Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 914/2019-T
Data da decisão: 2021-08-15  IRC  
Valor do pedido: € 321.644,00
Tema: IRC – Retenção na fonte; Decreto-Lei n.º 193/2005, de 07/11; Beneficiário efectivo.
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SUMÁRIO:

I – Nos termos e para os efeitos do artigo 4.º do Regime Especial de Tributação dos Rendimentos de Valores Mobiliários Representativos de Dívida aprovado pelo Decreto-Lei n.º 193/2005, de 07/11, sobre os beneficiários efectivos apenas recai o ónus de comprovação dos pressupostos da sua qualidade de entidade não sujeita a retenção ou isenção.

II - Tendo sido retida a totalidade do imposto devido aquando do vencimento do cupão, e beneficiando a Recorrida da isenção do imposto, na sequência de comprovação a posteriori da qualidade de não residente, a mesma tem direito à restituição total do imposto retido

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I – RELATÓRIO

 

1.            No dia 28 de Dezembro de 2019, A..., S.A., NIPC..., com sede em ..., Rue...– Luxembourg, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade do acto de retenção na fonte de IRC incorporado na guia de retenção na fonte n.º..., relativo a Fevereiro de 2014, na medida correspondente à liquidação em excesso de IRC sobre os rendimentos efectivamente auferidos pela Requerente em território português a título de juros, bem como o indeferimento expresso da reclamação graciosa que teve como objecto aquele acto, no valor de € 321.644,00.

 

2.            Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, que:

a.            A posição sustentada pela AT, que carece de fundamentação legal, é uma subversão do princípio da substância sobre a forma;

b.            A requerente era a verdadeira e única titular dos títulos de dívida em causa, detidos através de conta em intermediário financeiro, e tendo os juros gerados por tais títulos sido efectivamente pagos à ora requerente, em montante líquido da retenção na fonte realizada, deverá concluir-se no sentido de que a requerente era a “beneficiária efectiva” dos rendimentos em causa;

c.            Pelo que deve ser devolvido à requerente o excesso de IRC retido na fonte, por indevido nos termos da lei, como acima ficou provado, sob pena da violação dos artigos 94.º e seguintes do Código do IRC, em conjugação com os artigos 4.º e 5.º do Decreto-Lei n.º 193/2005, de 7 de Novembro;

d.            Tendo sido ainda violados os princípios da capacidade contributiva e da tributação pelo lucro real constantes do artigo 104.º da Constituição da República Portuguesa, e o princípio da legalidade acolhido no n.º 3, do artigo 103.º, da Constituição da República Portuguesa;

e.            Subsidiariamente, caso se entenda que o reembolso da totalidade do imposto assim retido não poderá ocorrer ao abrigo do regime especial de tributação de dívida aqui em causa, sempre deverá em qualquer caso ser devolvido à requerente o diferencial entre a taxa de 35% efectivamente aplicada sobre os juros pagos à requerente e a taxa de 10% prevista no caso de pagamento de juros nos termos do artigo 11.º da Convenção para eliminação da Dupla Tributação celebrada entre Portugal e o Luxemburgo, no valor de € 229.760,00.

 

3.            No dia 30-12-2019, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.

 

4.            A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

5.            Em 14-02-2020, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.

 

6.            Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 17-03-2020.

 

7.            No dia 02-07-2020, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se (por excepção e) por impugnação.

 

8.            Ao abrigo do disposto nas als. c) e e) do art.º 16.º, e n.º 2 do art.º 29.º, ambos do RJAT, foi dispensada a realização da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT.

 

9.            Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, foram as mesmas apresentadas pela Requerente.

 

10.          Foi indicado que a decisão final seria notificada até ao termo do prazo previsto no art.º 21.º/1 do RJAT, com as prorrogações determinadas nos termos do n.º 2 do mesmo artigo.

 

11.          O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

O processo não enferma de nulidades.

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.

 

Tudo visto, cumpre proferir:

 

II. DECISÃO

A. MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

 

1-            A Requerente (anteriormente designada por B..., S.A., tendo alterado a sua denominação social para A..., S.A. em 11 de Março de 2014) é uma sociedade constituída ao abrigo do direito luxemburguês e residente, para efeitos fiscais, no Luxemburgo, sem estabelecimento estável em Portugal, cujo objecto social integra a gestão de investimentos mobiliários.

2-            O capital social da requerente é detido em 100% pela C..., sediada no Liechtenstein e igualmente sem estabelecimento estável em território português.

3-            Em 5 de Julho de 2013, a C... adquiriu, pelo preço de € 4.840.000, 48.400 títulos representativos de dívida portuguesa, mais concretamente obrigações do tesouro emitidas pelo Estado português, com uma taxa de remuneração fixada em 6,4%.

4-            Em 22 de Julho de 2013, a C... fez nova aquisição de obrigações do tesouro emitidas pelo Estado português, tendo adquirido 95.200 títulos pelo preço de € 9.520.000, passando a C... a deter, desse modo, um total de 143.600 títulos de dívida emitidos pelo Estado português, adquiridos pelo preço global de € 14.360.000.

5-            Estes títulos de dívida foram depositados pela C... numa conta aberta em nome de um ou mais titulares mas por conta de um terceiro não identificado junto do D..., S.A. (de ora em diante “D...”) que por sua vez detinha uma conta junto da entidade gestora de sistema de liquidação internacional E..., S.A. (de ora em diante, “E...”), entidade esta que era titular de uma conta aberta junto do Banco F..., S.A..

6-            Em 13 de Agosto de 2013, a C... transmitiu a totalidade dos 143.600 títulos de dívida emitidos pelo Estado português e por si previamente adquiridos à sociedade-filha A... (a requerente), transmissão essa que, para além de ter implicado a transferência da titularidade sobre os títulos em causa, implicou a transferência da totalidade dos direitos económicos sobre os referidos títulos de dívida para a Requerente, deixando assim a C... de poder dispor ou beneficiar de rendimentos provindos daqueles títulos.

7-            Em 15 de Fevereiro de 2014 ocorreu o pagamento do cupão relativo ao período até 14 de Fevereiro de 2014, tendo consequentemente sido creditada a conta detida pela A... junto do D... no montante de € 597.376,00, correspondente ao pagamento de juros de obrigações do tesouro emitidas pelo Estado português no valor de € 919.040,00 (isto é, 6,4% sobre o valor global dos títulos detidos pela requerente correspondentes ao montante de € 14.360.000,00), líquidos do IRC retido na fonte em Portugal à taxa de 35%, no montante de € 321.664,00.

8-            Aquela retenção na fonte foi aplicada pelo F..., que entregou o correspondente montante ao Estado, tendo entregue os juros líquidos de retenção na fonte (no montante de € 597.376,00) à E..., a qual entregou, por sua vez, o referido montante ao D... que creditou o montante em causa na conta detida pela requerente nos termos supra descritos.

9-            O F... aplicou, na qualidade de entidade registadora ou depositária residente em Portugal, a referida taxa de retenção na fonte de IRC de 35% (ao abrigo do disposto na alínea h) do n.º 5 do artigo 87.º, ex vi n.º 5 do artigo 94.º, ambos do Código do IRC na redacção em vigor à data dos factos) em virtude de se tratarem de rendimentos relativos a valores mobiliários sujeitos a registo ou depósito emitidos por uma entidade residente em território português (neste caso, o próprio Estado), pagos numa conta estrangeira por conta de um terceiro não identificado, já que, à data do pagamento dos juros, o F... não se encontrava em condições de identificar o respectivo beneficiário efectivo.

10-         Em 11 de Março de 2014, a Requerente decidiu alienar os títulos em causa em mercado secundário.

11-         Em Janeiro de 2017, a Requerente apresentou junto da AT pedido de reembolso do IRC indevidamente retido na fonte, tendo juntado a documentação comprovativa da sua qualidade de beneficiário efectivo dos rendimentos em causa, pedido este que foi convolado pela AT em reclamação graciosa e nos termos do qual a requerente solicitou, a título subsidiário, que ao invés da taxa agravada de 35% fosse aplicada a taxa reduzida de 10% ao abrigo do disposto no artigo 11.º da Convenção para eliminação da Dupla Tributação celebrada entre Portugal e o Luxemburgo (tendo apresentado o formulário Modelo 22-RFI).

12-         A AT indeferiu o pedido apresentado pela ora requerente.

13-         A requerente foi notificada, em 03 de Outubro de 2019, do despacho proferido em 25 de Setembro de 2019 pelo Director de Finanças Adjunto (por delegação de competências) da Direcção de Finanças de Lisboa que indeferiu a reclamação graciosa.

14-         Do referido despacho consta, para além do mais, o seguinte:

i.             “não se encontra evidenciado que, do montante entregue nos Cofres do Estado através da identificada guia de retenção faça parte da retenção na fonte de € 321.664,00 efetuada à Reclamante, conforme invocado.”;

ii.            “no preenchimento da declaração Mod. 22- RFI, quadro III não foi preenchida a declaração do intermediário financeiro residente em Portugal e assinada pelo mesmo, com a identificação da guia de retenção na fonte.”;

15-         Em anexo ao referido despacho, consta uma informação, para o qual o mesmo remete, a qual, para além do mais, refere que:

“j) A Reclamante será a proprietária formal dos rendimentos, mas a Beneficiária material será a Fundação, que detém a totalidade do capital social da Reclamante” (...)

“k) Ademais, desconhece-se, em rigor, os eventuais direitos do fundador ou fundadores da C..., designadamente quanto a rendimentos de capitais, afigurando-se por concluir, por conseguinte, que se desconhece, em rigor, quem é o proprietário económico dos rendimentos.” (...)

“m) Por conseguinte, ao abrigo do disposto no número 1 e na sua alínea a), do artigo 2.º do Regime Especial, a Reclamante não pode entender-se como sendo a «Beneficiária Efetiva» dos rendimentos dos valores mobiliários com o código ISIN: PTOTE..., e a Fundação, além de não ser a Requerente, não se insere no âmbito subjetivo do disposto no artigo 5.º do Regime, por se tratar de entidade residente no Liechtenstein, que integra a lista dos paraísos, territórios ou regiões com regimes de tributação privilegiada, a que se refere o disposto na alínea b) do número 1 do referido artigo 5.º do Regime.” (...)

“q) Em conclusão, a Reclamante não deverá entender-se como sendo a “Beneficiária efetiva” dos rendimentos para efeito do disposto no Regime Especial, e no caso da Fundação, ainda que assim viesse a ser considerada, não pode beneficiar da isenção por ter residência fiscal no Liechtenstein.”.

 

A.2. Factos dados como não provados

Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º, n.º 7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Ac. do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo 07148/13 , o “relatório da inspecção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

 

B. DO DIREITO

                Em causa nos presentes autos de processo arbitral está a aplicação da isenção prevista no artigo 4.º do Regime Especial de Tributação dos Rendimentos de Valores Mobiliários Representativos de Dívida aprovado pelo Decreto-Lei n.º 193/2005, de 07/11, ou o seu afastamento por força do disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 5.º do mesmo Regime, a contrário.

                Conforme resulta da matéria de facto provada, em sede graciosa, a AT entendeu ser de afastar a referida isenção porquanto, e em suma, entendeu que:

a)            Não havia prova de que o imposto retido à Requerente tivesse sido entregue ao Estado; e

b)           A Requerente não seria o beneficiário efectivo dos rendimentos sujeitos a imposto retido.

Relativamente ao primeiro dos argumentos ora elencados, a Requerida parece ter deixado cair o mesmo em sede arbitral, na medida em que na sua resposta (cfr. art.º 18.) refere que “A questão a dirimir prende-se com saber se a Requerente é a beneficiária efetiva dos rendimentos em causa”.

Sem prejuízo disso, sempre se dirá que o referido argumento seria sempre improcedente, na medida em que ao substituído apenas incumbe fazer prova da ocorrência efectiva da retenção.

Tal prova, demonstrará inequivocamente que o substituído suportou o encargo patrimonial do imposto, sendo um encargo da AT verificar, em primeiro lugar, se o imposto retido lhe foi entregue e, por outro e se assim não for, diligenciar pela sua cobrança, assim como pelo sancionamento (que poderá inclusive revestir-se de natureza criminal) do substituto relapso.

No caso, dúvidas não há, face à prova documental apresentada, que a importância reclamada pela Requerente lhe foi retida pelo banco, pelo que sempre haveria de desfalecer o fundamento do indeferimento da reclamação graciosa ora em apreço.

Deste modo, e como a Requerida reconhece, a questão fundamental a apreciar prende-se com saber se a Requerente se apresenta, ou não, como beneficiário efectivo, para efeitos do referido Regime Especial de Tributação dos Rendimentos de Valores Mobiliários Representativos de Dívida, dos rendimentos em causa no presente processo arbitral.

E, conforme é igualmente pacífico, por beneficiário efectivo, nos termos do art.º 2.º, n.º1, alínea a), daquele Regime, deve entender-se “qualquer entidade que obtenha rendimentos de valores mobiliários representativos de dívida por conta própria e não na qualidade de agente ou mandatário”.

Como bem refere a Requerida, “só será considerada beneficiária dos juros a entidade que os receber por conta própria, e não como representante, por exemplo como administrador fiduciário ou signatário autorizado de outra pessoa, ou seja, a entidade que beneficia economicamente dos juros auferidos e dispõe assim da faculdade de determinar livremente a sua afetação.”.

Já não será lícito o salto epistemológico efectuado pela mesma Requerida, ao pretender que, de tal definição se retire a conclusão de que “O conceito de «beneficiário efetivo» visa assim identificar a pessoa que, independentemente das aparências formais, é o verdadeiro destinatário final ou beneficiário de um dado rendimento e, portanto, o sujeito passivo do imposto correspondente a esse rendimento, ou seja aquele que detém um direito “pleno” de “uso e fruição”.”.

Com efeito, o que está em causa, conforme referido no parágrafo prévio, é que o destinatário do pagamento dos juros seja quem beneficia economicamente dos mesmos, o que quer dizer, desde logo, e em primeira linha, dado que nos situamos no âmbito do Direito Fiscal, que o juro sejam efectivamente um rendimento tributável daquele, o que não acontece nos exemplos elencados elencados in fine na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do Regime em causa, nem, por exemplo, se contratualmente tal destinatário estiver obrigado a reencaminhar as importâncias recebidas para terceiro.

Já não estarão contidas naquele conceito de beneficiário efectivo outras situações, como a que a Requerida pretende incluir, em que a livre disposição das quantias recebidas possa estar limitada ou afectada por qualquer razão. Assim, e por exemplo, se o crédito de juros tiver sido, por qualquer razão, penhorado, o beneficiário efectivo do recebimento daquele não deixará de ser, evidentemente, a entidade a quem tal crédito foi penhorado, não obstante não deter “um direito “pleno” de “uso e fruição””.

Igualmente fora do conceito de “beneficiário efectivo” estarão situações de abuso ou fraude, mas estas, por definição, estarão enquadradas em tal conceito, e apenas a prova da fraude ou do abuso é que as retirará de tal âmbito.

Sem prejuízo do quanto se disse já, que se julga suficiente para afastar o entendimento da Requerida, sempre se dirá que não tem cabimento, no caso, a invocação por aquela do Modelo de Convenção Fiscal sobre o Rendimento e o Património da OCDE (2014), já que, como se vê do próprio texto citado, aquele afasta a qualidade de beneficiário efectivo quando esteja em causa “um mero fiduciário ou administrador que age por conta das partes interessadas”, o que, em concreto, não se demonstra ser o caso da Requerente.

Também a invocação de jurisprudência do TJUE feita pela Requerida nada acrescenta ao caso sub iudice, na medida em que, como a própria Requerida expressa, nos termos daquela cabe à autoridade nacional “demonstrar que o suposto beneficiário efectivo é apenas uma sociedade interposta por intermédio da qual foi cometido um abuso de direito”, e, em concreto, a AT nada demonstra no sentido de ter ocorrido qualquer abuso de direito.

Diga-se, ainda e por fim, que o entendimento de que “as relações especiais entre a Requerente e a sua sócia única – a C...– implicam que a gestão da sua atividade esteja integralmente subordinada aos interesses dos detentores da Fundação, que decidirão sobre a afetação dos seus recursos, ou seja, é uma entidade juridicamente independente mas sem poderes de gestão e decisão própria.”, não pode proceder, já que tal raciocínio seria, na perspectiva que está ora em causa, válido para qualquer outra entidade, já que nunca a administração das mesmas é auto-escolhida e, portanto, sendo maior ou menor o número de “detentores”, sempre as pessoas colectivas servirão aqueles, e, portanto, na perspectiva da requerida, nunca têm poderes de gestão e decisão própria.

Assim, e à míngua de qualquer prova de fraude ou abuso, que é o que acontece, o que se afigura no caso da Requerente, como no da generalidade das pessoas colectivas, é que a mesma é uma entidade juridicamente independente, como a Requerida reconhece, e, como tal, nenhum terceiro pode legitimamente dispor dos seus recursos livremente como se fossem seus, por força, para além do mais, de princípios como o da autonomia dos fins das pessoas colectivas e da separação de patrimónios.

Deste modo, e por todo o exposto, conclui-se aqui como no acórdão do STA de 31-05-2017, proferido no processo 0418/16, ou seja:

“I - O controlo das entidades registadas e da sua qualidade como entidades sujeitas e não sujeitas a retenção recai sobre as entidades registadoras, em conformidade com o artigo 14.º do DL nº 193/2005.

II - Aos beneficiários efetivos apenas recai o ónus de comprovação dos pressupostos da sua qualidade de entidade não sujeita a retenção ou isenção.

III - Tendo sido retida a totalidade do imposto devido aquando do vencimento do cupão, e beneficiando a Recorrida da isenção do imposto, na sequência de comprovação a posteriori da qualidade de não residente, a mesma tem direito à restituição total do imposto retido.”.

                Assim, entende-se também que :

“I - A possibilidade de restituição do montante indevidamente retido na fonte encontra-se prevista no art. 9.º do DL n.º 193/2005 e pode ser solicitada, segundo o seu n.º 1, no prazo máximo de 90 dias a contar da data em que foi efectuada a retenção, através de formulário a apresentar junto da entidade registadora directa.

II - Caso o beneficiário não requeira o reembolso do imposto indevidamente retido no prazo de 90 dias, deverá fazê-lo nos termos previstos no Código de Processo e Procedimento Tributário, em conformidade com o n.º 3 daquele preceito, definidos no artº 132 do CPPT.

III - O artº 132º, n.º 1, 2, e 3 do Código de Processo e Procedimento Tributário regulam a forma de o substituto reaver o que haja entregue nos cofres do estado que exceda o que haja retido ao substituído.

IV - Porém, o n.º 4 do preceito estende os mecanismos previstos no n.º 3 daquele artigo para utilização pelo substituído, quanto às retenções a título definitivo que lhe tiverem sido efectuadas e que ele considere indevidas.

V - A impugnante podia para obter o reembolso da quantia que considerava indevidamente retida na fonte deduzindo reclamação graciosa no prazo de dois anos a contar do termo do ano da retenção indevida.”.

                Face a todo o exposto, deve ser anulado o acto tributário objecto da presente acção arbitral, bem como a decisão da reclamação graciosa que o teve como objecto, procedendo, consequentemente, o pedido arbitral.

 

***

A Requerente formula, ainda, o pedido acessório de condenação da Requerida na restituição do montante de imposto indevidamente retido, acrescido de juros indemnizatórios.

O artigo 43.º, n.º 1, da LGT estabelece que são devidos juros indemnizatórios quando se determine que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

No caso, estamos perante retenções na fonte de IRC, motivo pelo qual o erro passa a ser imputável aos serviços a partir do momento em que o contribuinte deduz impugnação administrativa desses actos e a AT se pronuncia pelo seu indeferimento. Como refere o Acórdão do STA, processo n.º 0926/17, de 19-09-2018, o erro “passará a ser imputável aos serviços a partir do momento em que, pela primeira vez, a administração tributária toma posição desfavorável ao contribuinte e indefere a sua pretensão”.

Tem, portanto, a Requerente direito a ser reembolsada da quantia de que indevidamente foi privada (nos termos do disposto nos artigos 100.º da LGT e 24.º, n.º 1, do RJAT) por força dos actos anulados e, ainda, a ser indemnizada através da atribuição de juros indemnizatórios, desde a data da notificação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, que ocorreu em 25-09-2019, até ao reembolso, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.ºs 1 e 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, artigo 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.

 

***

C. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar integralmente procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência:

a)            Anular o acto de retenção na fonte de IRC incorporado na guia de retenção na fonte n.º ..., relativo a Fevereiro de 2014, na medida correspondente à liquidação em excesso de IRC sobre os rendimentos efectivamente auferidos pela Requerente em território português a título de juros, bem como o acto de indeferimento expresso da reclamação graciosa que teve como objecto aquele acto;

b)           Condenar a AT na restituição do imposto indevidamente retido, acrescido de juros indemnizatórios, nos termos acima determinados;

c)            Condenar a Requerida nas custas do processo, no montante abaixo fixado.

 

D. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em € 321.644,00, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

E. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 5.508,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerida, uma vez que o pedido foi totalmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.

 

Notifique-se.

Lisboa, 15 de Agosto de 2021

 

O Árbitro Presidente

(José Pedro Carvalho)

 

O Árbitro Vogal

(Luís M. S. Oliveira)

 

O Árbitro Vogal

(Raquel Franco)