Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 27/2022-T
Data da decisão: 2022-06-30  IMI  
Valor do pedido: € 16.084,35
Tema: AIMI. Erro na determinação do VPT de terrenos para construção. Pedido de revisão oficiosa de liquidação subsequente.
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SUMÁRIO: 

 

I – O ato de avaliação do qual decorre a fixação do VPT é um ato destacável, suscetível de impugnação contenciosa direta.

II – Existindo erro dos serviços na determinação do VPT do terreno para construção de que decorreram as liquidações de AIMI contestadas, em valor superior ao devido, sempre poderia o contribuinte, ainda que o não tivesse feito antes, invocar tal erro, nos termos conjugados dos artigos 78.º, n.º 1, da LGT, e 115.º, n.º 1, alínea c), do Código do IMI.

III – Decorre da conjugação do segmento final do artigo 54.º, do CPPT, com o disposto na alínea a) do artigo 99.º, do mesmo Código, que ainda que os atos destacáveis não tenham sido objeto de impugnação autónoma, qualquer ilegalidade de que padeçam não deixará de constituir fundamento de impugnação judicial do ato de liquidação subsequente.

IV – A impugnabilidade direta dos atos destacáveis tem “presente uma intencionalidade garantística (consagração de meio de garantia mais abrangente) e não um intuito de restrição dos normais meios de garantia”.

 

 

 

 

 

DECISÃO ARBITRAL

I.  RELATÓRIO

Em 20 de janeiro de 2022, A..., com o NIPC …, e com sede na Avenida …, (adiante designada por Requerente), veio, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), em conjugação com os artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, requerer a constituição de Tribunal Arbitral, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (adiante AT ou Requerida), informando não pretender utilizar a faculdade de designar árbitro.

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT e, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e na alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou a signatária como árbitro do tribunal arbitral singular, encargo aceite no prazo aplicável, sem oposição das Partes.

 

A.   Objeto do pedido:

O pedido de pronúncia arbitral tem por objeto imediato a decisão de indeferimento tácito

do pedido de revisão oficiosa apresentado pela Requerente em 27 de agosto de 2021 com vista à anulação parcial dos atos tributários do Adicional ao Imposto Municipal sobre Imóveis (“AIMI”) n.ºs 2017 463..., 2018 629..., 2019 011... e 2020 016..., com referência, respetivamente, aos anos de 2017, 2018, 2019 e 2020 e, como objeto mediato, as mesmas liquidações de AIMI, cuja anulação parcial se pretende, pelo montante global de € 16 084,35.

 

Pede ainda a Requerente a condenação da Requerida na restituição do imposto pago em

excesso, acrescido dos correspondentes juros indemnizatórios, nos termos legais.

 

A título subsidiário, a Requerente pede que seja desaplicada, no caso concreto, a norma pretensamente extraída pela AT do artigo 45.º do Código do IMI.

 

 

B. Síntese da posição das Partes

a. Da Requerente:

A Requerente invoca a ilegalidade das liquidações de AIMI dos anos de 2017 a 2020, cuja anulação parcial pretende, com os fundamentos seguintes:

 

1.   As liquidações de AIMI sub judice tiveram por base os valores patrimoniais tributários dos terrenos para construção de que a Requerente era titular à data dos factos, fixados segundo a fórmula erroneamente adotada pela AT, a qual considerava a aplicação de coeficientes de (i) localização, (ii) de afetação e / ou (iii) de qualidade e conforto, em violação do artigo 45.º do Código do IMI.

2.   Na sequência da jurisprudência reiterada do STA, e no decorrer do ano 2020, a AT corrigiu a fórmula de cálculo e a fixação dos valores patrimoniais tributários dos terrenos para construção, deixando de aplicar tais coeficientes.

3.   Porém, relativamente aos terrenos para construção da Requerente, a AT não retificou as respetivas coletas de AIMI, mantendo‐se na ordem jurídica um montante de imposto superior ao legalmente devido, motivado por erro na interpretação dos pressupostos de facto e direito e na determinação da matéria tributável, imputável à AT.

4.   Resulta expressa e diretamente da alínea c) do n.º 1 do artigo 115.º do Código do IMI que as liquidações deverão ser oficiosamente revistas quando “tenha havido erro de que tenha resultado coleta de montante diferente do legalmente devido”.

5.   Ora, do erro na determinação da matéria tributável para efeitos de AIMI (erro na determinação do VPT dos prédios) resulta uma coleta superior ao legalmente devido, estando assim preenchido o requisito para a revisão oficiosa das liquidações emitidas.

6.   Considerando que é a AT a entidade responsável pela determinação concreta dos valores patrimoniais tributários dos prédios, tais erros são “erros imputáveis aos serviços” que justificam a admissibilidade de pedidos de revisão oficiosa nos termos gerais do n.º 1 do artigo 78.º da LGT.

7.   Acresce que a aplicação do artigo 38.º do Código do IMI – em concreto, a aplicação, por analogia, dos coeficientes de avaliação ali previstos – na determinação do VPT de terrenos para construção sempre será manifestamente contrária ao princípio da legalidade tributária, conforme consagrado na alínea i) do n.º 1 do artigo 165.º e no n.º 2 do artigo 103.º da Constituição da República Portuguesa (“CRP”).

8.   Em face do exposto, deve a Requerente ser integralmente ressarcida do valor do AIMI indevidamente pago, no montante global de € 16 084,35.

9.   A Requerente requere, igualmente, que lhe sejam pagos os respetivos juros indemnizatórios, nos termos do n.º 1 do artigo 43.º da LGT.

 

 

b. Da Requerida

Notificada por despacho arbitral de 28 de março de 2022, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 17.º, do RJAT, a AT apresentou Resposta na qual veio defender a legalidade e a manutenção dos atos de liquidação objeto do pedido de pronúncia arbitral, com os seguintes fundamentos:

 

1.   A presente ação não é fundamentada em qualquer vício dos atos de liquidação ou da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa, pois aos atos impugnados não é imputado qualquer vício específico da operação de liquidação ou do seu procedimento, mas apenas e tão só aos atos destacáveis de fixação do VPT, que não são suscetíveis de ser impugnados no ato de liquidação praticado com base nos mesmos.

2.   Em causa está a avaliação realizada em 2008, que fixou o VPT do terreno em € 2.622.540,00 e teve em consideração o coeficiente de localização de 1,40 e o coeficiente de afetação de 1,10 – ficha de avaliação n.º..., com origem na declaração modelo 1 do IMI n.º..., rececionada em 26-03-2008.

3.   A Autoridade Tributária já acolheu o entendimento preconizado pelos tribunais superiores no sentido que na determinação do VPT dos terrenos para construção, releva a regra específica constante do artigo 45.º, do CIMI, e não outra, não sendo considerados os coeficientes previstos na expressão matemática do artigo 38.º, do CIMI, tais como os coeficientes de localização, de afetação, de qualidade e conforto;

4.   Porém, a avaliação constitui um ato autónomo e destacável para efeito de impugnação arbitral, que, se não for impugnado nos termos e prazo fixado se consolida na ordem jurídica como caso decidido ou resolvido, semelhante ao caso julgado, que a posterior liquidação tem de acolher.

5.   Não tendo a Requerente colocado em causa o valor patrimonial obtido pela 1.ª avaliação, requerendo uma 2.ª avaliação, o mesmo fixou-se, não sendo possível conhecer na posterior liquidação, de eventuais erros ou vícios cometidos nessa avaliação.

6.   Também não é legalmente admissível a revisão oficiosa dos atos de avaliação patrimonial, que não são atos tributários, previstos no n.º 1 do artigo 78.º, da LGT, nem atos de apuramento da matéria tributável.

7.   Mesmo que assim não se entendesse, o fundamento da injustiça grave ou notória do nº 4 do art. 78.º, da LGT, não é invocável quando a liquidação do IMI tenha sido efetuada de acordo com o n.º 1 do artigo 113.º, do CIMI.

8.   Pede ainda a Requerente que seja desaplicada no caso concreto a norma pretensamente extraída do artigo 45.º, do CIMI, por violação do princípio da legalidade tributária.

9.   O que importa referir nesta sede não é a violação do princípio da igualdade tributária, mas sim a constitucionalidade do regime da consolidação dos atos administrativos tributários por falta da sua impugnação atempada.

10.              A prevalecer a argumentação da Requerente, essa sim, acarretaria uma violação do princípio da igualdade tributária privilegiando os contribuintes que em tempo não contestaram o VPT face àqueles que o fizeram tempestivamente.

11.              Finalmente cumpre referir que a atual interpretação da forma de cálculo do VPT dos terrenos para construção já está alinhada com o mais recente entendimento do STA, pelo que se afigura prejudicada a controvérsia sobre a aplicação do artigo 38.º ou do 45.º, do CIMI na avaliação dos terrenos para construção.

12.              O pedido formulado pela Requerente não está fundamentado na lei e o Tribunal Arbitral está obrigado a julgar de acordo com o direito constituído, estando impedido de julgar o processo de acordo com critérios da equidade.

13.              No caso em apreço não se verifica qualquer “erro imputável aos serviços”, pois à data dos factos, a Administração Tributária fez a aplicação da lei vinculadamente.

14.              Caso o pedido de pagamento de juros fosse julgado procedente, o mesmo seria enquadrável no nº 3, alínea c) do artigo 43.º da LGT.

15.              Nestes termos, deve o presente pedido de pronúncia arbitral ser julgado improcedente por não provado, e, consequentemente, absolvida a requerida de todos os pedidos.

 

 

Não havendo factos controvertidos nem tendo sido requerida a produção de prova adicional, foi, pelo despacho arbitral de 13 de maio de 2022, dispensada a reunião a que se refere o artigo 18.º, do RJAT, e as convidadas Partes a apresentar alegações escritas, pelo prazo simultâneo de 15 dias, com indicação de que nelas a Requerente se poderia pronunciar sobre a matéria de exceção invocada pela Requerida. Foi estabelecido o dia 30 de junho de 2022 como data provável para prolação da decisão arbitral e notificada a Requerente para, até essa data, proceder ao pagamento da taxa arbitral remanescente.

A Requerente apresentou alegações escritas, nas quais deu por integralmente reproduzido o teor do pedido de pronúncia arbitral. Especificamente, contestou a Requerente, como já havia feito na petição inicial, a invocada inimpugnabilidade dos atos de liquidação de AIMI com fundamento em errónea fixação do VPT, não obstante a possibilidade de impugnação autónoma dos atos de avaliação, enquanto atos destacáveis.

 

A Requerida não apresentou alegações.

 

 

II. SANEAMENTO

1.          O tribunal arbitral singular é competente e foi regularmente constituído em 28 de março de 2022, nos termos previstos na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º, da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro; 

2.          As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º, do RJAT, e do artigo 1.º, da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março;

3.          O processo não padece de vícios que o invalidem.

 

 

 

III. FUNDAMENTAÇÃO

III.1 MATÉRIA DE FACTO

Na sentença, o juiz discriminará a matéria provada da não provada, fundamentando as
suas decisões (artigo 123.º, n.º 2, do CPPT, subsidiariamente aplicável ao processo arbitral
tributário, nos termos do artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT).

 

A matéria factual relevante para a compreensão e decisão da causa, após exame crítico da prova documental junta ao pedido de pronúncia arbitral (PPA) e do processo administrativo (PA), fixa-se como segue:

 

A – Factos provados

1.   Em 31 de dezembro de cada um dos anos a que respeita o imposto (2017, 2018, 2019 e 2020), a Requerente era proprietária do prédio urbano (terreno para construção) inscrito sob o artigo ... da União de Freguesias de ..., ... e ..., concelho e distrito do Porto, anteriormente inscrito sob o artigo ... da extinta Freguesia de ... (facto não contestado);

2.   Na determinação dos VPT do terreno identificado, efetuada em 3 de maio de 2008 com base na declaração modelo 1 do IMI entregue em 26 de março de 2008, a Requerida usou a fórmula seguinte (Doc. 4 junto ao PPA, que se dá como integralmente reproduzido):

3.   Os coeficientes de localização e de afetação utilizados para a determinação do VPT do referido terreno para construção (tipo serviços) foram, respetivamente, de 1,40 e de 1,10, tendo sido usada a percentagem de 25% para cálculo do valor da área de implantação (Doc. n.º 4 junto ao PPA e PA);

4.   A Requerente foi notificada para proceder ao pagamento das liquidações de AIMI ora contestadas, referentes ao prédio identificado (Doc. n.º 2 junto ao PPA):

a.   Liquidação n.º 2017.463..., referente ao ano de 2017, no valor de € 10 726,19;

b.   Liquidação n.º 2018.629..., referente ao ano de 2018, no valor de € 10 726,19;

c.   Liquidação n.º 2019 011..., referente ao ano de 2019, no valor de € 10 726,19:

d.   Liquidação n.º 2020 016..., referente ao ano de 2020, no valor de € 10 887,08;

5.   Todas as liquidações de AIMI identificadas se encontram regularizadas por pagamento (Doc. n.º 5 junto ao PPA);

6.   Em 27 de agosto de 2021, a Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa das suprarreferidas liquidações de AIMI, ao abrigo do disposto nos artigos 115.º, alínea c) e 129.º, n.º 1, ambos do CIMI e 78.º, n.º 1, da LGT (Docs. n.ºs 1 e 3 juntos ao PPA);

7.     À data do pedido de pronúncia arbitral a Requerente não tinha sido notificada da decisão do procedimento de revisão oficiosa (facto admitido por acordo das Partes).

 

B – Factos não provados

Não existem factos com interesse para a decisão da causa que devam considerar-se como não provados.

 

C – Fundamentação da matéria de facto provada e não provada:

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe antes o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada. 

 

Assim, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. o artigo 596.º, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

 

Os factos dados como provados decorrem da análise crítica dos documentos juntos ao pedido de pronúncia arbitral, e da posição assumida pelas Partes nos respetivos articulados, face princípio da livre valoração da prova (artigo 110.º, n.º 7, do Código de Procedimento e de Processo Tributário).

 

 

 

III.2 DO DIREITO

1.   1 A questão decidenda

As questão a decidir nos presentes autos consiste em saber, por um lado, (i) se sendo o ato de determinação do valor patrimonial tributário um ato destacável, suscetível de impugnação autónoma que, não tendo sido sindicado atempadamente pelos meios administrativos e judiciais próprios se consolidou na ordem jurídica, não pode ser invocado na apreciação da legalidade do ato tributário de liquidação subsequente, impedindo o conhecimento do mérito da causa com base em tal fundamento ou (ii) se, pelo contrário, o erro  na determinação do valor patrimonial tributário, na medida em que influenciou o cálculo do imposto apurado com base nesse valor, constitui fundamento para a apreciação da legalidade e anulação parcial das liquidações de AIMI que constituem objeto mediato do pedido de pronúncia arbitral.

 

 

1.2   Do ato de determinação do valor patrimonial tributário como ato destacável.

Quanto à primeira parte da questão, contendo a mesma a alusão implícita à exceção dilatória de inimpugnabilidade do ato de liquidação com base em vícios do ato de fixação do valor patrimonial tributário (artigo 89.º, n.º 4, alínea i), do CPTA, subsidiariamente aplicável ao processo arbitral tributário ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT), que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa, dando lugar à absolvição da instância, deve ser tratada com prioridade.

 

No contencioso tributário vigora a regra da impugnação unitária, consagrada no artigo 54.º, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), que apenas permite a impugnação contenciosa autónoma dos atos interlocutórios do procedimento se forem diretamente lesivos dos direitos dos contribuintes ou quando exista disposição expressa em sentido diferente, “sem prejuízo de poder ser invocada na impugnação da decisão final qualquer ilegalidade anteriormente cometida.”.

 

O ato de fixação do valor patrimonial tributário de um imóvel não é, em si mesmo, um ato diretamente lesivo (não obstante seja classificado como tal pelo artigo 95.º, n.º 2, alínea b), da Lei Geral Tributária (LGT)), pois o sacrifício patrimonial exigido ao contribuinte apenas ocorre com a liquidação do imposto efetuada com base nesse VPT; contudo, de acordo com os n.ºs 1 e 2 do artigo 86.º, da LGT, a avaliação direta, como é o ato de determinação do VPT dos prédios urbanos (artigo 15.º, n.º 2, do CIMI), é suscetível, “nos termos da lei” de impugnação contenciosa direta, desde que esgotados os meios administrativos previstos para a sua revisão.

 

Do mesmo modo, o artigo 134.º, do CPPT, prevê a possibilidade de impugnação do ato de fixação do VPT, sem efeito suspensivo da liquidação subsequente e “depois de esgotados os meios graciosos previstos no procedimento de avaliação”, meios administrativos que a Requerida restringe ao pedido de uma segunda avaliação direta, nos termos dos artigos 75.º e ou 76.º, do CIMI, da qual cabe impugnação judicial, nos termos definidos no CPPT (artigo 77.º, do CIMI).

 

Em face das normas legais acabadas de mencionar, não restam dúvidas de que o ato de avaliação do qual decorre a fixação do VPT é um ato destacável, suscetível de impugnação contenciosa direta.

 

Todavia, a questão que nos ocupa é, sobretudo, a de saber se, para além da possibilidade de impugnação direta do ato de fixação do VPT, tal ato é um ato definitivo que, na falta de impugnação judicial, se consolidou na ordem jurídica, precludindo o direito de, com fundamento na sua errada determinação, poder ser deduzida impugnação judicial da liquidação do imposto a que serviu de base.

 

É o que se averiguará de seguida.

 

 

1.3               Da (in)impugnabilidade do ato de liquidação com base em vícios da fixação do valor patrimonial tributário

Não está em causa nos autos determinar a existência de erro na determinação do valor patrimonial tributário do terreno para construção sobre que incidiram as liquidações de AIMI contestadas pela Requerente, decorrente da utilização dos critérios estabelecidos para avaliação dos prédios urbanos edificados, não previstos na norma específica do artigo 45.º, do Código do IMI, na redação em vigor à data dos factos, porquanto este vem assumido pela Requerida, que afirma tê-lo já corrigido, na sequência do “mais recente entendimento do Supremo Tribunal Administrativo” (artigo 52.º da Resposta).

 

Assumido tal erro pela Requerida, fica igualmente prejudicado o conhecimento da questão da inconstitucionalidade da norma pretensamente extraída pela AT do artigo 45.º, do CIMI, na redação vigente à data das liquidações impugnadas, por aplicação analógica dos critérios previstos no artigo 38.º, do mesmo Código[1].

 

Importa, no entanto, saber se o erro na determinação do valor patrimonial tributário, que influenciou o cálculo do imposto apurado, se reflete na legalidade das liquidações de AIMI dos anos de 2017, 2018, 2019 e 2020.

 

A Requerida, como já foi referido, entende que não, por considerar que as liquidações ora impugnadas, enquanto atos de aplicação da taxa à matéria tributável, não padecem de qualquer erro e que o ato de fixação do valor patrimonial tributário, já consolidado na ordem jurídica enquanto ato destacável, não é suscetível de revisão oficiosa, porquanto o artigo 78.º, da LGT, se reporta expressamente à revisão dos atos tributários.

 

Cumpre apreciar e decidir.

 

Determina o n.º 1 do artigo 78.º, da LGT, que os atos tributários podem ser revistos oficiosamente pela entidade que os praticou, no prazo de quatro anos após a liquidação, com fundamento em erro dos serviços, entendendo-se como tal o erro que “concretiza qualquer ilegalidade não imputável ao contribuinte por conduta negligente, mas à A. Fiscal, mais devendo tal erro revestir carácter relevante, gerando um prejuízo efetivo, em virtude do errado apuramento da situação tributária do contribuinte, daí derivando o seu carácter essencial”.[2]

 

Apesar de a revisão oficiosa dos atos tributários ser da competência da entidade que os praticou, nada impede que o impulso para a sua revisão caiba ao contribuinte, como decorre do disposto no n.º 7, do artigo 78.º, da LGT, norma que faz referência ao efeito interruptivo do respetivo prazo, do pedido por aquele dirigido ao órgão competente para a sua realização (cfr. ainda os artigos 49.º, n.º 1, da LGT e 86.º, n.º 4, alínea a), do CPPT).

 

No pedido de revisão oficiosa das liquidações de AIMI dos anos de 2017 a 2020,  apresentado pela Requerente ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78.º, da LGT, dentro do prazo de quatro anos a contar da data de cada uma daquelas liquidações, apelou esta ainda para o disposto no artigo 115.º, n.º 1, alínea c), do Código do IMI, norma que impõe à AT o poder-dever de proceder à revisão oficiosa das liquidações “Quando tenha havido erro de que tenha resultado coleta de montante diferente do legalmente devido”, não distinguindo o legislador entre o erro na própria liquidação ou na determinação do VPT que lhe serviu de base, determinante da quantificação da coleta respetiva, poder-dever esse que decorre dos princípios da justiça, da igualdade e da legalidade, que a esta tem de observar na globalidade da sua atividade, conforme os artigos 266.º, n.º 2, da CRP, e 55.º, da LGT.

 

Existindo erro dos serviços na determinação do VPT do terreno para construção de que decorreram as liquidações de AIMI contestadas, em valor superior ao devido, sempre poderia o contribuinte, ainda que o não tivesse feito antes, invocar tal erro, nos termos conjugados dos artigos 78.º, n.º 1, da LGT, e 115.º, n.º 1, alínea c), do Código do IMI[3], como a Requerente efetivamente fez, estando a AT obrigada a rever oficiosamente tal liquidação[4].

 

Da omissão do dever de decidir o caso concreto dentro do prazo de quatro meses a que alude o n.º 1 do artigo 57.º, da LGT, resultou a presunção de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa das liquidações de AIMI dos anos de 2017 a 2020 apresentado pela Requerente, ficando aberta a via contenciosa, nos termos do n.º 5 do mesmo artigo.  

 

O meio processual adequado à reação contra o indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa dos referidos atos tributários, estando em causa a apreciação da legalidade de atos de liquidação, ainda que com fundamento em vícios de um ato destacável, é o processo de impugnação judicial ou o processo arbitral tributário, enquanto meio alternativo àquele (cfr. a autorização legislativa concedida ao Governo pelo artigo 124.º, n.º 2 (primeira parte), da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de abril – Lei do Orçamento do Estado para 2010).

 

De facto, tanto a jurisprudência como a doutrina têm vindo a entender que aproveita ao contencioso tributário o princípio “pro actione” ínsito no artigo 7.º, do CPTA, subsidiariamente aplicável ao processo arbitral tributário, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, que, sob a epígrafe de “promoção do acesso à justiça”, impõe ao julgador que interprete as normas processuais “no sentido de promover a emissão de pronúncias sobre o mérito das pretensões formuladas”, assim “permitindo minimizar a rigidez das normas processuais, decorrente do princípio da tipicidade”.[5]

 

Ora, interpretar a lei significa determinar o seu sentido e alcance, a fim de permitir a sua correta aplicação a um caso concreto, partindo do respetivo texto (elemento gramatical) e lançando mão dos elementos lógicos (histórico, sistemático e racional ou teleológico), mas “não podendo ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso” (artigo 9.º, n.º 2, do Código Civil).

 

 Decorre da conjugação do segmento final do artigo 54.º, do CPPT com o disposto na alínea a) do artigo 99.º, do mesmo Código (elemento sistemático), que ainda que os atos destacáveis não tenham sido objeto de impugnação autónoma, qualquer ilegalidade de que padeçam não deixará de constituir fundamento de impugnação judicial do ato de liquidação subsequente[6].

 

De igual modo, o elemento racional ou teleológico aponta no sentido de que o erro na determinação do valor patrimonial tributário constitui fundamento de impugnação da liquidação subsequente, pois, de acordo com a Decisão Arbitral proferida no âmbito do Processo n.º 760/2020-T, a impugnabilidade direta dos atos destacáveis tem “presente uma intencionalidade garantística (consagração de meio de garantia mais abrangente) e não um intuito de restrição dos normais meios de garantia, como resultaria do acolhimento do pensamento sufragado pela Requerida).

 

Pelos motivos expostos, julga-se improcedente a exceção de inimpugnabilidade arguida pela AT, julgando procedente o pedido de anulação parcial das liquidações de AIMI dos anos de 2017, 2018, 2019 e 2020, nos termos peticionados.

 

 

2.   Da restituição do indevido, acrescido de juros indemnizatórios

Determina a alínea b) do n.º 1 do artigo 24.º, do RJAT, que a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária

a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos precisos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse

 sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”, o que incluiu “o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário.”.

 

De igual modo, o n.º 1 do artigo 100.º, da LGT, aplicável ao processo arbitral tributário por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º, do RJAT, estabelece que “A administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.”.

 

O restabelecimento da situação que existiria se o ato tributário objeto do pedido de pronúncia arbitral não enfermasse de erro na determinação do VPT subjacente, obriga, por um lado, à restituição do imposto indevidamente pago pela Requerente e, por outro, ao pagamento de juros indemnizatórios, sendo caso disso.

 

O regime dos juros indemnizatórios consta do artigo 43.º, da LGT, cujo n.º 1 estabelece que “São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.”.

 

Porém, a amplitude do direito a juros indemnizatórios em caso de pedido de revisão oficiosa não é tão abrangente como a que decorre do n.º 1 do artigo 43.º, da LGT, enquadrando-se na alínea c) do n.º 3 do mesmo artigo, caso tenha decorrido mais de um ano sobre a data do pedido de revisão oficiosa, por iniciativa da Requerente.[7]

 

No caso concreto em análise, tendo o pedido de revisão oficiosa sido apresentado em 27 de agosto de 2021 e, não tendo ainda decorrido um ano sobre aquela data, não são devidos juros indemnizatórios.

 

 

IV. DECISÃO 

Com base nos fundamentos de facto e de direito acima enunciados e, nos termos do artigo 2.º do RJAT, decide-se em, julgando procedente o pedido de pronúncia arbitral:

a.   Julgar improcedente a matéria de exceção suscitada pela Requerida;

b.   Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, anulando parcialmente os atos tributários de liquidação de AIMI supra identificados, pela quantia de € 16 084,35, bem como a decisão de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa;

c.   Condenar a Requerida à restituição da prestação tributária paga em excesso, no valor indicado em b);

d.   Julgar improcedente o pedido de juros indemnizatórios.

 

 

VALOR DO PROCESSO: De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 16 084,35 (dezasseis mil e oitenta e quatro euros e trinta e cinco cêntimos), indicado no pedido de pronúncia arbitral e não contestado pela AT. 

 

CUSTAS: Calculadas de acordo com o artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I a ele anexa, no valor de € 1 224,00 (mil, duzentos e vinte e quatro euros), a cargo da Requerida.

 

Notifique-se. 

 

Lisboa, 30 de junho de 2022.

 

O Árbitro,

 

/Mariana Vargas/

 

Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 131.º do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do DL 10/2011, de 20 de janeiro. 

A redação da presente decisão rege-se pelo acordo ortográfico de 1990.



[1] Tal como foi decidido no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 21-11-2019, Processo 01646/13.2BELRA, “O que pode e deve ser objecto de fiscalização concreta da constitucionalidade, por parte dos Tribunais, são normas e não quaisquer decisões, sejam elas de natureza judicial ou administrativa, nem tão pouco eventuais interpretações que de tais normas possam ser efectuadas por aquelas decisões (cfr. artºs.204 e 280, nº.1, da C.R.Portuguesa).”.

[2] Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 23.03.2017, processo n.º 1349/10.0BELRS.

[3] No sentido de que o pedido de revisão oficiosa é meio idóneo de impugnação administrativa da errónea determinação do VPT, cfr. Joaquim Freitas da Rocha, “Lições de Procedimento e Processo Tributário”, 5.ª edição, Coimbra Editora, 2014, pág. 195, segundo o qual “(…) antes de recorrer a Tribunal, o sujeito impugnante deverá auscultar a Administração tributária uma vez mais. De que forma? Basicamente, pedindo um segundo acto de avaliação – possibilidade que, por exemplo no caso de bens imóveis, se encontra prevista nos arts. 71.º e ss. do CIMI – ou utilizar, se outro não existir, o procedimento de revisão dos actos tributários, previsto no art. 78.º da LGT. Só após a decisão desfavorável no âmbito destes últimos procedimentos (isto é, decisão que mantenha o valor fixado em sede de primeira avaliação) é que se abre a via contenciosa.”.

[4] Neste sentido, cfr. o Acórdão Tribunal Central Administrativo Sul – Secção do Contencioso Tributário, de 31.10.2019, processo n.º 2765/12.8BELRS, no qual se decidiu que “A errada fixação do VPT, em 2003, pode ser arguida através do pedido de revisão oficiosa das liquidações, nos termos conjugados dos artigos 78.º da LGT e 115.º do CIMI, ainda que o contribuinte não tenha reagido atempadamente contra essa fixação.”.

[5] Cfr. Rui Duarte Morais, “Manual de Procedimento e Processo Tributário”, Almedina, 2012, pág. 252 e Decisão arbitral de 02.07.2021, processo n.º 760/2020-T.

[6] Escrevem Serena Cabrita Neto e Carla Castelo Trindade, in “Contencioso Tributário – Volume I”, Almedina, 2017, pág. 490: “(…) os vícios dos actos destacáveis são arguíveis na discussão da legalidade do acto final ainda que não tenham sido objecto de impugnação autónoma, não se podendo porém duplicar meios sob pena de os eventuais vícios do acto destacável srrem uma questão prejudicial da impugnabilidade do acto definitivo.”

[7] Cfr. neste sentido, entre outros, o Acórdão do Pelo da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal
Administrativo, de 11/12/2019, processo 058/19.9BALSB: “Pedida pelo sujeito passivo a revisão oficiosa do ato
de liquidação (cfr. art. 78.º, n.º 1, da LGT) e vindo o ato a ser anulado (parcialmente), mesmo que em impugnação
judicial do indeferimento daquela revisão, os juros indemnizatórios são devidos depois de decorrido um ano após
a apresentação daquele pedido, e não desde a data do indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa
apresentado [cfr. art. 43.º, n.ºs 1 e 3, alínea c), da LGT].