Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 510/2022-T
Data da decisão: 2023-05-08  IMI  
Valor do pedido: € 66.171,39
Tema: IMI / AIMI - terrenos para construção; determinação do VPT; revisão do acto tributário - artigos 38.º, 39.º e 45.º do Código do IMI e artigo 78.º da LGT.
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SUMÁRIO:

I. Se o contribuinte não sindicar o valor patrimonial tributário nos termos previstos nos artigos 76.º e 77.º do Código do IMI, fica impossibilitado de arguir a ilegalidade dos actos de liquidação subsequentes com fundamento na ilegalidade subjacente ao cálculo do valor patrimonial tributário que lhes serviu de matéria colectável.

II. O artigo 78.º, n.ºs 4 e 5, da LGT permite a revisão dos actos de determinação do valor patrimonial tributário, enquanto actos de fixação da matéria colectável, nos três anos posteriores aos dos actos de liquidação com fundamento em injustiça grave ou notória, desde que o erro não seja imputável a comportamento negligente do contribuinte.

III. O artigo 45.º do Código do IMI, na redacção anterior à Lei n.º 75-B/2020, de 31 de Dezembro, não previa a aplicação na determinação do valor patrimonial tributário dos terrenos para construção dos coeficientes de afectação e de localização previstos no artigo 38.º do Código do IMI, nem do factor de majoração previsto no artigo 39.º, n.º 1, do Código do IMI.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Os Árbitros Carla Castelo Trindade, Vasco António Branco Guimarães e Jorge Belchior de Campos Laires, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral, decidem no seguinte:

 

I. RELATÓRIO

 

1. A..., S.A., com o número de identificação fiscal..., com sede no ..., ...-... ..., Silves (“Requerente”), veio requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”) e 102.º, n.º 1, alínea e), do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), com vista à anulação das decisões de indeferimento expresso dos pedidos de revisão oficiosa apresentados e, consequentemente, com vista à anulação parcial dos actos de liquidação de Imposto Municipal sobre Imóveis (“IMI”) e de Adicional ao Imposto Municipal sobre Imóveis (“AIMI”) infra melhor identificados, peticionando ainda o reembolso da quantia total de € 66.171,39, acrescida de juros indemnizatórios.

 

            2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite em 31 de Agosto de 2022 pelo Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT” ou “Requerida”).

 

            3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As partes foram notificadas dessa designação em 20 de Outubro de 2022, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

 

            4. Em conformidade com o disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo ficou constituído em 8 de Novembro de 2022.

 

            5. A Requerente veio sustentar a procedência do seu pedido, em síntese, tendo em conta os seguintes argumentos:

            Nos pedidos de revisão oficiosa que apresentou, a Requerente estabeleceu como fundamento principal de contestação dos actos de liquidação de IMI e de AIMI a existência de um erro imputável aos serviços, nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 78.º, n.º 1 da Lei Geral Tributária (“LGT”) e 115.º, n.º 1, alínea c), do código do IMI. A existência de tal erro resultou, no entender da Requerente, do facto de os actos de liquidação de IMI e de AIMI terem sido emitidos pela AT com base em valores patrimoniais tributários (“VPT” ou “VPT’s”) que foram ilegalmente calculados. Isto na medida em que a AT aplicou aos terrenos para construção, cuja norma de determinação do VPT é o artigo 45.º do Código do IMI, as regras de avaliação previstas para os prédios edificados, designadamente os coeficientes multiplicadores de afectação e de localização previstos respectivamente nos artigos 41.º e 42.º do Código do IMI, bem como uma majoração de 25% do terreno de implantação prevista no artigo 39.º, n.º 1, do Código do IMI.

            Nos pedidos de revisão oficiosa a Requerente estabeleceu como fundamento subsidiário a existência de uma injustiça grave ou notória nos termos e para os efeitos dos artigos 78.º, n.º 4 da LGT e 115.º, n.º 1, alínea c), do código do IMI. Segundo a Requerente, a aplicação na avaliação dos terrenos para construção das regras previstas para os prédios edificados anteriormente mencionadas, implicou o apuramento de uma matéria colectável que se traduziu numa injustiça ostensiva, na medida em que acarretou de forma evidente e clara uma tributação manifestamente desproporcionada com a realidade. Em concreto, invocou a Requerente que as alegadas ilegalidades no apuramento da matéria colectável implicaram um excesso de IMI e de AIMI num valor agregado de € 66.171,39 (€ 35.585,16 de IMI e € 30.586,23 de AIMI), face ao que resultaria do integral cumprimento da lei.

            Na perspectiva da Requerente, estavam reunidos todos os pressupostos para que a AT revisse os actos de liquidação de IMI e AIMI objecto daquele procedimento, pelo que o seu indeferimento é ilegal.

            Ilegalidade esta que, de acordo com a Requerente, era confirmada pelas alterações legislativas feitas por via da Lei do Orçamento do Estado para 2021, em virtude das quais se passou a prever expressamente a aplicação aos terrenos para construção do factor de majoração e dos coeficientes de afectação e de localização já referidos.

            Invocou também a Requerente que a interpretação dos artigos 78.º, n.ºs 1, 4 e 5, da LGT e 115.º, n.º 1, alínea c), do Código do IMI que mais se conforma com os princípios constitucionais da igualdade, proporcionalidade, justiça, imparcialidade e boa-fé é a sustentada nos pedidos de revisão oficiosa e no pedido arbitral.

            Referiu ainda a Requerente que a AT não poderia rejeitar os pedidos de revisão oficiosa com fundamento no facto de o cálculo dos VPT’s ter sido feito há mais de 5 anos, pelo facto de tal regra, que se encontra prevista no artigo 168.º do Código de Procedimento Administrativo (“CPA”), não encontrar suporte no artigo 78.º da LGT, sendo que entendimento contrário implicaria que a AT pudesse continuar a emitir actos tributários manifestamente ilegais com o argumento de que o acto administrativo se tornou inimpugnável ou insusceptível de revogação/substituição por já ter decorrido o prazo de anulação do acto por iniciativa da AT.

            Por fim, peticionou a Requerente o direito ao pagamento de juros indemnizatórios sobre o valor do imposto pago em excesso, calculado à taxa legal em vigor de 4% por ano nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 43.º da LGT e 61.º do CPPT, desde o dia 30 de Dezembro de 2022 (um ano após a data de apresentação dos pedidos de revisão oficiosa) até integral reembolso.

 

            6. A Requerida, tendo sido devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua Resposta em 12 de Dezembro de 2022, tendo concluído pela improcedência da presente acção e, consequentemente, pela sua absolvição do pedido. A Requerida sustentou a sua resposta, sumariamente, com base nos seguintes argumentos:

            Começou a Requerida por referir que no âmbito do presente processo inexiste litígio quanto à forma de cálculo aplicável para determinar o VPT dos terrenos para construção, porquanto a AT acolheu o entendimento preconizado pelos tribunais superiores segundo o qual não são considerados naquele cálculo os coeficientes previstos na expressão matemática do artigo 38.º do Código do IMI, tais como os coeficientes de localização, de afectação, de qualidade e conforto, mas tão só a regra específica que consta do artigo 45.º do mesmo código. Não obstante, prosseguiu a Requerida por referir que o procedimento de revisão oficiosa previsto no artigo 78.º da LGT não abrange os actos de avaliação patrimonial, que não são actos tributários previstos no n.º 1, nem são actos de apuramento da matéria tributável previstos no n.º 4 daquela norma. Para a Requerida, não se verifica qualquer erro dos actos de liquidação, dado que o imposto foi calculado com base no VPT que constava da matriz à data dos factos, sem contar que o fundamento da injustiça grave ou notória do n.º 4 do artigo 78.º da LGT não é invocável quando a liquidação do IMI (quer do AIMI) tenha sido efectuada de acordo com o artigo 113.º, n.º 1 do Código do IMI.

            Referiu também a Requerida que o procedimento avaliativo constitui um acto autónomo e destacável para efeito de impugnação arbitral, que se não for impugnado nos termos e prazo fixado se consolida na ordem jurídica como caso decidido ou resolvido, semelhante ao caso julgado, que a posterior liquidação tem de acolher. O que significa, segundo o juízo da Requerida, que ao não ter a Requerente colocado em causa o VPT obtido pela 1.ª avaliação, requerendo para o efeito uma 2.ª avaliação, o mesmo fixou-se por força do princípio da segurança jurídica, não sendo possível conhecer na posterior liquidação de eventuais erros ou vícios cometidos nessa avaliação.

            Continuou a Requerida por afirmar que do pedido e causa de pedir tal como configurados pela Requerente, resulta que pela presente acção se pretende a anulação das liquidações impugnadas com fundamento em vícios que não são dos actos impugnados mas sim dos actos que fixaram o VPT. No entendimento da Requerida, os actos que fixaram o VTP são actos autónomos e individualizados, com eficácia jurídica própria, que são destacáveis e autónoma e directamente impugnáveis, constituindo uma excepção ao princípio da impugnação unitária prevista no artigo 86.º da LGT. Quanto a estes actos pretende-se, segundo a Requerida, alcançar a desejável estabilização e consolidação da matéria tributável em momento anterior ao da efectivação da liquidação. Consequentemente, concluiu a Requerida pela inimpugnabilidade dos actos de liquidação com fundamento em vícios próprios do acto de fixação do VPT.

            Defendeu também a Requerida que mesmo que se considere aplicável o procedimento de revisão oficiosa ao presente caso, o prazo para autorização da revisão da matéria tributável pelo dirigente máximo do serviço, não é o previsto no n.º 1, mas sim o prazo reduzido previsto no n.º 4 do artigo 78.º da LGT. Assim sendo, tendo em conta a data de apresentação do pedido de revisão oficiosa das liquidações, a data de interposição da presente acção e a data da respectiva avaliação dos presentes imóveis que ocorreu há mais de 5 anos, o pedido de revisão é intempestivo.

            Para além disto, alegou a Requerida que por força do disposto nos artigos 79.º da LGT e 165.º a 174.º do CPA, a revogação e anulação dos actos administrativos em matéria tributária tais como os actos de fixação do VPT apenas são possíveis nos casos em que não tenham decorrido cinco anos desde a respectiva emissão, prazo que já teria decorrido no presente caso.

            Mencionou também a Requerida que o pedido formulado pela Requerente não está previsto ou fundamentado na lei, pelo que não pode ser julgado procedente, uma vez que o Tribunal Arbitral está obrigado a julgar de acordo com o direito constituído e está impedido de julgar o processo de acordo com critérios da equidade.

            Referiu ainda a Requerida que a AT está vinculada ao princípio da legalidade previsto no artigo 266.º da Constituição da República Portuguesa e concretizado nos artigos 55.º da LGT e 3.º do CPA, o que implica que não pode deixar de dar integral cumprimento aos normativos que o legislador ordinário criou em vigor no ordenamento jurídico.

            A terminar, argumentou a Requerida que na eventualidade de a acção ser julgada procedente, não deverá ser fixado o valor do montante a reembolsar na medida em que o Tribunal não possui todos os elementos necessários para o efeito, devendo tal apuramento ser efectuado em sede de execução da decisão arbitral.

            Por fim, mencionou a Requerida que não existia no presente caso qualquer erro imputável aos serviços que tenha determinado o pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, pelo que não é devido o pagamento de juros indemnizatórios nos termos do disposto no artigo 43.º LGT. Se, por hipótese, o pedido de pagamento de juros fosse julgado procedente, este sempre seria enquadrável no n.º 3, alínea c) do artigo 43.º da LGT, o qual determina que nas situações de revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte apenas são devidos juros indemnizatórios a partir de um ano após a apresentação do pedido de revisão.

 

            7. Apesar de a Requerida não ter individualizado na sua resposta o tipo de defesa efectuada em conformidade com o disposto nos artigos 571.º e 572.º do Código de Processo Civil (“CPC”) aplicável ex vi artigo 29.º, alínea e) do RJAT, certo é que apresentou argumentos que configuram defesa por excepção. Neste sentido, em 23 de Dezembro de 2022, foi concedida à Requerente a possibilidade de, querendo, exercer o direito ao contraditório, o que esta veio a fazer em 16 de Janeiro de 2022, onde formulou, em síntese, os seguintes argumentos:

            No entendimento da Requerente, a possibilidade de apresentação de pedido de revisão oficiosa em casos como o que ora se analisa resulta do teor do artigo 78.º da LGT, o que foi confirmado por vasta jurisprudência.

            Relativamente à consolidação do acto que fixou o VPT e à inimpugnabilidade dos actos de liquidação com fundamento em vícios próprios dos actos de fixação do VPT, começou a Requerente por registar que não solicitou directamente a revisão dos actos de fixação dos VPT’s mas sim a revisão das liquidações de imposto que foram emitidas com base em VPT’s fixados de forma ostensivamente ilegal. Prosseguiu a Requerente por referir que o facto de os actos de fixação do VPT serem autonomamente sindicáveis não permite concluir que os actos de liquidação emitidos com base naquele sejam insindicáveis. Para a Requerente, o regime dos actos destacáveis não poderia em qualquer caso ter aplicação no presente caso, porque se está perante uma situação em que o contribuinte declarou correctamente todos os elementos e em que os peritos avaliadores consideraram correctamente todos os elementos declarados pelo contribuinte mas em que, fruto de uma fórmula pré-estabelecida e incorporada (sem possibilidade de ser alterada) no sistema informático da AT – i.e. fruto de um ato prévio aos procedimentos de avaliação –, os VPTs que foram fixados pela AT são ostensivamente ilegais. Acresce, segundo a Requerente, que o regime regra que vigora no ordenamento jurídico-tributário é o da impugnação unitária, pelo que a ser aplicável alguma excepção a tal regime no caso em análise sempre teria de ter como finalidade o reforço das garantias dos contribuintes que passariam a poder reagir imediatamente contra actos lesivos, e não, como a Requerida parece pretender, a eliminação total das garantias dos contribuintes e do direito que lhes assiste de solicitar à AT que reveja actos tributários ostensivamente ilegais onde se constate que foi liquidado imposto em excesso aos contribuintes em resultado de actos prévios ou preparatórios dos procedimentos de avaliação.

            Por fim, no que respeita à intempestividade do pedido de revisão oficiosa, referiu a Requerente que mesmo que apenas fosse aplicável o prazo mais reduzido de três anos previsto no n.º 4 do artigo 78.º LGT, o pedido tinha em qualquer caso sido tempestivo, dado que o primeiro pedido de revisão foi apresentado em 30.12.2021, quando o prazo terminava em 31.12.2021.

 

8. Em 30 de Janeiro de 2023, a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT foi dispensada ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal na condução do processo e da celeridade, simplificação e informalidade processuais, previstos nos artigos 16.º, alínea c) e 29.º, n.º 2, ambos do RJAT, tendo-se remetido para final a apreciação da matéria de excepção e concedido às partes a faculdade de, querendo, apresentarem alegações escritas, direito que apenas a Requerente exerceu em 17 de Fevereiro de 2023, onde reiterou os argumentos já anteriormente expressos nas peças processuais que apresentou.

 

9. Em 16 de Março de 2023, ao abrigo do princípio da colaboração, veio a Requerida juntar aos autos o acórdão de uniformização de jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo (“STA”), proferido em 23 de Fevereiro de 2023, no processo 0102/22.2BALSB. Em 17 de Abril de 2023, a Requerente juntou aos autos o acórdão arbitral, proferido em 03 de Abril de 2023, no processo n.º 464/2022-T, tendo ainda exercido o contraditório quanto ao teor da decisão do STA anteriormente junta pela Requerida, sublinhando o entendimento de que aquele acórdão tem uma relevância parcial e limitada que não restringe a possibilidade de a revisão oficiosa ser impulsionada no presente caso nos termos e para os efeitos do artigo 78.º, n.ºs 4 e 5 da LGT, que permite que a revisão opere com fundamento em injustiça grave ou notória.

 

II. SANEAMENTO

 

            10. O tribunal arbitral foi regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 4.º e 5.º, todos do RJAT.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e estão regularmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e dos artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

            A cumulação de pedidos de IMI e de AIMI referentes a diversos períodos de tributação feita pela Requerente é admissível, visto que a respectiva procedência depende essencialmente da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios e regras de direito, tal como previsto no artigo 3.º, n.º 1 do RJAT.

O processo não enferma de nulidades.

Uma vez que a matéria de excepção invocada pela Requerida está intrinsecamente relacionada com a apreciação do fundo da causa, o seu conhecimento será feito no âmbito do conhecimento da matéria de direito.

 

III. DO MÉRITO

 

III.1. MATÉRIA DE FACTO

III.1.1. Factos provados

 

11. Analisada a prova produzida nos presentes autos, consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão da causa:

  1. Em 31.12.2017, 31.12.2018, 31.12.2019 e 31.12.2020 (datas relevantes para efeitos de IMI) e em 01.01.2018, 01.01.2019 e 01.01.2020 (datas relevantes para efeitos de AIMI) a Requerente era proprietária dos terrenos para construção inscritos na matriz predial urbana da freguesia da ..., concelho de Lagos, sob os artigos matriciais U‑..., U-..., U-..., U-... e U-...;
  2. A Requerente foi notificada dos actos de liquidação de IMI n.ºs 2017..., 2017... e 2017..., de 07.03.2018, relativos ao ano de imposto de 2017, no valor de € 14.679,09;
  3. A Requerente foi notificada dos actos de liquidação de IMI n.ºs 2018..., 2018 ... e 2018..., de 23.03.2019, relativos ao ano de imposto de 2018, no valor de € 14.879,15;
  4. A Requerente foi notificada dos actos de liquidação de IMI n.ºs 2019..., 2019... e 2019..., de 08.04.2020, relativos ao ano de imposto de 2019, no valor de € 14.899,29;
  5. A Requerente foi notificada dos actos de liquidação de IMI n.ºs 2020 ..., 2020 ... e 2020 ..., de 07.04.2021, relativos ao ano de imposto de 2020, no valor de € 14.473,60;
  6. Os montantes de IMI referidos nas alíneas b), c), d), e e) dizem totalmente respeito a terrenos para construção e resultam da aplicação de uma taxa de IMI de 0,35% sobre os VPT’s fixados pela AT para os terrenos para construção por referência a 31.12.2017, 31.12.2018 e 31.12.2019, e de uma taxa de IMI de 0,34% sobre os VPT’s fixados para os terrenos para construção por referência a 31.12.2020;
  7. A Requerente foi notificada do acto de liquidação de AIMI n.º 2018 ..., de 30.06.2018 relativo ao ano de imposto de 2018, do qual resultou um valor de imposto a pagar de € 16.776,12;
  8. A Requerente foi notificada do acto de liquidação de AIMI n.º 2019 ..., de 30.06.2019, relativo ao ano de imposto de 2019, do qual resultou um valor de imposto a pagar de € 17.004,75;
  9. A Requerente foi notificada do acto de liquidação de AIMI n.º 2020 ..., de 30.06.2020 relativo ao ano de imposto de 2020, do qual resultou um valor de imposto a pagar de € 17.027,76;
  10. Os montantes de AIMI referidos nas alíneas g), h) e i) dizem totalmente respeito a terrenos para construção e resultam da aplicação de uma taxa de 0,40% sobre os VPT’s fixados pela AT, para os referidos prédios por referência a 01.01.2018, 01.01.2019 e 01.01.2020;
  11. Na determinação dos VPT’s dos terrenos para construção inscritos na matriz predial urbana da freguesia da ... sob os artigos matriciais U-..., U-..., U-..., U‑... a AT aplicou, para cada um destes terrenos para construção, um coeficiente de localização de 2;
  12. Na determinação do VPT do terreno para construção inscrito na matriz predial urbana da freguesia da ... sob o artigo matricial U-..., a AT aplicou indevidamente um coeficiente de localização de 1,8 e um coeficiente de afectação de 1,2;
  13. Na fórmula de cálculo dos VPT’s dos terrenos para construção a AT não expurgou a majoração prevista no artigo 39.º, n.º 1, do Código do IMI;
  14. A Requerente pagou os montantes de IMI e AIMI liquidados que são referidos nas alíneas b), c), d), e), g), h) e i);
  15. Em 30.12.2021, a Requerente apresentou dois pedidos de revisão oficiosa referentes aos actos de liquidação referidos nas alíneas b), c), d), e), g), h) e i), com fundamento em erro imputável aos serviços e, subsidiariamente, em injustiça grave ou notória;
  16. Em 30.05.2022, a Requerente foi notificada das decisões de indeferimento expresso dos pedidos de revisão apresentados;
  17. Em 29.08.2022, a Requerente apresentou o pedido de constituição de tribunal arbitral que originou os presentes autos.

 

III.1.2. Factos não provados

 

12. Com relevo para a decisão da causa, não ficou provado que a Requerente tenha impugnado autonomamente os actos de fixação do VPT de cada um dos terrenos para construção objecto do presente processo.

 

III.1.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

13. O Tribunal Arbitral não tem o dever de se pronunciar sobre todos os factos alegados pelas partes, mas tão só o dever de seleccionar os factos que interessam à decisão da causa e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada, conforme resulta do disposto no artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e do artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

Neste sentido, os factos pertinentes para o julgamento da causa foram seleccionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é determinada tendo em conta as várias soluções plausíveis das questões de direito para o objecto do litígio, conforme decorre do artigo 596.º, n.º 1 do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

Considerando as posições assumidas pelas partes nas respectivas peças processuais, o disposto no artigo 110.º, n.ºs 6 e 7, do CPPT e a prova documental junta aos autos, consideraram-se provados e não provados, com relevo para a decisão da causa, os factos acima elencados.

 

III.2. MATÉRIA DE DIREITO

 

            14. Enquanto ponto de partida cumpre ter presente que no presente processo não é controvertido que o VPT dos terrenos para construção foi calculado com base numa forma de cálculo ilegal. Com efeito, no procedimento de avaliação e determinação do VPT, foi utilizada pela AT uma fórmula de cálculo que considerou um conjunto de variáveis que só por via da Lei n.º 75-B/2020, de 31 de Dezembro passaram a estar expressamente previstas no artigo 45.º do Código do IMI. Dito de outro modo, a AT aplicou aos prédios classificados como terrenos para construção um conjunto de regras que, à data, apenas se encontravam previstas e apenas eram aplicáveis aos prédios edificados, designadamente os coeficientes multiplicadores previstos no artigo 38.º do Código do IMI e, bem assim, o factor de majoração de 25% do terreno de implantação previsto no artigo 39.º, n.º 1, daquele mesmo código.

 

            15. A ilegalidade da aplicação aos terrenos para construção das regras previstas para os prédios edificados foi, de resto, confirmada por diversas decisões do STA, de onde se salientam a título exemplificativo os acórdãos uniformizadores de jurisprudência proferidos em 3.7.2019, no processo n.º 016/10.9BELLE e em 21.09.2016, no processo n.º 0183/13, sem contar com diversas outras decisões proferidas por aquele Tribunal, tais como os acórdãos proferidos em 23.10.2019, no processo n.º 0170/16.6BELRS 0684/17 e em 9.10.2019, no processo n.º 0165/14.4BEBRG.

 

            16. Assim sendo, o objecto do litígio nos presentes autos centra-se apenas na verificação dos pressupostos que permitem impulsionar a revisão oficiosa dos actos de liquidação que foram emitidos por referência a um VPT que foi indevidamente determinado, tendo para o efeito presente o conjunto de defesa por excepção invocada pela Requerida e cuja apreciação está intimamente dependente da análise dos pressupostos da revisão oficiosa. Assim, analisar‑se-á, em primeiro lugar, se e em que termos a ilegalidade do cálculo do VPT permite à Requerente fazer uso da revisão dos actos de liquidação com fundamento em erro imputável aos serviços (segunda parte do n.º 1 do artigo 78.º da LGT) e, subsidiariamente, caso se conclua pela respectiva inadmissibilidade, se e em que termos é que a ilegalidade já mencionada permite à Requerente fazer uso da revisão da matéria tributável com fundamento em injustiça grave ou notória (n.ºs 4 e 5 do artigo 78.º da LGT). Nesta análise, haverá também que ter em conta os argumentos/vícios de constitucionalidade invocados pela Requerente.

 

            17. Relativamente à possibilidade de utilização pela Requerente do procedimento de revisão dos actos de liquidação com fundamento em erro imputável aos serviços prevista na segunda parte do n.º 1 do artigo 78.º da LGT, cumpre antes de mais aferir a possibilidade de sindicar as ilegalidades dos actos de fixação do VPT no âmbito da impugnação dos actos de liquidação que lhes são subsequentes.

 

            18. A resposta a esta questão, que gerou vasta jurisprudência arbitral em sentido contraditório, foi objecto de uniformização pelo STA através do acórdão proferido em 23.12.2023, no processo n.º 0102/22.2BALSB, no âmbito do qual se referiu o seguinte:

 

Vigora no contencioso tributário o princípio da impugnação unitária segundo o qual só há lugar a impugnação contenciosa do ato final do procedimento, que tem assento legal nos artigos 66.º da LGT e 54.º do CPPT. O primeiro dispositivo legal estabelece que os contribuintes e demais interessados podem, no decurso do procedimento, reclamar de quaisquer atos ou omissões da administração tributária (n.º 1), mas a reclamação não suspende o procedimento, podendo os interessados recorrer ou impugnar a decisão final com fundamento em qualquer ilegalidade (n.º 2). O segundo, com a epígrafe “impugnação unitária”, estabelece que “Salvo quando forem imediatamente lesivos dos direitos do contribuinte ou disposição expressa em sentido diferente, não são susceptíveis de impugnação contenciosa os actos interlocutórios do procedimento, sem prejuízo de poder ser invocada na impugnação da decisão final qualquer ilegalidade anteriormente cometida.”

 

O princípio da impugnação unitária tem, assim, duas exceções, admitindo a lei adjetiva tributária a impugnação imediata dos atos interlocutórios (i) “quando forem imediatamente lesivos dos direitos do contribuinte”, e (ii) quando “exista disposição expressa em sentido diferente”, ou seja, quando exista lei que admita expressamente a impugnação imediata do ato interlocutório.

 

Ora, a avaliação direta é um dos casos em que o legislador afastou o princípio da impugnação unitária e admitiu a impugnação imediata do ato de avaliação. Estabelece o artigo 86.º, n.º 1 da LGT que a avaliação direta é suscetível nos termos da lei de impugnação contenciosa direta. O que significa que se essa avaliação se inserir num procedimento de liquidação, o ato de avaliação é diretamente impugnável. A impugnabilidade fica, no entanto, dependente do esgotamento dos meios administrativos previstos para a sua revisão (n.º 2 do artigo 86.º da LGT).

 

No que respeita em particular aos atos de fixação de valores patrimoniais rege o artigo 134.º do CPPT, em consonância com o disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 86.º da LGT, que admite a sua impugnação com fundamento em qualquer ilegalidade (n.º 1), não tendo a impugnação efeito suspensivo, e só podendo ter lugar depois de esgotados os meios graciosos previstos no procedimento de avaliação (n.º 7).

 

Particularizando ainda mais, e centrando-nos no caso sub judice, o procedimento de determinação do valor patrimonial tributário (ato de fixação de valores patrimoniais – artigo 37.º a 46.º, e 71.º a 77.º, do Código do IMI) é uma espécie de procedimento de avaliação direta, prevendo o Código do IMI um expediente especial de reação contra as ilegalidades da avaliação.

Assim, quando o sujeito passivo não concorda com o resultado da avaliação (primeira avaliação) pode requerer uma segunda avaliação, conforme dispõe o n.º 1 do artigo 76.º do Código do IMI. E do resultado desta segunda avaliação cabe impugnação judicial, tal como o prevê o artigo 77.º do mesmo Código.

 

O disposto nestes dois artigos 76.º e 77.º do Código do IMI devem ser interpretados em conjugação com o disposto no referido artigo 134.º do CPPT, que prevê, como atrás referimos, a impugnação dos atos de fixação dos valores patrimoniais, e no seu n.º 7 condiciona a impugnabilidade ao esgotamento dos meios graciosos (“7- A impugnação referida neste artigo não tem efeito suspensivo e só poderá ter lugar depois de esgotados os meios graciosos previstos no procedimento de avaliação.”), que por sua vez está em consonância com o artigo 86.º, n.º 2, da LGT, que determina, como também já se referiu, que os atos de avaliação direta só são contenciosamente impugnáveis quando estiverem esgotados os meios administrativos previstos para a sua revisão. Esta necessidade de esgotamento dos meios graciosos como condição de impugnação do valor fixado através de avaliação direta, reiterada nas diferentes disposições legais, evidencia que a segunda avaliação não é, para efeitos de impugnação, uma mera faculdade.

 

Tendo em conta o que fica dito duas conclusões se podem retirar, desde já, no que toca à impugnabilidade do ato de fixação do valor tributário: (i) as ilegalidades de que possa padecer a primeira avaliação no que tange à fixação do valor patrimonial não é diretamente impugnável – admitindo o Supremo Tribunal Administrativo que poderá ser impugnada com fundamento em vícios de forma ou com base em erro de facto ou de direito, designadamente errada classificação do prédio (acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 16/04/2008, proferido no processo 004/08, de 30/05/2012, proferido no processo 01109/11, de 27/06/2012, proferido no processo 01004/11 e de 27/11/12, de 27/11/2013); (ii) do resultado da segunda avaliação, que esgota os meios graciosos à disposição dos interessados, cabe impugnação judicial que pode ter como fundamento qualquer ilegalidade, designadamente a errónea quantificação do valor patrimonial do prédio.

 

E uma terceira conclusão se impõe: a de que prevendo a lei um modo especial de reação contra as ilegalidades do ato de fixação do valor patrimonial tributário, proferido em procedimento tributário autónomo, as mesmas não podem servir de fundamento à impugnação da liquidação do imposto que tiver por base o resultado dessa avaliação.

 

Na verdade, o ato que fixa o valor patrimonial tributário encerra um procedimento autónomo de avaliação que servirá de base a uma pluralidade de atos de liquidação que venham a ser praticados enquanto o valor dela resultante se mantiver, designadamente às liquidações de impostos sobre o património (cf. acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 14/10/2020, proferido no processo 050/11.1BEAVR, consultável em www.dgsi.pt).

 

Distingue-se daqueles outros procedimentos em que o ato de avaliação direta se insere num procedimento tributário tendente à liquidação do tributo, e que assim assumem a natureza de atos destacáveis para efeitos de impugnação contenciosa, isto é, apesar de serem atos preparatórios da decisão final (liquidação) por disposição legal especial são direta e imediatamente impugnáveis. No caso, como referimos, o ato final do procedimento de avaliação é o ato que fixa o valor patrimonial.

 

De qualquer forma, quer o ato de avaliação direta se insira no procedimento de liquidação do imposto (aplicando-se neste caso a exceção ao princípio da impugnação unitária), quer, como é o caso, finalize um procedimento de avaliação direta autónomo, os vícios que afetem o valor encontrado apenas podem ser invocados na sua impugnação e já não na impugnação da liquidação que com base no valor resultante da avaliação vier a ser efetuada.

 

O mesmo é dizer que para além de a impugnação judicial do ato de fixação do valor patrimonial depender do esgotamento dos meios graciosos, a não impugnação do ato preclude que, em sede de impugnação judicial do ato de liquidação do imposto, possa ser questionada a quantificação do valor fixado. Não tendo sido impugnado judicialmente o resultado da segunda avaliação, nos termos previstos na lei, forma-se caso decidido ou resolvido sobre o valor da avaliação, pelo que esta não pode voltar a ser discutida (cf. acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 12/01/2011, proferido no processo 0758/10).

 

Aliás, como refere Jorge Lopes de Sousa (in Código de Procedimento e de Processo Tributário, Vol. I, 6.ª edição, 2011, Áreas Editora, pág. 472) “Neste caso da avaliação directa da matéria tributável, resulta claramente do n.º 4 do at.º 86.º da LGT, embora a contrario, que a invocação das ilegalidades de actos de avaliação direta só pode sem efetuada em impugnação autónoma. Na verdade, tratando este art. 86.º da LGT da impugnação de actos de avaliação directa e de avaliação indirecta da matéria tributável, o facto de se prever no seu n.º 4, apenas para os atos de avaliação indirecta, a possibilidade de invocação das respectivas ilegalidades na impugnação do acto de liquidação, revela com clareza uma intenção legislativa de que só nesses casos de avaliação indireta tal é possível, pois, se assim não fosse, decerto se faria referência cumulativa à generalidade de actos de avaliação da matéria tributável.

 

Acrescenta-se que a solução contrária traria, por um lado, irracionalidade ao sistema, que exige para a impugnação do resultado da avaliação direta, uma segunda avaliação (visando eliminar a carga subjetiva inerente à avaliação e promover a fixação tão objetiva quanto possível da matéria coletável), e já a dispensaria se as ilegalidades a ela inerentes pudessem ser tratadas em sede de impugnação da liquidação do tributo; e por outro, deixaria sem sentido a previsão de impugnação autónoma do ato de fixação do valor patrimonial tributário, pois o corolário lógico da sua previsão só pode ser a preclusão da possibilidade de impugnação posterior.”.

 

            19. Com base nesta argumentação, concluiu o STA que “deixando o contribuinte precludir a possibilidade de sindicar o valor patrimonial tributário nos termos previstos nos artigos 76.º e 77.º do Código do IMI, não pode arguir a ilegalidade da liquidação com fundamento na ilegalidade subjacente ao cálculo do valor patrimonial tributário que lhe serviu de matéria coletável.”.

 

            20. Em virtude do precedente jurisprudencial fixado pelo STA, e em cumprimento do disposto no n.º 3 do artigo 8.º do Código Civil, nos termos da qual recai sobre todo e qualquer órgão jurisdicional o dever de assegurar uma interpretação e aplicação uniformes do direito enquanto garantia de coerência sistemática e concretização do princípio da segurança jurídica, adere este Tribunal Arbitral à posição sufragada pelo STA.

 

            21. Aplicando as conclusões daquele Tribunal aos presentes autos, verifica-se que ao não ter a Requerente contestado autonomamente os actos de fixação do VPT de cada um dos terrenos para construção por via de um pedido de segunda avaliação, não poderão posteriormente ser invocadas ilegalidades na fixação do VPT no âmbito da impugnação da legalidade dos actos de liquidação que lhe são subsequentes. Significa isto que assiste razão à Requerida ao invocar na sua defesa a consolidação do acto que determinou o VPT e a consequente inimpugnabilidade dos actos de liquidação com fundamento em vícios próprios daquele, razão pela qual não se verifica possível o recurso pela Requerente à revisão dos actos de liquidação de IMI e AIMI nos termos e para os efeitos da segunda parte do n.º 1 do artigo 78.º da LGT. Neste sentido, julga-se improcedente o pedido formulado pela Requerente com este fundamento.

 

            22. Subsidiariamente, peticionou a Requerente a revisão da matéria tributável, isto é, a revisão dos actos de fixação do VPT e a consequente anulação dos actos de liquidação relativamente aos quais aquele actua como pressuposto, com fundamento em injustiça grave ou notória, nos termos previstos nos n.º 4 e 5 do artigo 78.º da LGT, que determina que “[o] dirigente máximo do serviço pode autorizar, excepcionalmente, nos três anos posteriores ao do acto tributário a revisão da matéria tributável apurada com fundamento em injustiça grave ou notória, desde que o erro não seja imputável a comportamento negligente do contribuinte.”.

 

            23. Antes de se apreciar cada um dos pressupostos de aplicação deste regime, cumpre deixar claro que a “excepcionalidade” e o “poder de autorização” conferido ao dirigente máximo do serviço a que se reporta a norma consubstancia, na verdade, um efectivo poder‑dever, que vincula e impõe a revisão dos actos, bastando tão só que estejam verificados os demais requisitos para o efeito. Neste sentido veja-se, entre muitos outros, o acórdão do STA proferido em 02.11.2011, no processo n.º 0329/11.

 

            24. No que respeita à existência de uma injustiça grave ou notória, determina-se no n.º 5 do artigo 78.º da LGT que “(…) apenas se considera notória a injustiça ostensiva e inequívoca e grave a resultante de tributação manifestamente exagerada e desproporcionada com a realidade ou de que tenha resultado elevado prejuízo para a Fazenda Nacional”.

 

            25. Ora, no presente caso, a injustiça resultante da aplicação de coeficientes multiplicadores de afectação e de localização e de um factor de majoração que aumentou o VPT dos terrenos para construção à margem da lei, não só é grave como é notória.

 

            26. A injustiça é grave, porque a aplicação daquelas varáveis implicou para a Requerente o pagamento, em diferentes e sucessivos períodos de tributação, de um montante de IMI e AIMI manifestamente exagerado e desproporcionado com a realidade, cujo prejuízo total ascende à quantia de € 66.171,39.

 

            27. E a injustiça é notória, porque é inequívoco e ostensivo que o VPT de cada um dos terrenos para construção foi determinado com base numa fórmula de cálculo não prevista na lei. Veja-se que tal ilegalidade não é sequer controvertida nos autos, tendo a Requerida referido a este respeito que “a Autoridade Tributária acolheu o entendimento preconizado pelos tribunais superiores no sentido que na determinação do VPT dos terrenos para construção, releva a regra específica constante do artigo 45.º do CIMI e não outra, não sendo considerados os coeficientes previstos na expressão matemática do artigo 38.º do CIMI, tais como os coeficientes de localização, de afetação, de qualidade e conforto. (…) Donde, verifica‑se ausência de litígio quanto à forma de cálculo aplicável para determinar o VPT dos terrenos para construção.”.

 

            28. Relativamente à tempestividade do pedido de revisão, cabe analisar se os mesmos foram ou não deduzidos nos “três anos posteriores ao do acto tributário” conforme determinado no n.º 4 do artigo 78.º da LGT.

 

            29. Conforme resulta das alíneas b), c), d), e e) da matéria de facto, a Requerente foi notificada dos actos de liquidação de IMI referentes aos exercícios de 2017 a 2020, nos anos imediatamente seguintes àquele a que o imposto respeita. Já quanto aos actos de liquidação de AIMI, referentes aos exercícios de 2018 a 2020, resulta das alíneas g), h) e i) da matéria de facto que a Requerente foi notificada dos actos de liquidação no próprio ano a que o imposto respeita. Neste sentido, o prazo para impulsionar o pedido de revisão, por referência aos actos tributários mais antigos (actos de liquidação de IMI referentes ao exercício de 2017, emitidos em 07.03.2018, com os n.ºs 2017 ..., 2017 ... e 2017 ...), terminava no dia 31.12.2021. Assim sendo, ao ter a Requerente apresentado os pedidos de revisão oficiosa que estão na base do presente processo em 30.12.2021, verifica-se que aqueles foram apresentados tempestivamente, ao contrário do invocado pela Requerida.

 

            30. Analisando o último requisito desde procedimento de revisão, nos termos do qual o erro no apuramento da matéria tributável não pode ser imputável a comportamento negligente do contribuinte, constata-se que a Requerente não teve qualquer influência no cálculo do VPT que tivesse concorrido ou resultado na injustiça grave e notória já evidenciada. De facto, não foi sequer invocado nos autos que a Requerente tenha fornecido qualquer informação errada relativamente à natureza dos prédios, de tal modo que a aplicação aos terrenos para construção das regras previstas para os prédios edificados, à margem da lei, é única e exclusivamente imputável aos serviços da AT.

 

            31. Por fim, regista-se que a jurisprudência uniformizada do STA no acórdão proferido no processo n.º 0102/22.2BALSB anteriormente referido, não é aplicável à revisão oficiosa prevista no artigo 78.º, n.º 4 da LGT. Significa isto que aqui não se verificam os efeitos práticos da inimpugnabilidade dos actos de liquidação subsequentes com fundamento em vícios próprios dos actos de fixação do VPT que já se consolidaram. Isto porque a revisão em si considerada opera relativamente à matéria tributável, isto é, aos próprios actos que determinam o VPT e não aos actos de liquidação subsequentes, ainda que a anulação dos primeiros se projecte em idêntica medida nos segundos, por constituírem o seu pressuposto lógico.

 

            32. Tudo isto, sendo certo que não se verifica a alegada impossibilidade de anulação dos actos de fixação do VPT e dos subsequentes actos de liquidação conforme invoca a Requerida, com fundamento no regime da anulação dos actos administrativos previsto no artigo 168.º do CPA. É que o procedimento da revisão oficiosa previsto no artigo 78.º da LGT consiste num regime específico e próprio do Direito Tributário, assumindo carácter especial e preferencial face ao regime administrativo que lhe é supletivo, não cabendo aplicar a regra do artigo 168.º do CPA sob pena de se diminuir injustificadamente uma garantia dos contribuintes e de se limitar o princípio da tutela jurisdicional efectiva, cuja concretização no artigo 7.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos determina que “[p]ara efetivação do direito de acesso à justiça, as normas processuais [e procedimentais, em idêntica medida] devem ser interpretadas no sentido de promover a emissão de pronúncias sobre o mérito das pretensões formuladas.”.

 

            33. De resto, mesmo antes de ser proferido o acórdão uniformizador do STA, já vários Tribunais Arbitrais defendiam que a impossibilidade de ser operada a revisão dos actos com fundamento em erro imputável aos serviços nos termos do artigo 78.º, n.º 1, 2.ª parte da LGT, não afastava a possibilidade de os sujeitos passivos impulsionarem a revisão dos actos com fundamento em injustiça grave ou notória nos termos e para os efeitos dos n.ºs 4 e 5 do artigo 78.º da LGT. Neste sentido vejam-se a título de exemplo, entre muito outros, os acórdãos arbitrais proferidos em 10.05.2021, no processo n.º 487/2020-T, em 24.10.2021, no processo n.º 500/2020-T, em 27.07.2021, no processo n.º 41/2021-T ou em 26.07.2022, no processo n.º 112/2022-T.           

 

            34. Em face do exposto, considera-se não verificada a matéria de excepção invocada pela Requerida e conclui-se pela verificação de todos os pressupostos de que dependia a revisão pela AT dos actos de fixação do VPT ilegalmente determinados, em conformidade com o disposto no artigo 78.º, n.ºs 4 e 5 da LGT, determinando-se consequentemente a anulação dos actos de indeferimento dos pedidos de revisão apresentados e, bem assim, a anulação parcial dos actos de liquidação de IMI e AIMI contestados pela Requerente naqueles pedidos e nos presentes autos.

 

III.2.2. Questões de conhecimento prejudicado

           

            35. Em virtude do anteriormente decidido, considera-se prejudicado o conhecimento dos demais vícios invocados pela Requerente visto que esta já obteve a satisfação das suas pretensões, sob pena de se praticarem no processo actos inúteis em violação da proibição consagrada nos artigos 130.º e 608.º, n.º 2, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

III.2.3. Reembolso do imposto indevidamente liquidado e juros indemnizatórios

 

            36. Em virtude da anulação parcial dos actos de liquidação de IMI e AIMI, deverá a Requerente ser reembolsada da quantia indevidamente paga, no montante de € 66.171,39, que não foi directa e justificadamente contestado pela Requerida.

 

37. Relativamente ao pagamento de juros indemnizatórios, ao ter sido a contestação dos actos efectuada por via de pedidos de revisão, apenas serão devidos juros “[q]uando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária.”, conforme dispõe o artigo 43.º, n.º 3, alínea c) da LGT.

 

38. A este respeito, referiu-se no acórdão do STA proferido em 29.09.2022, no processo n.º 051/22.4BALSB, que “[p]edida pelo sujeito passivo a revisão oficiosa do acto de liquidação ao abrigo do preceituado no artigo 78, nº.1 da Lei Geral tributária e sendo o acto a ser anulado, mesmo que apenas em sede de Impugnação Judicial, os juros indemnizatórios só são devidos, por força do regime consagrado no artigo 43.º, n.º 1 e 3, alínea c) da citada Lei, depois de decorrido um ano após a apresentação daquele pedido, e não desde a data do pagamento da quantia liquidada, independentemente de a Administração Fiscal ter indeferido o pedido em período inferior a um ano.”.

 

39. Assim sendo, tendo em conta que os pedidos de revisão foram apresentados pela Requerente em 30.12.2021, são devidos juros indemnizatórios desde 30.12.2022 até à data do processamento da respectiva nota de crédito.

           

IV. DECISÃO

 

Termos em que se decide:

  1. Julgar improcedentes as excepções suscitadas pela Requerida;
  2. Julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral quanto ao pedido principal;
  3. Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral formulado pela Requerente quanto ao pedido subsidiário;
  4. Anular o indeferimento dos pedidos de revisão oficiosa apresentados pela Requerente;
  5. Anular parcialmente os actos de liquidação de IMI e AIMI impugnados nos presentes autos, na concreta parte em que tiveram como pressuposto um VPT que considerou, por um lado, coeficientes de localização e de afectação e, por outro lado, um factor de majoração;
  6. Condenar a Requerida a restituir à Requerente o montante de € 66.171,39 indevidamente pago;
  7. Condenar a Requerida a pagar à Requerente juros indemnizatórios desde 30.12.2022 até à data do processamento da respectiva nota de crédito.
  8. Condenar a Requerida nas custas do processo.

 

V. VALOR DO PROCESSO

           

            Atendendo ao disposto no artigo 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 66.171,39.

 

VI. CUSTAS

 

Nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, as custas são no valor de € 2.448,00, a cargo da Requerida, conforme ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 8 de Maio de 2023.

 

 

Os Árbitros,

 

 

Carla Castelo Trindade

(relatora)

 

 

Vasco António Branco Guimarães

 

 

 

Jorge Belchior de Campos Laires

(vencido, conforme declaração de voto em anexo)

 

 

 

 

 

Declaração de Voto

 

Conforme a fundamentação constante do presente Acórdão, a decisão teve em conta a publicação, no decurso do procedimento, do Acórdão de uniformização de jurisprudência proferido pelo STA, datado de 23.02.2023, no âmbito do processo 0102/22.2BALSB.

 

Assim, e face a posições opostas assumidas pelo tribunal arbitral, o STA decidiu que deixando o contribuinte precludir a possibilidade de sindicar o valor patrimonial tributário nos termos previstos nos artigos 76.º e 77.º do Código do IMI, não pode arguir a ilegalidade da liquidação com fundamento na ilegalidade subjacente ao cálculo do valor patrimonial tributário que lhe serviu de matéria coletável”.

 

Como árbitro singular, bem como nas formações arbitrais que integrei, adotei a tese que acabou por não ser acolhida pelo STA, mas considero forçoso, ponto em que convergimos no presente Acórdão, cumprir com o disposto no artigo 8.º, n.º 3, do Código Civil, de que nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito”.

 

Procurarei de seguida fundamentar a minha divergência, ressalvando o devido respeito pela posição vencedora.

 

Não me parece que se possa dizer, conforme o presente Acórdão defende, que o STA não tratou especificamente o procedimento de revisão oficiosa previsto no artigo 78.º, n.º 4, da LGT, facto que é alegado para sustentar que a recente jurisprudência uniformizadora não exclui a possibilidade de revisão do ato de liquidação de IMI com base na injustiça grave e notória na determinação do VPT, pedido formulado subsidiariamente pela Requerente.

 

A este respeito, atente-se na seguinte conclusão do Acórdão do STA:

 

“(…) o ato de fixação do valor patrimonial tributário de prédio urbano configura um ato destacável relativamente ao qual a lei impõe a sua impugnação autónoma, nos termos do nº1 do artigo 134º do CPPT, sob pena de o mesmo se consolidar no ordenamento jurídico como caso decidido ou resolvido (…)

 

Ora, a presente decisão, bem como a decisão junta pela Requerente que vai no mesmo sentido (processo n.º 464/2022-T, de 03.04.2023), acaba por não alinhar com a posição do STA de que a determinação do VPT constitui, nas palavras do próprio Acórdão, “caso decidido ou resolvido”.

 

Ao admitir-se a revisão do ato de liquidação sustentada na injustiça na determinação do VPT, teria então de se admitir que, nesta situação, a determinação do VPT não constitui “caso decidido ou resolvido”.

 

Se essa fosse também a posição do STA, ou seja, se perante certas condições se admitisse que a determinação do VPT não constitui caso decidido ou resolvido, então o parágrafo citado seria desprovido de sentido, enquanto fundamento do Acórdão de uniformização de jurisprudência.

 

Na verdade, tratar-se-ia de uma situação de caso julgado sem efeito prático, isto é, o valor já não poderia ser contestado para efeitos da respetiva inscrição predial urbana, mas, desde que fixado de forma injusta, seria impugnável para efeitos das liquidações de IMI, AIMI, bem como todos os impostos onde a determinação do VPT é relevante, como IRC, IRS, IMT e Imposto do Selo.

 

Acresce que o Acórdão do STA em momento algum se refere ao n.º 1 do artigo 78.º, mas sim genericamente ao artigo 78.º, não obstante ser efetivamente aquele regime que estava em causa no âmbito do Acórdão recorrido. Devemos presumir que o STA fez uma análise integrada do regime legal, até porque o meio de revisão oficiosa sustentada na injustiça se encontra inserido na mesma disposição legal da LGT, o artigo 78.º. Se essa fosse a posição do STA, entendo que teria indicado como exceção ao caso julgado as situações de injustiça grave e notória, em vez de afirmar de forma perentória o que afirmou.

 

Além disso, importa considerar que uma liquidação que não respeitou a lei é, por definição, uma liquidação “notoriamente injusta”, e que, em termos de dano, é natural que o contribuinte só esteja na disposição de custear o contencioso com a AT se o mesmo for “grave”. Isto para dizer que, quando o STA assume a posição de que o ato de fixação do VPT é insindicável no ato de liquidação do IMI, tem plena consciência de que possa ter havido uma ilegalidade na determinação do valor tributável, que será por regra notoriamente injusta e grave para o sujeito passivo, mas o STA interpreta o quadro legal como tendo conferido prevalência ao princípio da segurança jurídica.

 

Concluindo, a minha posição diverge quanto aos efeitos jurídicos que a jurisprudência do STA produz no caso concreto e que, na minha opinião, deveriam conduzir à improcedência do pedido.