Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 282/2022-T
Data da decisão: 2023-01-03  IMI  
Valor do pedido: € 2.714,40
Tema: AIMI - Revisão do Acto Tributário. Fixação do valor patrimonial tributário e sua impugnação.
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SUMÁRIO

  1. A previsão da impugnabilidade autónoma de actos destacáveis visa, em geral, conferir maiores garantias aos particulares e não reduzir o âmbito das garantias que a lei, em geral, prevê. Assim, tal previsão legal não deve ser entendida - salvo existindo razões substanciais que a tal se oponham, o que não acontece no presente caso - como precludindo a possibilidade de impugnação dos vícios do acto instrumental (fixação do VPT) em processo de impugnação do acto conclusivo de liquidação.
  2. Na determinação do valor patrimonial tributário dos terrenos para construção, consagrado no art.º 45 do C.I.M.I., não há lugar à consideração dos coeficientes de afectação e de qualidade e conforto.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

 

I – RELATÓRIO

 

1. A..., S.A., com o número único de matrícula e de identificação fiscal ... e sede na ... ..., ..., ...-... ..., apresentou, em 21-04-2022, pedido de constituição do tribunal arbitral, nos termos dos artigos 2º e 10º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em conjugação com o artigo 102º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada apenas por Requerida).

 

2. A Requerente pretende, com o seu pedido, a declaração de ilegalidade do indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa relativa aos actos tributários de liquidação do Adicional ao Imposto Municipal sobre os Imóveis -AIMI (cujos números foram indevidamente identificados no PPA mas se apurou serem os que adiante se mencionam), referentes aos anos de 2018, 2019, 2020 e 2021 e subsequente anulação parcial dos mesmos, com a restituição do imposto pago acrescido de juros indemnizatórios.

 

3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 22-04-2022.

 

3.1. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou o signatário como árbitro do tribunal arbitral, o qual comunicou a aceitação da designação dentro do respectivo prazo.

 

3.2. Em 15-06-2022 as partes foram notificadas da designação do árbitro, não tendo sido arguido qualquer impedimento.

 

3.3. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11º do RJAT, o tribunal arbitral foi constituído em 05-07-2022.

 

3.4. Nestes termos, o Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído para apreciar e decidir o objecto do processo.

 

3.5. Por despacho de 26-10-2022 foi dispensada a realização da reunião e, com a anuência das partes, da apresentação de alegações.

 

4. Com o pedido de pronúncia arbitral manifesta a Requerente a sua inconformidade com o acto de liquidação, bem como com o indeferimento, tácito, do pedido de revisão graciosa que apresentou.

Sustenta, com tal fundamento, em suma:

- As liquidações de AIMI em causa tiveram por base, para efeitos de determinação do valor

tributável e do correspondente montante de AIMI a pagar pelo Requerente, os valores patrimoniais tributários dos terrenos para construção, valores estes que estavam fixados segundo a fórmula erroneamente adoptada à data pela AT, a qual considerava a aplicação de coeficientes de (i) localização, (ii) de afectação e / ou (iii) de qualidade e conforto.

- Recentemente, face ao que se encontra expressamente consagrado no artigo 45.º do Código do IMI e nos termos preconizados pela jurisprudência constante do STA quanto à errónea aplicação dos coeficientes acima mencionados na determinação dos valores patrimoniais de terrenos para construção, a AT veio corrigir o cálculo e a fixação dos valores patrimoniais tributários dos terrenos para construção, deixando de aplicar tais coeficientes.

- Deste modo, nos anos sub judice (2018 a 2021), relativamente aos terrenos para construção em apreço, a AT liquidou um montante de imposto superior ao montante legalmente devido face aos valores patrimoniais tributários que deveriam ter sido considerados à data para efeitos de cálculo da colecta de AIMI para estes anos.

- Nos terrenos para construção acima elencados, a desconsideração dos referidos coeficientes traduz‐se numa redução significativa dos valores patrimoniais tributários destes terrenos, e, consequentemente, da (futura) colecta de AIMI sobre os mesmos.

- Os novos valores patrimoniais tributários decorrentes destes processos de avaliação só têm sido aceites pela AT para as liquidações futuras de AIMI.

- Relativamente ao conjunto de terrenos para construção objecto dos actos tributários de liquidação de AIMI sub judice, afigura‐se claro que, se se expurgar os coeficientes de localização, de afectação e/ou de qualidade e conforto que serviram de base para o cálculo dos valores patrimoniais tributários destes imóveis e, consequentemente, para o apuramento da colecta de AIMI referente aos anos 2018, 2019, 2020 e 2021, resultam diferentes valores patrimoniais tributários de montantes significativamente inferiores àqueles que foram efectivamente utilizados para efeitos deste cálculo do imposto.

- Consequentemente, estamos perante um erro na interpretação dos pressupostos de facto e direito do qual resultaram ilegais liquidações (parciais) de AIMI, especificamente um erro na determinação da matéria tributável deste imposto que originou uma colecta ilegal de tributo.

- Por não se conformar com o indeferimento tácito do Pedido de Revisão Oficiosa por si formulado e, por conseguinte, com a legalidade dos actos de liquidação de AIMI que lhe estão subjacentes, vem suscitar a apreciação da legalidade daquela decisão de indeferimento, tacitamente presumida, e dos próprios actos de liquidação, requerendo a respectiva anulação, e da correspondente restituição do imposto indevidamente pago, num montante de € 2.714,50.

 

5. A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta, por impugnação, nos seguintes termos:

- A Requerente pretende a anulação do ato impugnado com fundamento em vícios, não do ato de liquidação, mas sim dos atos que fixaram o Valor patrimonial Tributário. Na verdade, a presente ação não é nem fundamentada em qualquer vício dos atos de liquidação ou da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa.

- O que está em causa, ou seja, o que a Requerente contesta é, apenas e só, o ato destacável de fixação do VPT e não o ato de liquidação.

- Acontece que os vícios do ato que definiu o valor patrimonial tributário (VPT) não são suscetíveis de ser impugnados no ato de liquidação que seja praticado com base no mesmo.

- O prazo para ser autorizada a revisão da matéria tributável pelo dirigente máximo do serviço, caso se decida pela aplicabilidade deste artigo não é o previsto no n.º 1, mas sim o prazo reduzido aos «três anos posteriores ao do ato tributário», previsto no n.º 4 do artigo 78.º da Lei Geral Tributária.

- O procedimento avaliativo constitui um acto autónomo e destacável para efeito de impugnação arbitral que, se não for impugnado nos termos e prazo fixado, se consolida na ordem jurídica como caso decidido ou resolvido, semelhante ao caso julgado.

- Não tendo a Requerente colocado em causa o valor patrimonial obtido pela 1.ª avaliação, requerendo uma 2.ª avaliação, o mesmo fixou-se, não sendo possível conhecer na posterior liquidação, de eventuais erros ou vícios cometidos nessa avaliação.

- Sobre a impugnabilidade dos actos de liquidação com fundamento em vícios próprios do acto de fixação do VPT, o Tribunal Arbitral está limitado pelo princípio do pedido, vide n.º 1 do art.º 609.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi art.º 29.º do RJAT.

- Constitui jurisprudência assente, quer dos Tribunais judiciais quer dos Tribunais arbitrais, bem como da mais abalizada doutrina, o entendimento que o acto de avaliação do valor patrimonial tributável é um acto destacável, autonomamente impugnável. pelo que os vícios da fixação do VPT, não são sindicáveis na análise da legalidade do acto de liquidação, porquanto os mesmos, sendo destacáveis e antecedentes destes, já́ se consolidaram na ordem jurídica.

- É inadmissível a revisão oficiosa dos atos de avaliação de valores patrimoniais, uma vez que a letra da lei não abrange os atos de avaliação patrimonial, que não são atos tributários, previstos no n.º 1 do artigo 78.º da LGT, nem são atos de apuramento da matéria tributável.

- Na presente impugnação, não se verifica qualquer erro no ato de liquidação, o qual em cumprimento da lei foi calculado com base no VPT constante na matriz predial, não é posta em causa a validade dos atos administrativos ou tributários de diversa natureza que para diferentes efeitos assumem como referencial o valor patrimonial tributário de um imóvel constante da matriz predial. Mesmo que assim não se entendesse, o fundamento da injustiça grave ou notória do nº 4 do art. 78° da LGT, não é invocável quando a liquidação do IMI tenha sido efetuada de acordo com o nº 1 do artigo 113º do CIMI.

- O Tribunal Arbitral está obrigado a julgar de acordo com o direito constituído, estando impedido de julgar o processo de acordo com critérios da equidade.

- Não se verifica qualquer violação do princípio da igualdade tributária.

- Por estar a Administração Tributária vinculada ao princípio da legalidade previsto no artigo 266º da Constituição da República Portuguesa e concretizado nos artigos 55.º da Lei Geral Tributária e no artigo 3.º do Código do Procedimento Administrativo não pode deixar de dar integral cumprimento aos normativos que o legislador ordinário criou em vigor no ordenamento jurídico, conforme se verificou no caso em apreço.

- Não seriam nunca devidos juros indemnizatórios, mas, caso o pedido de pagamento de juros fosse julgado procedente, o que por mera hipótese se concede, o mesmo seria enquadrável no nº 3, alínea c) do artigo 43.º da LGT, o qual determinaria o pagamento de juros indemnizatórios a partir de um ano após a apresentação do pedido de revisão.

- Conclui, pois, a Requerida no sentido de se deverem manter as liquidações de AIMI aqui em causa, bem como indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa.

 

II – SANEAMENTO

 

6.1. O tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído.

6.2. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas (artigos 4º e 10º, n.º 2, do RJAT e artigo 1º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

6.3. O processo não enferma de nulidades.

6.4. Não foram formalmente suscitadas excepções que obstem ao conhecimento do mérito da causa mas, por terem sido invocadas na resposta, a Requerente pronunciou-se relativamente às mesmas.

6.5. A cumulação de pedidos é legítima (artigo 3º, n.º 1 do RJAT).

 

III – MATÉRIA DE FACTO E DE DIREITO

 

- Matéria de facto

 

A) Importa, antes de mais, salientar que o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cf. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.ºs 3 e 4, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT). Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis das questões de Direito.

Nesse enquadramento, consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

a)  A Requerente, A..., SA, é, no âmbito da sua actividade, proprietária de diversos prédios, incluindo terrenos para construção.

b)  A Requerente foi notificada dos seguintes actos tributários de liquidação de AIMI :

      - Liquidação n.º 2018... referente ao ano de 2018, no montante total de € 25.658,64 €;

      - Liquidação n.º 2019... referente ao ano de 2019, no montante total de € 25.977,79;

      - Liquidação com o n.º 2020..., referente ao ano de 2020, no montante total de € 26.043,52;

      - Liquidação com o n.º 2021..., referente ao ano de 2021, no montante total de € 25.224,38;

c)  As liquidações de AIMI em causa tiveram por base, em parte, para efeitos de determinação do valor tributável relativamente a terrenos para construção e do correspondente montante de imposto a pagar, os valores patrimoniais tributários dos terrenos para construção valores fixados segundo a fórmula adoptada à data pela AT, a qual considerava a aplicação de coeficientes de (i) localização, (ii) de afectação e / ou (iii) de qualidade e conforto.

d)  A Requerente procedeu ao pagamento integral das liquidações de AIMI supra identificadas.

e)  A Requerente apresentou, em 30-11-2021, pedido de revisão oficiosa destes actos tributários.

f)   Na data de apresentação do PPA - 21-04-2022 - a Requerente não tinha ainda sido notificada de qualquer decisão no aludido pedido de revisão oficiosa

 

B) Não há factos relevantes para a decisão da causa que não se tenham provado.

 

Fundamentação da matéria de facto:

 

A matéria de facto dada como provada assenta no exame crítico da prova documental apresentada e não contestada, que aqui se dá por reproduzida.

 

- Matéria de Direito

 

A questão essencial a apreciar no presente pedido arbitral consiste em saber, por um lado, se na avaliação do valor patrimonial dos terrenos para construção se deviam ter em consideração, ou não, os coeficientes aplicáveis aos prédios urbanos para habitação, comércio, indústria e serviços e, por outro lado, se os eventuais erros naquela determinação podem ser impugnados nos actos de liquidação que nelas assentam, o que poderia, também, suscitar uma questão de incompetência do tribunal arbitral para apreciação da causa.

A Requerida sustenta que a Requerente pretende a anulação dos actos impugnados com fundamento em vícios, não dos actos de liquidação, mas sim dos actos que fixaram o Valor Patrimonial Tributário (VPT) – que considera destacáveis e eles próprios autonomamente atacáveis, não sendo imputado aos actos impugnados qualquer vício específico da operação de liquidação ou do seu procedimento. No seu entendimento, os vícios do acto que definiu o VPT não são susceptíveis de ser impugnados no acto de liquidação que seja praticado com base no mesmo, o que, em última instância, determinaria a incompetência do Tribunal para apreciar a legalidade de actos que procedem à fixação do valor patrimonial.

Refutando tal posição, a Requerente argumenta que não se pode confundir o meio de impugnação do acto de fixação do valor patrimonial tributário – que corresponde ao meio de impugnação autónoma deste acto destacável per se – com o meio de impugnação do acto tributário de liquidação de IMI ou AIMI com fundamento em ilegalidade na determinação do valor patrimonial/base tributável do tributo efectuado pela AT.

A este propósito, acompanhamos de perto o constante da decisão proferida no processo arbitral 540/2021-T e onde ficou consignado que:

A nosso ver, a questão não é a de saber se a lei configura a fixação do VPT como um acto destacável, prevendo a sua impugnação judicial autónoma – o que é um facto -, mas sim saber se existem razões que obstem a que tal acto, quando surja como instrumental relativamente a um acto de liquidação, possa, também, ser objecto de apreciação em processo dirigido à impugnação desta. Há, pois, que ponderar sobre a “ratio” das normas que prevêem a impugnabilidade judicial autónoma de actos administrativos que constituem pressuposto de outros actos administrativos. Estas razões serão, essencialmente, três:

(i) O acto ser imediatamente lesivo, produzir directamente efeitos negativos na esfera do particular, o que não é o caso, pois a ablação do património pela via do imposto só acontece após a prática de um acto de liquidação.

(ii) A sindicância judicial imediata oferecer maiores garantias ao particular: é o caso, desde logo porquanto o decidido em tal recurso produzirá efeitos de caso julgado relativamente a todas as liquidações que tiverem por base o VPT impugnado.

Está, pois, presente uma intencionalidade garantística (consagração de meio de garantia mais abrangente) e não um intuito de restrição dos normais meios de garantia, como resultaria do acolhimento do pensamento sufragado pela Requerida).

(iii) Previsão legal de um “filtro” pré-judicial que possa contribuir para reduzir o número de casos que os tribunais sejam chamados a apreciar, quando a decisão dependa essencialmente de conhecimentos técnicos próprios de outras áreas do saber, que não a jurídica (…).

Porém, atenta a razão de ser destes sistemas, há que entender que a previsão da impugnabilidade directa e imediata, em processo a tal directamente dirigido, do «resultado das segundas avaliações», como diz a lei, só se mostra «indispensável» quando esteja em causa o resultado da aplicação da lei (das normas que regulam o procedimento de avaliação) num caso concreto, pois é em tal aplicação que poderão estar envolvidos conhecimentos técnicos, não jurídicos, e não, como acontece no presente caso, quando esteja em causa a determinação da lei aplicável à avaliação. Esta é uma questão exclusivamente jurídica, para a qual, por definição, um tribunal é mais qualificado para a precisar que uma comissão de peritos avaliadores. (…) As garantias administrativas desdobram-se em garantias administrativas não impugnatórias e garantias administrativas impugnatórias. As primeiras dizem, nomeadamente, respeito ao direito à informação (art.º 59.°, n.º 3, art.º 67.°, n.º l, al. a) e b), art.º 70.°, n.º 3 da LGT; art.º 35.º e ss. e 57.° do CPPT; art.º 268.°, n.º 2 e 3 da CRP) e ao direito de participação "na formação das decisões que lhes digam respeito" (cfr. art.º 60.°, n.º l, da LGT e art.º 267.º, n.º 1 da CRP). As garantias administrativas impugnatórias reportam-se à reclamação em matéria tributária, designada comummente por reclamação graciosa (art.º 68° e ss do CPPT)) e ao recurso hierárquico dirigido ao mais elevado superior hierárquico do autor do acto (art.º 66° do CPPT) ou à entidade em quem ele tenha delegado essa competência. As garantias jurisdicionais englobam o direito de acção judicial, o direito de oposição e o direito de recurso jurisdicional. O direito de acção judicial é garantido aos interessados contra quaisquer actos administrativos que “lesem os seus direitos ou interesses legalmente protegidos" (art.º 96°, n.º l, da LGT e art.º 268°, n.º 4 da CRP). O direito de oposição à execução fiscal é exercido após ter sido instaurada uma execução pelo competente órgão da administração tributária contra o sujeito passivo de imposto ou responsáveis tributários (art.º 203.º e ss do CPPT). O direito de recurso jurisdicional confere ao sujeito passivo o direito de impugnar as decisões dos tribunais inferiores junto de um tribunal superior (art.º 96°, n.º l, da LGT). Em resumo, entendemos que a previsão da impugnabilidade autónoma de actos destacáveis visa, em geral, conferir maiores garantias aos particulares e não reduzir o âmbito das garantias que a lei, em geral, prevê. Assim, tal previsão legal não deve ser entendida - salvo existindo razões substanciais que a tal se oponham, o que não acontece no presente caso - como precludindo a possibilidade de impugnação dos vícios do acto instrumental (fixação do VPT) em processo de impugnação do acto conclusivo do procedimento (liquidação). (…) Como referido no citado acórdão do TCA, há que não esquecer que a coberto de um VPT ilegal foram produzidas liquidações de um tributo, que foi exigido à Requerente”.

Ainda a propósito da questão da impugnação autónoma invocada pela Requerida remete-se para o Acórdão do STA de 29-03-2017 – Proc. 0312/15: “O Supremo Tribunal Administrativo tem vindo a esclarecer que a susceptibilidade de impugnação autónoma decorre da lesividade do acto e que caso o contribuinte não tenha contra ele reagido no momento em que ele surgiu e se tornou lesivo pode ainda vir a atacar esse mesmo acto quando ele se insira num procedimento de liquidação e venha a determinar um acto posterior de liquidação. Ou seja, quando se faz, como neste caso, uma inscrição oficiosa na matriz de um bem que o contribuinte entende que não é um prédio e não pode, por isso ser inscrito, como tal na matriz, pode imediatamente impugnar essa inscrição por ela ser, em si mesma, susceptível de vir a determinar a liquidação de um ou vários tributos. Mas, seguidamente, se o bem foi avaliado e lhe foi atribuído um valor, pode impugnar esse acto de avaliação e impugnar o tributo que venha a ser liquidado com base nessa avaliação. Como se refere no Acórdão deste Supremo Tribunal Administrativo de 27 de Novembro de 2013, proferido no rec. n.º 1725/13 – «o acto de inscrição oficiosa na matriz de uma determinada realidade física como prédio reconduz-se a acto imediatamente lesivo dado que provoca uma alteração significativa na esfera jurídica da recorrente, daí a admissibilidade de ser formulado pedido de suspensão da sua eficácia (…),o facto de a imediata lesividade de tal acto permitir, querendo, a sua impugnação autónoma, não obsta a que, não o tendo sido, possa ainda ser sindicado em sede de impugnação da liquidação do tributo». Não há, contrariamente ao indicado na sentença recorrida, qualquer obstáculo processual que impeça que na impugnação do acto de liquidação de IMI se questione a questão prévia relativa à qualificação jurídica do facto tributário dado que a errónea qualificação do facto tributário constitui uma ilegalidade expressamente tipificada na lei - cfr. a alínea a) do artigo 99.º do Código de Processo e Procedimento Tributário»”.

Na mesma linha, podem ver-se igualmente os recentes acórdãos arbitrais dos processos 11/2022-T, de 09/08/2022 e 792/2020-T, de 30-06-2021.

Diga-se, lateralmente, que não se alcança que, pelo menos, grande parte das decisões judiciais invocadas pela Requerida tenham conexão com a questão em apreciação. Tendo sido dedicado, aliás, pouco cuidado nas transcrições das mesmas. Refira-se, a título de exemplo, o acórdão n.º 1808/12.0BEPERT que não é do STA, como indicado, mas do TCA Norte. Do proc. n.º 0885/16 que apenas aprecia a questão da contagem do prazo para a propositura do processo de impugnação a que se refere o art. 134º do CPPT, não se apreciando a questão da necessária impugnação autónoma. Ou o acórdão do STA n.º 633/14 que se debruça sobre a avaliação da matéria colectável por métodos indirectos por manifestação de fortuna e não do valor patrimonial tributário, devendo-se certamente a lapso a transcrição do sumário como «o acto de fixação do valor patrimonial tributário constitui…» uma vez que o mesmo é “a decisão de avaliação constitui”.

Pelo exposto, subscrevendo os aduzidos argumentos, e por se considerar que está em causa a impugnação de um acto de liquidação de imposto, considera-se legítima a impugnação deduzida com os fundamentos invocados pela Requerente e, além do mais, o recurso ao pedido de revisão oficiosa.

No que respeita à determinação do valor patrimonial tributário, dispunha o art. 38º do CIMI (na redacção da Lei 7-A/20016):

«1 - A determinação do valor patrimonial tributário dos prédios urbanos para habitação, comércio, indústria e serviços resulta da seguinte expressão:

Vt = Vc x A x Ca x Cl x Cq x Cv

em que:

Vt = valor patrimonial tributário;

Vc = valor base dos prédios edificados;

A = área bruta de construção mais a área excedente à área de implantação;

Ca = coeficiente de afectação;

Cl = coeficiente de localização

Cq = coeficiente de qualidade e conforto;

Cv = coeficiente de vetustez.

2 - O valor patrimonial tributário dos prédios urbanos apurado é arredondado para a dezena de euros imediatamente superior.

3 – Os prédios comerciais, industriais ou para serviços, para cuja avaliação se revele desadequada a expressão prevista no n.º 1, são avaliados nos termos do n.º 2 do artigo 46º.

(…)»

Por seu lado, o art. 45º do mesmo CIMI dispunha o seguinte (na redacção em vigor à data dos factos):

«1 - O valor patrimonial tributário dos terrenos para construção é o somatório do valor da área de implantação do edifício a construir, que é a situada dentro do perímetro de fixação do edifício ao solo, medida pela parte exterior, adicionado do valor do terreno adjacente à implantação.

2 - O valor da área de implantação varia entre 15% e 45% do valor das edificações autorizadas ou previstas.

3 - Na fixação da percentagem do valor do terreno de implantação têm-se em consideração as características referidas no n.º 3 do artigo 42.º.

4 - O valor da área adjacente à construção é calculado nos termos do n.º 4 do artigo 40.º.

(…)».

Da conjugação destes preceitos, dúvidas não há que a determinação do valor patrimonial tributário dos prédios urbanos para habitação, comércio, indústria e serviços é operada nos termos do art. 38° do CIMI e a dos terrenos para construção nos termos do art. 45º do CIMI.

No caso deste último, o respectivo valor patrimonial resulta da soma de dois outros valores: do valor da área de implantação do edifício a construir e do valor do terreno adjacente à implantação. O valor da área de implantação varia entre 15% e 45% do valor das edificações autorizadas ou previstas, tendo-se em conta, na fixação dessa percentagem, as características referidas no nº 3 do art. 42º do CIMI. O valor do terreno adjacente à área de construção é calculado nos termos do nº 4 do art. 40º do CIMI.

A propósito do coeficiente de localização, se disse no Acórdão do STA de 4/5/2017, no Processo n.º 01107/16: “Na fórmula final de cálculo do VPT dos terrenos para construção é de afastar a aplicação do coeficiente de localização, na medida em que esse factor de localização do terreno já está contemplado na percentagem prevista no nº 3 do art. 45º do CIMI”.

E também a propósito do coeficiente de qualidade e conforto já o Acórdão do Pleno do mesmo tribunal de 21/09/2016, Processo nº 01083/13, havia determinado que a regra específica constante do art. 45º do CIMI, onde “se tem em conta o valor da área de implantação do edifício a construir e o valor do terreno adjacente à implantação bem como as características de acessibilidade, proximidade, serviços e localização descritas no nº 3 do artigo 42, tendo em conta o projecto de construção aprovado, quando exista, e o disposto no nº 2 do artigo 45 do C.I.M.I, mas não outras características ou coeficientes”, só pode significar “que na determinação do seu valor patrimonial tributário dos terrenos para construção não tem aplicação integral a fórmula matemática consagrada no artigo 38º do CIMI ...”.

Subscrevendo, sem reservas, o assim decidido, se entende que na determinação dos valores patrimoniais tributários dos terrenos para construção não são de considerar os coeficientes de localização, afectação e/ou qualidade e conforto, pelo que os VPT subjacentes às liquidações impugnadas, por os terem considerado, são ilegais, por vício de violação da lei.

Fica, assim, prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas.

 

JUROS INDEMNIZATÓRIOS

 

Pretende a Requerente, com a procedência do pedido, o reembolso do imposto pago em excesso, acrescido de juros indemnizatórios, cujo regime substantivo é regulado no art.º 43.º da LGT.

Está subjacente ao presente pedido de pronúncia arbitral, um pedido de revisão oficiosa

Como tem vindo a entender o Supremo Tribunal Administrativo, “nos casos de revisão oficiosa da liquidação (quando não é feita a pedido do contribuinte, no prazo da reclamação administrativa, situação que é equiparável à de reclamação graciosa) (...) apenas há direito a juros indemnizatórios nos termos do art.º 43.º, n.º 3, da LGT”. (Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 12-07-2006 – Proc. 402/06).

Este regime justifica-se pela falta de diligência do contribuinte em apresentar reclamação graciosa ou pedido de revisão no prazo desta, como se prevê no n.º 1 do art.º 78.º da LGT.

No caso em apreço, não tendo o pedido de revisão oficiosa sido apresentado no prazo da reclamação graciosa, não se está perante uma situação enquadrável na 1.ª parte do n.º 1 do art.º 78.º da LGT, em que o pedido de revisão oficiosa é equiparável à reclamação graciosa, como se refere no citado acórdão do Supremo Tribunal Administrativo.

Consequentemente, não há direito a juros indemnizatórios com base nos n.º 1 e 2 do art.º 43.º da LGT, que pressupõem a existência de reclamação graciosa ou impugnação judicial tempestiva.

Pelo contrário, a norma à face da qual tem de ser aferida a existência de direito a juros indemnizatórios é a alínea c) deste n.º 3 do art.º 43.º da LGT, que estabelece que eles são devidos «quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária».

Nestes termos, a Requerente só terá direito a juros indemnizatórios a partir de um ano a contar da data em que foi apresentado o pedido de revisão oficiosa.

 

IV. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

 

  1. Julgar totalmente procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência, declarar a anulação parcial das liquidações impugnadas.
  2. Ordenar a restituição à Requerente do imposto pago em excesso, acrescido dos juros indemnizatórios nos termos legais e acima expostos.
  3. Condenar a Requerida nas custas do processo.

 

V. VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se o valor do processo em 2.714,40 €, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

VI. CUSTAS

 

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em 612,00 €, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

 

Lisboa, 03-01-2023

 

 

O Árbitro

 

 

 

(António Alberto Franco)