Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 285/2023-T
Data da decisão: 2023-12-27  Selo  
Valor do pedido: € 1.666.444,67
Tema: Imposto do selo – Isenção do imposto do selo em operações de crédito em conta corrente entre sociedades em relação de domínio ou grupo ou ligadas entre si pela detenção por uma delas de uma participação qualificada no capital da outra.
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SUMÁRIO:

  1. Para efeitos da determinação do prazo máximo de um ano das operações financeiras abrangidas pela isenção do artigo 7.º, n.º 1, alínea g), do Código do Imposto do Selo, não releva o prazo do contrato de abertura de crédito em conta corrente, que abrange todo o período em que o creditante mantenha o crédito à disposição do creditado, independentemente de o crédito ser utilizado ou não, mas sim a duração das efetivas utilizações do crédito efetuadas ao abrigo de tal contrato.
  2. Se um contribuinte apresenta provas objetivas que permitam concluir que os créditos concedidos sob a forma de conta corrente, ainda que relevados na mesma conta 26611 – “FINANC CONCED-EMPR MÃE SUPRIM CORR”, foram reembolsados em prazo inferior a um ano, não pode a Autoridade Tributaria negar a isenção de Imposto do Selo aos créditos concedidos, com base na suposta impossibilidade de determinação do prazo desses financiamentos.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Os Árbitros Carla Castelo Trindade, designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”), António Martins, designado pela Requerente, e António Lima Guerreiro, designado pela Requerida, para formar o Tribunal Arbitral, decidem no seguinte:

 

I. RELATÓRIO

 

A..., S.A. (“Requerente”) com o número de identificação de pessoa coletiva ... e com sede na Rua ..., n.º..., ..., ...-... Lisboa, apresentou pedido de constituição de Tribunal Arbitral, ao abrigo do disposto na alínea a), do n.º 1, do artigo 2.º e do artigo 10.º e seguintes do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), em conjugação com a alínea a), do n.º 1, do artigo 102.º, do Código de Procedimento e Processo Tributário (“CPPT”), tendo em vista a declaração de ilegalidade e consequente anulação do ato de liquidação de Imposto do Selo aplicado a créditos concedidos à B..., SGPS, S.A. (doravante “B...”), referentes ao período de tributação de 2018, e respetivos atos de liquidação de juros compensatórios, todos devidamente identificados infra, bem como a condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios.

Na sequência da Ordem de Serviço n.º OI2021..., a Requerente foi sujeita a um procedimento inspetivo externo, de âmbito geral, referente ao período de tributação de 2018. Em resultado daquele procedimento inspetivo tributário, a Requerente foi notificada do Projeto de Relatório de Inspeção Tributária (“RIT”), no qual a Requerida apresentou as suas conclusões preliminares, tendo proposto correções em sede de Imposto do Selo e do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas.

No tocante às ditas correções, destaca-se a correção ao Imposto do Selo, no montante de € 1.427.845,90, devido, segundo a Requerida, relativamente a determinadas operações financeiras em que a Requerente interveio.

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite em 6 de Julho de 2022 pelo Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT” ou “Requerida”).

A Requerente procedeu à nomeação de árbitro, na pessoa do Prof. Doutor António Martins, e a Requerida nomeou o Dr. António Lima Guerreiro, ambos árbitros vogais, que aceitaram a nomeação. Foi designada como Presidente do Tribunal, por decisão do CAAD, ao abrigo do artigo 6.º, n.º 2 b) do RJAT, a Prof.ª Doutora Carla Castelo Trindade, que aceitou.

As partes foram notificadas dessa designação em 28 de junho de 2023, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros.

Em conformidade com o disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral coletivo ficou constituído em 17 de julho de 2023.

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 4.º e 5.º, todos do RJAT. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e estão regularmente representadas, em conformidade com o disposto nos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e dos artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

 Em 2 de outubro de 2023 a Requerida apresentou a sua resposta. No dia 14 de novembro de 2023 realizou-se no CAAD a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, tendo-se procedido à inquirição das testemunhas indicadas pela Requerente. Mais foi acordado em conceder o prazo de 15 dias para eventual apresentação pelas partes de alegações escritas simultâneas, o que ambas fizeram no prazo estipulado.

 

II. THEMA DECIDENDUM

 

A Requerente foi notificada da liquidação de Imposto do Selo e das liquidações de juros compensatórios, a qual ascendeu ao valor total de € 1.666.444,67 (€ 1.427.845,90 de Imposto do Selo e € 238.598,77 de juros compensatórios). Alega a Requerida que os créditos concedidos pela Requerente à B... não têm prazo determinado ou determinável, pelo que devem ser tributados em sede do Imposto do Selo por aplicação da verba 17.1.4 da Tabela Geral do Imposto do Selo (“TGIS”). Por seu turno, a Requerente sustenta que o prazo de cada crédito é determinado e determinável, e inferior a um ano, pelo que devem tais créditos usufruir da isenção do mencionado imposto prevista na alínea g), do n.º 1, do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo (“CIS”).

 

III. POSIÇÃO DAS PARTES

 

3.1. Requerente

 

No decurso da atividade da Requerente foi celebrado, entre algumas entidades do Grupo D..., um contrato de apoio à tesouraria tendo como propósito suprir necessidades financeiras que se vinham evidenciando na esfera das diversas entidades do Grupo, bem como reforçar a liquidez que visasse assegurar os recursos necessários para o cumprimento das responsabilidades dessas entidades.

Na cláusula quarta daquele contrato encontra-se estabelecido que “[o]s empréstimos ao abrigo da cláusula primeira não podem, cada um deles, ultrapassar o período máximo de 1 (um) ano, contado da data em que os montantes foram disponibilizados nos termos da cláusula segunda, número um”.

No âmbito deste contrato a Requerente concedeu empréstimos à B... no período de tributação de 2017 e no período de tributação de 2018.

Pelo facto de as referidas operações de financiamento (i) terem um prazo de reembolso não superior a um ano, (ii) terem sido efetuadas entre sociedades que se encontram numa relação de domínio ou de grupo e (iii) visarem colmatar necessidades de tesouraria das sociedades beneficiárias, a Requerente entendeu que estas operações beneficiavam da isenção de Imposto do Selo prevista na alínea g) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS, pelo que não procedeu à liquidação daquele imposto no âmbito destas operações.

            A Requerente sublinha que no âmbito do procedimento inspetivo, concretamente em sede de audição prévia, juntou os comprovativos das transferências bancárias associadas ao contrato de apoio à tesouraria e o ficheiro de controlo interno que, para cada um dos financiamentos concedidos à B..., evidenciam a data em que os fundos foram disponibilizados e a data em que os mesmos foram reembolsados, e que permitiriam afastar a correção efetuada pela AT.

Porém, a Requerida terá ignorado estes elementos, desconsiderando as explicações dadas pela Requerente, as quais, segundo esta, demonstravam que a isenção de Imposto do Selo prevista na alínea g), do n.º 1, do artigo 7.º do CIS seria aplicável aos financiamentos concedidos à B... .

Segundo a Requerente, no caso concreto não só o prazo de reembolso é determinado contratualmente pelas partes, como também é determinável pela prova documental produzida.

Ademais, de acordo com a informação disponibilizada em sede de direito de audição prévia, bem como no pedido de constituição de Tribunal Arbitral, considera a Requerente ter sido comprovado que o reembolso dos financiamentos concedidos à B... ocorreu antes do decurso do prazo de um ano, sendo também o prazo de reembolso determinável.

Sustenta a Requerente que o saldo inicial (no montante de € 405.633.000) e os financiamentos concedidos pela Requerente no decurso do período de tributação de 2018 (no montante total de € 530.000) foram reembolsados no dia 25 de outubro de 2018. As operações de financiamento constituídas no dia 3 de novembro de 2017 completariam um ano no dia 3 de novembro de 2018.

O reembolso do crédito concedido ocorreu no dia 25 de outubro de 2018, ou seja, decorridos 356 dias. Consequentemente, e considerando que os restantes financiamentos foram concedidos após dia 3 de novembro de 2017, também aqueles se consideram como reembolsados em prazo inferior a um ano.

Quanto ao empréstimo concedido no dia 25 de outubro de 2018, no montante de € 406.376.982,74, a Requerente refere que foi efetuado o reembolso de uma parcela significativa daquele crédito, o qual teve lugar no mês de dezembro de 2018, ou seja, dois meses após a concessão do respetivo financiamento.

Neste contexto, menciona ainda a Requerente que o valor de € 195.714.554,75 que permanecia em dívida na referida conta não origina tributação em sede de Imposto do Selo, porquanto, à data dos factos, ainda não se encontrava verificado o prazo de um ano para o respetivo reembolso.

Segundo a Requerente, a AT nunca questionou a existência ou não de carência de tesouraria ao longo de todo o procedimento de inspeção, referindo apenas no relatório final de inspeção tributária que não se encontrava preenchido este pressuposto, sem qualquer fundamentação.

            A Requerente pagou o Imposto do Selo liquidado com referência às operações de financiamento concedidas à B... nos períodos de tributação de 2017 e 2018, o qual ascendeu ao montante de € 1.427.845,90, acrescido de juros compensatórios.

Nesta medida, propugna que seja declarada a ilegalidade da liquidação em apreço, e que lhe sejam pagos juros indemnizatórios.

 

3.2. Requerida

 

Sustenta a AT que os Serviços de Inspeção Tributária (“SIT”) investigaram minuciosamente a operação de financiamento no seu todo, procurando compreender a realidade dos factos e enquadrá-los ao abrigo das normas de incidência do Imposto do Selo, tendo solicitado ao longo dos atos inspetivos todos os documentos que julgaram necessários para a análise cabal da operação de financiamento.

Foi com base no apuramento da factualidade recolhida no âmbito da ação inspetiva que os SIT alcançaram a conclusão de que era devido Imposto do Selo nas operações identificadas, tendo inicialmente plasmado no Projeto de RIT as razões pelas quais se alcançou tal conclusão. Depois de analisado o direito de audição mantiveram as mesmas conclusões, referindo expressamente que a Requerente não levou ao processo elementos novos suficientes para pôr em causa as conclusões iniciais.

No procedimento inspetivo concluiu-se que o crédito concedido foi utilizado sob a forma de conta-corrente, caindo assim estas operações no âmbito da incidência do Imposto do Selo, não podendo a Requerente aproveitar da isenção prevista na alínea g), do n.º 1, do artigo 7.º do CIS.

O contrato de apoio à tesouraria, celebrado em 3 de janeiro de 2011, entrado em vigor a 1 de janeiro de 2011, com a duração de 12 meses e renovável automaticamente por períodos iguais e sucessivos de 12 meses (cfr. n.º 1 da cláusula “Quinta”), prevê na cláusula “Primeira” que o financiamento de apoio à tesouraria intra-grupo será constituído por empréstimos autónomos e individualizados de curto prazo, podendo, nos termos estabelecidos no n.º 2 da cláusula “Segunda”, amortizar-se o crédito, total ou parcialmente, antes de decorrido o prazo de vencimento.

No RIT concluiu-se que os movimentos subjacentes à concretização do contrato, e que se encontram refletidos na conta 26611, cabem na previsão da verba 17.1.4 da TGIS. Sustenta a Requerida que caso se tratassem de verdadeiros empréstimos de curto prazo (inferiores a um ano), para cobertura de carências de tesouraria, deveriam ser contabilizados individualmente por datas de vencimento, por forma a obter os montantes vencíveis no decurso normal do ciclo de exploração e ser possível verificar a duração dos mesmos e as datas dos reembolsos, para serem passíveis de isenção nos termos da alínea g), do n.º 1, do artigo 7.º do CIS.

No caso em apreço, e na ótica da Requerida, a situação acima identificada não ocorre, dado que os empréstimos efetuados à B... foram todos relevados na mesma conta, a qual regista ao longo dos períodos um movimento constante a débito e a crédito, situação que confere as características intrínsecas de empréstimos em conta corrente, cujo prazo não é determinado nem determinável.

Estes empréstimos denotariam assim um prazo que não é determinado nem determinável, na medida em que os diversos registos a débito e a crédito, presentes no extrato de conta corrente, traduzem-se em levantamentos e devoluções efetuados de forma aleatória ao longo de um período de tempo não determinado ou determinável.

Segundo a Requerida, o que é relevante é o prazo de utilização do crédito e não o prazo contratual fixado para o seu reembolso, não podendo as operações em causa aproveitar da isenção prevista na alínea g), do n.º 1, do artigo 7.º do CIS, já que a Requerente limitou-se a justificar apenas os saldos e movimentos, desprezando a substância das operações.

Refere a AT que se observa, no caso presente, a inexistência de um qualquer anúncio do início ou termo final previamente acordados para que ocorra qualquer pagamento ou recebimento tornando-se, assim, impossível identificar o momento exato do início e fim da relação creditícia.

A inexistência de referência a uma data de início da concessão do crédito, ou de uma data precisa antes da qual o mesmo deverá ser reembolsado, ficando dependente exclusivamente da vontade das partes, permite afirmar que o empréstimo não é efetuado por prazos determinados ou determináveis, mas sob a forma de conta corrente com levantamentos e devoluções efetuados de forma aleatória ao longo de um período de tempo não determinado ou determinável, conforme resultaria da análise da conta corrente 26611.

Observando-se que no final das entradas e saídas de fluxos financeiros se mantém um valor em dívida, devendo concluir-se que o “encerramento da conta corrente” não se tem por verificado, não procedendo, assim, segundo a Requerida, a afirmação da existência de um prazo não superior a um ano para que se verificasse o reembolso do empréstimo que foi cumprido pela B... .

 

IV. DO MÉRITO

 

IV.1. Factos provados

 

Com relevo para a decisão da causa dão-se como provados os seguintes factos:

  1. A Requerente é uma sociedade de direito português;
  2. O período de tributação da Requerente, em sede do IRC, é de 1 de agosto e 31 de julho;
  3. À data dos factos, o capital social da Requerente era integralmente detido pela A..., SGPS, S.A, que, por sua vez, era detida a 100% pela C... SGPS, S.A., cujo capital era detido pela B..., S.A. – cfr. documentos n.ºs 5, 6 e 7 juntos pela Requerente;
  4. No decurso da atividade da Requerente foi celebrado, em 3 de janeiro de 2011, entre algumas entidades do Grupo D..., um contrato de apoio à tesouraria tendo como propósito suprir necessidades de tesouraria que se verificavam em entidades do Grupo, com um prazo de duração de um ano renovável por iguais períodos de doze meses – cfr. documento n.º 8 junto pela Requerente;
  5. A cláusula 4.ª do referido contrato previa que “…os empréstimos ao abrigo da cláusula primeira não podem, cada um deles, ultrapassar o período máximo de 1 (um) ano, contado da data em que os montantes foram disponibilizados nos termos da cláusula segunda, número um”– cfr. documento n.º 8 junto pela Requerente;
  6. Em 14 de fevereiro de 2011, ocorreu um aditamento ao contrato de apoio à tesouraria que manteve a redação da cláusula 4.ª e que alterou a vigência do contato para um período global de 10 anos;
  7. Em 2 de janeiro de 2013, ocorreu um segundo aditamento ao contrato de apoio à tesouraria que também não alterou a referida cláusula 4.ª;
  8. Em 4 de janeiro de 2016, ocorreu um terceiro aditamento ao contrato de apoio à tesouraria que também não alterou a referida cláusula 4.ª;
  9. No âmbito do contrato de apoio à tesouraria a Requerente concedeu empréstimos à B..., sua participante, em 2017 e 2018;
  10. A Requerente entendeu que as operações de crédito de curto prazo efetuadas ao abrigo do mencionado contrato beneficiavam da isenção de Imposto do Selo prevista na alínea g), do n.º 1, do artigo 7.º do CIS, pelo que não procedeu à liquidação daquele imposto no âmbito das referidas operações;
  11. A Requerente foi sujeita a um procedimento inspetivo externo relativo ao período de tributação de 2018;
  12. No seguimento do referido procedimento inspetivo, a Requerente foi notificada do Projeto de RIT, no qual a AT apresentou as suas conclusões preliminares, tendo proposto uma correção em sede de Imposto do Selo, no montante de € 1.427.845,90, acrescida de juros compensatórios – cfr. documento n.º 1 junto pela Requerente;
  13. No ponto V.2.1. do RIT intitulado “Factos verificados” afirma-se o seguinte:

Para efeitos deste imposto, verificou-se no decorrer da inspeção que a A... efetuou empréstimos à B... SGPS SA e que esses mesmos empréstimos não foram alvo de liquidação de imposto do selo.

Estes empréstimos estão contabilizados na conta 26611 – “FINANC CONCED-EMPR MÃE SUPRIM CORR” e durante o período de março a dezembro de 2018, teve as seguintes movimentações (valores em euros):

 

  • Na correção proposta no Projeto de RIT, a AT alegou que era devido Imposto do Selo nos financiamentos existentes entre a Requerente e a B..., argumentando o seguinte:

dado que os empréstimos efetuados à B... SGPS, SA foram todos relevados na mesma conta, que se junta anexo 3 (extrato retirado do SAFT disponibilizado pelo sujeito passivo) a qual regista ao longo dos períodos um movimento constante a débito e/ou a crédito, situação que confere as características intrínsecas de empréstimos em conta corrente, cujo prazo não é determinado nem determinável, encontrando-se os mesmos sujeitos a tributação (…)”– cfr. documento n.º 1 junto pela Requerente;

  • A Requerente exerceu o seu direito de audição prévia, nos termos do artigo 60.º da Lei Geral Tributária (“LGT”) e do artigo 60.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária – cfr. documento n.º 2 junto pela Requerente;
  • A Requerente disponibilizou à AT os comprovativos bancários dos reembolsos efetuados, no valor de € 406.163.000,00, em 25 de outubro de 2018, e de € 210.622.427,99, em dezembro do mesmo ano, mediante os quais procurou provar que nenhum dos financiamentos concedidos tinha um prazo de reembolso superior a um ano;
  • A Requerente disponibilizou elementos sobre todos os empréstimos e reembolsos efetuados ao abrigo do contrato mencionado em d), os quais individualizavam os montantes concedidos à B... e a data em que os mesmos foram disponibilizados, bem como a data em que os empréstimos foram reembolsados – cfr. documento n.º 9 junto pela Requerente;
  • A Requerente evidenciou os registos contabilísticos efetuados na conta #26611 – “FINANC CONCED-EMPR MÃE SUPRIM CORR”, correspondentes ao reembolso de financiamentos concedidos durante o período de 2017, à concessão de novos financiamentos no decurso do período de 2018 e ao reembolso de uma parte destes últimos;
  • A 1 de agosto de 2018, o saldo inicial da conta #26611 – “FINANC CONCED-EMPR MÃE SUPRIM CORR” – conta onde a Requerente regista os financiamentos (créditos concedidos via empréstimos de curto prazo) ao abrigo do contrato de apoio à tesouraria – apresentava um montante em dívida de € 406.163.000,00 – cfr. documento n.º 10 junto pela Requerente;
  • Esse saldo inicial dizia respeito a financiamentos que tinham sido concedidos pela Requerente à B... conforme se detalha na tabela infra:

 

– cfr. documentos n.ºs 11 a 18 juntos pela Requerente;

  1. A 25 de outubro de 2018, a empresa B... procedeu ao reembolso à Requerente do montante de € 406.163.000,00, o qual corresponde ao somatório dos financiamentos que lhe foram concedidos durante o período de tributação de 2017 – cfr. documento n.º 20 junto pela Requerente;
  2. A 25 de outubro de 2018, a Requerente concedeu um novo financiamento à B..., o qual ascendeu ao montante de € 406.376.982,74 – cfr. documento n.º 19 junto pela Requerente;
  3. A 12 e 13 de dezembro de 2018, foram efetuados reembolsos no montante total de € 210.662.427,99, com referência ao financiamento concedido no próprio exercício, referido em v), conforme tabela infra:

 

 

– cfr. documentos n.ºs 21 e 22 juntos pela Requerente;

  1. A Requerente disponibilizou à AT um extrato da conta #26611 - “FINANC CONCED‑EMPR MÃE SUPRIM CORR”, no qual se apura que não existia, no dia 3 de novembro de 2017 (data da concessão do primeiro financiamento aqui em análise), qualquer montante em dívida à A... por financiamentos anteriormente concedidos, tendo os mesmos sido integralmente reembolsados em momento prévio;
  2. Existindo um saldo nulo da referida conta em 3 de novembro de 2017, e tendo os diversos créditos concedidos entre esta data e 5 de abril de 2018 sido liquidados ou reembolsados em 25 de outubro de 2018, todos esses créditos (concedidos entre 3 de novembro de 2017 e 5 de abril de 2018, no valor total de € 406.163.000,00, foram disponibilizados ou atribuídos por um prazo inferior a um ano (365 dias);
  3. Os elementos referidos nas alíneas s) a y), foram disponibilizados à AT no âmbito do procedimento de inspeção tributária, com o objetivo de demonstrar o preenchimento dos requisitos da isenção de Imposto do Selo (nomeadamente o reembolso dos financiamentos concedidos dentro do prazo de um ano);
  4. A Requerente foi notificada do RIT final, que manteve as correções anteriormente propostas no Projeto de RIT – cfr. documento n.º 3 junto pela Requerente;
  5. A versão do final do RIT, após direito de audição, conclui da seguinte forma:

Assim se conclui que o crédito concedido foi utilizado sob a forma de conta corrente, caindo assim, estas operações no âmbito da incidência do imposto do selo, não podendo estas aproveitar da isenção prevista na alínea g) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS. Convém neste ponto esclarecer que a isenção em sede de Imposto do Selo, de acordo com o definido na alínea g) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS, define que estão isentas deste imposto as operações financeiras, incluindo os respetivos juros, desde que cumpridos os três requisitos exigidos nesta norma:

 - Crédito concedido por prazo não superior a um ano;

- Crédito destinado exclusivamente à cobertura de carências de tesouraria;

- Crédito concedido pelas sociedades participadas em benefício de outras sociedades com ela estejam em relação de domínio ou de grupo;

Torna-se necessário verificar o preenchimento dos pressupostos de isenção, aplicáveis ao caso em concreto e presentes na norma anteriormente transcrita.

Da análise aos documentos no âmbito do presente procedimento, concluímos que não cumprindo os segundo e terceiro requisitos, as operações financeiras funcionam na sua substância em conta-corrente. Por estes motivos, bem como os já indicados nos pontos anteriores quanto aos outros capítulos, entendemos que não assiste ao Exponente razão para a anulação das correções solicitadas.”;

  1. A Requerida apurou o Imposto do Selo da seguinte forma, relativamente à base tributável mensal:

 

 

  1. A Requerente foi notificada da liquidação de Imposto do Selo n.º 2022..., no valor de € 1.427.845,90, e das liquidações de juros compensatórios n.ºs 2022..., 2022 ..., 2022..., 2022..., 2022..., 2022..., 2022... e 2022..., no valor conjunto de € 238.598,77, todas referentes ao ano de 2018, cujo valor total ascende a € 1.666.444,67 – cfr. documento n.º 4 junto pela Requerente;
  2. A Requerente procedeu ao pagamento voluntário do referido montante dentro do prazo legalmente previsto – cfr. documento n.º 23 junto pela Requerente;
  3. Em 17 de Abril de 2023, a Requerente apresentou o pedido de constituição de Tribunal Arbitral que deu origem ao presente processo.

 

IV.2. Factos não provados

 

Com relevo para a decisão da causa inexistem factos que se tenham dado como não provados.

 

IV.3. Fundamentação da matéria de facto

 

O Tribunal Arbitral não tem o dever de se pronunciar quanto a toda a factualidade elencada pelas partes, competindo-lhe sim selecionar os factos que interessam à decisão do processo tendo em conta as várias soluções plausíveis das questões em dissídio, conforme resulta do artigo 123.º, n.º 2 do CPPT e dos artigos 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (“CPC”).

Os factos foram julgados provados e não provados com base (i) nos documentos juntos pela Requerente, que não foram objecto de impugnação pela Requerida, inexistindo indícios que coloquem em crise a sua genuinidade, (ii) com base no processo administrativo junto pela Requerida e (iii) com base no depoimento das testemunhas feito em audiência realizada no CAAD em 14 de novembro de 2023, cujas declarações se revelaram objetivas, isentas e assertivas, contribuindo para confirmar e complementar a prova que já constava dos autos.

O Tribunal Arbitral valorou a prova produzida de acordo com o princípio da livre apreciação dos factos e tendo presente a ausência da sua contestação especificada pelas partes, conforme decorre do artigo 16.º, alínea e), do RJAT, e do artigo 607.º, n.ºs 4 e 5, do CPC.

 

IV.4. Análise

 

IV.4.1. Ordem de conhecimento dos vícios

 

No pedido arbitral a Requerente sustentou a ilegalidade dos atos de liquidação de Imposto do Selo e juros compensatórios invocando para o efeito um vício (formal) de ilegitimidade procedimental por incumprimento pelos SIT do princípio do inquisitório e, bem assim, um vício (material ou substantivo) de violação de lei resultante da não aplicação da isenção de Imposto do Selo prevista na alínea g), do n.º 1, do artigo 7.º do CIS.

Como ambos os vícios conduzem à anulabilidade dos atos de liquidação, como a Requerente não estabeleceu um relação expressa de subsidiariedade entre eles e como os vícios formais ou procedimentais não obstam à renovação dos atos contestados, o Tribunal Arbitral apreciará em primeiro lugar o vício substantivo, em conformidade com o artigo 124.º do CPPT, por ser este que assegura uma mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos.

 

IV.4.2. Isenção de Imposto do Selo prevista na alínea g), do n.º 1, do artigo 7.º do CIS

 

  1. Fundamentos do ato de liquidação e objeto do pedido

 

Quanto a este ponto cumpre essencialmente apreciar se era ou não aplicável às operações de financiamento realizadas pela Requerente a favor da B... SGPS, SA a isenção prevista na alínea g), do n.º 1, do artigo 7.º do CIS ou se, pelo contrário, as referidas operações estavam efetivamente sujeitas a tributação em sede de Imposto do Selo por aplicação da verba 17.1.4 da TGIS.

À data dos factos, as normas jurídicas acabadas de enunciar tinham a seguinte redação:

Código do Imposto do Selo

Artigo 7.º
Outras isenções

1 - São também isentos do imposto:

(…)

 g) As operações financeiras, incluindo os respetivos juros, por prazo não superior a um ano, desde que exclusivamente destinadas à cobertura de carência de tesouraria e efetuadas por sociedades de capital de risco (SCR) a favor de sociedades em que detenham participações, bem como as efetuadas por outras sociedades a favor de sociedades por elas dominadas ou a sociedades em que detenham uma participação de, pelo menos, 10 % do capital com direito de voto ou cujo valor de aquisição não seja inferior a (euro) 5 000 000, de acordo com o último balanço acordado e, bem assim, efetuadas em benefício de sociedade com a qual se encontre em relação de domínio ou de grupo.

Tabela Geral do Imposto do Selo

17.1.4

 

Crédito utilizado sob a forma de conta corrente, descoberto bancário ou qualquer outra forma em que o prazo de utilização não seja determinado ou determinável, sobre a média mensal obtida através da soma dos saldos em dívida apurados diariamente, durante o mês, divididos por 30 : 0,04%

            De acordo com o entendimento do Tribunal Central Administrativo (“TCA”) Sul no acórdão de 16.03.2023, proferido no processo n.º 1366/11.2BESNT, resulta da conjugação das referidas normas que a aplicação da isenção pressupõe que a operação de crédito praticada (i) tenha como destino exclusivo a cobertura de carências de tesouraria do seu beneficiário, (ii) que exista uma relação de domínio ou grupo ou a detenção de uma participação qualificada por um dos intervenientes na operação de crédito e (iii) a demonstração pelo contribuinte de que o crédito foi reembolsado antes de decorrido um ano sobre a data da respetiva concessão.

No Projeto de RIT a AT considerou que não era aplicável a isenção de Imposto do Selo aos créditos concedidos pela Requerente à B... SGPS SA, tal qual resulta da alínea n) da matéria de facto provada, por não se verificar o último dos referidos requisitos, ou seja, porque os empréstimos tinham características de conta corrente não sendo determinado nem determinável o prazo de utilização do crédito.

Já no RIT definitivo, conforme consta da alínea bb) da matéria de facto provada, consideraram os SIT, ainda que de forma singela e sem qualquer fundamentação de suporte, que não se encontravam cumpridos os dois primeiros pressupostos acima referidos, isto é, que os créditos não se destinariam à cobertura de carências de tesouraria e que não estaria verifica a relação societária de grupo ou domínio entre a sociedade credora e devedora exigida pela norma de isenção.

            Ora, se as razões da AT para negar a isenção aqui em apreço fossem apenas as duas que surgem na versão definitiva do RIT (carências de tesouraria não demonstradas e tipo de relação societária) a correçãoefetuada padeceria de notória falta ou insuficiente fundamentação. Acresce que tal conclusão se revelaria contraditória face ao teor do próprio RIT.

Em primeiro lugar, porque ao longo do RIT dá-se como assente que os créditos se destinaram à cobertura de carências de tesouraria, em consonância com o contrato mencionado na alínea d) da matéria de facto provada.

Não obstante, a AT veio alegar na resposta ao pedido arbitral que este pressuposto não estaria verificado, retirando essa conclusão unicamente pelo facto de o empréstimo ser concedido em conta corrente, o que seria incompatível com o fim de apoio à tesouraria. Ora, sempre se dirá que tal alegação carece de fundamento, porquanto a conta corrente é precisamente um dos principais meios utilizados pelas empresas no âmbito do apoio à tesouraria, frequentemente objeto de uma gestão centralizada (“cash pooling”)

Com efeito, mesmo que o empréstimo opere em regime de conta corrente, certo é que o mesmo se destina genericamente ao apoio da tesouraria da B... SGPS, SA enquanto sociedade financiada, podendo, assim, visar a cobertura de carências de tesouraria, através da cedência de excedentes de tesouraria pelos membros do grupo que delas disponham, proporcionando os meios financeiros necessários ao pagamento de um empréstimo, ou outras finalidades.

De resto, resulta da jurisprudência dos tribunais superiores a este respeito, designadamente dos acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo (“STA”) de 08.11.2023 e de 04.05.2022, proferidos respetivamente nos processos n.ºs 0684/19.6BEPRT e 02822/18.7BEPRT, bem como no já citado processo do TCA Sul, que os empréstimos concedidos em regime de conta corrente são suscetíveis de aplicação da isenção prevista na alínea g), do n.º 1, do artigo 7.º do CIS.

Em todo o caso, ainda que se conceda que a Requerente não demonstrou a afetação exclusiva dos meios financeiros a carências de tesouraria e que lhe caberia fazê-lo, a verdade é que os SIT não lhe solicitaram essa prova, não tendo sido a falta da sua exibição o fundamento da emissão dos atos de liquidação.

            Em segundo lugar, a correçãoefetuada no RIT padeceria de notória falta ou insuficiente fundamentação e seria contraditória face ao seu próprio teor porque vem referido nos autos e na própria contabilidade da Requerente a que os SIT tiveram acesso que a entidade beneficiária dos empréstimos é a sua casa‑mãe, ainda que o RIT não precise o tipo e o grau de participação no capital que justificam essa relação, o que em bom rigor devia ter feito. Ainda assim, no RIT não é posta em causa a existência da relação de domínio entre a Requerente e a B... SGPS, SA – expressa na alínea c) da matéria de facto provada –, não sendo de resto a alegada inexistência dessa relação de domínio que justificou a liquidação impugnada.

Sem prejuízo, pode admitir-se que no RIT final, ao referir-se que “Por estes motivos, bem como os já indicados nos pontos anteriores quanto aos outros capítulos, entendemos que não assiste ao Exponente razão para a anulação das correções solicitadas”,a AT efetuou uma remissão para a verificação do pressuposto relativo ao prazo de utilização do crédito financiado anteriormente referido. E, esta sim, é a real fundamentação que consta do RIT para negar a aplicação da isenção às operações financeiras praticadas pela Requerente, sendo esta a questão que compete ao Tribunal Arbitral decidir, não relevando para o efeito a fundamentação a posteriori que tenha sido desenvolvida pela Requerida na sua resposta e que terá de ser desconsiderada sob pena de alteração da fundamentação inicial do ato impugnado que originaria uma decisão surpresa por transcender o objeto do processo.

Aqui chegados, cumpre então apreciar se o pressuposto para a aplicação da isenção relacionado com o prazo de utilização e reembolso do crédito foi cumprido no presente caso.

 

  1. Prazo de utilização do crédito financiado pela Requerente

 

Como ponto de partida é de referir que a verba 17.1. da TGIS configura como operações financeiras a utilização do crédito sob a forma de fundos, mercadorias ou outros valores, em virtude da concessão de crédito a qualquer título, incluindo a cessão de créditos, o “factoring” e as operações de tesouraria quando envolvam qualquer tipo de financiamento ao cessionário, aderente ou devedor, considerando-se sempre como nova operação de crédito a prorrogação do prazo do contrato.

O facto tributário em sede do Imposto do Selo sobre as operações financeiras não é, assim, ao contrário do que acontecia na anterior Tabela Geral, o título jurídico da concessão de crédito, ou seja, o contrato, que atualmente não desencadeia diretamente a incidência do Imposto do Selo, mas a utilização do crédito, a saber, a transferência da propriedade das importâncias mutuadas ou creditadas da esfera do mutuante ou creditante para a esfera do mutuário ou creditado.

Da mesma forma que o título jurídico da concessão de crédito não é objeto de qualquer incidência em sede de Imposto do Selo, o facto tributário “operação financeira” a que se reporta o artigo 7.º, n.º 1, alínea g) do CIS, posto que apenas para o isentar, não é, assim, o contrato formal de abertura de crédito, mas sim a utilização do crédito resultante do contrato de abertura de crédito.

As operações financeiras serão, então, as concretas utilizações do crédito ao abrigo do mútuo ou da abertura de crédito, entendida esta como uma promessa de crédito que se transforma em mútuo com a utilização do crédito.

É facto que, por o mútuo ser um contrato real, ou seja, a produção dos seus efeitos jurídicos coincidir com a produção dos efeitos económicos, a utilização do crédito resulta da própria celebração do contrato, nos termos da interpretação conjugada dos artigos 1142.º e 1144.º do Código Civil.

Não acontece assim na abertura de créditoque é um contrato, além de consensual, atípico, sem prejuízo da elaboração desse conceito pela doutrina e jurisprudência.

Essa nova filosofia do CIS e da TGIS vem abundantemente desenvolvida não apenas no relatório da Comissão para o Desenvolvimento da Reforma Fiscal, o relatório Silva Lopes, como em quase toda a, aliás pouco abundante, literatura jurídica que suscitou a publicação dos novos CIS e TGIS, aprovados pelo artigo 1.º da Lei n.º 150/99, de 11 de setembro.

O momento determinante da incidência do Imposto do Selo é, assim, a transferência dos montantes mutuados ou creditados da esfera do mutuante ou creditante para a esfera do mutuário ou creditado que, no caso da abertura de crédito, que é um contrato meramente obrigacional e não real, apenas ocorre com o exercício do direito potestativo do creditado à utilização do crédito – cf. estudo de Brás Teixeira, in Boletim da Direção-geral dos Impostos”, n.º 125, maio de 1969, págs. 117 a 123.

Na simples abertura de crédito, em que o crédito concedido apenas pode ser utilizado por uma só vez, não podendo, assim, ser reutilizado, o momento determinante apara efeitos de incidência a Imposto do Selo é o prazo a partir do qual o creditado pode utilizar o crédito. Dado que na simples abertura de crédito o creditado apenas pode utilizar o crédito por uma única vez, posto que mediante sucessivos levantamentos parciais, pode afirmar-se que o prazo de utilização do crédito coincide com o prazo da simples abertura de crédito, sendo em função desse prazo que dever ser determinada a taxa de Imposto do Selo a aplicar. Com a Lei n.º 150/99, e posterior reforma do património (D.L. n.º 287/2003, de 12 de novembro), o tributo em análise mudou a sua natureza essencial de imposto sobre os documentos, passando a afirmar-se como um verdadeiro imposto incidente sobre operações que, independentemente da forma da sua materialização, revelem rendimento ou riqueza – cf. Preâmbulo do D.L. n.º 287/2003, José Maria Fernandes Pires, Lições de Impostos sobre o Património e do Selo, Almedina, 2011, pág. 359.

Com efeito, a partir do momento em que se toma em consideração a substância dos negócios, secundarizando-se a realidade formal, a justificação ou a “causa” da tributação reassumem uma dimensão fundamental, pois que a tributação de uma realidade económica substantivamente delimitada implica uma prévia justificação dessa pretensão e que deve necessariamente exceder o simples escopo redíticio.

No caso das aberturas de crédito em conta corrente e, bem assim, nos descobertos, o prazo de utilização do crédito assiste ao creditado o direito de reutilização do crédito, repristinando o direito de saque sobre o crédito concedido, mediante as entregas que entenda efetuar durante o contrato. Pode a qualquer momento pôr termo à utilização do crédito, sem que o facto, no entanto, extinga o contrato. Do fim de cada utilização do crédito, quando ocorra durante a vigência do contrato resulta apenas a reconstituição do direito do creditado a nova utilização do crédito, com respeito do limite inicialmente acordado.

Na abertura de crédito em conta corrente,tal, aliás, como no descoberto, inexiste, assim, qualquer prefixação da duração de cada utilização do crédito individualmente considerada. Essa é a razão de ser da inaplicabilidade à abertura de crédito em conta corrente ou figuras afins como os descobertos e acordos “stand by”, em que os beneficiários do crédito têm a faculdade de sacar até determinado tecto, na data que lhes convenha e durante um período fixado com antecedência, do regime geral de tributação do crédito previsto na verba 17.1. da TGIS, prevalecendo o regime especial da verba 17.1.4. da mesma Tabela, que abrange genericamenteo crédito renovável ou rotativo(“revolvingcredit”).

Reconheceria, na verdade, o legislador da TGIS a não determinação, ou, pelo menos, a indeterminabilidade antecipada do prazo de cada uma das utilizações do crédito resultante dos contratos de abertura de crédito em conta corrente, descoberto bancário ou instrumentos negociais de idêntica natureza. Esse prazo, por força da própria natureza das operações em causa, é, na verdade, insuscetível de predeterminação entre as partes, independentemente de estas pertencerem, ou não, ao mesmo grupo económico, já que a duração de cada utilização da vontade do beneficiário da operação, o creditado, titular do direito potestativo de levantamento das importâncias disponibilizadas pelo creditante não é passível de controlo por este, pelo que é insuscetível de aplicação a esse tipo de operações financeiras o critério geral de tributação em função do prazo previsto na verba 17.1. da TGIS.

A verba 17.1.4. da TGIS, na verdade, determina que, em caso de crédito utilizado sob a forma de conta corrente, descoberto bancário ou qualquer forma em que o prazo de utilização do crédito não seja determinado ou determinável, o Imposto do Selo recai à taxa de 0,04 por cento sobre a soma dos saldos em dívida apurados diariamente, durante o mês, divididos por 30. O legislador entenderia, assim, para as aberturas de crédito em conta corrente, descobertos e formas equivalentes da utilização do crédito, prescindir da tributação em função do prazo do contrato. Por uma questão de simplicidade ou eficácia, em lugar da tributação em função do prazo, optaria por um tipo de tributação dirigido a atingir uma realidade diferente, a média dos saldos devedores apurados durante o mês dividida por 30, independentemente do prazo de duração de cada efectiva utilização do crédito.

É claro, assim, que, no caso das aberturas de crédito em conta corrente, releva para efeitos da determinação do prazo máximo de um ano das operações financeiras abrangidas pela isenção do artigo 7.º, n.º 1, alínea g) da TGIS, não o prazo do contrato de abertura de crédito em conta corrente, que abrange todo o período em que o creditante mantenha o crédito à disposição do creditado, independentemente de o crédito ser utilizado ou não, mas a duração das efetivas utilizações do crédito efetuadas ao abrigo de tal contrato, que o devedor está obrigado a reembolsar, obrigação a que acrescem o pagamento de juros sobre essa parte utilizada, bem como das comissões devidas pela abertura de crédito ou eventualmente relacionadas com a operação.

Olhando então ao caso que nos ocupa, resulta do teor do RIT, reafirmado na resposta da AT ao pedido arbitral, que o fundamento dos atos de liquidação contestados radica no facto de os empréstimos de curto prazo (inferiores a um ano) para cobertura de carências de tesouraria efetuados pela Requerente não terem sido contabilizados individualmente por datas de vencimento, por forma a obter os montantes vencidos em cada período de tributação, o que tornaria possível verificar não só a duração dos mesmos, mas as datas dos reembolsos das importâncias emprestadas. No caso em apreço a situação acima identificada não teria ocorrido, dado que os empréstimos efetuados à B... SGPS, SA foram todos relevados na mesma conta, a 26611, a qual regista ao longo dos períodos um movimento constante a débito e/ou a crédito, através das sucessivas utilizações e reembolsos do crédito concedido, situação que conferia as características intrínsecas de empréstimos em conta corrente, cujo prazo não seria determinado nem determinável, sendo, assim, insuscetível da aplicação a isenção da alínea g), do n.º 1 do artigo 7.º do CIS.

O entendimento da Requerida está ferido, no entender deste Tribunal Arbitral, de erro sobre os pressupostos de facto e de direito. Vejamos.

A AT não põe em causa o contrato realizado, nem os movimentos financeiros que dele resultam, mas apenas a determinabilidade da utilização do crédito.

No entanto, olvida que, à luz da jurisprudência superior citada que o prazo de utilização do crédito é necessariamente determinado, se não antes, pelo menos aquando do seu efetivo reembolso. Para se aferir da lógica seguida pela AT, atente-se no seguinte quadro-chave constante do RIT:

 

A partir dele, conclui-se no RIT que os empréstimos ou créditos efetuados à B... SGPS, SA por parte da Requerente foram todos relevados na mesma conta, a 26611 – “FINANC CONCED-EMPR MÃE SUPRIM CORR”,a qual regista vários movimentos a débito e a crédito, situação que, para a AT, lhe confere as características intrínsecas de empréstimos em conta corrente, cujo prazo não seria, por isso, determinado nem determinável.

Tal conclusão não é legítima, por não atender aos meios de prova disponibilizados pela Requerente, que, caso fossem tidos em conta, permitiriam à AT, sem especial dificuldade, fixar as datas do início de cada utilização do crédito e respetivo reembolso e, assim, reconstituir a sua duração.

Na verdade, como a Requerente demonstra, e o Tribunal Arbitral deu como provado, os movimentos financeiros de concessão de crédito pela Requerente que ocorreram entre novembro de 2017 e outubro de 2018, são os seguintes:

 

Uma vez que no RIT se apresenta como primeiro movimento o saldo de março de 2018, de € 406.118.000,00, não se explicita nesse mesmo RIT quando tal saldo se constituiu e que prazo teriam os créditos da Requerente que formavam este saldo. Ora, o quadro que a Requerente apresenta, em conjugação com o facto de em 3 de novembro de 2017 existir na conta corrente um saldo nulo, evidencia claramente que o primeiro empréstimo ou crédito para apoio à tesouraria da B... (dos que o RIT analisa) tem data de 3 de novembro de 2017.

Assim, uma vez que o reembolso de todos os créditos concedidos pela Requerente entre 3 de novembro de 2017 e 5 de abril de 2018 se dá em 25 de outubro de 2018 – cf. alínea u) da matéria de facto provada –, é óbvio que nenhum dos créditos concedidos à B... tem prazo superior a um ano e, em face das datas dos documentos probatórios de suporte, o prazo de cada um é perfeitamente determinável: é o prazo que medeia entre o dia da concessão e e 25 de outubro de 2018, expresso no quadro acima e nos documentos de prova juntos aos autos.

Reafirma-se que o prazo efetivo de utilização do crédito não pode, dadas as particulares caraterísticas da abertura de crédito em conta corrente, ser estabelecido “ex ante”, já que cada utilização do crédito não está sujeita a prazo predeterminado, podendo, por mera hipótese, ser reembolsada no dia imediato, sem que o facto ponha termo ao contrato, mas apenas “ex post”.

Ao contrário do que a Requerida sustenta, para se utilizar a isenção da alínea g), do n.º 1, do artigo 7.º do CIS, não é necessário, na própria abertura de crédito em conta corrente, que as partes convencionem por escrito a duração de cada utilização do crédito, exigência a que não responderia a cláusula 4.ª do contrato de apoio à tesouraria, que se limita a estabelecer o prazo de reembolso de um ano a partir de cada utilização, sendo omisso sobre a data em que esta deva ocorrer.

Significa isto que em caso de abertura de conta corrente, a AT poderá negar a aplicação da isenção do artigo 7.º, n.º 1, alínea g) do CIS relativamente às utilizações de crédito que demonstre serem de duração posterior a um ano, ou seja, em que o crédito utilizado não tenha sido reembolsado durante todo esse prazo. Inexiste qualquer obstáculo inultrapassável ao apuramento nesses termos do prazo de cada concreta utilização do crédito, sendo suficiente um mero exame da contabilidade do sujeito passivo do Imposto do Selo.

Não pode é concluir-se dogmaticamente a partir da opção das partes submeterem o financiamento em causa ao regime de abertura de conta corrente e de esse contrato, de execução necessariamente duradoura, ter prazo superior a um ano, que as utilizações do crédito abrangidas individualmente consideradas não estão abrangidas na isenção do artigo 7.º, n.º 1, alínea g) do CIS.

Estes vícios de análise inquinam a fundamentação da AT, que encontra um prazo não determinado nem determinável numa situação na qual todos os empréstimos têm um prazo determinável e inferior a um ano.

Ilustrando a situação dos autos com um exemplo simples, caso entre duas empresas, A e B, integrantes de um grupo, exista uma relação creditícia em conta corrente (sendo A credora) para apoio à tesouraria de B, então se num certo ano os movimentos na conta corrente são:

Janeiro: saldo 0

Março: A empresta 100

Junho: A empresta 200

Agosto: A empresa 50

Outubro: B reembolsa 350

Só se poderia então concluir que nenhum dos três empréstimos vigorou por mais de um ano.

Assim, a isenção da alínea g) do n.º 1, do artigo 7.º do CIS não abrangeria, por natureza, a abertura de crédito em conta corrente, em que o prazo do contrato, além de indeterminado, seria indeterminável.

Tal entendimento contraria de resto, além da doutrina mencionada,o entendimento que tem sido defendido na jurisprudência dos tribunais superiores já anteriormente referida. Veja‑se, a título exemplificativo, o mais recente acórdão do STA de 08.11.2023, proferido no processo n.º 0684719.6BEPRT, onde a propósito de uma situação de facto essencialmente idêntica à discutida no presente processo arbitral, se referiu o seguinte:

“Ao contrário do sustentado pela Fazenda Pública (…) importa ter presente que o art. 7º nº 1 als. g) e h) do Código do Imposto do Selo estabelece uma isenção deste imposto aplicável às operações financeiras por prazo não superior a um ano (incluindo juros), desde que tais operações sejam exclusivamente destinadas à cobertura de carências de tesouraria e praticadas por entidades que preencham requisitos relativos ao tipo jurídico de sociedade, ou à percentagem e prazo de detenção de participações sociais. O mencionado Código não se refere, no entanto, às formas que tais operações possam assumir, cabendo ao intérprete a subsunção casuística das operações financeiras que se pretendam realizar às normas em questão.

Assim, afigura-se correcta uma proposição segundo a qual, uma operação financeira, praticada por uma entidade que preencha os requisitos legais relativos ao tipo legal de sociedade e ao nível/manutenção da participação, cuja finalidade exclusiva se prenda com a cobertura de carências de tesouraria poderá beneficiar da referida isenção, na medida em que, na prática, o seu prazo de execução não exceda um ano.”.

Voltando ao caso, acrescente-se que no quadro do RIT se consideram movimentos após 25 de outubro de 2018. Porém, em lado algum a Requerida apresenta prova de que em 2019, ou anos seguintes, a verba em saldo que constava em dezembro de 2018 estivesse ainda por liquidar. O contrato celebrado pela Requerente não sustentaria a liquidação após um ano, e nenhuma factualidade relevante sobre tal situação é aportada pela AT – a qual, todavia, integrou esse saldo na base tributável do Imposto do Selo em 2018 e por isso na correção fiscal efetuada, conforme resulta da alínea cc) da matéria de facto provada.

Assim, os valores dos saldos que permaneciam em dívida na referida conta em Novembro e Dezembro nunca poderiam originar base tributável, e respetiva tributação, em sede de Imposto do Selo, pois ainda não se encontrava verificado o prazo de um ano para o respetivo reembolso, nem a AT provou que o respetivo reembolso se tenha efetivamente verificado em prazo superior a um ano. Esta forma de quantificação do facto tributário usada pela AT é incorreta, o que também inquina a correção efetuada.

Pelo exposto, julga-se procedente a ilegalidade imputada pela Requerente ao ato de liquidação de Imposto do Selo e respetivos juros indemnizatórios, já que se encontravam efetivamente previstos todos os pressupostos de que dependia a aplicação da isenção prevista no artigo 7.º, n.º 1, alínea g) do CIS.

Na medida da procedência deste vício, fica prejudicada, porque inútil, a apreciação dos demais vícios imputados pela Requerente aos atos impugnados, em conformidade com o disposto nos artigos 130.º e 608.º, n.º 2, do CPC.

 

IV.4.3. Juros indemnizatórios

 

No pedido arbitral requereu ainda a Requerente a condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios.

            A este respeito, determina-se no artigo 43.º, n.º 1, da LGT que “[s]ão devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.

No presente processo julgou-se procedente a ilegalidade imputada pela Requerente aos atos de liquidação contestados, ilegalidade essa que é exclusivamente imputável aos serviços da AT, que dispunham de todos os elementos necessários à correta interpretação dos factos e consequente subsunção ao direito, pelo que se considera serem devidos juros indemnizatórios, contados desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito, conforme previsto no n.º 5 do artigo 61.º do CPPT.

 

V. DECISÃO

 

Termos em que se decide:

  1. Julgar procedente a ilegalidade invocada pela Requerente e determinar a consequente anulação do ato de liquidação do Imposto do Selo e respetivos atos de liquidação de juros compensatórios objeto de impugnação pela Requerente;
  2. Condenar a Requerida no pagamento de juros indemnizatórios.

 

VI. VALOR DO PROCESSO

 

Atendendo ao disposto no artigo 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 1.666.444,67.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 27de dezembro de 2023

 

 

Os árbitros,

 

 

Carla Castelo Trindade

 

 

António Martins

 

 

 

António Lima Guerreiro