Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 287/2023-T
Data da decisão: 2023-11-30  IRS  
Valor do pedido: € 30.870,36
Tema: IRS – Mais valias por alienação de participações sociais; Momento da aquisição – 43.º, n.º 6, a), do CIRS –
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SUMÁRIO:

 

I – O artigo 43.º, n.º 6, al. a), do CIRS, não estabelece um regime de tributação diverso para os casos em que o aumento de capital opere, por um lado, por incorporação de reservas ou, por outro lado, por novas entradas em dinheiro, sem a emissão de novas quotas/ações, mas apenas com o aumento do valor nominal das já existentes. 

II – Assim, se os sócios/acionistas adquirirem novas quotas/ações emitidas pela empresa/sociedade (ao invés de reforçarem o valor nominal das quotas/ações pré-existentes), em virtude de um aumento de capital, mediante entradas em dinheiro, é afastada a aplicabilidade da norma ínsita na al. a), do n.º 6, do artigo 43.º, do CIRS.

 

DECISÃO ARBITRAL

A árbitra, Susana Cristina Nascimento das Mercês de Carvalho, designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar o presente Tribunal Arbitral Singular, constituído a 30.06.2023, decide o seguinte:

  1. RELATÓRIO
  1. A..., com o número de identificação fiscal ... e, B..., com o número de identificação fiscal..., casados entre si, ambos residentes em Rua ..., ..., ...-... Carregosa (doravante “Requerentes”), vieram, ao abrigo do disposto no artigo 10.º, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (doravante “RJAT”), requerer a constituição do Tribunal Arbitral, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT” ou “Requerida”), com vista à pronúncia deste Tribunal relativamente à declaração de ilegalidade e consequente anulação do ato de liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (doravante “IRS”), e respetivo ato de liquidação de juros compensatórios, no valor total de €29.951,28 (vinte e nove mil novecentos e cinquenta e um euros e vinte e oito cêntimos), referentes ao ano de 2020, na parte referente à tributação autónoma das mais-valias.
  2. Os Requerentes pugnaram, ainda, pela condenação da AT a restituir a quantia indevidamente paga, acrescida de juros indemnizatórios, a contar de 13.01.2023 e, juntaram 4 (quatro) documentos.
  3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à Requerida em 20.04.2023.
  4. Os Requerentes não procederam à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no n.º 1, do artigo 6.º e da alínea a), do n.º 1, do artigo 11.º, do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou a signatária como árbitra do Tribunal Arbitral Singular, a qual comunicou a aceitação do cargo no prazo aplicável.
  5. Em 12.06.2023, as partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação de árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas b) e c), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º, do Código Deontológico do CAAD.
  6. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1, do artigo 11.º, do RJAT, o Tribunal Arbitral Singular foi constituído em 30.06.2023.
  7. No dia 21.09.2023, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua Resposta, na qual se defendeu por impugnação e juntou aos autos o processo administrativo.
  8. Em 25.09.2023, o Tribunal Arbitral proferiu despacho, no qual: (i) dispensou a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT; (ii) notificou as partes para, querendo, apresentarem alegações finais escritas, no prazo simultâneo de 15 (quinze) dias (iii) indicou o prazo limite para proferir a decisão final arbitral e; (iv) notificou os Requerentes para procederem ao pagamento da taxa arbitral subsequente.
  9. Em 17.10.2023, a Requerida apresentou as suas alegações finais escritas.
  10. Os Requerentes não apresentaram alegações finais escritas.
  11. No dia 18.10.2023, os Requerentes juntaram aos autos o comprovativo de pagamento da taxa de justiça subsequente.

I.1. POSIÇÃO DAS PARTES

  1. A fundamentar o seu pedido de pronúncia arbitral, os Requerentes alegaram, em síntese, com vista à declaração de ilegalidade e consequente anulação do ato de liquidação adicional de IRS aqui em crise, o seguinte:
  1. A quota de €90.000,00 (noventa mil euros), alienada em 2020, pelo Requerente marido, tem a sua origem na participação social que o mesmo detinha anteriormente a 01.01.1989.
  2. A data de aquisição dessa quota deve corresponder – por aplicação do disposto na al. a), do n.º 6, do artigo 43.º, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (doravante “CIRS”) – à data de aquisição dos valores mobiliários que lhe deram origem, ou seja, à data em que foram adquiridas as 3.730 ações representativas de 0,74% do capital da Sociedade C...: 06.10.1987. 
  3. O facto de, entre 1987 e 2020, a participação do Requerente marido ter aumentado de valor nominal, em resultado de incorporação de reservas ou por substituição daquelas ações por uma quota, não invalida que a quota transmitida em 2020 tenha a sua origem nas participações anteriores a 1989, e que, como tal, deva beneficiar do regime previsto no artigo 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de novembro.
  4. A quota alienada é só uma e a sua origem situa-se em participações existentes à data de 01.01.1989.
  5. O texto do citado artigo (43.º, n.º 6, al. a), do CIRS) não permite a interpretação da AT de que “o aumento de capital em dinheiro correspondia a uma nova aquisição”, constituindo um “património autónomo”, “não podendo aproveitar as datas de aquisição das partes de capital anteriormente detidas”. 
  6. Na jurisprudência não se distingue, como faz a AT, entre aumentos de capital por entradas em dinheiro ou por incorporação de reservas; e se a lei não distingue, não deve o intérprete distinguir, sobretudo quando estão em causa elementos essenciais dos impostos, como a incidência.
  7. A correta interpretação do disposto no artigo 43.º, n.º 6, al. a), do CIRS, aponta no sentido de que o legislador quis isentar de tributação a venda de participações sociais anteriores a 1989, mesmo quando tais participações hajam sido incrementadas através de aumentos de capital por incorporação de reservas ou entradas em dinheiro.
  8. Excluídas desta isenção ficam unicamente as participações que hajam sido adquiridas a terceiros posteriormente a 01.01.1989 ou, que resultem de participações adquiridas a terceiros depois dessa data. 
  9. A AT não pode ignorar que a quota alienada em 2020 é só uma e, que a sua origem se situa em participações preexistentes à data de 01.01.1989.
  10. O ato de liquidação impugnado violou o disposto no artigo 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de novembro e o artigo 43.º n.º 6, al. a), do CIRS; ilegalidade que deverá conduzir à respetiva anulação (artigo 99.º, do Código de Procedimento e de Processo Tributário – doravante “CPPT”).
  1. Por sua vez a AT contra-argumentou com base nos seguintes argumentos:
  1. As 2.510 ações (adquiridas pelo Requerente marido, pelo preço de 3.000 escudos cada uma), não integram a quota adquirida antes de 1989, porque em 1991, a C... assumia a forma jurídica de sociedade anónima, pelo que o seu capital era representado por ações, ou seja, unidades de participação de capital individualizadas, tendo ocorrido nesse ano, o aumento da quantidade de ações detidas pelo contribuinte por aquisição em dinheiro. 
  2. Ao contrário do entendimento dos Requerentes e da jurisprudência por eles apresentada, que não é aplicável ao caso sub judice, em 1991 foram adquiridas 2.510 novas ações, um património autónomo, pelo que atendendo à forma jurídica da sociedade (i.e., sociedade anónima), não se pode considerar que integraram as anteriormente detidas, não podendo, consequentemente, aproveitar as datas de aquisição das partes de capital anteriormente detidas, uma vez que não ocorreu um reforço do valor das referidas partes de capital.
  3. Apesar dos Requerente terem alienado, em 2020, uma quota da C..., em 1987 a  C... foi transformada em sociedade anónima, tendo a sua quota sido transformada em 3.730 ações e, posteriormente, foi a C..., em 13.09.2019, novamente, transformada em sociedade por quotas, tendo-lhe sido atribuída uma quota de €90.000,00, a qual foi alienada em 2020, quota esta que resulta da conjugação de uma quota adquirida antes de 1989 e de 2.510 ações adquiridas em 1991, pelo que estes dois momentos de aquisição devem ser considerados como datas diferentes de aquisição da quota alienada em 2020.
  4. Tendo ocorrido aquisição de participações sociais em 3 momentos, as quais, em 2019, foram convertidas numa quota única, por transformação da sociedade emitente, por aplicação do normativo citado, a quota alienada em 2020 mantem as datas de aquisição dos valores mobiliários que lhe deram origem. Ou seja, as datas de aquisição da quota alienada em 2020 são: maio de 1982, outubro de 1985 e agosto de 1991.
  5.  A mais valia realizada na alienação da quota, na parte em que teve origem em valores mobiliários adquiridos antes de 1989, não fica sujeita a tributação enquadramento este que já foi considerado no RIT; contudo, quanto à mais valia realizada na alienação da quota, na parte que teve origem nas 2.510 ações adquiridas em 1991, num aumento de capital realizado em dinheiro, deve ser mantida a respetiva data de aquisição, nos termos do artigo 43.º, n.º 6, al. a), do CIRS, já que uma parte da quota alienada teve origem nestes valores mobiliários.
  6. A interpretação dos Requerentes não encontra enquadramento legal, porquanto não se vislumbra que esteja previsto que, em caso de unificação de partes sociais, deva prevalecer a data da primeira aquisição. Pelo contrário, quando estamos perante diversas aquisições de partes sociais, após a sua conversão, devem ser mantidas as datas das referidas aquisições.
  7. A data da aquisição da quota alienada em 2020 deve ser a data de aquisição dos valores mobiliários que lhe deram origem, ou seja, uma parte não sujeita a tributação, por ter sido adquirida antes de 1989 e outra parte, referente à aquisição em dinheiro de 2.510 novas ações em 01.08.1991.
  8. Improcedem todos os vícios assacados à atuação da AT, devendo manter-se a liquidação objeto de impugnação, porquanto não padece de qualquer vício de legalidade.
  1. SANEAMENTO
  1. O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, nos termos do n.º 1 do artigo 10.º do RJAT.
  2. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.
  3. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
  4. Não foram suscitadas exceções de que deva conhecer-se.
  5. O processo não enferma de nulidades.
  6. Inexiste, deste modo, quaisquer obstáculos à apreciação do mérito da causa.

III. MATÉRIA DE FACTO

III.1. FACTOS PROVADOS

  1. Com relevo para a apreciação e decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:
  1. Por escritura de 31.05.1982, a Sociedade C..., LDA. aumentou o seu capital social de 25 000 000$ para 28 465 000$, passando o Requerente marido a deter uma quota com o valor nominal de 210 000$ (Cfr. Dr. n.º 144 – III série de 25-06-1982 junto ao RIT).
  2. Por escritura de 15.10.1985, a Sociedade C..., LDA. aumentou o seu capital social de 28 465 000$ para 300 000 000$, passando o Requerente marido a deter uma quota com o valor nominal de 2 220 000$ (Cfr. Dr. n.º 254 – III série de 05-11-1985 junto ao RIT).
  3. Em 06.10.1987, a Sociedade C..., LDA. foi transformada em Sociedade Anónima (C..., S.A), tendo a quota de que era titular o Requerente marido sido convertida em 3.730 ações, com o valor nominal total de 3.730.000$, representativas de 0,74% do capital daquela sociedade (Cfr. Dr. n.º 244 – III série de 23-10-1987 junto ao RIT).
  4. Em 01.08.1991, foi celebrada, no Cartório Notarial de ..., uma escritura pública de aumento de capital da Sociedade C..., S.A, em numerário e por incorporação de reservas (Cfr. Escritura Pública de aumento de capital de sociedade anónima junta ao RIT).
  5.  Na sequência do aumento de capital referido em D., o Requerente marido subscreveu, em dinheiro, 2.510 ações, pelo preço de 3.000 escudos cada uma, tendo sido por este pago, em dinheiro, o montante de 753.000 escudos e, recebeu 11.760 ações em resultado da incorporação de reservas (Cfr. RIT).
  6. Após tal aumento de capital, o Requerente marido passou a deter 18.000 ações (3.730 + 2.510 + 11.760) (Cfr. RIT).
  7. Em 13.09.2019, a Sociedade C..., S.A foi transformada em sociedade por quotas, tendo as aludidas 18.000 ações sido convertidas numa quota com o valor nominal de €90.000,00 (Cfr. RIT).
  8. Em 03.09.2020, o Requerente marido celebrou um contrato com a Sociedade D... SGPS AS, no qual vendeu, pelo preço de €1.300.000,00, a dita quota com o valor nominal de €90.000,00 (Cfr. RIT).
  9. Em 14.06.2021, os Requerentes apresentaram a declaração de IRS, relativa ao ano de 2020, na qual foi mencionada, nomeadamente no Quadro 4 dos Anexos G – “Mais Valias e Outros Incrementos Patrimoniais” e G1 – “Mais Valias Não Tributadas”, os seguintes valores (Cfr. RIT):

Anexo G:

Valor de Realização    Ano/Aquisição    Valor/Aquisição

€13.866,67                    1991                      €2.873,08  

Anexo G1:

Valor de Realização    Ano/Aquisição    Valor/Aquisição

€786.849,90                    1982                      €1.047,48  

€6.265,65                        1985                      €87,48  

€493.017,79                    1987                      €34.686,41

Total: €1.286.133,33                                    €35.821,37

  1. Da declaração de rendimentos de IRS referida em I., resultou a liquidação n.º 2021..., de 14.06.2021, com o montante a pagar de €1.330,54, sendo o valor imputável à tributação autónoma das mais-valias de €2.249,61 (Cfr. RIT).
  2. Através da Ordem de Serviço OI 2022... da Direção de Finanças de ..., os Requerentes foram alvo de uma ação inspetiva de âmbito parcial de IRS, referente ao ano de 2020, visando a confirmação do cumprimento das obrigações dos sujeitos passivos, nomeadamente, a parte respeitante às mais valias (Cfr. RIT).   
  3. Na sequência da referida ação inspetiva, a AT – por entender ter verificado que parte dos valores mencionados no Anexo G1, correspondiam a mais valias sujeitas a tributação e, consequentemente, deveriam ter sido declaradas no Anexo G –, elaborou, em 03.11.2022, declaração oficiosa/DC, na qual foram corrigidos aqueles montantes, para os seguintes valores (Cfr. RIT):

Anexo G:

Valor de Realização    Ano/Aquisição    Valor/Aquisição

€181.277,78                    1991                      €37.559,48  

Anexo G1:

Valor de Realização    Ano/Aquisição    Valor/Aquisição

€1.032.493,79                   1982                      €1.047,48  

€86.228,43                        1985                      €87,48  

Total: €1.118.722,22                                    €1.134,96

  1. Os Requerentes foram notificados do Projeto de Relatório de Inspeção Tributária, em 15.09.2022, tendo exercido o seu direito de audição no prazo legal – 29.09.2022 – (Cfr. RIT).
  2.  Os Requerentes foram notificados do Relatório final de Inspeção, em 21.11.2022 (Cfr. RIT).
  3. Da declaração referida em L., resultou a liquidação n.º 2022..., de 02.12.2022, com o montante a pagar de €29.951,28, sendo que o valor do campo 17, relativo à tributação autónoma da totalidade das mais-valias corresponde a um imposto de €29.408,97 (Cfr. Documentos n.º s 1 e 2 juntos ao PPA).
  4. Os Requerentes procederam, em 13.01.2023, ao respetivo pagamento (Cfr. Documentos n.ºs 3 e 4 juntos ao PPA).
  5. Por não concordarem com a referida liquidação, apresentaram os Requerentes, em 18.04.2023, o presente pedido de pronúncia arbitral (Cfr. Sistema informático do CAAD). 

III.2 FACTOS NÃO PROVADOS

  1. Os factos dados como provados são aqueles que o Tribunal considera relevantes, não se considerando factualidade dada como não provada que tenha interesse para a decisão.

 

III.3. FUNDAMENTAÇÃO DA FIXAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

Ao Tribunal incumbe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão, discriminar a matéria que julga provada e declarar, se for o caso, a que considera não provada, não tendo de se pronunciar sobre todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre dos termos conjugados do artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e do artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (doravante “CPC”), aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram assim selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é definida tendo em conta as várias soluções plausíveis das questões de direito para o objeto do litígio, tal como resulta do artigo 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

O Tribunal arbitral considera provados, com relevo para a decisão da causa, os factos acima elencados e dados como assentes, tendo por base a análise crítica e conjugada dos documentos juntos aos autos, dos factos alegados pelas partes que não foram impugnados e, a adequada ponderação dos mesmos à luz das regras da racionalidade, da lógica e da experiência comum, e segundo juízos de normalidade e razoabilidade.

  1. MATÉRIA DE DIREITO

Atendendo à factualidade exposta, bem como às pretensões e posições dos Requerentes e da Requerida constantes das suas peças processuais, a questão que cumpre apreciar no presente processo resume-se à determinação do âmbito de incidência em sede de IRS relativamente às mais-valias mobiliárias apuradas pelos Requerentes, tendo em conta o regime transitório consagrado aquando da aprovação do Código do IRS, bem como o regime previsto no artigo 43.º, n.º 6, do Código do IRS que estabelece regras específicas para efeitos de determinação da data de aquisição dos valores mobiliários.

 

Enquanto ponto de partida cabe fixar o enquadramento jurídico vigente à data dos factos. Ao que aqui importa, dispunha-se o seguinte no Código do IRS quanto à incidência a imposto da alienação de participações sociais: 

 

Artigo 9.º

Rendimentos da categoria G

1 - Constituem incrementos patrimoniais, desde que não considerados rendimentos de outras categorias:

a) As mais-valias, tal como definidas no artigo seguinte”.

 

Artigo 10.º

Mais-valias

1 - Constituem mais-valias os ganhos obtidos que, não sendo considerados rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais, resultem de:

(…) b) Alienação onerosa de partes sociais e de outros valores mobiliários, (...)

(...) 4 – O ganho sujeito a IRS é constituído:

a) Pela diferença entre o valor de realização e o valor de aquisição, (...)”.

 

No que respeita à quantificação das mais-valias e à fixação da data em que se consideram adquiridos os valores mobiliários, estipula-se no Código do IRS, ao que aqui importa, o seguinte:

 

Artigo 43.º

Mais-valias

1 – O valor dos rendimentos qualificados como mais-valias é o correspondente ao saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias realizadas no mesmo ano, determinadas nos termos dos artigos seguintes.

(…) 6 – Para efeitos do número anterior, considera-se que:

a) A data de aquisição dos valores mobiliários cuja propriedade tenha sido adquirida pelo sujeito passivo por incorporação de reservas ou por substituição daqueles, designadamente por alteração do valor nominal ou modificação do objeto social da sociedade emitente, é a data de aquisição dos valores mobiliários que lhes deram origem”.

 

Por fim, no Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro, que aprovou o Código do IRS, determina-se o seguinte quanto ao âmbito de incidência a imposto das mais-valias realizadas pelos sujeitos passivos:

 

Artigo 5.º

Regime transitório da categoria G

1 – Os ganhos que não eram sujeitos ao imposto de mais-valias, criado pelo código aprovado pelo Decreto-Lei n.º 46 373, de 9 de Junho de 1965, bem como os derivados da alienação a título oneroso de prédios rústicos afectos ao exercício de uma actividade agrícola ou da afectação destes a uma actividade comercial ou industrial, exercida pelo respectivo proprietário, só ficam sujeitos ao IRS se a aquisição dos bens ou direitos a que respeitam tiver sido efectuada depois da entrada em vigor deste Código.

2 – Cabe ao contribuinte a prova de que os bens ou valores foram adquiridos em data anterior à entrada em vigor deste Código, devendo a mesma ser efectuada, quanto aos valores mobiliários, mediante registo nos termos legalmente previstos, depósito em instituição financeira ou outra prova documental adequada e através de qualquer meio de prova

legalmente aceite nos restantes casos.”.

3 – Quando, nos termos dos nºs 8 e 10 do artigo 10º do Código do IRS, haja lugar à valorização das participações sociais recebidas pelo mesmo valor das antigas, considera-se, para efeitos do disposto no n.º 1, data de aquisição das primeiras a que corresponder à das últimas.

 

Fixado o enquadramento legal aplicável ao caso aqui em discussão, cumpre então aferir qual a data de aquisição da quota alienada pelos Requerentes em 03.09.2020. Isto para determinar se a mais-valia com a alienação da quota da Sociedade C... está ou não abrangida pela exclusão de incidência prevista no artigo 5.º do regime transitório consagrado no Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro.

 

IV.1 APRECIAÇÃO

Relativamente a esta questão já se pronunciou a jurisprudência (Supremo Tribunal Administrativo no acórdão de 7.3.2018, processo n.º 0149/17, bem como os Tribunais Arbitrais nos acórdãos proferidos nos processos n.º 689/2019-T, de 26.02.2020, n.º 526/2020‑T, de 16.03.202, n.º 562/2021-T, de 13.05.2022 e n.º 417/2022-T, de 14.12.2022), cujos entendimentos devem ser aqui ponderados de forma a assegurar a devida tutela da coerência sistemática e da segurança jurídica na aplicação do direito a que alude o artigo 8.º, n.º 3, do Código Civil (doravante “C.C”) ao referir que “o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito”.

 

Cronologicamente, pronunciou-se em primeiro lugar a este respeito o Supremo Tribunal Administrativo, no acórdão proferido em 7 de março de 2018, no âmbito do processo n.º 0149/17, no qual se entendeu o seguinte:

 

“A legislação comercial prevê a possibilidade de serem efectuados aumentos de capital. Por regra, tal operação funciona como uma fonte de financiamento para a empresa, para desenvolver novos projetos, um plano de expansão da organização, ou para fazer uma restruturação da atividade da empresa com a utilização de novos capitais próprios da organização que podem provir dos atuais acionistas ou sócios das empresas ou ser aberta a

novos investidores.

O aumento de capital de uma empresa assume duas diversas formas, ou se realiza por incorporação de reservas, implicando uma mera operação contabilística, na qual as reservas (ou seja, nos lucros obtidos no passado e ainda detidos) se transferem para o capital social da organização, sem mudança da situação líquida da empresa, ou por novas entradas.

Quando, como na situação em análise, o aumento de capital assume a forma de novas entradas, em dinheiro ou em bens, a operação implica um processo diferente, com uma alteração da situação líquida da empresa, devido à entrada de dinheiro (ou de bens) na empresa. Neste caso, ou os sócios/acionistas das empresas adquirem as novas quotas/ações emitidas pela empresa, ou não há criação de novas quotas/acções, mas é aumentado o valor nominal das existentes e, em ambas estas situações o resultado dessa operação serve para reforçar o capital social da organização.

Quando há emissão de novas quotas/ações esta é feita a um preço definido e, na maioria das vezes, as novas quotas/ações encontram-se reservadas aos anteriores sócios/acionistas, podendo ainda verificar-se a aquisição de novas quotas/acções por novos sócios. De acordo com o disposto no art.º 92.º, n.º 4 do CSC “A deliberação de aumento de capital deve indicar se são criadas novas quotas ou acções ou se é aumentado o valor nominal das existentes, caso exista, sendo que na falta de indicação, se mantém inalterado o número de acções”.

(…)

Por nos depararmos com um aumento do valor nominal das quotas, como vimos, fica sem qualquer suporte lógico ou legal o entendimento da recorrente de que tal situação não tem enquadramento no disposto no artº 43° nº 4, al. a) do CIRS "A data de aquisição dos valores mobiliários cuja propriedade tenha sido adquirida pelo sujeito passivo por incorporação de reservas, ou por substituição daqueles, designadamente por alteração do valor nominal ou modificação do objecto social da sociedade emitente, é a data de aquisição dos valores mobiliários que lhes deram origem". (negrito nosso)

 

Partilhando de igual entendimento, o acórdão arbitral proferido em 16 de março de 2021, no âmbito do processo n.º 526/2020-T, decidiu o seguinte:

 

“Como é possível concluir, o que a alínea a) do n.º 6 do artigo 43.º pretende precisar, ainda que para efeito da determinação da matéria colectável, é que a data de aquisição dos valores mobiliários, nas situações aí referidas, e, designadamente, por alteração do valor nominal, é a data de aquisição dos valores mobiliários que lhes deram origem. Sendo certo que o inciso “para efeitos do número anterior”, que consta do segmento inicial do proémio desse n.º 6, não se refere à situação específica descrita no antecedente n.º 5, mas ao apuramento do saldo positivo ou negativo dos rendimentos qualificados como mais-valias para efeito do apuramento do valor tributável.

Com efeito, a norma refere-se aos aumentos do valor da quota realizados através da incorporação de reservas, mas também aos aumentos resultantes da alteração do valor nominal, isto é, ao aumento do valor das quotas já existentes, o que não pode entender-se como correspondendo à criação de novas quotas mas ao reforço da quota inicial (cfr. acórdão proferido no Processo n.º 689/2019-T).

E, sendo assim, não há nenhum motivo para efectuar uma diferenciação, para efeito do apuramento das mais-valias, entre os diversos momentos em que ocorreu um reforço do capital social relativamente à entrada inicial, quando a lei estipula, para esse efeito, que o aumento de capital através do aumento do valor nominal das quotas pré-existentes é tido como sendo realizado no momento em que foram adquiridos os valores mobiliários originários (neste sentido, o acórdão do STA de 7 de Março de 2018, Processo n.º 0149/17).

Uma vez que a sociedade em causa foi constituída em 1988, ainda antes do começo de vigência do Código do IRS, a mais-valia gerada pela alienação de partes do capital ocorrida em 2018, encontra-se excluída da incidência do imposto por efeito do disposto na norma transitória do artigo 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 448-A/88, ainda que tenha ocorrido já na vigência do Código de IRS o reforço do capital social inicial através de entradas em dinheiro”. (negrito nosso)

 

Aqui chegados, acompanha este Tribunal Arbitral a jurisprudência “maioritária”[1] supra referida, que entende que nos casos em que se verificam aumentos de capital por entradas em dinheiro por conta do reforço do valor nominal de quotas/ações pré-existentes, a data da respetiva aquisição corresponde ao momento inicial da aquisição das quotas/ações, nos termos da alínea a), do n.º 6, do artigo 43.º, do CIRS. 

 

Sufragando, assim, a jurisprudência mais recentemente consolidada pelo STA, considera o Tribunal Arbitral que o artigo 43.º, n.º 6, al. a), do CIRS, não estabelece um regime de tributação diverso para os casos em que o aumento de capital opere, por um lado, por incorporação de reservas ou, por outro lado, por novas entradas sem a emissão de novas quotas/ações, mas apenas com o aumento do valor nominal das já existentes.  

 

Contudo, quando o aumento de capital assume a forma de novas entradas, em dinheiro ou em bens, pode acontecer uma de duas situações: ou não há criação de novas quotas/ações, mas é aumentado o valor nominal das existentes, ou os sócios/acionistas das empresas adquirem/subscrevem as novas quotas/ações emitidas pela empresa.

 

Daqui resulta inequivocamente que se os sócios/acionistas adquirirem/subscreverem novas quotas/ações emitidas pela empresa (ao invés de reforçarem o valor nominal das quotas/ações pré-existentes na sua titularidade), em virtude de um aumento de capital, mediante entradas em dinheiro (ou em bens), é afastada a aplicabilidade da norma ínsita na al. a), do n.º 6, do artigo 43.º, do CIRS.

 

Volvendo ao caso dos autos, alegam os Requerentes que a mais valia obtida na alienação da quota com o valor nominal de €90.000,00, de que o Requerente marido era detentor na Sociedade C..., em 03.09.2020, encontra-se excluída de tributação em sede de IRS, por considerarem que a data de aquisição da totalidade da quota é anterior a 1989.

 

Vejamos, então, se assiste razão aos Requerentes.

 

Resulta da matéria de facto dada como provada, que o Requerente adquiriu participações sociais na Sociedade C... em três momentos (maio de 1982, outubro de 1985 e agosto de 1991), as quais foram convertidas, em 2019, numa quota única (com o valor nominal de €90.000,00), por transformação daquela Sociedade em sociedade por quotas.

 

A mais valia realizada na alienação da dita quota (de €90.000,00) teve origem em valores mobiliários adquiridos antes de 1989 (maio de 1982, outubro de 1985) e em 1991 (decorrente do aumento de capital da referida Sociedade, em que o Requerente marido subscreveu, em dinheiro, 2.510 ações, pelo preço de 3.000 escudos cada uma, tendo sido por este pago, em dinheiro, o montante de 753.000 escudos e, recebeu 11.760 ações em resultado da incorporação de reservas).

 

Em bom rigor, e como decorre do relatório de inspeção tributária, a proposta de tributação constante da ação de inspeção resulta unicamente do aumento de capital ocorrido em 01.08.1991, através do qual o Requerente marido subscreveu, em dinheiro, as ditas 2.510 ações, pois, no que respeita às restantes a Requerida não põe em causa a sua não sujeição a tributação: “Quanto às 3.730 ações provenientes de uma quota adquirida antes de 1989, nos termos da alínea b) do n.º 6 do artigo 43.º do CIRS, mantém-se a data de aquisição da referida quota e por aplicação da alínea a) do n.º 6 do artigo 43.º do CIRS, as ações recebidas no aumento de capital por incorporação de reservas, devem ser consideradas como adquiridas na data das partes de capital que lhes deram origem. Assim, a alienação das 15.490 ações (3.730 + 11.760 resultante de incorporação por reservas), estão excluídas de tributação em sede de IRS, por se considerarem adquiridas antes de 1989-01-01.

 

Ou seja, o único dissenso entre as partes refere-se apenas às 2.510 ações que o Requerente marido subscreveu, em dinheiro, pelo preço de 3.000 escudos cada uma, tendo sido por este pago, em dinheiro, o montante de 753.000 escudos.

 

E, ao contrário do que pretendem fazer crer os Requerentes, a AT não restringe a aplicabilidade da citada norma (artigo 43.º, n.º 6, al. a), do CIRS) às situações de aumento de capital por incorporação de reservas – excluindo os aumentos de capital através de entradas em dinheiro –, o que a Requerida distingue, e bem, no nosso entender, é a diferença entre as duas situações possíveis nos casos de aumento de capital naquela modalidade (entradas em dinheiro): (i) os sócios/acionistas adquirirem/subscrevem novas quotas/ações emitidas pela empresa ou (ii) reforçam o valor nominal das quotas/ações pré-existentes na sua titularidade.

 

Ora, atento o teor da escritura pública de aumento de capital celebrada, em 01.08.1991, no Cartório Notarial de ..., resulta claro que o Requerente marido adquiriu 2.510 novas ações pelo preço de 3.000 escudos cada uma, as quais se vieram somar às 3.730 ações que detinha antes desta data e às 11.760 que recebeu gratuitamente, nesta mesma data, por força do aumento de capital por incorporação de reservas, constante desta mesma escritura:

 

 

 

Na verdade, o Requerente marido, com o aumento de capital ocorrido em 01.08.1991, não reforçou o valor nominal das partes de capital pré-existentes, aumentou, isso sim, a quantidade de ações por ele detidas por aquisição em dinheiro.

 

Em suma, e como refere a AT, o Requerente marido “adquiriu 2.510 novas ações, ou seja, um património autónomo, não podendo por isso considerar-se que estas ações integraram as anteriormente detidas, não podendo aproveitar as datas de aquisição das partes de capital anteriormente detidas”. E, neste sentido, a quota de €90.000,00 alienada em 2020, “Trata-se de uma quota que resulta da conjugação de uma quota adquirida antes de 1989 e de 2.510 ações adquiridas em 1991, pelo que estes dois momentos devem ser considerados como datas de aquisição da quota alienada em 2020” (Cfr. RIT).

 

Disto isto, entende o Tribunal Arbitral que para efeitos de apuramento da mais-valia realizada na alienação, pelo Requerente, da parte de capital da C..., em 2020, devem ser consideradas as aquisições anteriores a 1989, excluídas de tributação em sede de IRS, e uma aquisição em 1991, por se tratar de uma realidade patrimonial autónoma da quota inicialmente adquirida, ficando a mais-valia obtida sujeita a tributação em sede da categoria G de IRS, nesta parte.

 

Face a todo o supra exposto, falece a pretensão anulatória dos Requerentes o que acarreta, também, necessariamente, a improcedência da pretensão da devolução do imposto pago acrescido de juros indemnizatórios.

***

Mais, ao abrigo da proibição da prática de atos no processo inúteis e desnecessários, prevista no artigo 130.º, do CPC, subsidiariamente aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, fica prejudicado o conhecimento das restantes questões submetidas à apreciação deste Tribunal.

 

V. DECISÃO

Termos em que se decide julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral formulado pelos Requerentes e, em consequência, absolver a Requerida do pedido.

VI. VALOR DA CAUSA

Fixa-se ao processo o valor de €30.870, 36 (trinta mil oitocentos e setenta euros e trinta e seis cêntimos), nos termos do artigo 97.º-A do CPPT, aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, al. a) do RJAT e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

VII. CUSTAS

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em €1.836,00 (mil oitocentos e trinta e seis euros), nos termos da tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 30 de novembro de 2023

 

(Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT)

 

A Árbitra,

 

Susana Mercês de Carvalho



[1] Em sentido contrário, veja-se o acórdão proferido, em 28 de setembro de 2017, pelo Tribunal Central Administrativo Norte, no âmbito do processo n.º 01264/09.0BEVIS.