Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 291/2023-T
Data da decisão: 2023-10-16  IRS  
Valor do pedido: € 336.311,16
Tema: IRS – Inutilidade Superveniente da Lide
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SUMÁRIO:

 

  1. – Nos termos da alínea e) do artigo 277.º do Código do Processo Civil (CPC), aplicável ex vi pela alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, a instância extingue-se com a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide.
  2. - A anulação que os Requerentes visavam com o processo arbitral encontra-se atingida, pelo que, não oferece dúvida que a Decisão Arbitral que normalmente seria proferida, conhecendo do mérito da pretensão deduzida, se afigura destituída de qualquer efeito útil, pelo que não se justifica a sua prolação.

 

RELATÓRIO

A -PARTES 

A..., contribuinte fiscal n.º..., e B..., contribuinte fiscal n.º..., ambos residentes na Rua ..., n.º ..., ... Cascais, doravante designados por Requerentes, solicitaram a constituição do tribunal arbitral, com vista à anulação da liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”) n.º 2023..., de 6 de janeiro de 2023, relativa ao ano de 2021, no montante de € 336.311,16.

É Requerida a Autoridade Tributaria e Aduaneira, de ora em diante designada por AT.

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD.

Os Requerentes não procederam à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como Árbitro a Conselheira Fernanda Maçãs, na qualidade de Presidente, o Dr. Paulo Alves, na qualidade de Árbitro auxiliar, e o Dr. Paulo Lourenço, na qualidade de Relator.

A nomeação foi aceite nos termos legalmente previstos e, no dia 12 de junho de 2023, as partes foram devidamente notificadas dessa designação, nos termos do artigo 11.º n.º 1, alínea a) e b), do RJAT e dos Artigos 6.º e 7º do Código Deontológico, não tendo manifestado a vontade de recusar as designações referidas.

Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Tribunal Arbitral ficou regularmente constituído no dia 30 de junho de 2023.

Por despacho do dia 2 de junho de 2023, foi a AT notificada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 17º do RJAT e, no dia 3 de agosto de 2023, veio apresentar resposta, informando que o ato tributário foi expressa e integralmente revogado.

No dia 9 de agosto de 2023, o tribunal notificou os Requerentes para se pronunciarem, querendo, sobre a resposta da AT e, no dia 12 de setembro de 2023, vieram informar o tribunal no sentido de que a pretensão que deu origem ao pedido de pronúncia arbitral estava integralmente satisfeita, pelo que estão reunidas as condições para colocar fim ao processo por inutilidade superveniente da lide.

No dia 16 de setembro de 2023, o tribunal proferiu um despacho, sustentando que a questão é essencialmente de direito e circunscrita à verificação dos pressupostos da inutilidade superveniente da lide, por revogação do ato tributário impugnado, razão pela qual, ouvidos os Requerentes, se dispensou a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, bem como a produção de alegações, seguindo o processo para decisão arbitral.

No mesmo despacho foi designado o dia 30 de outubro de 2023 como prazo limite para a prolação da decisão arbitral, devendo nesse prazo ser paga a taxa arbitral subsequente.

O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se legalmente representadas, nos termos do disposto nos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma, bem como do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

O processo não enferma de vícios que o invalidem.

 

Do Pedido

Os ora Requerentes peticionam a anulação da liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”) n.º 2023..., de 6 de janeiro de 2023, relativa ao ano de 2021, no montante de € 336.311,16 e a condenação da AT na devolução do imposto pago, acrescido dos respetivos juros indemnizatórios.

A Requerida AT vem requerer a extinção do processo por inutilidade superveniente da lide.

 

Questão prévia da inutilidade superveniente da lide

 

É suscitada na resposta da Requerida a questão prévia da inutilidade superveniente da lide, sustentando que o ato tributário sindicado foi anulado por despacho de 23 de julho de 2023, da Subdirectora-Geral do IR e das Relações Internacionais, assente na informação nº 243/2023.

Nos termos do despacho, resulta a revogação do ato de liquidação visado nos autos com fundamento no facto de ser aplicável aos Requerentes o método da isenção que obsta a que sejam tributados os respetivos rendimentos.

Atendendo a anulação por parte da AT da liquidação em apreço, importa verificar quais as consequências legais sobre os presentes autos.

Neste âmbito, importa compulsar o artigo 277.º, alínea e) do Código de Processo Civil

(“CPC”), aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, que determina que a instância se extingue com “a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide”.

A impossibilidade da lide ocorre quer em caso de morte ou extinção de uma das partes, quer por desaparecimento do objeto do processo ou extinção de um dos interesses em conflito. A inutilidade superveniente da lide tem lugar quando, em virtude de novos factos ocorridos na pendência do processo, a decisão a proferir já não tenha qualquer efeito útil, ou porque não é possível dar satisfação à pretensão que o demandante pretende fazer valer no processo, ou porque o fim visado com a ação foi atingido por outro meio.

A pretensão formulada pelos Requerentes, de anulação do ato tributário de liquidação de IRS e juros compensatórios, ficou prejudicada pela decisão administrativa de “revogação” daquele (artigo 79.º, n.º 1 da LGT), que produziu os seus efeitos já na pendência da instância arbitral. Estamos, desta forma, perante uma vicissitude superveniente que eliminou o objeto da pretensão impugnatória deduzida pelos Requerentes, que é a liquidação adicional de IRS e juros.

Com efeito, com a anulação administrativa pela AT, os efeitos jurídicos dos atos tributários são destruídos com eficácia retroativa, de acordo com o disposto no artigo 171.º, n.º 3 do

Código do Procedimento Administrativo (“CPA”), verificando-se uma impossibilidade superveniente da lide. Como refere a Decisão Arbitral de 4 de novembro de 2013, no processo n.º 31/2013-T, do CAAD, “torna-se impossível juridicamente anular o que já não existe”. Em consequência, deve extinguir-se a instância processual, por se encontrar desprovida de objeto, nos termos do disposto nos artigos 277.º, alínea e) e 611.º do CPC, aplicáveis por remissão do citado artigo 29.º, n.º 1 alínea e) do RJAT.

Poderia suscitar-se a dúvida sobre a tempestividade da anulação administrativa, atendendo a que já havia decorrido o prazo de 30 dias, a contar do conhecimento do pedido de constituição do Tribunal Arbitral, estabelecido no artigo 13.º, n.º 1 do RJAT para a AT proceder à “revogação, ratificação, reforma ou conversão do ato tributário cuja ilegalidade foi suscitada, praticando, quando necessário, ato tributário substitutivo”,  estipulando o n.º

3 desta norma que, findo este prazo, “a administração tributária fica impossibilitada de praticar novo ato tributário relativamente ao mesmo sujeito passivo ou obrigado tributário, imposto e período de tributação, a não ser com fundamento em factos novos”.

O preceito em apreço deve ser interpretado no sentido de que, uma vez transcorrido o mencionado prazo de 30 dias, a AT fica impedida de praticar um novo ato dispositivo que regule a relação jurídico-tributária, relativamente ao mesmo sujeito passivo, imposto e período de tributação, exceto com fundamento em factos novos. Porém, esta restrição não ocorre em caso de simples anulação administrativa do ato impugnado, desacompanhada de nova regulação da situação jurídica.

Nesta última hipótese, afigura-se não merecer tutela o princípio da estabilidade da instância  subjacente às limitações legais à atuação administrativa no decurso de pendência jurisdicional, uma vez que a Parte vem, simplesmente, reconhecer que à outra assiste razão, com fundamento material na lei e, nessa medida, permitir a resolução antecipada do litígio e consequente extinção da instância, com economia processual e de meios. Deixou de existir razão para a subsistência do litígio, uma vez que, ainda que em momento superveniente, foi gerado consenso suportado na convergência das partes quanto ao regime legal aplicável.

Esta interpretação foi acolhida pelo Supremo Tribunal Administrativo em relação ao processo de impugnação judicial que é regido pelo artigo 112.º do CPPT, o qual estabelece uma disciplina similar à do artigo 13.º, n.ºs 1 e 3 do RJAT, este último aplicável à ação arbitral tributária. Constituindo o processo arbitral tributário um meio alternativo à impugnação judicial, é inegável a manifesta identidade de razões, a que acresce o facto de o CPA e as normas sobre organização e processo nos tribunais administrativos e tributários serem de aplicação subsidiária ao processo arbitral tributário, por remissão do artigo 29.º n. º1, alíneas c) e d) do RJAT.

Sobre a aplicação do regime do CPA à “revogação” de atos administrativos em matéria tributária preconiza o Supremo Tribunal Administrativo, no Acórdão proferido em 15 de março de 2017, no processo n.º 449/14, que:

“A possibilidade legal de revogação dos atos administrativos em matéria tributária está prevista no art. 79º da LGT (a revogação é um ato que faz cessar ou elimina os efeitos de um ato anterior, com fundamento na sua inconveniência ou invalidade, estando o respetivo regime previsto nos arts. 138° a 146° do CPA).

Todavia, não constando da LGT nem do CPPT norma definidora do prazo para tal revogação, é incontroverso que hão-de acolher-se as regras constantes dos arts. 136º e ss. do CPA, que diretamente regulam a revogação dos atos administrativos [sendo que o CPA constitui legislação complementar e subsidiária ao direito tributário – arts. 2º, al. c), da LGT e 2º, al. d), do CPPT (Cfr., por todos, o ac. desta Secção do STA, de 15/5/2013, proc. nº 0566/12; bem como Leite Campos, Benjamim Rodrigues e Jorge de Sousa, Lei Geral Tributária Anotada e comentada, 4ª ed., 2012, anotação 1 ao art. 79º, p. 724 e Lima Guerreiro, Lei Geral Tributária, anotada,

Editora Rei dos Livros, pág. 350, nota 7.)]. […]”

No mesmo sentido da aplicabilidade do regime da invalidade administrativa aos atos em matéria tributária voltou o Supremo Tribunal Administrativo a pronunciar-se no Acórdão de 17 de dezembro de 2014, relativo ao processo n.º 454/14.

Por outro lado, o artigo 168.º, n.º 3 do CPA determina que a anulação de atos que tenham sido objeto de impugnação jurisdicional, como é o caso, pode ter lugar até ao encerramento da discussão.

É, assim, de concluir pela tempestividade da anulação administrativa efetuada pelo despacho de 23 de julho de 2023, que retira à lide arbitral o seu objeto, pelo que se julga extinta a instância processual, em conformidade com o disposto nos artigos 277.º, alínea e) e 611.º do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1 alínea e) do RJAT.

Termos em que se julga verificada a inutilidade superveniente da lide em virtude da revogação do ato tributário por parte da Autoridade Tributária, aqui Requerida, e a sua consequente anulação.

 

Dos juros Indemnizatórios.

Peticionam ainda os Requerentes o pagamento de juros indemnizatórios.

Perante o exposto, entende o Tribunal Arbitral que a revogação do ato por parte da Autoridade Tributária, aqui Requerida, demostra erro imputável aos serviços, uma vez que reconheceram que o ato é ilegal.

Na verdade, estando demonstrado que os Requerentes são suscetíveis de usufruir da isenção do imposto, têm o direito à respetiva restituição, bem como ao pagamento de juros indemnizatórios, contados desde a data do pagamento do imposto agora anulado até à data da emissão da respetiva nota de crédito, contando-se o prazo para esse pagamento do início do prazo para a execução espontânea da presente decisão (art.º 61.º, n.ºs 2.ºa 5, do CPPTRIB), tudo à taxa apurada de harmonia com o disposto no n.º 4.ºdo artigo 43.º da LGT. 

Dá-se assim provimento ao pedido da Requerente.

 

Decisão

Termos em que acorda o presente Tribunal em:

  1. Declarar extinta a presente instância arbitral, por inutilidade superveniente da lide.
  2. Condenar a Requerida no pagamento de juros indemnizatórios, contados desde a data do pagamento do imposto, nos termos dos n.ºs 2.º a 5.º do artigo 61.º do CPPT, à taxa legal determinada nos termos do disposto no n.º 4.º do artigo 43.º da LGT.

 

O valor do processo é de € 336 311,16, pelo que se fixa a taxa de arbitragem, a cargo da AT, em € 4 896,00, em conformidade com o disposto no artigo 12.º, n.º 2 do Regime de Arbitragem Tributária, do artigo 4.ºdo RCPAT e da Tabela I anexa a este último (n.º 10 do art.º 35º e n.º 1, 4 e 5 do artigo 43º da LGT, artigos 5.º, n.º1, al. a) do RCPT, 97.º-A, n.º 1, al. a) do CPPT e 559.º do CPC).

 

Notifique-se. 

 Lisboa, 16 de outubro de 2023

 

Árbitro-Presidente

Fernanda Maçãs 

 

Árbitro auxiliar

 Paulo Ferreira Alves

 

Árbitro relator

Paulo Lourenço