Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 25/2020-T
Data da decisão: 2020-10-19  IRS  
Valor do pedido: € 1.291,17
Tema: IRS – Rendimentos prediais; não englobamento; dedução de perdas.
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SUMÁRIO:

O artigo 55.º, n.º 1, alínea b), do Código do IRS, que estabelece o regime da dedução de perdas da categoria F (rendimentos prediais), não exige o englobamento dos rendimentos prediais como condição para o reporte de perdas.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

                I. RELATÓRIO

1. No dia 11 de janeiro de 2020, A..., NIF..., residente em..., ..., Suíça (doravante, Requerente), apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (doravante, abreviadamente designado RJAT), tendo em vista a apreciação da legalidade do ato de liquidação de IRS, referente ao ano de 2018.

 

A Requerente juntou 11 (onze) documentos, não tendo requerido a produção de quaisquer outras provas. 

 

É Requerida a AT – Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, Requerida ou AT).

 

2. Como resulta do pedido de pronúncia arbitral (doravante, PPA), a Requerente faz assentar a impugnação do ato tributário controvertido na argumentação que a própria sintetiza nos seguintes termos:

                «1 – A dedução de perdas é um direito não condicionado porque os rendimentos prediais (categoria F) são tributados pelo seu resultado líquido (receitas – custos).

                2 – Que estas perdas podem ser reportadas aos seis anos seguintes nos termos da alínea b) do n.º 1 do art. 55.º [do Código do IRS], com a exclusiva condicionante decorrente do ponto 8 do mesmo artigo.

                3 – Que o art. 55.º do CIRS é explícito em tratar de forma diferenciada a dedução de perdas na categoria F e que não as condiciona a englobamento como acontece às menos-valias, independentemente da residência fiscal do sujeito passivo.

                4 – Que não percebo nem encontro suporte em qualquer jurisprudência na conclusão de que “o art. 55.º do CIRS não pode ser interpretado de outra forma que não seja no sentido de que só nos casos em que a base do imposto é determinada mediante o englobamento dos rendimentos poderá ser efetuada a dedução de perdas, apuradas em anos anteriores”.

                5 – Que não subjazem dúvidas de que estes rendimentos devem ser tributados à taxa especial de 28% de acordo com o art. 72.º [do Código do IRS].

                6 – Mas que a base tributável só pode ser a que resulta do resultado líquido do rendimento e que por isso os custos de manutenção do imóvel realizados e não inteiramente amortizados, devem ser considerados em 2018, como estipula a alínea b) do n.º 1 do art. 55.º [do Código do IRS].

                7 – Que neste caso, para rigor do formalismo declarativo, a declaração de substituição (com englobamento) deve ficar sem efeito (o sistema nem a devia aceitar) e manter válida a primeira declaração (... de 2019.05.18).»

                 

3. O pedido de constituição de tribunal arbitral foi aceite e notificado à AT em 21 de janeiro de 2020.

               

4. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou o signatário como árbitro do Tribunal Arbitral singular, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

Em 4 de março de 2020, as partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas b) e c), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral singular foi constituído em 6 de julho de 2020.

 

5. No dia 28 de agosto de 2020, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua Resposta na qual arguiu as exceções de falta de constituição de advogado e de ineptidão do pedido de pronúncia arbitral e, ainda, impugnou os argumentos aduzidos pela Requerente, tendo concluído pela procedência das invocadas exceções e pela improcedência da presente ação, com as inerentes consequências legais.

 

A Requerida não requereu a produção de quaisquer provas, tendo apenas procedido à junção aos autos do respetivo processo administrativo (doravante, PA).

 

A Requerida alicerçou a sua Resposta, essencialmente, na seguinte argumentação:   

                Relativamente à exceção de falta de constituição de advogado:

- «Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 6.º do CPPT É obrigatória a constituição de mandatário nos tribunais tributários (…)”, aplicável ex vi alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT».

- «Compulsado o pedido de pronúncia arbitral e a documentação junta pela Requerente verifica-se que não foi constituído advogado.»

 - «A falta de constituição de advogado, quando obrigatória, como sucede nos autos, e após ter sido instada, sem sucesso, para o fazer, determina a absolvição da Requerida da instância, artigo 41.º in fine do CPC, aplicável nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.»

 

Relativamente à ineptidão do pedido de pronúncia arbitral:

- «(…) no pedido apresentado pela Requerente não se vislumbra qual o ato, ou atos, objeto do pedido, se a liquidação que resultou da primeira declaração apresentada referente ao ano de 2018, ou mesmo a de 2017, se a liquidação da declaração de substituição, se a decisão que recaiu sobre o recurso hierárquico apresentado.»

- «Também se verifica que no pedido, ao arrepio do estabelecido na alínea e) do n.º 2 do artigo 10.º do RJAT, a Requerente não indica o valor da utilidade económica do pedido.»

 - «A ininteligibilidade do pedido gera a ineptidão do P.P.A. e a nulidade de todo o processo (…) nos termos do disposto na alínea b) do artigo 576.º [577.º] do CPC, aplicável ex vi n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.» 

 

No âmbito da defesa por impugnação:

- «O rendimento líquido de cada categoria é uma expressão funcionalizada à obtenção de um rendimento líquido total, isto é, o rendimento coletável.»

- «Por sua vez, esse rendimento coletável corresponde a um montante adstrito à aplicação de uma taxa progressiva.»

- «Recorda-se que a Requerente reside na Suíça, país que não integra a União Europeia, nem o Espaço Económico Europeu.»

- «Pelo que, não obstante a Requerente ter pretendido exercer a opção de englobamento dos rendimentos prediais, quer na liquidação de 2017, quer na de 2018, a verdade é que o nosso sistema tributário não oferece essa alternativa a não residentes na União Europeia ou no Espaço Económico Europeu, tal como decorre dos artigos 22.º, n.º 3, alínea a) e 72.º, n.º 13, ambos do CIRS.»

- «Improcede, assim, a fundamentação aduzida pela Requerente e, consequentemente, a alegada ilegalidade da interpretação dada ao artigo 55.º do CIRS pela Requerida.»

     

6. A Requerente, notificada para o efeito, veio pronunciar-se relativamente às exceções invocadas pela Requerida, nos termos que aqui se dão por inteiramente reproduzidos, tendo pugnado pela respetiva improcedência.

 

7. O Tribunal dispensou a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, bem como a apresentação de alegações, tendo fixado o dia 18 de dezembro de 2020 como data limite para a prolação da decisão arbitral.

***

                II. SANEAMENTO

8. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente, atenta a conformação do objeto do processo (cf. artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 5.º, n.ºs 1 e 2, do RJAT).

 

O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e a Requerida encontra-se regularmente representada (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

O processo não enferma de nulidades.

 

§1. DA FALTA DE CONSTITUIÇÃO DE ADVOGADO

9. Como acima já foi dito, a Requerida arguiu a exceção dilatória inominada da falta de mandatário judicial que, a ser julgada procedente, determina a sua absolvição da instância, nos termos do artigo 41.º, in fine, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

A Requerente, notificada para se pronunciar, veio dizer, essencialmente, «que não sabia que a constituição de advogado era obrigatória. Não sou advogada e não li todo o CPPT. No entanto devo referir que na Notificação de Decisão Final da AT de 19.11.2019 são referidos alguns artigos do CPPT mas não o art. 6.º.» 

 

Apreciando e decidindo.

 

10. Compulsados os autos, constatamos que a Requerente apresentou uma Procuração que outorgou a seu irmão, João Paulo Saldanha Rodrigues, a quem, além do mais, são conferidos «os mais amplos poderes forenses em Direito permitidos e os demais necessários, os quais deverá substabelecer em Advogado ou Solicitador habilitado, para me representar em qualquer Tribunal Judicial ou Arbitral, Repartição ou Juízo ou junto de qualquer entidade pública ou privada, e aí defender os meus direitos e legítimos interesses, incluindo os poderes especiais para confessar, desistir e transigir».

 

Como resulta daquela Procuração e da pronúncia da Requerente, o irmão desta não é nem advogado, nem solicitador; ademais, não consta dos autos qualquer Procuração e/ou substabelecimento que tenha sido outorgado a um advogado ou solicitador, conferindo-lhe o mandato forense para, em representação da Requerente, intervir neste processo arbitral.

 

O artigo 6.º, n.º 1, do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, estatui o seguinte:

“1. É obrigatória a constituição de mandatário nos tribunais tributários, nos termos previstos na lei processual administrativa.”

 

Atenta a remissão operada nesta norma para a lei processual administrativa, vejamos o que estatui o CPTA a este propósito, concretamente no respetivo artigo 11.º:

“1 – Nos tribunais administrativos é obrigatória a constituição de mandatário, nos termos previstos no Código do Processo Civil, (…).”

 

Perante esta nova remissão, desta feita para o CPC, atentemos então no respetivo artigo 40.º que estatui o seguinte, na parte que aqui importa reter:

“1. É obrigatória a constituição de advogado:

a) Nas causas de competência de tribunais com alçada, em que seja admissível recurso ordinário;

b) Nas causas em que seja sempre admissível recurso, independentemente do valor;

c) Nos recursos e nas causas propostas nos tribunais superiores.

2. Ainda que seja obrigatória a constituição de advogado, os advogados estagiários, os solicitadores e as próprias partes podem fazer requerimentos em que se não levantem questões de direito.

(…)”

 

Feito este périplo normativo, importa então verificarmos se a situação concreta é subsumível às alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 40.º do CPC.

 

Resulta do disposto no artigo 6.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais que “os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal têm alçada” (n.º 1), sendo que “a alçada dos tribunais administrativos de círculo e dos tribunais tributários corresponde àquela que se encontra estabelecida para os tribunais judiciais de 1.ª instância” (n.º 3). Ora, nos termos do artigo 44.º, n.º 1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, “em matéria cível, a alçada dos tribunais da Relação é de (euro) 30.000,00 e a dos tribunais de primeira instância é de (euro) 5.000,00».

 

11. Temos, assim, que não é obrigatória a constituição de advogado nas causas de valor inferior à alçada, ou seja, a € 5.000,00; atento o valor da utilidade económica do pedido que é indicado no pedido de constituição de tribunal arbitral – € 1.291,17 –, não se afigura pois obrigatória a constituição de advogado por parte da Requerente.

 

Acresce, ainda, que as decisões arbitrais proferidas pelos tribunais arbitrais tributários constituídos sob a égide do CAAD são, em regra, irrecorríveis quanto ao mérito; com efeito, a recorribilidade permitida circunscreve-se aos casos previstos no artigo 25.º, n.ºs 1 (recurso para o Tribunal Constitucional) e 2 (recurso para o Supremo Tribunal Administrativo), do RJAT.

 

Nestes termos, é julgada improcedente esta exceção.

 

§2. DA INEPTIDÃO DO PEDIDO DE PRONÚNCIA ARBITRAL

12. A Requerida funda a arguição da ineptidão do PPA no argumento de que não se percebe qual o ato, ou atos, objeto do pedido; adicionalmente, neste âmbito, a Requerida diz ainda que a Requerente não indica o valor da utilidade económica do pedido.

 

Notificada para se pronunciar, veio a Requerente dizer, nuclearmente, que «o recurso que fiz e que resultou na constituição de tribunal arbitral refere-se à liquidação que resultou da declaração de rendimento de 2018 com valor económico de 1.291,17 euros». 

 

Apreciando e decidindo.

 

13. Começando pela questão do valor da utilidade económica do pedido, temos que o artigo 10.º, n.º 2, do RJAT determina que “[o] pedido de constituição de tribunal arbitral é feito mediante requerimento enviado por via eletrónica ao presidente do Centro de Arbitragem Administrativa do qual deve constar: (…) e) A indicação do valor da utilidade económica do pedido; (…)”. 

 

Compulsado o pedido de constituição de tribunal arbitral, constatamos que ali, efetivamente, a Requerente indica o montante de € 1.291,17 como sendo o valor da utilidade económica do pedido; é certo que não o faz, novamente, no PPA, mas tal não impede que aquele valor se tenha por indicado – se é o correto, ou não, é já questão que compete ao Tribunal Arbitral decidir – e, portanto, que se considere cumprido o ditame legal decorrente do artigo 10.º, n.º 2, alínea e), do RJAT.

 

Improcede, pois, esta questão suscitada pela Requerida.

 

14. No tangente à ininteligibilidade do PPA, importa convocarmos o artigo 186.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, cujo n.º 1 estatui que“[é] nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial”, decorrendo do seu n.º 2 que a petição diz-se inepta, além do mais, “[q]uando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir” (alínea a)); no entanto, conforme estatuído no n.º 3 do mesmo artigo 186.º, “[s]e o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a) do número anterior, a arguição não é julgada procedente quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial.”

 

O eminente Prof. Alberto dos Reis, no seu Comentário ao Código de Processo Civil (Volume 2.º, Coimbra Editora, Coimbra, 1945, pp. 359 a 395) – obra que, nesta parte, mantém plena atualidade –, explicava assim em que consiste o pedido ininteligível: «o autor formula o pedido; mas formula-o em termos tais, que não chega a perceber-se qual é o seu pensamento, qual é o efeito jurídico que se propõe obter (…) O pedido deve ser formulado com toda a precisão, para que a petição possa considerar-se modelar, sob este aspecto; mas se, não obstante a falta de precisão completa ou apesar de haver alguma imprecisão, puder ainda assim saber-se qual é o pedido, o tribunal não deverá julgar inepta a petição. Petição inepta é uma coisa, petição incorrecta é outra. Ou melhor, nem toda a incorrecção, nem toda a imperfeição do requerimento inicial conduz à ineptidão. O autor exprimiu o seu pensamento em termos inadequados, serviu-se de linguagem tecnicamente defeituosa, mas deu a conhecer suficientemente qual o efeito jurídico que pretendia obter? A petição será uma peça desajeitada e infeliz, mas não pode qualificar-se de inepta.»    

 

Antes de avançarmos para a análise do PPA apresentado pela Requerente, importa ainda tecermos algumas considerações adicionais, começando por recordar que na interpretação das peças processuais apresentadas pelas partes são aplicáveis, por força do disposto no artigo 295.º do Código Civil, os princípios da interpretação das declarações negociais, valendo, por isso, aquele sentido que, segundo o disposto no artigo 236.º, n.º 1, do Código Civil, o declaratário normal ou razoável deva retirar das declarações escritas constantes do articulado. Ademais, constitui jurisprudência pacífica que essa interpretação deve ser norteada, além do mais, pelo princípio da prevalência do fundo sobre a forma, de maneira a que incorreções ou excessos formais não obstem a que possa ser considerada a materialidade do que é efetivamente pretendido pelas partes no processo. A este propósito, entre muitos outros, veja-se o acórdão do STA de 08.01.2014, proferido no processo n.º 032/13 (e a jurisprudência ali citada), onde se afirma o seguinte: «Na verdade, na interpretação das peças processuais são aplicáveis, por força do disposto no art. 295.º do Código Civil (…), os princípios da interpretação das declarações negociais (comuns à interpretação das leis), valendo, por isso, aquele sentido que, segundo o disposto no art. 236.º, n.º 1, do CC (…),o declaratário normal ou razoável deva retirar das declarações escritas constantes do articulado (Por outro lado, vale também aqui o princípio aplicável aos negócios formais – denominado do mínimo de correspondência verbal –, de que «não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso» (art. 238.º, n.º 1 do CC).), para além de que não podemos olvidar que os rigores formalistas na interpretação das peças processuais estão hoje vedados pelos princípios do moderno processo civil e bem assim pelo princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva [cfr. arts. 20.º e 268.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa (CRP)], motivo por que o tribunal deve extrair do pedido que lhe é feito o sentido mais favorável aos interesses do peticionante, indagando da sua real pretensão (…).»   

 

Neste enquadramento, afigura-se-nos que o PPA não pode qualificar-se de inepto, porquanto dele não emergem quaisquer dúvidas – quer factuais, quer de direito – daquilo que é pretendido pela Requerente: a declaração de ilegalidade e anulação do ato de liquidação de IRS relativo ao ano de 2018, do qual resultou o valor a pagar de € 1.291,17 (isso mesmo é por ela reafirmado no sobredito requerimento em que se pronunciou sobre as exceções deduzidas). Aliás, tal é reforçado pelas alusões que a Requerente faz à reclamação graciosa n.º ...2019... e ao recurso hierárquico n.º ...2019... que antecederam o pedido de constituição de tribunal arbitral e pelos documentos juntos ao PPA. Ademais, extrai-se ainda do PPA que a Requerente, com o mesmo, visa também impugnar as decisões de indeferimento da reclamação graciosa e do recurso hierárquico, pois, como a própria afirma expressamente: «Esgotadas as possibilidades de recurso diretamente coma AT desejo efetuar um pedido de constituição de tribunal arbitral para se pronunciar sobre o meu caso. Continuo a discordar com a interpretação da AT do art. 55.º.»

 

Acresce que, da leitura da Resposta resulta, sem margem para dúvidas, que a Requerida compreendeu perfeitamente a pretensão da Requerente deduzida no PPA.

 

Nestes termos, é julgada improcedente esta exceção.

*

15. Não existem quaisquer outras exceções ou questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito e que cumpra conhecer.

***

III. FUNDAMENTAÇÃO 

III.1. DE FACTO

§1. FACTOS PROVADOS

16. Com relevo para a apreciação e decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:

a) A Requerente é residente na Suíça, sendo o único membro do seu agregado familiar. [cf. documentos anexos ao PPA e PA] 

b) A Requerente é proprietária de um apartamento, sito em Lisboa – artigo matricial urbano ... da freguesia (código) ... –, no qual efetuou obras de manutenção e reparação antes de o arrendar em setembro de 2017. [cf. documentos anexos ao PPA e PA]

c) Na declaração de rendimentos Modelo 3 de IRS, atinente ao ano de 2017 (declaração de substituição ...), a Requerente assinalou ser não residente (não tendo assinalado residir em país da UE ou EEE) e declarou o seguinte no respetivo Anexo F [cf. documentos anexos ao PPA e PA]:

(i) no quadro 4, um total de rendimentos prediais brutos de € 2.000,00, provenientes de rendas auferidas no âmbito do contrato de arrendamento do referido apartamento;

(ii) no quadro 5, os seguintes gastos suportados e pagos: i) após o início do arrendamento: € 91,00 em conservação e manutenção; € 144,00 em condomínio; € 154,77 em IMI; € 50,00 em Imposto do Selo; e € 40,50 noutros gastos; ii) com obras de conservação e manutenção: € 6.990,00;

(iii) no quadro 7D, assinalou a opção pelo englobamento dos rendimentos prediais.

d) Na declaração de rendimento Modelo 3 de IRS, atinente ao ano de 2018, apresentada em 18.05.2019 (1.ª declaração...), a Requerente assinalou ser não residente (não tendo assinalado residir em país da UE ou EEE) e declarou o seguinte no respetivo Anexo F [cf. documentos anexos ao PPA e PA]:

(i) no quadro 4, um total de rendimentos prediais brutos de € 5.250,00, provenientes de rendas auferidas no âmbito do contrato de arrendamento do mencionado apartamento;

(ii) no quadro 5, os seguintes gastos suportados e pagos, após o início do arrendamento: € 360,00 em condomínio; € 154,80 em IMI; e € 123,85 noutros gastos;

 (iii) no quadro 7D, assinalou a opção pelo não englobamento dos rendimentos prediais.

e) A Requerente foi notificada da liquidação de IRS n.º 2019..., datada de 27.05.2019 e referente ao ano de 2018, da qual resultou o montante a pagar de € 1.291,17. [cf. documentos anexos ao PPA e PA]   

f) Nessa mesma liquidação de IRS, foram consideradas deduções específicas no valor de € 638,65 e não foram consideradas quaisquer perdas a recuperar. [cf. documentos anexos ao PPA e PA]       

g) Em 30.06.2019, a Requerente apresentou uma outra declaração de rendimentos Modelo 3 de IRS, atinente ao ano de 2018 (declaração de substituição...), na qual assinalou ser não residente (não tendo assinalado residir em país da UE ou EEE) e declarou o seguinte no respetivo Anexo F [cf. documentos anexos ao PPA e PA]:

(i) no quadro 4, um total de rendimentos prediais brutos de € 5.250,00, provenientes de rendas auferidas no âmbito do contrato de arrendamento do mencionado apartamento;

(ii) no quadro 5, os seguintes gastos suportados e pagos, após o início do arrendamento: € 360,00 em condomínio; € 154,80 em IMI; e € 123,85 noutros gastos;

(iii) no quadro 7D, assinalou a opção pelo englobamento dos rendimentos prediais.

h) Em 10.08.2019, a Requerente deduziu reclamação graciosa contra a liquidação de IRS n.º 2019..., referente ao ano de 2018, que foi autuada sob o n.º ...2019... e correu termos pelo Serviço de Finanças de Lisboa-..., a qual foi indeferida por despacho do Chefe de Finanças, datado de 19.08.2019, com a seguinte fundamentação que aqui importa respigar [cf. documentos anexos ao PPA e PA]:

«(…)

2 – O ora reclamante auferiu, no ano de 2018, rendimentos prediais brutos, nos termos do art. 8.º do CIRS, no montante de € 5.250,00, tendo suportado e pago gastos no montante total de € 638,65, os quais foram deduzidos, nos termos do art. 41.º do CIRS.

3 – Nos termos da al. a) do n.º 3 do art. 22.º do Código do IRS, não são englobados para efeitos da sua tributação os rendimentos auferidos por sujeitos passivos não residentes em território português (...).

4 – Analisados os elementos juntos aos autos, nomeadamente os existentes no sistema informático (Sistema de Gestão e Registo de Contribuintes), verifica-se que a reclamante encontra-se registada como “não residente”.

5 – Assim, afigura-se que sendo a reclamante um sujeito passivo não residente não pode englobar os rendimentos face à legislação referida anteriormente e não sendo possível o seu englobamento não pode ser aplicado o benefício da dedução das perdas.

(…)»

i) A Requerente foi notificada daquela decisão por meio do ofício n.º..., datado de 21.08.2019, remetido pelo Serviço de Finanças de Lisboa-..., através de carta registada (RH...PT) com aviso de receção. [cf. documentos anexos ao PPA e PA]

j) Em 14.09.2019, a Requerente interpôs recurso hierárquico contra a mencionada decisão de indeferimento da reclamação graciosa, que foi autuado sob o n.º ...2019... e correu termos pela Direção de Finanças de Lisboa, o qual foi indeferido por despacho do Diretor de Finanças adjunto, datado de 15.10.2019, com a seguinte fundamentação que aqui importa respigar [cf. documentos anexos ao PPA e PA]:

«(…)

Após análise aos autos tem-se que: a ora requerente é “Não Residente” desde 07/09/2016. Reside na Suíça. Ora, em 2018, determinava a alínea a) do n.º 3 do art. 22.º do CIRS que não ocorra o englobamento, antes se prevendo uma tributação por via de aplicação de taxa com caráter especial ou liberatória, nomeadamente naquilo que vem previsto no art. 72.º do CIRS. À data dos factos, os rendimentos prediais auferidos por não residentes eram tributados nos termos da alínea e) do n.º 1 do art. 72.º do CIRS à taxa de 28%.

A operação de dedução de perdas é um processo prévio, anterior, e condicionado pela possibilidade de englobamento, que a lei impossibilita aos não residentes de englobamento os rendimentos prediais obtidos por si em território nacional.

Por maioria de razão aquela operação prévia (dedução de perdas) não é possível de ser realizada, porquanto a mesma sempre estaria condicionada ao prévio englobamento dos rendimentos (só possível para os residentes). Não sendo possível o englobamento é proibida a subsunção do regime do artigo 55.º do CIRS à factualidade dos autos.

O art. 55.º do CIRS não pode ser interpretado de outra forma que não seja no sentido de que só nos casos em que a base do imposto é determinada mediante o englobamento dos rendimentos poderá ser efetuada a dedução de perdas, apuradas em anos anteriores.

Nestes termos, considera-se que a liquidação ora posta em crise, afigura-se correta, não enfermando de qualquer vício que possa inquinar o ato tributário.  

(…)»

k) A Requerente foi notificada daquela decisão por meio de ofício, datado de 16.10.2019, remetido pela Direção de Finanças de Lisboa, através de carta registada (RH...PT). [cf. documentos anexos ao PPA e PA]

l) Em 11.01.2020, a Requerente apresentou o pedido de constituição de tribunal arbitral que deu origem ao presente processo. [cf. Sistema de Gestão Processual do CAAD]

 

§2. FACTOS NÃO PROVADOS

17. Com relevo para a apreciação e decisão da causa, não resultou provado que a Requerente pagou o montante de € 1.291,17 resultante da liquidação de IRS n.º 2019..., referente ao ano de 2018.

 

§3. MOTIVAÇÃO QUANTO À MATÉRIA DE FACTO

18. Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, à face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2, do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

 

Não se deram como provadas nem não provadas as alegações feitas pelas partes e apresentadas como factos, consubstanciadas em afirmações meramente conclusivas e, por isso, insuscetíveis de prova e cuja veracidade terá de ser aquilatada em face da concreta matéria de facto consolidada. 

 

A convicção do Tribunal fundou-se nos factos articulados pelas partes, cuja aderência à realidade não foi posta em causa e no acervo probatório de natureza documental (incluindo o processo administrativo) carreado para os autos, o qual foi objeto de uma análise crítica e de adequada ponderação à luz das regras da racionalidade, da lógica e da experiência comum e segundo juízos de normalidade e razoabilidade.  

 

A factualidade não provada foi assim considerada em virtude de não constar dos autos qualquer documento suscetível de a comprovar.

 

III.2. DE DIREITO

§1. DELIMITAÇÃO DO OBJETO

19. A questão jurídico-tributária que consubstancia o epicentro do dissidio entre as partes consiste em determinar se as perdas apuradas, em sede de categoria F (rendimentos prediais), num determinado ano, podem ser reportadas aos seis anos seguintes – nos termos do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 55.º do Código do IRS  –, independentemente do englobamento dos rendimentos prediais.  

 

§2. DO MÉRITO

§2.1. ENQUADRAMENTO NORMATIVO

20. Nos termos previstos no n.º 1 do artigo 1.º do Código do IRS, este imposto incide sobre o valor anual dos rendimentos das diversas categorias ali elencadas – sendo uma delas a categoria F – Rendimentos prediais –, depois de efetuadas as correspondentes deduções e abatimentos.

 

O n.º 1 do artigo 22.º do Código do IRS determina que o rendimento coletável em IRS é o resultante do englobamento dos rendimentos das várias categorias auferidos em cada ano, depois de feitas as deduções e os abatimentos previstos nas secções seguintes.

 

Todavia, o englobamento não é aplicável a todos os tipos de sujeito passivo nem a todos os tipos de rendimentos por este auferidos. No sistema de tributação em IRS coexiste um regime de englobamento e um regime de tributação a taxas liberatórias e a taxas especiais de tributação autónoma, não sendo englobados os rendimentos auferidos por sujeitos passivos não residentes em território português (artigo 22.º, n.º 3, alínea a), do Código do IRS), cuja tributação se processa mediante a aplicação de taxas liberatórias ou taxas especiais, nem os rendimentos auferidos por sujeitos passivos residentes em território português que se encontrem sujeitos às taxas liberatórias ou às taxas especiais dos artigos 71.º e 72.º do Código do IRS (artigo 22.º, n.º 3, alínea b), do Código do IRS).

 

No concernente aos rendimentos prediais, o n.º 1 do artigo 8.º do Código do IRS estatui que se consideram, como tal, as rendas dos prédios rústicos, urbanos e mistos pagas ou colocadas à disposição dos respetivos titulares, quando estes não optarem pela sua tributação no âmbito da categoria B.

 

Aos rendimentos brutos referidos naquele artigo 8.º são, por força do disposto no n.º 1 do artigo 41.º do Código do IRS, deduzidos, relativamente a cada prédio ou parte de prédio, todos os gastos efetivamente suportados e pagos pelo sujeito passivo para obter ou garantir tais rendimentos, com exceção dos gastos ali mencionados, bem como do adicional ao imposto municipal sobre imóveis. No caso de fração autónoma, são dedutíveis, relativamente a cada fração ou parte de fração, outros encargos que, legalmente, o condómino deva obrigatoriamente suportar e que sejam efetivamente pagos pelo sujeito passivo (n.º 2 do mesmo artigo 41.º); se este detiver mais do que uma fração autónoma do mesmo prédio, aqueles encargos são imputados de acordo com a permilagem atribuída a cada fração ou parte de fração no título constitutivo da propriedade horizontal (n.º 3 do citado artigo 41.º). Nos termos do n.º 5 do mesmo artigo 41.º, o Imposto Municipal sobre Imóveis e o Imposto do Selo, pagos em determinado ano, apenas são dedutíveis quando respeitem a prédio ou parte de prédio cujo rendimento seja objeto de tributação nesse ano fiscal. Todos os referidos gastos devem ser documentalmente comprovados (n.º 8 do dito artigo 41.º). 

 

Como afirma Paula Rosado Pereira (Manual de IRS, Coimbra, Almedina, 2018, p. 141) esta «dedutibilidade fiscal dos gastos relativos ao imóvel gerador de rendimentos prediais corresponde a uma concretização, no contexto do CIRS, do princípio da capacidade contributiva e, mais concretamente, do princípio da tributação do rendimento líquido, ao admitir-se a dedução dos encargos inerentes à obtenção do rendimento», o que está em consonância com o propósito legislativo manifestado no Preâmbulo do Código do IRS em que se declara que “[n]o domínio dos rendimentos prediais (categoria F), incluem-se na base de incidência apenas os rendimentos efetivamente percebidos dos prédios arrendados, tanto urbanos como rústicos, e não já, como acontecia no sistema de contribuição predial, o valor locativo ou a renda fundiária dos prédios não arrendados, pois se visa tributar apenas os rendimentos realmente auferidos” (ponto 11). Como é salientado por Rui Duarte Morais (Sobre o IRS, Coimbra, Almedina, 2006, p. 98), «dar de arrendamento impõe que o senhorio suporte, por força da lei e/ou do contrato, determinados custos, nomeadamente os relativos a despesas de conservação e manutenção do locado».

 

Por outro lado, decorre do disposto no n.º 1 do artigo 55.º do Código do IRS que, relativamente a cada titular de rendimentos, o resultado líquido negativo apurado em qualquer categoria só é dedutível aos seus resultados líquidos positivos da mesma categoria, nos termos constantes das suas diversas alíneas, estatuindo a respetiva alínea b) que o resultado líquido negativo apurado em determinado ano na categoria F só pode ser reportado aos seis anos seguintes àquele a que respeita. Mais adiante no mesmo artigo, concretamente no seu n.º 8, é determinado que o direito àquele reporte do resultado líquido negativo fica sem efeito quando os prédios a que os gastos digam respeito não gerem rendimentos da categoria F em pelo menos 36 meses, seguidos ou interpolados, dos cinco anos subsequentes àquele em que os gastos foram incorridos.

 

Neste conspecto, Paula Rosado Pereira (ob. cit., pp.151 e 152) afirma o seguinte:

«Tendo em conta o princípio da tributação do rendimento líquido seguido pelo IRS, nas categorias de rendimento que preveem deduções específicas, como é o caso da categoria F, é possível o apuramento de um resultado líquido negativo, quando tais deduções sejam, em determinado ano, de valor superior ao rendimento bruto.

O resultado líquido negativo da categoria F, apurado em determinado ano, só pode ser deduzido aos rendimentos líquidos positivos desta mesma categoria, apurados nos seis anos seguintes àquele a que respeita a perda. (…)

Verifica-se, portanto, no contexto do IRS, uma impossibilidade de compensação entre ganhos e perdas apurados pelo sujeito passivo num mesmo ano, mas em diferentes categorias de rendimento. Significa isto que não existe uma comunicabilidade horizontal de perdas entre as categorias de rendimento do IRS. Deste modo, as perdas apuradas numa categoria de rendimentos apenas podem ser reportadas para os anos seguintes, nos termos legalmente previstos, para serem deduzidas aos rendimentos líquidos positivos da mesma categoria.

(…)

A Lei n.º 82-E/2014, de 31 de dezembro (Lei da Reforma do IRS) introduziu uma limitação ao reporte das perdas da categoria F, concretizada na introdução de um requisito de continuidade de geração de rendimentos desta categoria pelos prédios a que os gastos dizem respeito. (…)»

 

Também a este propósito, Rui Duarte Morais (ob. cit., p.127) frisa que «a lei consagra – no que, realmente, constitui a regra geral – a compensação das perdas para a frente: o resultado líquido negativo de uma dada categoria é dedutível aos rendimentos positivos dessa mesma categoria obtidos nos anos seguintes (dentro de determinados limites temporais)».

   

Ainda quanto aos rendimentos prediais, como resulta do estatuído no artigo 72.º, n.º 1, alínea e), do Código do IRS, estes são tributados à taxa autónoma de 28%; ademais, o n.º 8 daquele artigo 72.º determina que os mesmos só podem ser englobados por opção dos respetivos titulares residentes em território português e o subsequente n.º 9 prevê que os residentes noutro Estado-membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, desde que, neste último caso, exista intercâmbio de informações fiscais, podem optar pela tributação desses rendimentos à taxa que, de acordo com a tabela prevista no artigo 68.º, n.º 1, seria aplicável no caso de serem auferidos por residentes em território português (o que está em consonância com o estatuído na alínea b) do n.º 3 do artigo 22.º do Código do IRS).

                              

§2.2. O CASO CONCRETO: SUBSUNÇÃO NORMATIVA

21. Feito o necessário enquadramento normativo e volvendo ao caso concreto, resulta do probatório que a Requerente é residente na Suíça (cf. facto provado a)), país que não é Estado-membro da União Europeia, nem do Espaço Económico Europeu, o que a impede de optar pelo englobamento dos rendimentos prediais auferidos em Portugal (artigo 72.º, n.ºs 8 e 9, a contrario, do Código do IRS).

 

Importa, então, determinar se a dedução de perdas da categoria F, tal como prevista na citada norma do Código do IRS, está dependente do englobamento dos rendimentos prediais.

 

Constitui nosso entendimento que assim não é, porquanto, como afirma Paula Rosado Pereira (ob. cit., pp. 152 e 153):

«O artigo 55.º, n.º 1, alínea b) do CIRS, que estabelece o regime da dedução de perdas da categoria F, não exige o englobamento dos rendimentos prediais como condição para o reporte de perdas. Tal conclusão parece-nos indubitável, atento o facto de o artigo 55.º, n.º 1, alínea d) do CIRS, pelo contrário, dispor expressamente que a dedução de perdas relativamente às mais-valias mobiliárias apuradas nos anos seguintes depende da opção do sujeito passivo pelo englobamento.

  Dessa forma, caso o legislador fiscal pretendesse que o reporte de perdas no âmbito da categoria F dependesse do exercício da opção pelo englobamento (englobamento esse que teria de ocorrer, nesse caso, tanto no ano do apuramento da perda, como no ano em que o sujeito passivo quisesse beneficiar da dedução da mesma), tê-lo-ia dito, tal como fez relativamente às mais e menos-valias mobiliárias.

Para além deste argumento de teor liberal, prevalecem igualmente, em prol da admissibilidade da dedução de perdas da categoria F no âmbito do regime de tributação autónoma dos rendimentos prediais, sem dependência do exercício da opção pelo englobamento, os argumentos (…) [seguintes]     

Com efeito, a inviabilidade da dedução de perdas fora do regime de englobamento – se porventura se verificasse, o que não sucede – tiraria atratividade ao regime de tributação dos rendimentos prediais através de taxas especiais de tributação autónoma. Ora, isto não faria sentido, se pensarmos na intenção do legislador fiscal ao criar o regime em apreço. A sujeição dos rendimentos prediais a um regime de tributação autónoma, mediante a aplicação de uma taxa especial e a exclusão da obrigatoriedade do englobamento, visou tornar mais apelativo para os investidores o regime de tributação dos rendimentos prediais. Objetivo que sairia bastante prejudicado, caso o regime de tributação autónoma excluísse a dedução das perdas de anos anteriores fora do exercício da opção pelo englobamento.»

 

A posição da AT carece, assim, de substrato normativo, pois nem a letra nem o espírito da lei permitem sustentá-la, pelo que deve necessariamente soçobrar.

 

A este propósito e na mesma linha de entendimento aqui adotada, já se pronunciaram diversas decisões arbitrais, sendo disso exemplo as prolatadas nos seguintes processos:

(i) Processo n.º 96/2015-T:

«(…) não existe norma que exclua a possibilidade de dedução de perdas, por parte de sujeitos passivos não residentes.

Se é certo que o englobamento opera numa fase posterior à da subtração das “deduções e abatimentos previstos nas secções seguintes”, conforme o disposto no n.º 1 do artigo 22.º, do Código do IRS (o vocábulo “deduções” referir-se-á tanto às deduções específicas de cada categoria de rendimentos, como à dedução de perdas, enquanto deixou de haver “abatimentos”, desde a revogação do artigo 56.º, pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de dezembro), daí não se seguirá, necessariamente, que, caso não seja possível o englobamento, deixe de ser possível beneficiar das “deduções” previstas nas secções seguintes.»

(ii) Processo n.º 338/2016-T:

«61. Não se vislumbra, no texto da lei, a existência de qualquer condicionamento do reporte de perdas na Categoria F de rendimentos do IRS à opção pelo englobamento desses rendimentos e consequente renuncia à sua tributação autónoma. Tampouco se compreende que esta tributação autónoma pudesse incidir sobre rendimentos brutos, em prejuízo do princípio da tributação do rendimento acréscimo líquido que constitui princípio estruturante do referido tributo.»

(iii) Processo n.º 314/2017-T:

«Assim, nos termos da lei, o reporte das perdas apuradas na categoria F não depende da prévia opção pelo englobamento dos rendimentos prediais.»

(iv) Processo n.º 360/2017-T:

«É, assim, claro que não pode ser excluída a aplicação do reporte pelo facto de o contribuinte não ter exercido a opção pelo englobamento, havendo que dar razão à impugnação quanto a esta questão.»

(v) Processo n.º 481/2017-T:

«23. Assim sendo, resulta da interpretação conjugada dos normativos supra descritos que a possibilidade de dedução de perdas prevista no artigo 41.º, bem assim como o reporte de perdas nos anos seguintes, previsto no artigo 55.º, ambos do CIRS, antecede a opção prevista no artigo 72.º do mesmo Código. (…)

24. Assim, seguindo a letra da lei, resulta claramente que os rendimentos prediais, depois de deduzidas as despesas que nos termos da lei o possam ser, são tributados autonomamente à taxa de 28%, sem prejuízo do direito de poderem os respetivos titulares residentes em território português optar pelo englobamento desses rendimentos.

(…)

26. Assim, nos termos da lei, o reporte das perdas apuradas na categoria F não depende da prévia opção pelo englobamento dos rendimentos prediais. Assim, a desconsideração infundada das perdas apuradas no âmbito da categoria F, ao arrepio do expressamente previsto no artigo 55.º, n.º 2, do CIRS, traduz violação de lei por erro sobre os pressupostos de facto e de direito subjacentes à liquidação impugnada.»

(vi) Processo n.º 534/2018-T:

«32. Efetivamente, para além da limitação temporal à dedução das perdas apuradas no âmbito da Categoria F, o artigo 55.º n.º 2 do Código do IRS não estabelece qualquer outro requisito para essa dedutibilidade, ao contrário do que fez quanto artigo 55.º n.º 6, onde refere expressamente “quando o sujeito passivo opte pelo englobamento”.

33. Concluindo, que o artigo 55.º, n.º 2, apenas impõem uma limitação temporal as deduções e não impõem que os rendimentos sejam englobadas para a sua dedução.

(…)

                41. Nestes termos, (…), a natureza jurídica do reporte das perdas apuradas na categoria F não depende da prévia opção pelo englobamento dos rendimentos prediais, até porque, estamos perante norma que permite a dedução de despesas aos rendimentos brutos e não aos rendimentos englobados.

42. Assim sendo, (…) a possibilidade de dedução de perdas prevista no artigo 41.º, bem assim como o reporte de perdas nos anos seguintes, previsto no artigo 55.º, ambos do CIRS, antecede a opção prevista no artigo 72.º do mesmo Código, (…).»

(vii) Processo n.º 538/2018-T:

«(…) nem a letra nem o espírito da lei permitem concluir pela exigência legal da prévia opção pelo englobamento que a Requerida axiomaticamente pretende fazer vingar.

Com efeito, para além da limitação temporal da dedução das perdas na categoria F, o art. 55.º do CIRS não estabelece qualquer outro requisito para essa dedutibilidade.

O mesmo não ocorre relativamente à dedutibilidade dos prejuízos relativos à categoria G, pois aqui o n.º 6 do art. 55.º faz depender expressamente o reporte do sujeito passivo ter optado pelo englobamento.

Assim sendo, se nos socorrermos da regra de interpretação do art. 9.º do Código Civil, aplicável por força do art. 11.º, n.º 1, da LGT, que impede que o intérprete ficcione um pensamento legislativo que não tenha um mínimo de correspondência na letra da lei, forçoso é concluir que se o legislador quisesse exigir o englobamento na situação vertente, tê-lo-ia preceituado expressamente, a exemplo do que fez no n.º 6 relativamente à dedução de perdas no âmbito da categoria G.

Nesta conformidade, (…), concluímos que, nos termos da lei, o reporte das perdas apuradas na categoria F não depende de prévia opção pelo englobamento dos rendimentos prediais.»

(viii) Processo n.º 701/2018-T:  

«(…) nada parece justificar o entendimento formulado pela Autoridade Tributária pelo qual no caso da não opção dos sujeitos passivos pelo englobamento, relativamente a rendimentos prediais, esses rendimentos seriam tributados separadamente à taxa especial de 28% sem qualquer possibilidade de dedução de perdas. De facto, (…), a dedução do resultado líquido negativo apurado pode ser deduzido aos resultados líquidos positivos nos termos do disposto no artigo 55.º, n.º 1, alínea b), do CIRS, sem qualquer dependência da opção pelo englobamento dos rendimentos.»

(ix) Processo n.º 663/2019-T:

«(…) a dedução de perdas da categoria F, tal como prevista no artigo 55.º, n.º 1, alínea b), do Código do IRS, não está dependente do exercício da opção pelo englobamento dos rendimentos prediais.»

Atento o acima exposto e o disposto no artigo 8.º, n.º 3, do CC, não vislumbramos qualquer motivo para nos afastarmos do trilho decisório seguido nas citadas decisões arbitrais, pelo que, subscrevemo-lo e reiteramos o entendimento de que a dedução de perdas da categoria F, tal como prevista no artigo 55.º, n.º 1, alínea b), do Código do IRS, não está dependente do englobamento dos rendimentos prediais.

 

22. Nestes termos, a liquidação de IRS n.º 2019..., referente ao ano de 2018, na parte em que desconsidera o reporte de prejuízos fiscais da categoria F (rendimentos prediais), apurados no ano de 2017, padece de vício de violação de lei, por erro nos pressupostos de direito, consubstanciado na errada interpretação e aplicação do disposto no artigo 55.º, n.º 1, alínea b), do Código do IRS, pelo que deve ser anulada (artigo 163.º, n.º 1, do CPA, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea d), do RJAT).

 

Na justa medida em que manteve o ato de liquidação controvertido, a decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2019... padece de igual vício invalidante, pelo que deve igualmente ser anulada (artigo 163.º, n.º 1, do CPA, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea d), do RJAT).

 

O mesmo sucede quanto à decisão de indeferimento do recurso hierárquico n.º ...2019... que, assim, tem também de ser anulado (artigo 163.º, n.º 1, do CPA, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea d), do RJAT).

 

23. Importa, ainda, dizer que quer o valor concreto de prejuízos fiscais da categoria F, apurados no ano de 2017, a considerar nos anos subsequentes, designadamente o que deve ser reportado ao ano de 2018, quer o montante de imposto suportado em excesso pela Requerente – o qual deverá ser restituído, acrescido de juros indemnizatórios, caso tenha sido pago (artigo 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e artigo 100.º da LGT) –, deverão ser determinados em execução de julgado.

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24. A finalizar, há que salientar que foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras. 

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IV. DECISÃO

Nos termos expostos, este Tribunal Arbitral decide:

a)            Julgar improcedentes as exceções deduzidas pela Requerida, com as legais consequências;

b)           Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, consequentemente:

(i)           Declarar ilegal e anular a liquidação de IRS n.º 2019..., referente ao ano de 2018, de que resultou o valor a pagar de € 1.291,17, na parte em que desconsidera o reporte de prejuízos fiscais da categoria F (rendimentos prediais), apurados no ano de 2017, com as legais consequências;

(ii)          Declarar ilegal e anular a decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2019..., com as legais consequências;

(iii)         Declarar ilegal e anular a decisão de indeferimento do recurso hierárquico n.º ...2019..., com as legais consequências;

(iv)         Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira no pagamento das custas do presente processo.

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VALOR DO PROCESSO

Atento o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, no artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e no artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, é fixado ao processo o valor de € 1.291,17 (mil duzentos e noventa e um euros e dezassete cêntimos).

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CUSTAS

Nos termos do disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT e no artigo 4.º, n.º 4, e na Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, o montante das custas é fixado em € 306,00 (trezentos e seis euros), cujo pagamento fica a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

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Notifique.

 

Lisboa, 19 de outubro de 2020.

 

O Árbitro,

(Ricardo Rodrigues Pereira)