva para a aplicação deste regime transitório é a qualidade que o bem detinha no momento da entrada em vigor do novo Código – ver, por todos, o acórdão de 8 de julho de 2015, no Recurso n.º 0584/15 e jurisprudência aí citada.

Assim, tratando-se de bem imóvel adquirido ainda na vigência do Código do Imposto de Mais-Valias, os ganhos provenientes da sua alienação só estarão sujeitos a imposto se, à data da entrada em vigor do novo Código, já pudesse ser qualificado como terreno para construção.

Está assente nos autos que o ganho em causa provém de uma parcela destacada de um logradouro adquirido em 1983.

No entanto, a operação de destaque só ocorreu em 2004, pelo que, à data da entrada em vigor do Código do IRS, o terreno era parte integrante do edifício de que foi, ulteriormente, destacado – ver o artigo 204.º, n.º 2, do Código Civil.

Assim, à data da entrada em vigor do Código de IRS, o terreno em causa ainda não tinha a natureza de terreno para construção. Porque as partes integrantes dos edifícios têm a mesma natureza dos edifícios a que estão ligados.

A natureza que tinha à data da alienação e em resultado da operação de destaque não releva para este efeito.”. (destaque nosso)

 

            Aplicando estas considerações ao caso em juízo nos presentes autos, verifica-se que o imóvel foi adquirido pela Requerente em 1988 enquanto terreno rústico, apenas se tendo verificado a alteração da sua qualificação em 1991 com a respetiva inscrição na matriz predial como prédio urbano. Como na data da entrada em vigor do Código do IRS, em 1 de janeiro de 1989, o prédio mantinha a qualidade de terreno rústico e como o mesmo não era objeto de tributação em sede de IMV, verificam-se que os ganhos resultantes da sua alienação em 2021 estão excluídos de tributação por força do disposto no artigo 5.º, n.º 1 do regime transitório da categoria G previsto no artigo 5.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 448-A/88 de 30 de novembro.

            Em face do exposto, julga-se procedente o vício de violação de lei invocado pela Requerente a este respeito, impondo-se a anulação do ato de liquidação de IRS na concreta medida em que sujeita a tributação a mais-valia resultante da alienação descrita no ponto D da matéria de facto provada nos presentes autos.

            Consequentemente, conclui-se que não foi for retardada a liquidação de parte ou da totalidade do imposto devido ou a entrega de imposto a pagar antecipadamente, ou retido ou a reter no âmbito de substituição tributária, por facto imputável à Requerente, desde logo porque o imposto não era devido. Quer isto dizer que não se encontram verificados os pressupostos da liquidação de juros compensatórios nos termos do artigo 35.º da LGT, pelo que também se julga procedente a ilegalidade invocada pela Requerente a este respeito.

 

***

 

Na medida da procedência do vício de violação de lei, fica prejudicado o conhecimento dos restantes vícios formais ou procedimentais imputados pela Requerente aos atos de liquidação de IRS e de juros compensatórios contestados no presente processo.

 

5.3. Reembolso do imposto e juros indemnizatórios

 

No pedido arbitral a Requerente suscitou o reembolso a quantia de 84.503,73 €, acrescida do pagamento de juros indemnizatórios. Acontece que a Requerente apenas provou o pagamento do montante de 82.421,27 €, correspondente à demonstração de acerto de contas emitida pela AT, referente à compensação n.º 2023 ... de 01-03-2023. Por conseguinte, é este o montante indevidamente pago pela Requerente que lhe deve ser restituído como forma de restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, em conformidade com o disposto no artigo 24.º, n.º 1, alínea b) do RJAT.

 

No pedido arbitral a Requerente suscitou ainda o pagamento de juros indemnizatórios. Ao que aqui importa, o direito a estes juros é regulado no artigo 43.º da LGT nos seguintes termos:

 

Artigo 43.º

Pagamento indevido da prestação tributária

1 – São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

2 – Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar de a liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.”.

 

Resulta da referida norma que a razão de ser do pagamento de juros indemnizatórios radica na responsabilização da AT pelos erros de facto e de direito a que deu azo e na correlativa necessidade de compensar pecuniariamente o sujeito passivo pela privação ilícita de capital que lhe foi imposta por certo período de tempo. Tal como sublinhou o Tribunal Central Administrativo Norte, no acórdão de 12 de Janeiro de 2023, proferido no âmbito do processo n.º 02408/16.0BEPRT:

 

A consagração do direito a juros na LGT reflete o princípio da igualdade dos sujeitos da relação tributária, assumindo, neste caso, o contribuinte o papel de sujeito activo. A obrigação tributária principal é sempre de natureza pecuniária e o seu pagamento indevido envolve sempre um custo para o contribuinte, que os juros se destinam a reparar. Quando ocorre atraso no recebimento do valor a pagar pelos contribuintes, o prejuízo correspondente do credor tributário é reparado com o pagamento dos juros compensatórios e juros moratórios (cfr. artigos 35º e 44º LGT).

Já quando o sujeito passivo efetua o pagamento de um tributo indevido, ou a AT procede tardiamente à sua restituição, o prejuízo do sujeito passivo é reparado com o pagamento de juros indemnizatórios. Por outras palavras, o pagamento dos juros indemnizatórios visa reparar a privação indevida de meios financeiros dos contribuintes por razões imputáveis à AT.”. (destaque nosso)

 

Ora, no presente caso a liquidação de IRS cuja ilegalidade foi julgada procedente pelo Tribunal Arbitral teve origem numa declaração de substituição apresentada pela própria Requerente. Acontece que, tal como resulta do ponto F da matéria de facto provada nos presentes autos, aquela declaração foi impulsionada pelo ofício n.º ... da Direção de Finanças de Lisboa, de 23-01-2023, através do qual a AT notificou a Requerente para aquele efeito. Quer isto dizer que a Requerente, que tinha inicialmente declarado corretamente a sua situação tributária, veio posteriormente a fazê-lo de forma errada em cumprimento de instruções da AT.

Poder-se-ia dizer que o erro não seria imputável aos serviços porque a Requerente poderia ter desconsiderado a notificação da AT para a apresentação da declaração de substituição e aguardado pela posterior emissão de uma liquidação adicional. Contudo, se se reconhece expressamente no n.º 2 do artigo 43.º da LGT o direito a juros indemnizatórios ao contribuinte que atua livremente com base em orientações genéricas ilegais, por maioria de razão, e por imperativos de igualdade, segurança jurídica e proporcionalidade, terá de se reconhecer o mesmo direito ao contribuinte que, no caso concreto, apresentou livremente declaração de substituição em resultado de erro que foi direta e individualizadamente provocado na sua esfera por comportamento da AT.

Assim sendo, ao ter ficado provado que no preenchimento da declaração de substituição a Requerente seguiu instruções dadas pela AT sobre o modo de declaração dos rendimentos, que deram origem à ilegalidade na liquidação de IRS impugnada, verifica-se procedente a existência de um erro imputável aos serviços que originou o pagamento de imposto em montante superior ao legalmente devido.

Em face do exposto, entende este Tribunal Arbitral que assiste à Requerente o direito a juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido e até à emissão da respetiva nota de crédito, nos termos do artigo 43.º, n.ºs 1 e 2 da LGT e 61.º, n.º 5 do CPPT.

 

  1. Decisão

 

Termos em que se decide julgar:

  1. Julgar procedente o pedido arbitral e, em consequência, determinar a anulação do ato de liquidação contestado nos termos acima fixados;
  2. Reembolsar à Requerente o montante de 82.421,27 € acrescido do pagamento de juros indemnizatórios;
  3. Condenar a Requerida no pagamento das custas do processo.

 

  1. Valor do processo

           

            Atendendo ao disposto no artigo 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de 84.503,73 €.

 

  1. Custas

 

            Nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, as custas são no valor de € 2.754,00, a suportar pela Requerida, conforme ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 29 de dezembro de 2023

 

A Árbitra Presidente,

Carla Castelo Trindade 

 

O Árbitro Adjunto,

Nuno Maldonado Sousa 

 

O Árbitro Adjunto,

Gustavo Gramaxo Rozeira 

 

 

 

 

 

Declaração de voto

Votei favoravelmente esta Decisão Arbitral quanto à questão de fundo que se discutia nos autos, em face da jurisprudência consolidada e constante dos tribunais superiores da jurisdição administrativa e fiscal.

Teria, no entanto, suscitado de ofício a exceção de ilegitimidade ativa na medida em que a pretensão deduzida pela requerente consubstancia verdadeiramente uma conduta de venire contra factum proprio. Com efeito, o ato de liquidação impugnado nesta arbitragem é o resultado direto e imediato da própria declaração de substituição apresentada pela requerente: é certo que a AT a convidou a corrigir a sua declaração de rendimentos, sob o fundamento de que a mais-valia imobiliária por si obtida não poderia ser excluída de tributação em sede de IRS; aparentemente, a requerentes ter-se-á conformado com essa sugestão administrativa porque procedeu à apresentação de uma declaração de substituição nos exatos e precisos termos sugeridos pela AT. Por conseguinte, a liquidação impugnada é o resultado direto e imediato da conduta da requerente: é ela quem lhe dá causa, na medida em que o referido ato de liquidação se limita a tributar os factos tributários por si declarados de acordo a configuração que a própria requerente lhes deu.

Nada obrigava a requerente a aceitar a sugestão da AT e apresentar uma declaração de substituição nos termos indicados. A sequência normal seria, então, a AT proceder à correção da declaração de rendimentos nos termos do art. 65.º, n.º 4, do CIRS e, de seguida, promover oficiosamente à emissão de uma liquidação adicional. Então sim, a requerente teria legitimidade processual para impugnar um tal ato de liquidação.

Isto porque o contencioso tributário, à semelhança de resto do que sucede no contencioso de atos administrativos, não é um processo de tutela da legalidade objetiva, mas antes um processo dirigido à tutela de posições jurídicas subjetivas: para que haja legitimidade ativa é necessário que o ato seja lesivo da esfera jurídica do impugnante e que essa lesão não tenha sido causada ou aceite pelo próprio impugnante, salvo naturalmente no caso de direitos indisponíveis. No caso em espécie, estaremos também reconduzidos a uma posição em que a ilegitimidade ativa anda de par com a perda (ou inexistência) de interesse em agir: a estatuição exatora resultante da liquidação impugnada é, sem tirar nem pôr, o resultado dos factos tributários que a requerente declararou e de acordo com a configuração que a requerente lhes deu. Foi a conduta da requerente que deu causa imediata ao teor da liquidação impugnada, na medida em que esta se limita a aplicar aos factos por ela declarados o regime jurídico-tributário que resulta da lei fiscal. Não é, assim, configurável a existência de um qualquer interesse direto em impugnar por parte de quem obteve da administração fiscal um ato tributário que corresponde precisa e exatamente aos factos tributários que declarou.

Mais uma vez: nada obrigava a requerente a anuir ao convite da AT e a declarar a alienação imobiliária nos termos sugeridos — poderia ter aguardado a correção oficiosa e, apenas então, impugnado contenciosamente a eventual liquidação adicional que viesse a ser proferida. Porém, não adotou esse comportamento e, aparentemente, aceitou e anuiu ao convite da AT  apresentando, propria manu, uma declaração de substituição.

Por conseguinte, quanto a mim, a requerente carece de legitimidade para impugnar a liquidação em causa nesta arbitragem na medida em que, por um lado, esta é o resultado causal e direto da sua própria conduta (i.é, da declaração de substituição que apresentou) e, por outro lado, ao ter voluntariamente procedido à apresentação de uma declaração de substituição, quando nada a obrigava a fazê-lo, terá aceitado expressamente a sugestão administrativa quanto ao enquadramento jurídico-tributário da operação de alienação imobiliária por si realizada.

Por último, não pode deixar de vigorar um princípio de autorresponsabilidade por parte dos contribuintes: não é aceitável que, como diz o adágio popular, se queira ao mesmo tempo sol na eira e chuva no nabal. Não pode a requerente, por um lado, aceder ao convite da AT e apresentar a declaração de substituição nos termos sugeridos por aquela entidade e, por outro lado, colocar em causa o resultado direto e imediato desse comportamento que voluntariamente adotou. Tendo acatado a sugestão administrativa, não se pode valer de uma ilegalidade que mais não é do que o resultado direto e causal do seu próprio comportamento.

Finalmente, voto vencido quanto ao facto §4 dos factos não provados. Entendo que tal facto (despido do enquadramento jurídico e conclusivo que lhe é dado) está confessado pela requerente no seu p.p.a. em termos suficientemente claros. Por outro lado, dada a relevância deste facto para a apreciação da exceção de ilegitimidade ativa, julgo que o Tribunal Arbitral podia, e devia, ter feito uso dos seus poderes inquisitórios em matéria de meios de prova e ordenado às partes a apresentação dos documentos necessários ao cabal esclarecimento da realidade a que o mesmo diz respeito.

CAAD, 29/12/2023

O Árbitro,

 

 

Gustavo Gramaxo Rozeira