Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 907/2019-T
Data da decisão: 2020-12-04  IVA  
Valor do pedido: € 1.639.224,23
Tema: IVA – Locação financeira; direito à dedução; método pro rata; Ofício-circulado n.º 30.108, de 30.01.2009.
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Sumário:

I.  No caso de atividades de locação financeira, apenas se pode obrigar o locador a incluir no numerador e no denominador da fração que serve de base à dedução para bens e serviços de utilização mista a parte das rendas pagas pelos clientes no âmbito dos seus contratos de locação financeira que corresponde aos juros, quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos.

II. A atividade de locação financeira exige a afetação de meios materiais e humanos e a sua conjugação numa perspetiva empresarial, não se reconduzindo a atividade a uma mera intermediação financeira, à semelhança do que acontece numa concessão de crédito.

II. Face à prova produzida, os custos gerais relativos às operações de locação financeira de bens móveis devem ser considerados, para efeitos de IVA, como um elemento constitutivo do preço da disponibilização dos veículos, não podendo ser aplicado um método de repartição que não tenha em conta o valor inicial do bem em causa no momento da sua entrega, uma vez que esse método não é suscetível de garantir uma repartição mais precisa do que aquela que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros Dr. José Poças Falcão (árbitro presidente), Dr. Ricardo Rodrigues Pereira e Dr. João Taborda da Gama (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, acordam no seguinte:

 

I. RELATÓRIO

1. No dia 27 de dezembro de 2019, o A..., S.A., NIPC..., com sede na Rua ..., ..., Porto (doravante, a Requerente), apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto no artigo 11.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 81/2018, de 15 de outubro, e das disposições conjugadas dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, (doravante, abreviadamente designado RJAT), com vista à pronúncia deste Tribunal relativamente à:

- Declaração de ilegalidade e anulação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º...2014... que teve por objeto a autoliquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado (doravante, IVA) referente ao mês de dezembro de 2012;

- Declaração de ilegalidade e anulação parcial da autoliquidação de IVA n.º..., referente ao mês de dezembro de 2012.

 

A Requerente juntou 3 (três) documentos – um deles é a certidão emitida nos termos do disposto no artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 81/2018, de 15 de outubro –, arrolou uma testemunha e não requereu a produção de quaisquer outras provas.    

 

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, Requerida ou AT).

 

Como resulta do pedido de pronúncia arbitral (doravante, PPA), a Requerente alega, nuclearmente, o seguinte que passamos a citar:

«- No âmbito da sua atividade, o Requerente realiza operações financeiras enquadráveis na isenção constante do artigo 9.º, n.º 27 do Código do IVA, que não conferem o direito à dedução deste imposto. É o caso das operações de financiamento/concessão de crédito, das operações associadas a pagamentos e, em geral, das transações relativas à negociação e venda de títulos.

- Simultaneamente, o Requerente realiza também operações financeiras ou acessórias que conferem o direito à dedução deste imposto (cf. artigo 20.º, n.º 1, alínea b) do Código do IVA), designadamente operações de locação financeira mobiliária, locação de cofres, custódia de títulos, entre muitas outras (…).

- Nos contratos de locação financeira o Requerente assume a posição de locador e, nos termos e condições dos respetivos contratos, adquire os bens (v.g., viaturas ou equipamentos) acrescidos de IVA a terceiros fornecedores, entregando-os de imediato para uso e fruição dos locatários.

- Pela cedência (locação) dos bens objeto de contratos de locação financeira, o Requerente cobra rendas, em geral acrescidas de IVA (…) que o locatário fica obrigado a pagar. As rendas em apreço (“prestações”) contêm uma componente de amortização de capital e outra relativa a juros e outros encargos.    

- Nos termos dos contratos de leasing é concedida ao locatário a possibilidade de, mediante o pagamento de um montante adicional (valor residual, também acrescido de IVA) adquirir o bem ao locador (i.e., ao Requerente).

- Relativamente às situações em que o Requerente identificou uma conexão direta e exclusiva entre determinadas aquisições de bens e serviços (inputs) e operações ativas (outputs) por si realizadas, aplicou, para efeitos do exercício do direito à dedução, o método da imputação direta (…) ao abrigo do n.º 1 do artigo 20.º do Código do IVA.

- É o que sucede no âmbito da aquisição de bens objeto dos contratos de locação financeira – v.g. a aquisição de uma viatura para subsequente locação financeira –, relativamente aos quais foi deduzido na íntegra o IVA suportado, por tais bens estarem unicamente ligados a operações tributadas (de locação financeira) que conferem o direito à dedução.

- (…), nas situações em que o Requerente identificou uma conexão direta, mas não exclusiva, entre determinadas aquisições de bens e serviços (inputs) e operações ativas (outputs) por si realizadas, e conseguiu determinar critérios objetivos do nível/grau de utilização efetiva, aplicou o método da afetação real, de harmonia com o disposto no n.º 2 do artigo 23.º do Código do IVA.

- (…), o Requerente, para determinar a medida (quantum) de IVA dedutível relativamente ás demais aquisições de bens e serviços afetas indistintamente ás diversas operações por si desenvolvidas, ou seja, ás aquisições de bens e serviços de “utilização mista” (comuns ou residuais), face à impossibilidade de encontrar um ou vários critérios objetivos passíveis de permitir, de forma minimamente rigorosa e segura, a determinação do IVA dedutível, através do método da afetação real, aplicou o método geral e supletivo da percentagem de dedução, conforme previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º do Código do IVA.

- (…) referimo-nos nomeadamente a aquisições de recursos que são utilizados no âmbito do desenvolvimento de todas as operações efetuadas pelo Requerente, como sejam os consumos de eletricidade, de água, de papel, de material informático – hardware e software –, de telecomunicações, entre muitos outros, (…).

- (…) atos tributários [controvertidos] assentam em pressupostos de facto e de direito erróneos no que concerne ao exercício do direito à dedução do IVA incorrido pelo Requerente para os fins da sua atividade, durante o exercício de 2012, coartando, de forma grosseira, o exercício de tal direito e comprometendo a neutralidade que constitui a trave-mestra da disciplina daquele imposto.

- (…), no cálculo da percentagem de dedução definitiva (cf. n.º 6 do artigo 23.º do Código do IVA) relativa aos contratos de locação financeira o Requerente aplicou o critério da AT (…) consignado no Ofício-circulado n.º 30108, nos termos do qual deve ser excluído o valor das amortizações financeiras contidas na renda. 

- (…), no entendimento do Requerente, a componente do capital das rendas faturadas no âmbito dos contratos de Leasing e ALD integra o conceito de volume de negócios para efeitos de IVA, devendo, por isso, ser contabilizada no cálculo do pro rata de dedução previsto no n.º 4 do artigo 23.º do Código do IVA.

- (…) ao abrigo da legislação nacional (v.g. Código do IVA, artigo 23.º, n.ºs 2 e 3), a aplicação da afetação real aos sujeitos passivos mistos depende da observância de certas condições: i) Caso o sujeito passivo opte por este método (…), ou ii) Por imposição da AT, quando a aplicação do método do pro rata conduza a distorções significativas na tributação.

- Pressupostos em caso algum enquadráveis na situação concreta do Requerente, pois este não só não optou por tal método como (…) apenas exerce uma só atividade – a atividade financeira.

- De igual modo, não se vislumbram distorções significativas na tributação derivadas do método da percentagem de dedução, nem a AT as apontou no (…) Ofício-circulado n.º 30108, limitando-se esta a alegar genericamente a falta de coerência das variáveis utilizadas no pro rata, sem fundamentar, concretizar e demonstrar, como lhe cabia, a existência de qualquer distorção.

- (…) o referido método alternativo ao pro rata, a ser aplicável (…), consistiria na afetação (utilização efetiva) dos bens ou serviços adquiridos pelas diversas operações ativas (cf. n.º 3 do artigo 23.º do Código do IVA, por remissão para o n.º 2 do mesmo preceito) e não na utilização de fórmulas de cálculo da percentagem de dedução “à medida” das Autoridades Tributárias, diferentes da (única) que consta do artigo 9.174.º da Diretiva IVA.

- (…) a solução preconizada pelo Ofício-circulado n.º 30108, para além de constituir um paradoxo, não tem fundamento legal face ao disposto nos n.ºs 1 a 4 do artigo 23.º do Código do IVA.

- Esta criação, no domínio da incidência tributária, violaria ainda o n.º 2 do artigo 103.º da Constituição da República Portuguesa (…).

- (…) se considerasse que tal solução (a do Ofício) poderia ter acolhimento no âmbito da legislação nacional, (…), tal solução sempre seria inválida por colidir e ser incompatível com o disposto nos artigos 173.º e 174.º da Diretiva IVA.  

- (…) a utilização dos recursos adquiridos pelo Requerente é, (…), determinada pela disponibilização dos bens locados, e não apenas pelo financiamento e pela gestão dos contratos de locação financeira.

- (…) o Requerente incorre num montante significativo de despesas para o apoio na disponibilização das viaturas, nomeadamente através da sua vasta rede de balcões de atendimento, de call centers e doa acesso de software (aplicação) de apoio ao cliente (…).  

(…) os cerca de 500 balcões do Requerente prestam serviços relativos à atividade de leasing (…) todos estes estabelecimentos comerciais são relevantes consumidores de recursos comuns tributados em IVA (…).

- Em consequência da aplicação do critério da AT o Requerente apurou uma percentagem de dedução inferior à que resultaria da inclusão daquele valor (das amortizações financeiras do leasing) e deduziu/recuperou menos IVA do que aquele a que tinha direito, resultando na entrega de um valor de prestação tributária em excesso.

- (…), na autoliquidação de IVA relativa a dezembro de 2012, o Requerente apurou uma percentagem de dedução de 5% que aplicada ao total do IVA incorrido nos encargos (bens e serviços adquiridos) de utilização mista (no montante de € 18.213.602,60) se materializou no valor de € 910.680,13 de IVA dedutível (resultante da aplicação da percentagem de 5% ao total do IVA suportado nos encargos mistos).

- Se no cálculo da percentagem de dedução tivesse considerado (não tivesse excluído) o valor das amortizações financeiras relativas ao leasing, então essa percentagem de dedução seria de 14%.

- Aplicando esta última percentagem ao total do IVA incorrido nos recursos de utilização mista, constata-se que devia ter sido deduzido IVA no valor de € 2.549.904,36, não o tendo sido, o que se traduz no montante de € 1.639.224,23 de IVA deduzido a menos pelo ora Requerente.»

 

2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT em 2 de janeiro de 2020.

               

3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a), e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral coletivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

Em 14 de fevereiro de 2020, as partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral coletivo foi constituído em 17 de março de 2020.

 

4. No dia 16 de abril de 2020, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua Resposta na qual impugnou, especificadamente, os argumentos aduzidos pela Requerente, tendo concluído pela improcedência da presente ação, com a sua consequente absolvição do pedido.

 

A Requerida não requereu a produção de quaisquer provas, nem procedeu à junção aos autos do respetivo processo administrativo.

 

A Requerida alicerçou a sua Resposta, essencialmente, na argumentação que passamos a citar:

                «- (…), na aquisição dos bens objeto de locação financeira, cujo valor constitui a parte das rendas relativas à amortização de capital, foi integralmente deduzido o IVA suportado na aquisição de tais bens, tendo sido aplicado o método da imputação direta, nos termos do n.º 1 do artigo 20.º do CIVA, o que sucedeu com os bens objeto dos contratos de locação financeira (…).

                - (…) ratio subjacente à (…) aplicação, ao nível do apuramento do montante do IVA a deduzir, do método de afetação real “conjugado” com a não consideração do valor da amortização financeira no cálculo daquela proporção, concretizada numa percentagem de dedução específica (“coeficiente de imputação específico”).

- Premissa determinante para a análise do aludido regime é o facto do locador ter como atividade a de financiador na aquisição de bens e serviços, querendo isto significar que, no âmbito de um negócio que envolva um contrato de locação financeira, o bem que é objeto de tal contrato “ingressa” na esfera jurídica do locador, que procede ao seu pagamento por um determinado valor, no qual está incluído um montante relativo ao IVA, que é liquidado aquando da compra, pelo fornecedor.

- Consequentemente, e em conformidade com o estatuído nas normas reguladoras do IVA, o locador procede à dedução do mesmo imposto na sua esfera, procedendo, por outro lado, em conformidade com o contrato celebrado entre as partes (locador e locatário), ao débito das rendas pelo uso e fruição da coisa, nelas se incluindo os juros e o capital emprestado, sendo que, ao montante debitado (amortização de capital + juros) é acrescido o IVA, nos termos do artigo 16.º, n.º 2, al. h), do CIVA.

- (…) o IVA é caracterizado por atingir o consumo de forma plurifásica, através do método subtrativo indireto, isto é, o locador deduz o IVA liquidado e por si suportado na aquisição do bem na sua totalidade, e, por conseguinte, procede ao seu redébito.

- (…), constituindo a atividade do locador a concessão de crédito, o montante inerente ao capital situar-se-á, em regra, dentro do valor acordado entre o locatário e o terceiro, ou seja, não será gerado, no que respeita a esta parte da renda, um valor acrescentado suscetível de ser tributado, nisto consistindo o rebébito.

- (…), o valor acrescentado gerado que irá ser tributado será o valor relativo aos juros e outros encargos, e isto porque, (…), o locador está a agir como financiador da aquisição do bem, servindo como intermediário entre o fornecedor e o locatário na transação do bem, adquirindo-o ao fornecedor e cedendo o seu uso ao locatário, e não como um agente que desenvolve a atividade de compra e venda. Por este motivo, as sociedades que exercem a atividade de concessão de financiamento, na modalidade leasing, estão obrigadas a proceder à contabilização do valor dos bens locados, em contas de créditos concedidos, que serão objeto de reembolso. 

- (…), o sujeito passivo que efetue essas operações tem direito a deduzir os montantes do IVA suportado em relação aos bens que lhe tenham sido ou venham a ser entregues e em relação aos serviços que lhe tenham sido ou venham a ser prestados por outro sujeito passivo.

- (…), tais bens e serviços apresentam, realmente, uma ligação intrínseca com o serviço efetivamente prestado pela sociedade locadora (concessão de crédito), que tem como contrapartida o juro relativo ao capital emprestado, justificando, por isso, a não consideração do montante das amortizações no cálculo do valor a deduzir de IVA, uma vez que esta última componente não constitui uma contrapartida de uma transmissão de bens ou prestação de serviços, ao contrário do que sucede com os juros que constituem contrapartida da atividade de financiamento.

- (…) previsão constante da alínea h) do n.º 2 do art. 16.º do CIVA, de acordo com a qual deve ocorrer a tributação das rendas resultantes dos contratos de locação financeira (leasing), tem, inclusivamente, subjacente a consecução do princípio da neutralidade.

- Assim se justifica a previsão da alínea h) do n.º 2 do art. 16.º do CIVA, pois, a ser de outra forma, não poderia o Estado “reaver” para si o valor deduzido a montante pelo sujeito passivo (locador) aquando da aquisição do bem destinado à locação, não se verificando o normal funcionamento do mecanismo do IVA.

- (…) estarmos perante campos de aplicação diversos, sendo que, no que concerne à “incidência” do IVA, não seria nunca possível não considerar a totalidade da renda (…).

- na dedução do IVA correspondente, relativo à amortização de capital, e uma vez que o mesmo já foi diretamente deduzido (nos termos do n.º 1 do artigo 20.º do CIVA), não pode o mesmo IVA ser novamente contabilizado para determinação da percentagem de operações passíveis de dedução, uma vez que atuação provocaria um enviesamento, uma distorção na percentagem de dedução definitiva, atendendo a que essa mesma percentagem seria significativa e positivamente influenciada, por via de uma mera restituição de um financiamento, cujo bem subjacente foi já objeto de liquidação e dedução de IVA no momento da aquisição.

- (…), só aquele valor de juros e encargos associados à locação está relacionado com os custos de aquisição de bens e serviços utilizados indistintamente em operações com e sem direito à dedução, pelo que, (…), será de aplicar aos casos vertentes o disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 23.º face à incoerência das variáveis usadas no apuramento da percentagem de dedução resultante da aplicação do pro rata genérico, baseado no volume de negócios, previsto no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA.

- o método que a Impugnante pretende utilizar leva, na realidade, (…) a distorções na tributação, uma vez que a parte das rendas relativa à amortização de capital não reflete a parte efetiva das despesas relativas aos bens de utilização mista suscetível de ser imputada às operações tributadas, porquanto essa despesa, relativa á amortização de capital, não é de utilização mista mas sim concernente e diretamente imputável à aquisição de bens objeto de locação financeira.

- (…) o disposto no Ofício-circulado n.º 30.108 encontra cabimento na normação do n.º 2 e da alínea b) do n.º 3 do artigo 23.º do CIVA, visto que a aplicação do método de percentagem de dedução nos moldes pretendidos pela Impugnante é suscetível de, na realidade, conduzir a efetivas distorções na tributação. 

- (…), não vislumbramos como se possa estar, com o método preconizado no Ofício-circulado n.º 30.108/2009, a entrar no domínio da incidência tributária, em violação do n.º 2 do artigo 103.º da CRP, porquanto a Administração Fiscal não pretende, através da imposição daquele método, criar uma norma de incidência, pretendendo apenas delinear e concretizar o disposto nos números 2 e 3 do artigo 23.º do CIVA, face a uma determinada factualidade, na tentativa de ver aplicado a tais específicas situações o método de dedução mais preciso, não existindo, por isso, qualquer violação do supracitado normativo legal.  

- Analisando o teor do sobredito Ofício-circulado, não vislumbramos em que medida a doutrina administrativa aí consagrada possa conter uma verdadeira norma de incidência, violando, em consequência, o princípio da legalidade fiscal previsto no n.º 2 do artigo 103.º da CRP.

- (…), não conseguimos descortinar, na atuação da Administração Tributária, alegada inobservância do disposto no n.º 4 ou nos n.ºs 2 e 3 do artigo 23.º do CIVA e consequente ilegalidade da imposição de condições especiais na determinação do imposto dedutível, no âmbito do método de afetação real (…).»

                 

5. No dia 16 de setembro de 2020, foi realizada a inquirição da testemunha arrolada pela Requerente, tendo, na mesma ocasião, o Tribunal concedido prazo para a apresentação de alegações escritas e prorrogado por 2 (dois) meses, a partir do seu termo, o prazo para a prolação da decisão arbitral.

 

6. Ambas as partes apresentaram alegações escritas que aqui se dão por inteiramente reproduzidas, nas quais se pronunciaram quer quanto à factualidade, quer quanto às questões jurídico-tributárias em causa neste processo.

***

II. SANEAMENTO

7. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, atenta a conformação do objeto do processo (cf. artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 5.º do RJAT).

 

O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

O processo não enferma de nulidades.

 

Não foram invocadas, nem existem quaisquer exceções ou questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito e que cumpra conhecer.  

***

                III. FUNDAMENTAÇÃO

 

                III.1. DE FACTO

§1. FACTOS PROVADOS               

8. Com relevo para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:

                a) A Requerente é uma instituição de crédito, cujo objeto social consiste na realização das operações descritas no artigo 4.º, n.º 1, do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de dezembro.

                b) Em sede de IVA, a Requerente está enquadrada no regime normal, com periodicidade mensal, sendo um sujeito passivo misto, pois realiza operações com direito à dedução (v.g., locação financeira mobiliária) e, em simultâneo, presta serviços financeiros enquadráveis na isenção constante do artigo 9.º, n.º 27, do CIVA, que não conferem o direito à dedução (v.g., concessão de crédito).   

                c) Nas situações em que a Requerente identificou uma conexão direta e exclusiva entre determinadas aquisições de bens e serviços e operações ativas por si realizadas, aplicou, para efeitos do exercício do direito à dedução de IVA, o método da imputação direta, tendo-o designadamente feito relativamente às aquisições de viaturas para subsequentes locações financeiras, tendo então deduzido na íntegra o respetivo IVA suportado.

                d) Nas situações em que a Requerente identificou uma conexão direta, mas não exclusiva, entre determinadas aquisições de bens e serviços e operações ativas por si realizadas, e conseguiu determinar critérios objetivos do nível/grau de utilização efetiva, aplicou, para efeitos do exercício do direito à dedução de IVA, o método da afetação real.  

                e) Relativamente às demais aquisições de bens e serviços afetas indistintamente às diversas operações por si realizadas, ou seja, às aquisições de bens e serviços de “utilização mista” (comuns ou residuais) – nomeadamente, consumos de eletricidade, de água, de papel, de material informático (hardware e software) e de telecomunicações –, a Requerente, para efeitos do exercício do direito à dedução de IVA, aplicou o método da percentagem de dedução (pro rata), por não ter encontrado um ou vários critérios objetivos passíveis de permitir, de forma rigorosa e segura, a determinação do IVA dedutível através do método da afetação real.

                f) Nos contratos de locação financeira, a Requerente assume a posição de locador e, nos termos e condições dos respetivos contratos, adquire os bens (v.g., viaturas ou equipamentos), acrescidos de IVA, a terceiros fornecedores, entregando-os de imediato para uso e fruição dos locatários.

                g) Pela cedência (locação) dos bens objeto de contratos de locação financeira, a Requerente cobra rendas (“prestações”), em geral, acrescidas de IVA, que o locatário fica obrigado a pagar, as quais contêm uma componente de amortização de capital e outra relativa a juros e outros encargos.

                h) No termo dos contratos de locação financeira é concedida ao locatário a possibilidade de, mediante o pagamento de um montante adicional (valor residual), acrescido de IVA, adquirir o bem à Requerente.   

                i) A atividade de locação financeira é desenvolvida pela Requerente através da sua rede de cerca de 400 balcões, das suas direções/serviços centrais (v.g., Direção de Financiamento Automóvel, Direção de Riscos de Crédito, Direção de Operações, Direção Jurídica, Direção de Contabilidade, Direção de Marketing, Direção de Comunicação e Gestão de Marca e Direção de Recuperação de Crédito) e de call centers. [cf. depoimento da testemunha B...]

j) Os balcões da Requerente, dispersos por todo o país, realizam múltiplas atividades ao longo das diversas fases dos contratos de locação financeira, relacionadas quer com a disponibilização dos bens locados, quer com o financiamento e gestão desses contratos, tais como: (i) o primeiro contacto com os clientes; (ii) a negociação das condições contratuais com os clientes; (iii) o apoio na resolução de questões decorrentes da utilização dos bens locados; e (iv) contactos com os clientes em situações de incumprimento contratual. [cf. depoimento da testemunha B...] 

k) As direções/serviços centrais da Requerente são chamadas a intervir no decurso das diversas fases dos contratos de locação financeira, quer em aspetos relacionados com a disponibilização dos bens locados, quer em aspetos atinentes ao financiamento e gestão daqueles contratos, a fim de resolverem vicissitudes várias (v.g., aquisição dos bens locados aos respetivos fornecedores, gestão da manutenção dos bens locados, pagamentos de tributos, coimas ou taxas administrativas, localização e recuperação dos bens locados, em situações de incumprimento contratual). [cf. depoimento da testemunha B...]     

l) Atenta a participação ativa dos balcões e das direções/serviços centrais da Requerente, no âmbito da atividade de locação financeira, são utilizados/consumidos diversos recursos gerais de funcionamento da Requerente, tais como energia e combustíveis, material de consumo corrente (material de expediente, consumíveis, impressos, ferramentas e utensílios de desgaste rápido), material informático, material de higiene e limpeza, serviços de comunicações, serviço de reparação nas instalações, serviços especializados (advogados, solicitadores, leiloeiras, consultores e auditores externos, avaliadores externos), serviços de informática (foram desenvolvidos softwares/aplicações informáticas destinadas à atividade de leasing), serviços de segurança e vigilância e serviços de limpeza. [cf. depoimento da testemunha B...]       

m) Os aludidos recursos gerais de funcionamento da Requerente foram utilizados/consumidos quer para a disponibilização dos bens locados, quer para o financiamento e gestão dos contratos de locação financeira. [cf. depoimento da testemunha B...]    

n) No cálculo da percentagem definitiva de dedução de IVA relativa aos contratos de locação financeira, a Requerente aplicou o critério da AT consignado no Ofício-circulado n.º 30.108, de 30.01.2009, tendo assim excluído o valor das amortizações financeiras contidas nas rendas.

                o) Concretamente, na autoliquidação de IVA relativa a dezembro de 2012 – cuja declaração periódica, com o n.º ... e da qual resultou o montante de € 3.292.105,05, de imposto a pagar, foi submetida em 07.02.2013 –, a Requerente apurou uma percentagem de dedução de 5% que, aplicada ao total do IVA incorrido nos encargos (bens e serviços adquiridos) de utilização mista – no montante de € 18.213.602,60 –, se materializou no valor de € 910.680,13, de IVA dedutível [cf. documento n.º 2 anexo ao PPA].

                p) Caso no cálculo da percentagem definitiva de dedução de IVA relativa aos contratos de locação financeira, tivesse sido considerado o valor das amortizações financeiras contidas nas rendas, na autoliquidação de IVA relativa ao mês de dezembro de 2012, a Requerente teria apurado uma percentagem de dedução de 14% que, aplicada ao total do IVA incorrido nos encargos (bens e serviços adquiridos) de utilização mista – no montante de € 18.213.602,60 –, teria resultado no valor de € 2.549.904,36, de IVA dedutível.  

                q) Em 20.11.2014, a Requerente apresentou reclamação graciosa «por erro na autoliquidação de IVA referente ao ano 2012, no montante de € 1.639.224,23», cujo requerimento inicial aqui se dá por inteiramente reproduzido e que culmina com a formulação dos seguintes pedidos [cf. documento n.º 2 anexo ao PPA]:

«(a) Anular parcialmente a autoliquidação de IVA efetuada pela Reclamante em 2013, que resultou da aplicação da percentagem de dedução de 5% aos custos comuns ou residuais, calculado de acordo com as instruções ilegais do Ofício-circulado n.º 30108, quando, de acordo com a lei (cf. artigos 23.º, n.ºs 1 a 4 do Código do IVA e artigo 174.º da Diretiva IVA), a percentagem de dedução deveria corresponder a 14%;

(b) Restituir à Reclamante o valor do IVA pago em excesso no referido montante de € 1.639.224,23;

(c) Pagar à Reclamante juros indemnizatórios, por estarem reunidos os pressupostos do artigo 43.º da LGT, em particular do seu n.º 2, contados desde 7 de Fevereiro de 2013 (data da entrega da declaração periódica de IVA referente a Dezembro de 2012) até à restituição do imposto pago em excesso.»    

r) Aquela reclamação graciosa foi autuada sob o n.º ...2014... e correu termos na Unidade dos Grandes Contribuintes, tendo a mesma sido indeferida, por despacho da Chefe de Divisão de Gestão e Assistência Tributária (por delegação de competências), datado de 27.01.2015 e exarado na Informação n.º 248-ADP/2014, de 19.01.2015, nos termos que aqui se dão por inteiramente reproduzidos, importando respigar os seguintes segmentos da respetiva fundamentação [cf. documento n.º 1 anexo ao PPA]:  

«(…)

V.1.3. Apreciação do Mérito

52.º Com efeito, o apuramento da percentagem de dedução efetuado pelo sujeito passivo está em perfeita concordância com as normas de direito comunitário e interno, pelo que, não se afigura existir razão á Reclamante quanto à pretensão formulada no seu requerimento inicial.

53.º Trata-se de uma matéria relativamente à qual a AT já se pronunciou através do Ofício-circulado n.º 30108, de 30 de janeiro de 2009, do Gabinete do Subdiretor Geral – Área de Gestão Tributária do IVA.

(…)

54.º Da leitura do Ofício n.º 30108 conclui-se que o apuramento da percentagem de dedução definitiva antes referida (5%) foi efetuado, pela Reclamante, em perfeita concordância com os termos aí previstos (…)

(…)

72.º Ora, o facto do valor integral da renda, pago pelo locatário ao locador, constituir o valor tributável sobre o qual incidirá IVA, tal não significa que a parte integrante da renda, correspondente à amortização financeira ou do capital tenha de ser incluída no cômputo do apuramento da percentagem de dedução, conjuntamente com a parte correspondente aos juros e outros encargos.

73.º Desde logo porque a renda constitui o pagamento do serviço de concessão de financiamento ao locador, sendo composta por duas partes: capital ou amortização financeira, que mais não é que o reembolso da quantia "emprestada" e juros, acrescidos de eventuais encargos, que constituem a remuneração do locador.

74.º Note-se que, na perspetiva da operação de locação enquanto operação de concessão de financiamento, o valor de aquisição do bem objeto de contrato de locação corresponde ao capital financiado que constitui a componente de amortização financeira na renda liquidada pelo locador ao locatário.

75.º Sendo que, no momento da aquisição desse mesmo input, o sujeito passivo (locador) exerceu o direito à dedução integral do montante do IVA liquidado pelo fornecedor do bem objeto do contrato de locação, por via do método da imputação direta.

76.º Razão pela qual, não pode deixar de ser excluída do cálculo da percentagem de dedução, sendo-lhe aplicável o método de afetação real com recurso a um critério de imputação objetivo, a parte da amortização financeira incluída na renda, uma vez que esta mais não é do que a restituição do capital financiado/investido para a aquisição do bem.

77.º Logo, à luz do princípio da neutralidade em que assenta o sistema deste imposto, fácil se torna perceber que a incidência do IVA sobre a totalidade da renda é a única forma de garantir que o Estado recupera o valor do imposto que foi já deduzido pelo sujeito passivo. 

78.º Por outro lado, a inclusão no rácio entre operações com e sem direito à dedução da componente relativa à restituição do capital (amortização financeira), enquanto parte integrante da renda, provoca um aumento injustificado na percentagem de dedução definitiva, atendendo a que será significativa e positivamente influenciada, por via de uma mera restituição de um financiamento, cujo bem subjacente foi já objeto de liquidação e dedução de IVA no momento da aquisição.

79.º Deste modo gerará deduções acrescidas para o sujeito passivo, relativamente à generalidade dos inputs de utilização mista, por via da utilização de um coeficiente, que nessa medida, se apresenta como exagerado face à realidade das operações tributáveis.

80.º A atividade principal da locadora não consiste na compra e venda de bens, mas tão só na concessão de créditos a terceiros para aquisição desses bens, ainda que se substitua aos destinatários dos bens na aquisição, reservando para si o direito de propriedade. E dessa atividade obtém, fundamentalmente, juros.

81.º Deste modo, torna-se compreensível que no cálculo do mencionado coeficiente de imputação específico, aplicável ao caso objeto de análise, e em harmonia com o entendimento da AT, deve considerar-se apenas o montante que excede o valor dos custos utilizados nas operações tributadas, uma vez que, através do método de imputação direta o IVA da parte relativa ao capital é integralmente deduzido.

82.º É apenas aquele valor diferencial (que, genericamente, corresponde a juros) que se encontra conexo com os custos de aquisição de recursos utilizados indistintamente em operações com e sem direito à dedução.

83.º Se assim não fosse, permitia-se um aumento artificial da percentagem de dedução do IVA incorrido com a generalidade dos bens ou serviços com utilização mista adquiridos pelo sujeito passivo.

84.º Do entendimento propugnado pela AT, não decorre, assim, qualquer restrição do direito legítimo à dedução, como alega a Reclamante. Antes pelo contrário, pugna pela inadmissibilidade do exercício do direito à dedução ilegítimo, na medida em que, a eventual execução do procedimento defendido pela Reclamante colocaria em causa a neutralidade fiscal inerente à mecânica do IVA.

85.º Acresce, ainda, que o método do pro rata previsto no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA, que a Reclamante pretende ver aplicado, não tem mérito para medir o grau de utilização que as duas categorias de operações, com e sem direito à dedução, fazem dos bens e serviços que lhe são indistintamente alocados (utilização mista) e, consequentemente, não pode ser utilizado para determinar a parcela dedutível, cuja liquidação foi efetuada a montante por outros operadores económicos que se situam na fase imediatamente anterior do circuito económico.

86.º Conforme a Reclamante refere (cf. pontos 22.º a 26.º do requerimento de Reclamação Graciosa), são dois os métodos de dedução previstos no CIVA (artigo 23.º).

87.º Por um lado, o denominado método da afetação real, que "(...) consiste na aplicação de critérios objetivos, reais, sobre o grau ou intensidade de utilização dos bens e serviços em operações que conferem direito à dedução e em operações que não conferem esse direito. É de acordo com esse grau ou intensidade de utilização dos bens, medidos por critérios objetivos, que o sujeito determinará a parte de imposto suportado que poderá ser deduzida. Os critérios estão sujeitos (...) ao escrutínio da Direção-Geral dos Impostos que pode vir a impor a condições especiais ou mesmo a fazer cessar o procedimento de afetação real, no caso de ser verificar que assim se provocam ou podem provocar distorções significativas da tributação. (…)”.

88.º E, por outro, o método da percentagem de dedução ou pro rata, definido na alínea b) do n.º 1 e n.º 2 do artigo 23.º e desenvolvido nos n.ºs 4 a 8 do mesmo preceito legal. No fundo, trata-se de uma dedução parcial, que se traduz no facto do imposto suportado nas aquisições de bens e serviços utilizados num e noutro tipo de operações apenas ser dedutível na percentagem correspondente ao montante anual de operações que dão lugar a dedução.

89.º Neste caso, a percentagem de dedução a aplicar é calculada provisoriamente com base no montante de operações realizadas no ano anterior (pro rata provisório), sendo corrigida na declaração do último período do ano a que respeita, de acordo com os valores definitivos de volume de negócios referente ao ano a que reportam, determinando a correspondente regularização por aplicação do pro rata definitivo.

90.º Ora, com a alteração introduzida ao artigo 23.º pela Lei n.º 67-A/2007, de 31 de dezembro, tais procedimentos foram “estendidos” ao método da afetação real, nomeadamente, aos casos em que o mesmo é imposto pela Administração Tributária, quer para as situações em que o sujeito passivo exerça atividades económicas distintas, quer para os casos em que se apure que a utilização dos demais métodos poderá originar distorções significativas na tributação, conforme dispõe o n.º 3 do artigo em análise.

91.º O que se mostra perfeitamente justificável, e em nada contraria o sistema comum do IVA. De facto, de um ano para outro pode mudar o grau de utilização dos bens no regime da afetação real e os critérios objetivos de apuramento do mesmo. 

92.º É precisamente no âmbito dos poderes conferidos à Administração Tributária pela alínea b) do n.º 3 do artigo 23.º do CIVA, que se enquadra o Ofício-circulado n.º 30.108, aqui em discussão, prevendo uma solução que permite afastar a possibilidade ocorrência de distorções significativas, quando estamos perante sujeitos passivos que realizem operações de locação financeira e ALD.

93.º Assim, no seu ponto 9, prescreve que “Na aplicação do método da afetação real, nos termos do número anterior e sempre que não seja possível a aplicação de critérios objetivos de imputação dos custos comuns, deve ser utilizado um coeficiente de imputação específico, tendo em conta os valores envolvidos, devendo ser considerado no cálculo da percentagem de dedução apenas o montante anual correspondente aos juros e outros encargos relativos à atividade de Leasing ou de ALD. Neste caso, a percentagem atrás referida não resulta da aplicação do n.º 4 do artigo 23.º do CIVA. (…)

94.º (…), a questão que se coloca é saber se o procedimento adotado pela Administração Tributária está conforme com as normas internas e comunitárias, em especial, os artigos 16.º e 23.º CIVA (…) e, bem assim, os artigos 174.º e 175.º da Diretiva IVA.

95.º O Ofício-circulado n.º 30.108 foi publicado na sequência das alterações introduzidas pela mencionada Lei n.º 67-A/2007, de 31 de dezembro, procurando afastar algumas dificuldades interpretativas suscitadas pela anterior redação do artigo 23.º CIVA, harmonizando-o com a doutrina e jurisprudência comunitárias.  

96.º Não obstante, grande parte da doutrina nele preconizada, já vinha sendo aplicada pela Administração Tributária antes mesmo da sua publicação.

(…)

98.º A questão principal que se dirime, nesta sede, já foi objeto de apreciação pelo Supremo Tribunal Administrativo (STA), 2.ª Secção, no âmbito do Processo n.º 01017/12, tendo sido proferido Acórdão em 16 de janeiro de 2013, onde de forma exemplar se faz todo o enquadramento doutrinal relativo à questão em análise (…)

99.º No mencionado Acórdão, os juízes do STA ordenaram o reenvio prejudicial ao Tribunal de Justiça da União Europeia, decidindo pela suspensão do processo até à prolação de decisão pelo TJUE.

(…)

105.º A posição da AT encontra perfeito acolhimento quer nos princípios constitucionais, quer no espírito e princípios disciplinadores do mecanismo do exercício do direito à dedução, constante quer da jurisdição comunitária, quer do quadro normativo nacional, que não é mais do que uma transposição das normas jurídicas comunitárias.

106.º A este respeito, cumpre esclarecer que as orientações constantes do ponto 9 do Oficio-circulado 30.108, mais não fazem do que contribuir para a praticabilidade dos desígnios constitucionais plasmados nos artigos 103.º e 104.º da Constituição da República Portuguesa, sendo um fator decisivo para garantir e tutelar a confiança dos contribuintes.

(…)

108.º Nestes termos, tendo em consideração que a Reclamante, ainda que não o referindo no seu requerimento de Reclamação Graciosa, apurou o montante da percentagem de dedução seguindo o entendimento preconizado pela AT no mencionado Oficio-circulado, não se vislumbra que tenha incorrido em qualquer erro no respetivo apuramento, por desconsideração do valor correspondente á componente do capital das rendas dos contratos de locação financeira.

(…)»

s) A Requerente foi notificada da decisão de indeferimento da reclamação graciosa pelo ofício n.º..., de 27.01.2015, da Unidade dos Grandes Contribuintes, recebido em 29.01.2015. [cf. documento n.º 1 anexo ao PPA] 

t) Nessa sequência, a Requerente apresentou Impugnação Judicial junto do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, a qual correu termos na Unidade Orgânica..., sob o processo n.º .../15...BEPRT. [cf. documento n.º 3 anexo ao PPA]

u) Em 27.12.2019, a Requerente apresentou o pedido de constituição de tribunal arbitral que deu origem ao presente processo, ao abrigo do disposto no artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 81/2018, de 15 de outubro. [cf. Sistema de Gestão Processual do CAAD]

 

§2. FACTOS NÃO PROVADOS

9. Com relevo para a apreciação e decisão da causa, não há factos que não se tenham por provados.

 

§3. MOTIVAÇÃO QUANTO À MATÉRIA DE FACTO

10. O Tribunal não se pronunciou sobre o demais vertido nos articulados das partes por constituírem afirmações conclusivas e/ou juízos de direito – e que, por isso, não podem ser objeto de uma pronúncia em termos de “provado” ou “não provado” – ou por se tratar de factualidade irrelevante à boa decisão da causa.

 

Com efeito, os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, à face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2, do Código do Procedimento e do Processo Tributário (doravante, CPPT), 596.º, n.º 1, e 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (doravante CPC), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

 

A convicção do Tribunal fundou-se nos factos articulados pelas partes, cuja adesão à realidade não foi posta em causa e no acervo probatório (documental e testemunhal) carreado para os autos, o qual foi objeto de uma análise crítica e de adequada ponderação à luz das regras da racionalidade, da lógica e da experiência comum e segundo juízos de normalidade e razoabilidade.

 

                Relativamente à prova testemunhal produzida, importa ainda dizer que a testemunha arrolada pela Requerente – B..., Diretor da Direção Jurídica-Fiscal da Requerente, desde 2009, inquirido à matéria de facto vertida nos artigos 32.º, 33.º, 34.º, 36.º a 39.º, 171.º, 172.º e 173.º do PPA – depôs de forma objetiva, isenta e revelando conhecimento direto e profundo dos factos sobre os quais foi inquirido – particularmente quanto à forma como é desenvolvida a atividade de locação financeira, quer quanto aos seus aspetos logísticos, quer quanto aos seus aspetos operacionais, tendo explicitado qual a intervenção dos balcões e das direções/serviços centrais da Requerente nas diversas fases dos contratos de locação financeira, quer em aspetos relacionados com a disponibilização dos bens locados, quer em aspetos atinentes ao financiamento e gestão daqueles contratos, bem como quais os recursos gerais de funcionamento da Requerente que são utilizados/consumidos nessa atividade –, pelo que o seu depoimento nos mereceu total credibilidade.

 

                III.2. DO DIREITO

11.          A questão essencial em discussão que é objeto do presente processo (thema decidendum) e que deu origem aos atos tributários acima identificados, é a de saber se deverá considerar-se ou não a componente de amortização de capital, para efeitos da determinação do critério de dedução – coeficiente de imputação específico – referente ao IVA incorrido pela Requerente nos recursos de utilização mista.

 

12.          A Requerente defende que é a totalidade desses valores que devem ser incluídos para esse cálculo.

 

13.          A AT, na linha das orientações genéricas que publicou, a última através do Ofício-circulado n.º 30108, de 20.01.2009, defende a não inclusão de tais valores no cálculo do pro rata e indeferiu a reclamação graciosa apresentada pela Requerente.

 

Vejamos então.

 

14.          O direito à dedução do imposto, disciplinado nos artigos 167.º a 192.º da Diretiva IVA e, no direito interno, nos artigos 19.º a 25.º do Código do IVA, consiste essencialmente no direito de um sujeito passivo deduzir ao imposto incidente sobre uma certa operação tributável o imposto em que tenha incorrido na aquisição de bens ou serviços que se destinem à realização dessa operação.

 

15.          Segundo a regra geral constante do artigo 168.º da Diretiva, o IVA incorrido nas aquisições feitas por um sujeito passivo é dedutível na integralidade sempre que os bens ou serviços sejam utilizados «para os fins das suas operações tributadas». Esse corresponde a um método de dedução de imputação direta, havendo de estabelecer-se para esse efeito um nexo direto entre uma dada operação ativa e uma dada operação passiva.

 

16.          Não sendo possível estabelecer esse nexo direto, como sucede quando as despesas com aquisições de bens ou serviços respeitam simultaneamente a operações tributadas e operações isentas de imposto – caso em que estaremos perante custos mistos – o direito à dedução encontra-se limitado nos termos do artigo 173.º da Diretiva.

 

17.          Esse preceito consagra em primeira linha o método do pro rata, pelo qual relativamente a bens e serviços utilizados por um sujeito passivo para efetuar tanto operações com direito à dedução, como operações sem direito à dedução, a dedução só é admitida relativamente à parte do IVA proporcional ao montante respeitante à primeira categoria de operações e, por conseguinte, apenas em relação a operações que originam o direito à dedução.

 

18.          Entende-se, neste contexto, que o método do pro rata assenta na presunção de que os custos mistos são utilizados nas operações que conferem direito à dedução na razão direta do valor que essas operações representam face ao volume total de negócios da empresa. É essa a regra de cálculo que se encontra vertida no artigo 174.º da Diretiva: «o  pro rata de dedução resulta de uma fracção que inclui os seguintes montantes – (a) no numerador, o montante total do volume de negócios anual, líquido de IVA, relativo às operações que confiram direito à dedução em conformidade com os artigos 168.º e 169.º; (b) no denominador, o montante total do volume de negócios anual, líquido de IVA, relativo às operações incluídas no numerador e às operações que não confiram direito à dedução».

 

19.          A presunção baseada na percentagem do valor das operações com direito a dedução em relação ao volume total de negócios é, todavia, afastada pelo critério da afetação real consignado na alínea c) do n.º 2 do artigo 173.º da Diretiva, que permite que os Estados membros autorizem ou imponham que a dedução do IVA seja efetuada com base, não no volume de negócios, mas na efetiva utilização dos bens ou serviços.

 

20.          Haverá assim de concluir-se que a Diretiva IVA contempla três distintos métodos de cálculo da dedução. O método regra de imputação direta que é aplicável aos custos diretos, ou seja, aos custos associados a operações que conferem direito à dedução, o método do pro rata relativamente aos custos mistos, que estão indistintamente associados a operações que conferem ou não conferem o direito de dedução e, a título de exceção, o método da afetação real.

 

21.          Não pode deixar de reconhecer-se, por outro lado, que a Diretiva, no transcrito artigo 173.º, n.º 2, alínea c), confere aos Estados membros alguma margem de liberdade de conformação quanto à definição do critério de afetação real.

 

22.          No direito interno, relativamente ao método de dedução aplicável a bens de utilização mista, releva o artigo 23.º do Código do IVA, que é do seguinte teor:

«1. Quando o sujeito passivo, no exercício da sua atividade, efetue transmissões de bens e prestações de serviços, parte das quais não confira direito à dedução, o imposto suportado nas aquisições é dedutível apenas na percentagem correspondente ao montante anual de operações que deem lugar a dedução.

2.     Não obstante o disposto no número anterior, poderá o sujeito passivo efetuar a dedução segundo a afetação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados, sem prejuízo de a Direção Geral dos Impostos lhe vir a impor condições especiais ou a fazer cessar esse procedimento no caso de se verificarem distorções significativas na tributação.

3.      A administração fiscal pode obrigar o contribuinte a proceder de acordo com o disposto no número anterior:

a)      Quando o sujeito passivo exerça atividades económicas distintas;

b)      Quando a aplicação do processo referido no n.º 1 conduza a distorções significativas na tributação.

4.      A percentagem de dedução específica referida no n.º 1 resulta de uma fração que comporta, no numerador, o montante anual, imposto excluído, das transmissões de bens e prestações de serviços que dão lugar a dedução nos termos do artigo 19.° e n.° 1 do artigo 20.° e, no denominador, o montante anual, imposto excluído, de todas as operações efetuadas pelo sujeito passivo, incluindo as operações isentas ou fora do âmbito do imposto, designadamente as subvenções não tributadas que não sejam subsídios de equipamento. [...]».

 

23.          A questão que se encontra em debate foi analisada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (doravante, TJUE) em reenvio prejudicial suscitado, em caso similar, pelo Supremo Tribunal Administrativo (doravante, STA) em que se concluiu que  o artigo 17.°, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Diretiva (a que corresponde o artigo 173.º, n.º 2, alínea c), da Diretiva n.º 2006/112/CE) deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a que um Estado-Membro obrigue um banco que exerce atividades de locação financeira a incluir, no numerador e no denominador da fração que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes, no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos (acórdão de 10-07-2014, no processo C-183/13, Banco Mais).

 

24.          Posteriormente, no acórdão Volkswagen Financial Services (UK) Lda (acórdão de 18-10-2018, processo C-153/17) o TJUE veio considerar que não se pode deduzir do raciocínio desenvolvido pelo TJUE a propósito das operações de locação financeira em causa no processo que deu origem ao acórdão de 10-07-2014, que o artigo 173.º, n.º 2, alínea c), da Diretiva IVA permite aos Estados-Membros, de modo geral, aplicarem a todos os tipos de operações semelhantes para o sector automóvel um método de repartição que não tem em conta o valor do veículo aquando da sua entrega (§56). Acrescentando que sempre que as modalidades de cálculo da dedução não tenham em conta uma afetação real e significativa de uma parte dos custos gerais a operações que confiram direito à dedução, não pode considerar-se que tais modalidades reflitam objetivamente a parte real das despesas efetuadas com a aquisição dos bens e dos serviços de utilização mista que pode ser imputada a essas operações. Por conseguinte, tais modalidades não são suscetíveis de garantir uma repartição mais precisa do que aquela que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios (§57),

 

25.          Vindo a concluir – com a reserva de que cabe ao órgão jurisdicional nacional verificar se o método de cálculo pro rata tem em conta a afetação real e significativa de uma parte dos custos gerais para efeitos das operações que conferem direito à dedução – nos seguintes termos:

«(…) os artigos 168.º e 173.º, n.º 2, alínea c), da Diretiva IVA devem ser interpretados no sentido de que, por um lado, mesmo quando os custos gerais relativos às operações de locação financeira de bens móveis, como as que estão em causa no processo principal, não sejam repercutidos no montante devido pelo cliente pela disponibilização do bem em causa, ou seja, na parte tributável da operação, mas no montante dos juros devidos a título da parte «financiamento» da operação, ou seja, na parte isenta da operação, esses custos gerais devem ser considerados, para efeitos do IVA, como um elemento constitutivo do preço dessa disponibilização e, por outro lado, que os Estados membros não podem aplicar um método de repartição que não tenha em conta o valor inicial do bem em causa no momento da sua entrega, uma vez que esse método não é suscetível de garantir uma repartição mais precisa do que o que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios».

 

26.          Revertendo à legislação nacional, parece não haver dúvidas que o artigo 23.º, n.º 1, alínea b), consagra o método do pro rata para a dedução do IVA para sujeitos passivos mistos, estabelecendo no n.º 4 o cálculo da percentagem de dedução. Por outro lado, nos termos do n.º 2, pode o sujeito passivo efetuar a dedução segundo a afetação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados, o que corresponde à aplicação de um método de dedução alternativo baseado na afetação real em função da efetiva utilização dos bens. Para esta última hipótese, esse n.º 2 prevê igualmente que a AT possa impor condições especiais e fazer cessar o procedimento quando se verifiquem distorções significativas na tributação. E nos termos da alínea b) do n.º 3, a AT pode também obrigar o sujeito passivo a proceder de acordo com o método de afetação real quando a aplicação do método do pro rata possa conduzir a distorções significativas na tributação.

 

27.          Nesse mesmo sentido, se pronunciou o STA, no acórdão de 03-06-2015 (processo n.º 970/23), onde se refere que «a norma do artigo 23.º, n.º 2, do CIVA, ao permitir que Administração Tributária imponha condições especiais no caso de se verificarem distorções significativas na tributação, reproduz, em substância, a regra de determinação do direito à dedução enunciada na Directiva do IVA - artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Directiva -, quando ali se estabelece que, “todavia, os Estados-membros podem: autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na utilização da totalidade ou parte dos bens ou serviços».

 

28.          O coeficiente específico que permite calcular a percentagem de dedução apenas com base no montante anual de juros veio a ser introduzido pelo Ofício-Circulado n.º 30108, de 30 da janeiro de 2009, pelo qual, a AT, tendo concluído, relativamente às instituições de crédito que desenvolvam simultaneamente as atividades de Leasing ou de ALD, que o apuramento do IVA dedutível segundo a aplicação do pro rata geral estabelecido no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA pode conduzir a «distorções significativas na tributação» determinou, no uso da faculdade prevista no artigo 23.º, n.º 3, que esses sujeitos passivos passassem a utilizar a afetação real.

 

29.          Segundo os pontos 8 e 9 do Ofício-Circulado, a afetação real poderá fazer-se das duas seguintes formas: (a) se for possível, faz-se a afetação real com base em critérios objetivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços, de modo a determinar o montante de IVA a deduzir relativamente ao conjunto das atividades; (b) se não for possível a aplicação de critérios objetivos de imputação dos custos comuns, deve ser utilizado um coeficiente de imputação específico, tendo em conta os valores envolvidos, devendo ser considerado no cálculo da percentagem de dedução apenas o montante anual correspondente aos juros e outros encargos relativos à atividade de Leasing ou de ALD.

 

30.          Portanto, de harmonia com o Ofício-Circulado aqui em causa, os sujeitos passivos devem aplicar o método da afetação real de acordo com um dos dois seguintes métodos, que iremos designar, para clareza da exposição, por “Critério A do Ofício Circulado” e “Critério B do Ofício Circulado”.

– Critério A do Ofício-Circulado

Se for possível, faz-se «a afectação real com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços, de modo a determinar o montante de IVA a deduzir relativamente ao conjunto das actividades» (ponto 8 do Ofício Circulado);

– Critério B do Ofício-Circulado

Se não for «possível a aplicação de critérios objectivos de imputação dos custos comuns, deve ser utilizado um coeficiente de imputação específico, tendo em conta os valores envolvidos, devendo ser considerado no cálculo da percentagem de dedução apenas o montante anual correspondente aos juros e outros encargos relativos à actividade de Leasing ou de ALDs» (ponto 9 daquele Ofício Circulado).

 

31.          O Ofício-Circulado conclui que, neste segundo caso, fica afastada a aplicação da percentagem que resultaria da aplicação do n.º 4 do artigo 23.º do Código do IVA.

 

32.          No caso em apreço, a AT considerou não ser possível a utilização do método da afetação real, com base em critérios objetivos.

 

33.          Consequentemente, aplicou as regras estipuladas no seu Ofício-Circulado, i.e., um «coeficiente de imputação específico» (Critério B do Ofício-Circulado), considerando no montante do volume de negócios correspondente às operações que não conferem direito a dedução apenas os «juros e outros encargos relativos à actividade de Leasing ou de ALD», e excluindo as amortizações financeiras relativas aos contratos de locação financeira.

 

34.          Relativamente aos sujeitos passivos que no âmbito de atividades financeiras pratiquem operações de Leasing ou de ALD, o Ofício-Circulado prevê a utilização de um coeficiente de imputação específico em que deve ser considerado no cálculo da percentagem de dedução apenas o montante anual correspondente aos juros e outros encargos relativos a essa atividade, com exclusão da fórmula de cálculo da percentagem de dedução que resulta do n.º 4 do artigo 23.º.

 

35.          Sem prejuízo de se poder discutir se o Ofício-Circulado acima referido estabelece, verdadeiramente, uma modalidade de afetação real ou um pro-rata, sempre será de referir, que decorre do acórdão Banco Mais, a que se fez alusão, que os Estados-Membros podem obrigar um banco que exerce atividades de locação financeira a incluir, no numerador e no denominador da fração que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas correspondente aos juros, quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos. Contudo, para justificar essa solução, o TJUE considerou decisivo que os custos mistos se encontrem preponderantemente relacionados com o financiamento e a gestão dos contratos de locação financeira e não com a aquisição e disponibilização de veículos, deixando a apreciação dessa questão factual ao órgão jurisdicional nacional.

 

36.          Sobre a questão de saber se as diferentes operações relativas a prestações de locação financeira, como seja a concessão de financiamento e a disponibilização de veículos, devem ser tratadas como operações distintas tributáveis separadamente ou como uma única prestação económica indissociável, assume especial relevo o também citado acórdão Volkswagen Financial Services (UK) Ltd. Nesse acórdão, o TJUE considerou relevante o facto de os custos gerais em causa terem uma relação direta e imediata com a totalidade das atividades da empresa, e não apenas com algumas delas, vindo a concluir que os custos gerais quando tenham sido realmente efetuados, pelo menos em parte, com vista a aquisição e disponibilização de veículos enquanto operações tributáveis, integram os elementos constitutivos do preço dessas operações, havendo lugar ao direito à dedução do IVA.

 

37.          Isso significa, como deixou bem claro o TJUE, que não se pode deduzir do entendimento expresso no acórdão Banco Mais que o artigo 173.º, n.º 2, alínea c), da Diretiva IVA permite aos Estados-Membros, de maneira geral, aplicarem a todas as operações de locação financeira um método de repartição que não tenha em conta o valor do veículo aquando da sua entrega.

 

38.          À luz do critério de repartição do ónus da prova que resulta do disposto no artigo 74.º da LGT, «o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da Administração Tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque». Na situação em análise, pretendendo a AT recorrer a um método de imputação específico com a invocação de que o método regra, no caso concreto, é suscetível de provocar distorções significativas na tributação, cabe-lhe efetuar a prova da existência do risco de distorção. Pretendendo o sujeito passivo incluir a componente amortização na percentagem de dedução pro rata, incumbe-lhe demonstrar que os custos gerais também são consumidos, pelo menos em parte significativa, na realização das operações de locação financeira.

 

39.          No caso em análise, a AT justifica a desconsideração do valor das amortizações financeiras nos contratos de locação financeira, para efeito do cálculo da percentagem de dedução dos custos gerais, com base na ideia de que a locação financeira, constituindo uma prestação de serviços sujeita a imposto, consubstancia uma modalidade de crédito, cuja contrapartida é constituída pelos juros e outros encargos que se incluem no valor total da renda. Sendo a renda composta pelo capital ou amortização financeira, que corresponde ao reembolso do crédito concedido, e os juros e outros encargos, que representam a remuneração do locador, a componente de capital deve ser excluída do cálculo da percentagem de dedução uma vez que não constitui rendimento da atividade do sujeito passivo.

 

40.          Assim sendo, só o diferencial correspondente aos juros é que se encontra conexo com os custos gerais utilizados indistintamente nas operações tributadas e isentas de imposto, uma vez que através do método de imputação direta o IVA é integralmente deduzido na parte relativa ao capital no momento da alienação dos veículos aos clientes. De outro modo, o pro rata genérico não tem mérito para medir o grau de consumo que as duas categorias de operações, com e sem direito a dedução, fazem dos bens e serviços que lhes são indistintamente alocados e, consequentemente, não pode ser utilizada para determinar a parcela dedutível do IVA liquidado a montante.

 

41.          Contudo, na aproximação à solução do caso, importa responder, face à prova produzida, à questão de saber se a inclusão do valor da amortização financeira no cálculo de percentagem do pro rata provoca uma distorção significativa na tributação que justifique o recurso ao método da afetação real, nos termos do artigo 23.º, n.ºs 2 e 3, do CIVA.

 

42.          A circunstância de haver lugar à dedução do imposto incorrido na aquisição dos veículos não justifica por si só a distorção na tributação, quando os custos gerais utilizados em operações tributáveis e não tributáveis entrem na dedução pelo método do pro rata, visto que estamos perante métodos de dedução com diferentes campos aplicativos. Num caso, opera a imputação direta, a que se refere o artigo 20.º do Código e, noutro caso, o método de dedução relativa a bens de utilização mista, constante do artigo 23.º. E não se afigura que o sistema de dedução de IVA aplicável nesta última hipótese fique desvirtuado se se reconhecerem como dedutíveis custos que sejam tidos como afetos indistintamente a operações tributadas e a operações isentas.

 

43.          Importa ainda referir que o acórdão do STA, no processo n.º 07/19.4BALSB, de 03-04-2020, no contexto de um recurso para uniformização de jurisprudência, veio estabelecer um critério ao referir que no processo C-183/13, o TJUE determinou que os Estados-Membros apenas podem «obrigar um banco que exerce actividades de locação financeira a incluir no numerador e no denominador da fracção que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar» (negrito nosso).

 

44.          Este mesmo entendimento, foi confirmado pelo STA no acórdão proferido no processo n.º 095/19.3BALSB, de 09/03/2020, quando se afirmou que «deve ser considerada a necessidade de apurar se nas operações de locação financeira para o sector automóvel que podem implicar a utilização de certos bens ou serviços de utilização mista, essa utilização é sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos de locação e não pela disponibilização dos veículos.».

 

45.          Desta feita, tal como referido, não obstante se poder discutir se o Ofício-Circulado acima referido estabelece uma modalidade de afetação real ou um pro-rata, sempre será de referir, em linha com a jurisprudência do TJUE e do STA acima identificada, este tribunal considera, neste contexto, que a prova produzida em audiência aponta consistentemente no sentido de que a aquisição de viaturas aos stands pelo banco e a concessão de crédito aos clientes para a disponibilização da viatura correspondem a atividades distintas.

 

46.          Como foi referido, a atividade de locação financeira exige a afetação de meios materiais e humanos e a sua conjugação numa perspetiva empresarial, não podendo a Requerente ser considerada como mera intermediária financeira, à semelhança do que acontece numa concessão de crédito.

 

47.          Nestes termos, deve concluir-se, face à prova produzida, que os custos gerais relativos às operações de locação financeira de bens móveis devem ser considerados, para efeitos de IVA, como um elemento constitutivo do preço da disponibilização dos veículos, não podendo ser aplicado um método de repartição que não tenha em conta o valor inicial do bem em causa no momento da sua entrega, uma vez que esse método não é suscetível de garantir uma repartição mais precisa do que aquela que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios.

 

48.          Por consequência, o ato de autoliquidação de IVA controvertido padece de vício de violação de lei, por erros sobre os pressupostos de facto e de direito, o que determina a sua anulação parcial; na justa medida em que manteve aquele ato tributário, a decisão de indeferimento da reclamação graciosa enferma de igual vício invalidante e, dessa forma, deve também ser anulada.

 

49.          A Requerente pede ainda a condenação da AT a restituir o montante de imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios, à taxa legal, calculados sobre aquele montante, até ao respetivo reembolso integral.

 

50.          A este respeito, de harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a AT, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe «restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito». O que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT. Ainda nos termos do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT «é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário», o que remete para o disposto nos artigos 43.º, n.º 1, e 61.º, n.º 5, de um e outro desses diplomas, implicando o pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data de processamento da respetiva nota de crédito.

 

51.          No caso concreto, na sequência da declaração de ilegalidade e anulação parcial do ato de autoliquidação de IVA controvertido e da declaração de ilegalidade e anulação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, há lugar à restituição à Requerente do montante de imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios, calculados, à taxa dos juros legais (artigos 35.º, n.º 10, e 43.º, n.º 4, da LGT), desde a data de indeferimento da reclamação graciosa (27.01.2015) – não tendo a AT tido qualquer intervenção na prática do ato de autoliquidação de IVA controvertido, não se verifica, quanto a este, a ocorrência de erro imputável aos serviços e, consequentemente, não existe direito a juros indemnizatórios derivado da sua prática; contudo, o mesmo não sucede com a decisão de indeferimento da reclamação graciosa, pois deveria ter sido acolhida a pretensão da Requerente, quanto à ilegalidade da autoliquidação e o não acolhimento dessa pretensão é inteiramente imputável à AT – até à data do processamento da respetiva nota de crédito, em que são incluídos.

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IV. DECISÃO

                Nos termos expostos, acordam neste Tribunal Arbitral em julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, consequentemente:

a)            Declarar ilegal e anular parcialmente o ato de autoliquidação de IVA n.º..., referente ao mês de dezembro de 2012;

b)           Declarar ilegal e anular a decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2014...;

c)            Condenar a Requerida a restituir à Requerente o montante de imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios, nos termos legais;

d)           Condenar a Requerida nas custas do processo, no montante abaixo fixado. 

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V. VALOR DO PROCESSO

Em conformidade com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2, do CPC ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e 3.º, n.º 2, do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, é fixado ao processo o valor de € 1.639.224,23 (um milhão seiscentos e trinta e nove mil duzentos e vinte e quatro euros e vinte e três cêntimos).

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VI. CUSTAS

Em conformidade com o acima decidido e nos termos do disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT e no artigo 4.º, n.º 4, e na Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, o montante das custas é fixado em € 21.726,00 (vinte e um mil setecentos e vinte e seis euros), a cargo da Requerida.

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Notifique.

 

Lisboa, 4 de dezembro de 2020.

 

Os Árbitros,

 

(José Poças Falcão)

(Ricardo Rodrigues Pereira)

(João Taborda da Gama)