Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 302/2016-T
Data da decisão: 2017-03-28  IRC  
Valor do pedido: € 511.240,12
Tema: IRC – Tributação Autónoma; Benefícios SIFIDE II, RFAI e CFEI
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Acordam, nestes autos, os Juízes-Árbitros José Manuel Cardoso da Costa, Presidente, João Taborda da Gama e João Menezes Leitão:

 

           

 I.  Relatório.

 

A)    Constituição da arbitragem e seguimento do processo.

 

1. Em 1 de Junho de 2016, o A…, SGPS, pessoa colectiva nº…, com sede na Rua…, nº…, …, Piso…, …, …-… … (doravante, Grupo) apresentou no Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) pedido de constituição de tribunal arbitral, com vista a pronúncia arbitral, nos termos do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, doravante RJAT), sendo Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante AT).

Pretende a Requerente que nessa pronúncia:

– se declare a ilegalidade e se anule o indeferimento tácito da reclamação graciosa da autoliquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (doravante, simplesmente IRC) a seguir identificada, reclamação essa apresentada com fundamento na ilegalidade da parte dessa liquidação produzida pelas taxas de tributação autónoma, e a essa parte referida;

– se declare a ilegalidade dessa autoliquidação – ou seja, da autoliquidação de IRC a que o Requerente procedeu e cuja declaração apresentou em 9 de Junho de 2015, com referência ao exercício de 2014 – na parte correspondente à aplicação das taxas de tributação autónoma, no montante de € 511.240,12;

– consequentemente, seja reconhecido ao Requerente o direito ao reembolso deste montante e, bem assim, o direito a juros indemnizatórios pelo pagamento de imposto indevidamente liquidado, contados, até integral reembolso, desde 1 de Setembro de 2015;

– subsidiariamente, e caso se entenda que o artigo 90.º do CIRC não se aplica à colecta de imposto imputável às tributações autónomas, se declare a ilegalidade (com a consequente anulação) da liquidação correspondente a essas tributações autónomas, por ausência de base legal.

Juntou 14 documentos.

 

2. A Requerente indicou como Árbitro o Dr. João Taborda da Gama e, a Requerida, o Dr. João Menezes Leitão, após o que, a solicitação destes, o Ex.mo Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea b), do RJAT, designou como Árbitro Presidente o Dr. José Manuel Cardoso da Costa. Todos aceitaram a designação, nos termos legalmente previstos.

Em 18 de Agosto de 2016 foram as partes devidamente notificadas da designação dos árbitros, não tendo manifestado vontade de recusar essa designação (artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico).

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, ficou o tribunal arbitral constituído em 26 de Agosto de 2016 – o que na mesma data foi comunicado às Partes.

 

3. Acham-se as Partes representadas neste processo, respectivamente, pelo Dr. B…, advogado com escritório em Lisboa, mandatário do Requerente, A…, e pelos Drs. C… e D…, juristas designados pela Requerida, Autoridade Tributária. 

 

4. Notificada para o efeito, veio a AT, em 18 de Outubro de 2016, apresentar a sua resposta, defendendo que o presente requerimento de pronúncia arbitral deve ser julgado improcedente, com a sua absolvição de todos os pedidos.

Simultaneamente, juntou a AT o processo administrativo relativo ao objecto da arbitragem.

 

5. Por despacho arbitral de 21 de Novembro de 2016 – atento o facto de o Requerente haver arrolado testemunhas apenas a título preventivo, uma vez que considerava que os factos relevantes do processo se acham documentalmente provados, e o facto, bem assim, de a AT não haver manifestado entendimento diverso – foi dispensada a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e foram notificadas as Partes para produzirem alegações.

Ambas o fizeram atempadamente: o Requerente, logo em 23 de Novembro e, a Requerida, em 13 de Dezembro, sempre do ano transacto de 2016.

 

6. Posto isso, ficou o processo pronto para a decisão.

O prazo para proferir esta última terminaria em 27 de Fevereiro do corrente ano de 2017 (artigos 15º e 21º do RJTA). Havendo esse prazo, porém, sido prorrogado por dois meses, por despacho de 16 do mesmo mês, vai a decisão ser proferida e notificada em tempo.    

 

B)    Objecto da arbitragem e posições das partes.

 

7. O objecto da presente arbitragem reconduz-se, em suma, à seguinte questão de direito: a questão de saber se os benefícios fiscais, na modalidade de dedução à colecta, em sede de IRC, de que o Grupo (no caso) usufruía, ao abrigo de três regimes de incentivo fiscal às empresas – os regimes SIFIDE II, RFAI e CFEI – podiam ser ainda imputados na parte da colecta de IRC apurada com base nas regras da chamada «tributação autónoma», recte, se o crédito fiscal em que se traduzem esses benefícios podia (ou pode) ser deduzido ainda a essa parte da colecta de IRC.

           

8. Uma tal questão põe-se – ou põe-se em primeira linha – à luz das seguintes normas legais:

           

Quanto ao SIFIDE II (Sistema de incentivos fiscais em investigação e desenvolvimento empresarial), o artigo 36º, nº 1, do Código Fiscal do Investimento, republicado pelo Decreto-Lei nº 82/2013, de 17 de Junho, na redação do artigo 211º da Lei nº 83-C/2013, de 31 de Dezembro:

 

1Os sujeitos passivos de IRC residentes em território português que exerçam, a título principal, uma actividade de natureza agrícola, industrial, comercial e de serviços e os não residentes com estabelecimento estável nesse território podem deduzir ao montante apurado nos termos do artigo 90º do Código do IRC, e até à sua concorrência, o valor correspondente às despesas com investigação e desenvolvimento, na parte que não tenha sido objecto de comparticipação financeira do Estado a fundo perdido, realizadas nos períodos de tributação com início entre 1 de Janeiro de 2013 e 31 de Dezembro de 2020, numa dupla percentagem:

a)      ……

b)      ……

 

Quanto ao RFAI (Regime fiscal de apoio ao investimento), o artigo 28º, nº 1, alínea a), também do Código Fiscal do Investimento: 

1 Aos sujeitos passivos de IRC residentes em território português ou que aí possuam estabelecimento estável, que exerçam a título principal uma actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola abrangida pelo nº 1 do artigo anterior que efectuem, nos exercícios de 2013 a 2107, investimentos considerados relevantes, são concedidos os seguintes benefícios fiscais:

 

a)      Dedução à colecta de IRC, e até à concorrência de 50% da mesma, das seguintes importâncias, para investimentos realizados em regiões elegíveis para apoio dos incentivos com finalidade regional:

i) … …

ii) … …

 

Quanto ao CFEI (Crédito fiscal extraordinário ao investimento), os artigos 2º e 3º, nºs 1 e 5, da Lei nº 49/2013, de 16 de Julho:

 

Artigo 2º

 Podem beneficiar do CFEI os sujeitos passivos de IRC que exerçam a título principal uma actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e preencham cumulativamente as seguintes condições:

a)      ……

b)      ……

c)      ……

Artigo 3º

1 – O benefício fiscal a conceder aos sujeitos passivos referidos no artigo anterior corresponde a uma dedução à colecta de IRC de 20% das despesas de investimento em activos afectos à exploração, que sejam efectuados entre 1 de Junho de 2013 e 31 de Dezembro de 2013.

……

……

…….

5 – Aplicando-se o regime especial de tributação de grupos de sociedades, a dedução prevista no nº 1:

a)       Efectua-se ao montante apurado nos termos da alínea a) do nº 1 do  artigo 90º do Código do IRC, com base na matéria colectável do grupo;

b)       ……

 

Importa ainda referir, para um completo desenho da situação, que, havendo estes benefícios de ser aplicados, em princípio, no período fiscal em que foi realizada a despesa ou o investimento, todavia, e quanto a todos eles, o legislador (em preceitos de teor semelhante para cada um) preveniu a hipótese de, «por insuficiência de colecta» ou por se atingir o limite da dedução, esta não poder ser feita naquele período, dispondo que, então, a dedução poderia sê-lo ainda nas liquidações relativas a um certo número de exercícios seguintes: agora, cinco, no caso do RFAI, e seis, no caso do SIFIDE II (nº 4 do artigo 36º e nº 3 do artigo 28º do Código Fiscal do Investimento); e também cinco, no caso do CFEI (nº 6 ainda do artigo 3º da Lei nº 49/2013). (Não há que estranhar, pois, designadamente quanto à de dedução do CFAI, que se pretenda efectuá-la – voltando à espécie sub judice – na liquidação do IRC referente ao exercício de 2014).   

 

Por sua vez, quanto ao Código do IRC, interessam, antes de mais, as disposições dos artigos 89º e 90º, que rezam assim (no que agora importa):

 

Artigo 89º

1 – A liquidação do IRC é efectuada:

a)      Pelo próprio sujeito passivo, nas declarações a que se referem os artigos 120º e 122º;

b)      … …

 

Artigo 90º

1 – A liquidação do IRC processa-se nos termos seguintes:

a)      Quando a liquidação deva ser feita pelo sujeito passivo nas declarações a que se referem os artigos 120º e 122º, tem por base a matéria colectável que delas conste;

b)      ……

c)      ……

2 – Ao montante apurado nos termos do número anterior são efectuadas as seguintes deduções, pela ordem indicada:

a)      A correspondente à dupla tributação jurídica internacional;

b)      A correspondente à dupla tributação económica internacional;

c)      A relativa a benefícios fiscais;

d)      A relativa ao pagamento especial por conta a que se refere o artigo 106º;

e)      A relativa a retenções na fonte não susceptíveis de compensação ou reembolso nos termos da legislação aplicável.

3 - ……

4 - ……

5 - ……

6 – Quando seja aplicável o regime especial de tributação dos grupos de sociedades, as deduções referidas no nº 2 relativas a cada uma das sociedades são efectuadas no montante apurado relativamente ao grupo, nos termos do nº 1.

.........

.........

 

Por outro lado, está em causa o disposto no artigo 88º, o qual estabelece taxas de tributação autónoma incidindo sobre determinadas despesas ou encargos das empresas. Não se afigura necessário, nem curial, transcrever aqui o preceito, bastando dizer que, entre essas despesas ou encargos, estão os seguintes (dispensa-se também mais pormenorizada indicação): «despesas não documentadas» (nºs 1 e 2), «encargos relacionados com viaturas ligeiras de passageiros, motos e motociclos» (nºs 3 a 6), «encargos dedutíveis relativos a despesas de representação» (nº 7), «despesas correspondentes a importâncias pagas ou devidas, a qualquer título, a pessoas singulares ou colectivas residentes fora do território português e aí submetidas a um regime fiscal claramente mais favorável» (nº 8), «encargos dedutíveis relativos a ajudas de custo e à compensação pela deslocação em viatura própria do trabalhador» (nº 9), «lucros distribuídos por entidades sujeitas a IRC a sujeitos passivos que beneficiam de isenção total ou parcial (nº 10) e ainda gastos e encargos pagos a gestores, administradores ou gerentes, seja quando se verifique a cessação de funções, a título de «indemnizações ou compensações não relacionadas com a concretização de objectivos de produtividade previamente definidos», seja a título de «bónus e outras reparações variáveis» que excedam certos limites (nº 13).

E mais se diz, no preceito ora em causa, que as taxas nele estabelecidas «são elevadas em 10 pontos percentuais quanto aos sujeitos passivos que apresentem prejuízo fiscal no período a que respeitem quaisquer dos factos tributários» aí elencados (nº 14).

 

Sendo estas as disposições do Código do IRC que vêm desde logo ao caso, importará acrescentar – também como indicação normativa nele relevante – que, não contendo tal diploma outro regime sobre a liquidação do imposto que não o regulado nos artigos 89º e 90º (e seguintes), é esse o regime que, em simultâneo e no mesmo procedimento, há-de aplicar-se à liquidação, tanto da parte da colecta decorrente da aplicação da taxa comum ao lucro do sujeito passivo (artigos 3º e 87º), como da parte da colecta decorrente da aplicação das taxas de tributação autónoma – uma e outra, no caso (que é a regra) de autoliquidação do IRC, integrando a «declaração periódica de rendimentos» (anual, também por regra) referida no artigo 89º, e a cuja apresentação os sujeitos passivos estão adstritos nos termos do artigo 120º do Código. Isto, de resto, é o que encontra tradução no Modelo 22 do IRC, destinado à entrega de tal declaração.

 

Mas, se estes são os preceitos do Código do IRC a considerar em primeira linha, há agora que juntar-lhes ainda o nº 21 do artigo 88º, introduzido pelo artigo 133º da Lei nº 7-A/2016, de 30 de Março, do seguinte teor: A liquidação das tributações autónomas em IRS é efectuada nos termos previstos no artigo 89º e tem por base os valores e as taxas que resultem dos números anteriores, não sendo efectuadas quaisquer deduções ao montante global apurado.

E há que referir o que se dispõe, quanto ao mesmo, no artigo 135º daquela Lei, a saber, que um tal preceito (o novo nº 21 do artigo 88º) tem natureza interpretativa.  

 

            9. Face ao disposto nos preceitos legais antes elencados, o entendimento do Grupo requerente – como já se infere do sumário, que começou por deixar-se, das conclusões do seu requerimento – é o de que os créditos de imposto, em que se traduzem os benefícios fiscais em causa, hão-poder ser deduzidos inclusivamente à parte da colecta de IRC resultante da aplicação das taxas de tributação autónoma.

 

Procurando sintetizar, argumenta o Requerente, a sustentar o seu entendimento:   

 

a) A colecta de IRC compreende, sem necessidade de qualquer especificação adicional, a colecta das tributações autónomas. Havendo-se sempre entendido, de modo praticamente unânime, que assim era para efeitos do antigo artigo 45º, nº 1, alínea a), do Código do IRC – ou seja (explicitando agora), para o efeito de, apesar de o preceito não dizê-lo então expressamente, não se poder considerá-la como encargo dedutível para efeito de determinação do lucro tributável em IRC – não poderá ser de outro modo para os efeitos do artigo 90º, nº 1, e nº 2, alíneas c) e d) [na numeração actual, que é que se usará aqui];

b) Por outro lado, os preceitos dos diplomas legais que conferem os benefícios fiscais em apreço prevêem-nos expressamente como uma dedução ao montante apurado nos termos do artigo 90º do Código do IRC (SIFIDE II) ou à colecta de IRC (RFAI e CFEI), sem mais;

c) No sentido de que as tributações autónomas previstas no correspondente Código integram o IRC se tem pronunciado numerosa jurisprudência arbitral [que o Requerente exaustivamente cita e de que transcreve largos excertos, logo no seu Requerimento Inicial]. Segundo essa jurisprudência – é o que dela ressalta – tais tributações, ou pelo menos as que podem estar em causa nos autos, não correspondem a um imposto diferente daquele e visam tributar ainda o rendimento das pessoas colectivas, sendo um substituto ou complemento da indedutibilidade de certos custos delas [aos seus proveitos ou ganhos]: assim, há-de [ou havia de] ser aplicável à correspondente colecta a norma do antigo artigo 45º, nº 1, alínea a), do Código e mesmo, em geral (escreveu-se num dos arestos que integram a jurisprudência referida), as normas do CIRC que não contendam com a sua especial forma de incidência e taxas aplicáveis;

            d) Mas não só isso: na sequência e em consonância com um tal entendimento, a jurisprudência arbitral já mesmo tem entendido, semelhantemente, que também à parte da colecta de IRC resultante das tributações autónomas é aplicável o disposto na alínea b) do nº 2 do artigo 90º do Código – ou seja, a dedução de benefícios fiscais (e, nomeadamente, dos ora questão). E, se a alguns primeiros acórdãos nesse sentido se seguiram outros perfilhando diferente orientação, a estes últimos não têm faltado votos de vencido;

            e) É incongruente a pretensão da Requerida, AT, de considerar a colecta das tributações autónomas, ora como integrando a colecta de IRC (para o efeito de sua não dedutibilidade no apuramento da matéria colectável desse mesmo imposto, e, logo, quando isso aumenta a receita), ora não (para o efeito de não lhe serem dedutíveis os benefícios fiscais, e, logo, quando a receita diminuiria); 

            f) O alegado objectivo de combate à evasão fiscal, que a AT tem vindo a associar às tributações autónomas, não pode valer contra a conclusão que resulta claramente da lei – sendo que em nenhum de outros casos em que o Código consagra medidas anti-evasão (muito mais evidentes e mais importantes em termos de receita do que as tributações autónomas mais vulgares) a correspondente colecta deixa se ser o que é: colecta de IRC, para efeitos, também, de interacção com os benefícios fiscais nessa sede; 

            g) Acresce que, a entender-se, com a AT, que no artigo 88º do CIRC estaria tudo quanto importa às tributações autónomas, não lhes sendo aplicável o artigo 90º do Código, então faltaria a norma aplicável à correspondente liquidação – já que naquele preceito apenas se dispõe sobre os seus sujeito passivo, base de incidência e taxa. Donde que essa liquidação – justamente por falta de norma que a regule – será então ilegal, quer por força do artigo 8º, nº 2, da Lei Geral Tributária (doravante, LGT), quer por força do artigo 103º, nº 3, da Constituição da República.

 

            E, depois, tendo especificamente em vista o que veio dispor-se na Lei nº 7-A/2016 (Lei do Orçamento para 2016) e atrás ficou referido, sustenta o Requerente mais o seguinte, ainda procurando sintetizar:

 

            h) Desde logo – e fazendo-se eco do entendimento perfilhado no acórdão tirado no processo nº 673/2015-T, deste Centro, e depois retomado noutros arestos – que, a entender-se que a Lei nº 7-A/2016 [recte, o seu artigo 135º, e no ponto em causa] teria pretendido eliminar, total ou parcialmente, os efeitos fiscais favoráveis, previstos na lei vigente no momento em que ocorreram, do reconhecimento legal dos benefícios fiscais em apreço, então tal lei [recte, essa sua norma] seria inconstitucional, por violação do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático. Independentemente disso, porém: 

            i) Considerada em termos quantitativos, a jurisprudência arbitral conhecida ao tempo da intervenção legislativa em apreço aponta para se atribua a natureza de lei inovadora ao acrescento do nº 21 ao artigo 88º do Código do IRC, em que essa intervenção se consubstanciou, na parte em que aí se passou a excluir a possibilidade de qualquer dedução ao montante global de tributações autónomas apurado. Com efeito, nessa jurisprudência reconheceu-se sistematicamente, e em geral, que as tributações autónomas eram IRC; e, por outro lado, ela era largamente maioritária quanto à possibilidade de deduzir à parte da colecta relativa a tais tributações os benefícios fiscais ora em causa (assim foi entendido unanimemente em quatro acórdãos arbitrais sobre essa questão, em que intervieram oito árbitros diferentes, apenas se havendo decidido diversamente num outro, e mesmo aí com um voto de vencido, e numa decisão de árbitro único). Por outro lado:

            j) Tendo em conta o «contexto de imprecisão da norma» do artigo 135º da Lei nº 7-A/2016 – o qual fala em «nova redacção», inter alia, do nº 21 do artigo 88º do Código do IRC, quando aí se está perante um preceito novo – pode e deve entender-se que a natureza interpretativa que ele [o dito artigo 135º] atribui a este preceito apenas se refere à sua primeira parte, ou seja [explicitando] à que manda aplicar à liquidação das tributações autónomas o artigo 89º daquele Código. Em qualquer caso:

            l) O regime comum sobre a aplicação no tempo de normas interpretativas, constante do artigo 13º do Código Civil, regime segundo o qual essas normas são de aplicação retroactiva, é inaplicável actualmente no domínio do direito fiscal – pois que o artigo 12º da LGT, que é lei especial, combinado com o artigo 103º, nº 3, da Constituição proíbe a retroactividade da tributação;

            m) Mas, ainda que o fosse, o certo é que o princípio da aplicabilidade retroactiva de normas interpretativas só há-de valer para as que o sejam substancialmente, para as que se contêm «materialmente nos limites da interpretação», e não para as que o sejam só formalmente e se perfilem, na realidade, como normas «novas». Ora, não se identificando (em lugar algum da Lei nº 7-A/2016) a norma que a 2ª parte do nº 21 do artigo 88º visa «interpretar», ela só poderia ser o nº 2 do artigo 90º do Código do IRC, no qual, porém, não se detecta nenhuma ambiguidade (ou, se existia, nenhuma ambiguidade que não fosse igualmente partilhada pelo seu nº 1 e pelo antecedente artigo 89º, já que todos se referem ao IRC, sem nenhuma ressalva, e respeitam à mesma fase da sua liquidação): a essa parte do preceito em causa não pode reconhecer-se, pois, natureza autenticamente interpretativa. De outro modo, haveria uma contradição entre ela e a 1ª parte do mesmo preceito – já que seriam «simultaneamente interpretativas», mas «em sentidos opostos», dos artigos 89º e 90º do Código do IRC (o que seria uma «impossibilidade lógica e sistémica»). Natureza verdadeiramente interpretativa – e para mais conhecendo-se a jurisprudência já referida – tem-na necessária e realmente, pois, tão-só a 1ª parte da disposição. De todo o modo:

            n) Ainda que – contra o que deve ter-se, mais do que como uma «dúvida razoável», antes como uma «certeza razoável» – a norma da 2ª parte do nº 1 do artigo 88º pudesse ser considerada como «materialmente» interpretativa, e se pretendesse, assim, atribuir-lhe o alcance retroactivo prescrito no artigo 13º do Código Civil, a tal se oporia, em último termo, o princípio do artigo 103º, nº 3, da Constituição, o qual veio consagrar, a esse nível, a proibição da «retroactividade da lei fiscal». Com efeito – e de acordo com o que foi entendido no Acórdão nº 172/00 do Tribunal Constitucional (e encontrou apoio subsequente na doutrina) – essa proibição tem o alcance de vedar a atribuição de eficácia retroactiva mesmo a normas fiscais autenticamente interpretativas: é que [transcrevendo do aresto referido] «a lei interpretativa, ainda que autêntica, ao pretender vigorar para o período anterior à sua emissão, nos termos do artigo 13º do Código Civil, altera o contexto de auto-vinculação dos órgãos de aplicação do Direito ao Direito e, consequentemente, afecta a segurança dos destinatários das normas protegida por uma proibição (constitucional) de retroactividade», sendo certo que [continua-se] a essa proibição não pode deixar estar inerente um «sentido forte […] de protecção da segurança»;

            o) Assim, a entender-se – contra o alegado antes – que o artigo 135º da Lei nº 7-A/2016 atribuiu natureza interpretativa (e seja «autêntica» ou não) também à 2ª parte do nº 21, por ele introduzido, do artigo 88º do Código do IRC, com isso conferindo a esse segmento normativo eficácia retroactiva, a entender-se isso, incorrerá o mesmo preceito (o dito artigo 135º) em inconstitucionalidade material, por violação do princípio da proibição da retroactividade em matéria de impostos, consignada no artigo 103º, nº 3, da Constituição da República.

 

            Ou seja – é o ponto onde o Requerente quer chegar, embora não o tenha explicitado: a aplicação «retroactiva» à liquidação de IRC por ele impugnada nos presentes autos, e relativa ao ano de 2014, da norma da 2ª parte do nº 21 do artigo 28º do Código do IRS, com base na natureza «interpretativa» atribuída a esse preceito pelo artigo 135º da Lei nº 7-A/2016, traduz-se, em último termo, numa situação de inconstitucionalidade material, materializada nesta disposição legal.   

 

10. A Requerida, AT, sustenta naturalmente, sobre a questão em apreço, posição oposta à do Requerente. As razões e argumentos, que para tanto invoca, podem resumir-se como segue:

 

a) As tributações autónomas – tendo começado por incidir sobre certas despesas, com o objectivo da sua desincentivação, e havendo-se, depois, alargado progressivamente a outras situações – assumem, no quadro do IRC, um lugar e uma natureza específica, que se não confunde com a incidência comum desse imposto, sobre o lucro das empresas. Em afirmação jurisprudencial, diz-se mesmo que essa modalidade de tributação, «embora formalmente inserida no IRC» e embora «o montante que permita arrecadar seja liquidado no seu âmbito», «respeita a uma imposição fiscal que é materialmente distinta da tributação nesta cédula»;

b) A existência de tais tributações implica que no âmbito do IRC deparemos com dois tipos diferentes de matéria colectável, a que se aplicam taxas diversas e que dão lugar a dois cálculos distintos para o apuramento do imposto;

c) A tese sustentada pelo Requerente – baseada nas decisões arbitrais que invoca – assenta numa mera interpretação literal da lei, que faz tábua rasa dos elementos teleológico e racional daquela e, nomeadamente, dos objectivos adstritos às tributações autónomas. Ora:

d) A natureza e os objectivos destas implicam um outro exercício interpretativo, exigindo a diferenciação das normas do IRC que, inerentes à estrutura deste, mas incompatíveis os objectivos das tributações autónomas, não poderão aplicar-se a estas últimas. Isso mesmo a jurisprudência o vem reconhecendo; 

e) Está nesse caso a norma do nº 2 do artigo 90º do Código do IRC, pois que, não tendo o montante de imposto apurado nos termos da alínea a) do nº 1 desse artigo um carácter unitário e integrando valores calculados segundo regras diferentes, ela (essa mesma norma) só será aplicável à parte da colecta com que tenha correspondência directa – e que não é a decorrente das tributações autónomas. Com efeito:

f) Assim acontece, desde logo, com a dedução relativa a pagamentos por conta, conforme é entendimento perfilhado pela AT e pacificamente aceite pela doutrina e pelos contribuintes em geral. Como necessariamente acontece, de modo semelhante, com a dedução dos créditos de imposto para eliminar a dupla tributação internacional, já que (e revelam-no claramente os artigos 91 e 91º-A) tais créditos só podem unicamente relacionar-se com a tributação de «rendimentos» ou «lucros» no estrangeiro (e «na matéria colectável [das] nas tributações autónomas não estão incluídos rendimentos de fonte externa»);

g) De resto, que é assim – que as deduções do nº 2 do artigo 90º não são imputáveis ao montante da colecta correspondente às tributações autónomas – é algo que encontra um apoio explícito no nº 5 do mesmo artigo, o qual determina que, no caso de entidades sujeitas ao regime de transparência fiscal previsto no artigo 6º, as deduções sejam imputadas aos respectivos sócios ou membros, sendo efectivadas no montante apurado com base na matéria colectável determinada para cada um: com efeito, por um lado, sendo tais entidades as que ficam sujeitas às tributações autónomas (artigo 12º), e, por outro lado, havendo os sócios ou membros delas de integrar no apuramento do seu lucro tributável os valores (de lucro ou prejuízo) provenientes daquelas entidades, sendo assim, o que o preceito (do nº 5) «indica, de forma inteiramente clara», é que, quanto aos sócios ou membros das sociedades sujeitas a transparência fiscal, as deduções, sendo efectuadas ao montante de imposto resultante da matéria colectável que lhes seja imputável nos termos do artigo 6º, não o são ao montante relativo às tributações autónomas. Ora, passando-se as coisas deste modo nas situações de transparência fiscal, seria incongruente que se passassem de modo diverso nas outras situações, ou seja [é assim que se formula], para as deduções que «directamente respeitem [aos] sujeitos passivos» [diz-se «a esses» sujeitos passivos, mas claro que a referência só pode ter em vista os não submetidos ao regime de transparência fiscal];

h) Também, pois, quanto à dedução relativa aos benefícios fiscais, em particular os que consistem em incentivos ao investimento, há-de entender-se que a mesma só pode respeitar ao imposto liquidado com base na matéria colectável determinada segundo as regras do capítulo III e as taxas do artigo 87º do Código, e não igualmente ao resultante das tributações autónomas. Especificamente quanto a esta dedução:

i) Por um lado, os benefícios fiscais ao investimento «têm subjacente a filosofia de que o benefício constitui um prémio cuja amplitude varia com a rendibilidade dos investimentos», pelo que «há uma ligação indissociável entre o montante do crédito de imposto [correspondente] e a parte da colecta calculada sobre a matéria colectável baseada no lucro». A não ser assim [ou seja, a estender-se a dedução à parte da colecta relativa às tributações autónomas] haverá uma incongruência e uma subversão da articulação entre os objectivos dos benefícios e a grandeza representada pelo lucro;

j) Por outro lado, o regime das tributações autónomas tem uma função desincentivadora da realização de certo tipo de despesas, pelo que não se vê como o legislador consentiria que esse objectivo pudesse ser neutralizado, através da dedução de incentivos fiscais à respectiva colecta: admitir tal possibilidade (aceitando no limite que a dedução pudesse fazer-se [p.ex.] sobre o volume das «despesas indocumentadas»]

equivaleria a «[subverter] por completo a função dessas tributações na prevenção ou evitação de comportamentos fiscal e socialmente indesejados»;

            l) De resto, no respeitante à dedução do CFEI, a própria lei fornece uma «resposta clarificadora» (no sentido sustentado) para o caso dos «grupos de sociedades», ao referir-se, na alínea a) do nº 5 do artigo 3º da Lei nº 49/2013, à matéria colectável do grupo [cfr. supra, nº 8]. É que esta matéria colectável só pode ser a referida no nº 1 do artigo 69º do Código do IRC, a qual, no seu cálculo, «obedece, entre outras, às regras especiais previstas nos artigos 70º e 71º, onde não se detecta qualquer interferência das tributações autónomas, que, aliás, são determinadas autonomamente por cada sociedade pertencente ao grupo».

 

Entretanto, e no concernente à intervenção legislativa operada, com relação à matéria em apreço, pela Lei nº 7-A/2016, diz a Requerida, também em síntese:

 

m) Se dúvidas houvessem sobre a questão controvertida, elas foram dissipadas com a natureza interpretativa atribuída pelo artigo 135º da Lei nº 7-A/2016 ao nº 21 do artigo 88º do Código do IRC;

n) Esse normativo positivou o que era o entendimento da doutrina e dos contribuintes em geral. Mas, pese esse generalizado entendimento, a questão foi suscitada, a partir de 2014, em 3 processos arbitrais – os processos nº 603/2014, nº 697/2014 e nº 769/2014 –, sendo que no primeiro e no último se decidiu no sentido defendido pelo ora Requerente e, no segundo, no sentido do entendimento da Requerida;

o) A questão, pois, era (e ainda é) controvertida na jurisprudência arbitral. Não pode pretender-se o contrário – e concluir, por aí, pela desnecessidade «do carácter interpretativo» do nº 21 do artigo 88º, «transformando-o numa interpretação retroactiva da lei, a qual, todos concordam, constitucionalmente proibida», ou seja [noutra formulação], «sustentar que [essa norma, aditada] com carácter interpretativo, não é verdadeiramente interpretativ[a], mas sim retroactiv[a], como tal ilegal e inconstitucional». E nem pode a Requerente «insistir», a esse propósito, numa «corrente [jurisprudencial] recorrentemente dominante», já que tal não corresponde à realidade;

p) De resto, «é evidente a notória inflexão jurisprudencial» que nesta temática vem verificando-se na jurisprudência arbitral, com os acórdãos tirados nos processos nº 722/2015, nº 785/2015 e nº 727/2015 – todos acolhendo, unanimemente, a posição da Requerida (no mesmo sentido foram ainda os votos de vencido nos processos nº 749/2015 e nº 5/2016). E, como se disse nas duas primeiras dessas decisões, sempre se haveria de entender, independentemente do agora disposto no nº 21 do artigo 88º e da natureza e alcance desse preceito, que as deduções em causa não eram aplicáveis à parte da colecta de IRC emergente das tributações autónomas – sendo que na primeira delas se afirma inclusivamente que «o legislador ao aditar [esse] nº 21 ao artigo 88º do Código do IRC com o conteúdo mencionado limitou-se a acolher e reforçar o sentido normativo que já resultava das normas vigentes»;

q) Tendo em conta todo o referido, a construção jurídica, em contrário, do Requerente – e sem desrespeito pela jurisprudência arbitral que invoca – traduz-se numa «interpretação ab-rogante travestida de impulso legiferante», das normas sobre as tributações autónomas, «podendo constituir, em última análise, uma violação do princípio da separação dos poderes».

 

11. Eis, tentando sumariar, como as Partes expuseram e sustentaram as suas posições sobre a questão controvertida no Requerimento Inicial e na Resposta.

Em desenvolvidas alegações, retomaram as Partes as suas teses e posições, insistindo mais alargadamente na defesa de alguns pontos, mas sem acrescentarem nada de radicalmente novo à impostação da questão decidenda.

Dir-se-á, em todo o caso, que o Requerente salienta particularmente a incoerência que representará, em seu modo de ver, pretender que as tributações autónomas no âmbito do IRC se traduzem num evento tributário específico e, depois, não considerar dedutíveis as correspondentes colectas no cálculo da matéria colectável desse imposto; insiste na preponderância do número de decisões arbitrais proferidas no sentido da tese que defende; põe ainda especial ênfase em analisar e contrabater os argumentos em que a AT faz assentar tese contrária; e, relativamente à intervenção da Lei nº 7-A/2016, sublinha em especial a aplicabilidade, desde logo, da proibição constitucional do artigo 103º, nº 3, (proibição de retroactividade) à matéria em apreço e, depois, as exigências que, de todo modo, se hão-de cumprir para que a uma norma seja reconhecido verdadeiro carácter interpretativo, bem como o facto de nem mesmo esse carácter retirar a tal norma efeito retroactivo.

É neste último ponto – o do carácter interpretativo do nº 21 do artigo 88º, introduzido pela Lei nº 7-A/2016 – que a Requerida, por sua vez, foca especialmente a atenção, reiterando que ele foi editado num efectivo contexto de controvérsia judicial, (que volta a explanar), e sem que seja relevante fazer-se qualquer «contabilidade» dessa controvérsia (isto é, sem que seja legítimo tirar dessa contabilidade alguma ilação). Mas não deixa, além disso, de insistir na diversa natureza das tributações autónomas face à tributação comum [diga-se assim] em IRC e, bem assim, no facto de a dedutibilidade dos créditos fiscais por investimento (referindo mormente o SIFIDE) à parte da colecta de IRC resultante daquelas tributações contrariar, como alega, o sentido delas e poder levar, no limite, não só ao seu desvirtuamento, como à sua «anulação».  

 

II. Fundamentos.

 

II.I. Os factos.

 

12. Face aos documentos juntos pela Requerente à Petição Inicial, dão-se por assentes os seguintes factos: 

a) O Grupo requerente entregou no dia 9 de Junho de 2015 a declaração de IRC Modelo 22, para liquidação (autoliquidação) e cobrança desse imposto, referente ao exercício de 2014 do Grupo, Modelo em que foi apurado um montante de tributações autónomas em IRC de € 511.240,12 (Doc. nº 1);

b) No final do exercício de 2014, o Grupo tinha (ou tinha ainda) disponíveis para utilização os seguintes montantes de créditos fiscais, em sede de benefícios fiscais ao investimento: SIFIDE - € 116.222,39; RFAI - € 829.253,99; CFEI - € 1.421.281,08 (Docs. nºs 3 a 6);

c) O montante total desses benefícios era, pois, muito superior ao do montante liquidado de tributações autónomas;

d) Na mesma data antes indicada, estavam reunidas, quanto ao Grupo, as condições legais necessárias para que o mesmo pudesse utilizar os mencionados benefícios fiscais, em sede de IRC (Docs. nº 1, relativamente à não aplicação de métodos indirectos no apuramento do lucro tributável, e nºs 7 e 8);

e) O dito Modelo 22 e o sistema informático da AT não permitem que se faça reflectir na colecta das tributações autónomas – isto é, deduzir a essa colecta – o montante de benefícios fiscais como os do SIFIDE, do RFAI e do CFEI (cfr. Doc. nº 1); 

f) O Grupo não pôde assim deduzir (e não deduziu) no e até ao montante das tributações autónomas, apurado na autoliquidação de IRC respeitante ao exercício de 2014, o montante dos créditos fiscais a que tinha (ou ainda tinha) direito, no final desse exercício, em sede de SIFIDE, RFAI e CFEI (cfr. Docs. nºs 1e 9);

g) Em vista disso, o Grupo apresentou, em 3 de Novembro de 2015, reclamação graciosa da mesma liquidação, com fundamento em ilegalidade, consubstanciada na impossibilidade de efectuar a dedução referida (Doc.nº 2);

h) Decorrido o prazo de quatro meses legalmente estabelecido para o efeito, não houve decisão dessa reclamação graciosa, pelo que tem de presumir-se o seu indeferimento tácito em 3 de Março de 2016 (artigo 57º, nºs 1 e 5, da LGT).

 

II.II. O Direito.

 

13. Como decorre do Relatório que antecede, a questão objecto do presente processo, e que já se deixou identificada, não é nova na jurisprudência arbitral deste Centro. A resposta que nela tem recebido está longe, porém, de ser uniforme – e, isto, seja antes, seja depois da intervenção que na matéria veio a ter a Lei do Orçamento para 2016 (a Lei nº 7-A/2016).

Antes desta intervenção, decidiram no sentido propugnado pelo Requerente – ou seja, no de que o montante dos benefícios fiscais ao investimento era dedutível à parte da colecta de IRC imputável às tributações autónomas – os acórdãos proferidos nos processos nº 769/2014-T, de 8/4/2015, nº 2019/2015-T, de 5/10/2015 e nºs 369/2015-T e 370/2015-T, ambos de 25/1/2016; em sentido contrário, decidiu o acórdão proferido no processo nº 697/2014-T, de 13/5/2015. Nos dois primeiros e no último destes arestos estava em causa o benefício SIFIDE; nos dois outros, o benefício RFAI: para o sentido e alcance desta jurisprudência é irrelevante, porém, o benefício em causa.

Resumidamente, pode dizer-se que o argumento básico em que assentam os acórdãos que acolheram a primeira orientação é o de que as tributações autónomas incluem-se no IRC e na mesma liquidação deste (a liquidação prevista hoje nos artigos 89º e 90º do Código), pois que a lei não as exclui expressamente do respectivo âmbito, nem prevê para as mesmas um procedimento de liquidação específico: elas integram, portanto, a colecta de IRC; prevendo as normas que estabelecem os benefícios a sua dedução à «colecta» de IRC (ou, como no caso do SIFIDE, ao «montante apurado nos termos do artigo 90º do CIRC»), há-de entender-se que é a toda a colecta do IRC, sem distinções, que se referem. Mas a este argumento acresce um outro, visando contrabater o que se extrairia (ou extrairá) dos objectivos das tributações autónomas: é o de que, sendo os benefícios fiscais – na definição que deles dá o artigo 2º, nº 1, do correspondente Estatuto (doravante, EBF) – «medidas de carácter excepcional instituídas para tutela de interesses públicos extrafiscais relevantes que sejam superiores ao da própria tributação que impedem», isso significa que, onde estejam consagrados, o interesse a eles subjacente prevalece, legislativamente, sobre o interesse da obtenção de receita. E (disse-se num dos acórdãos) não só isso: tratando-se de benefícios que visam propiciar um inventivo ao investimento, eles representam mesmo uma «promessa pública», cujo incumprimento envolverá, ao cabo, uma violação do princípio da confiança, característico do Estado de direito.

No aresto em que se seguiu orientação contrária, parte-se, inversamente, da concepção de que as tributações autónomas não constituem IRC «em sentido estrito» (são tributação de outra natureza, que não comunga mesmo da natureza periódica desse imposto). Reconhece-se, porém, que estão «imbricadas» neste imposto, constituindo uma «realidade instrumental», a ele acessória, e traduzindo-se em normas anti-abuso específicas, visando acautelar os equilíbrios gerais do sistema fiscal e os equilíbrios do IRC: por isto (em razão desta imbricação e deste seu objectivo) não são dedutíveis para efeito do apuramento do lucro tributável em IRC – como já havia de entender-se no quadro do antigo artigo 45º, nº 1, alínea a), do Código e como, hoje, o preceito homólogo do seu artigo 23º-A veio expressamente dizer. E «assim é que» – conclui-se sem mais no acórdão – não há ilegalidade na não dedução do crédito fiscal então em apreço (de SIFIDE, como se referiu) à parte da colecta de IRC emergente das tributações autónomas.

 

14. Posteriormente ao aditamento do nº 21 ao artigo 88º do Código do IRC, operado, com «natureza interpretativa», pela Lei nº 7-A/2016, registam-se, no primeiro dos sentidos antes considerados (dedutibilidade dos benefícios à parte em causa da colecta), os acórdãos arbitrais tirados nos processos nºs 637/2015 e 673/2015, de 28/4/2016, nº 784/2015, de 13/5/2016, nº 740/2015, de 16/5/2016, nº 749/2015, de 15/7/2016 e nº 5/2016, de 27/7/2016; e registam-se, em sentido inverso, os acórdãos tirados nos processos nº 722/2015, de 28/6/2015, nº 785/2015, de 31/7/2016, nº 727/2015, de 7/10/2016 e nº 174/2016, de 19/11/2016. Estavam em causa nestes vários arestos, consoante os casos, sejam os benefícios SIFIDE e RFAI, seja ainda o benefício CFEI – o que, como antes se disse, é praticamente indiferente para o que releva aqui.

Também em resumo, dir-se-á (prescindindo da referência a argumentos ou contra-argumentos de pormenor) que os primeiros arestos começam por retomar basicamente a linha argumentativa que vinha da jurisprudência antecedente no mesmo sentido (iniciada com o acórdão do processo nº 769/2014-T), porventura agora mais elaborada: assim, partindo da premissa de que a liquidação do IRC e a correspondente colecta são unitárias e abrangem as tributações autónomas, diz-se que por simples interpretação «declarativa» das normas que criaram os benefícios se conclui deverem estes ser igualmente abatidos à parte da colecta respeitante àquelas tributações – pelo que só por interpretação «restritiva» dessas normas se poderia concluir em sentido oposto. Simplesmente, uma tal interpretação, não apenas teria de ultrapassar o princípio da não interpretação restritiva das normas excepcionais, como seria contrária à ratio legis das normas em causa – ratio essa que aponta claramente para a prevalência do interesse público do benefício sobre o da arrecadação de receita (ut artigo 2º, nº 1, do EBF, acima transcrito) e para a não redução do universo dos seus beneficiários, sublinhada, no caso, pela relevância dos benefícios em causa e pelo afastamento que o legislador fez, quanto a eles, da aplicação da regra do artigo 92º do Código do IRC.

E, dito isto, quanto, por sua vez, ao disposto no novo nº 21 do artigo 88º do Código e ao seu carácter interpretativo, sustenta-se a sua irrelevância para o caso, com a consideração de que não se encontra na intervenção legislativa, que promoveu o aditamento desse preceito, nenhuma indicação de que ela tenha pretendido abranger igualmente normas «especiais», como são as que estabelecem os benefícios – pelo que haverá de aplicar-se aqui a regra de que a lei geral não revoga a lei especial. Mas acrescenta-se que, a não ser assim, então a natureza interpretativa do preceito teria a consequência da eliminação [retroactiva] dos efeitos fiscais favoráveis previstos na lei vigente no momento (o do período para utilização dos benefícios) em que os contribuintes adoptaram os correspondentes comportamentos: ora, isso implicaria uma violação do princípio constitucional da confiança, ínsito no princípio do Estado-de-direito democrático. [Seguiu-se o desenvolvimento argumentativo do acórdão do processo nº 673/2015, sendo que o dos demais acórdãos, quando simplesmente o não retoma, é com ele convergente. Mas não pode deixar de referir-se que, no tocante à segunda vertente da argumentação – a relativa ao novo nº 21 do artigo 88º do Código do IRC – um dos arestos (o do processo nº 749/2015) limita-se a «negar» o alcance interpretativo do preceito; e, outro (o do acórdão no processo 637/2015), ignora pura e simplesmente a questão]. 

No que concerne, agora, aos arestos em que se julgou favoravelmente à AT – e, pois, no sentido da indedutibilidade dos benefícios fiscais à parte da colecta de IRC proveniente das tributações autónomas – a fundamentação dos mesmos não é uniforme, mas em todos se sublinha, com maior ou menor ênfase, a «especificidade» das tributações autónomas no quadro do IRC. O ponto é especialmente desenvolvido no acórdão respeitante ao processo nº 722/2015, em que se assume de modo muito directo (com apelo, em particular, a jurisprudência do Tribunal Constitucional), a concepção segundo qual as tributações autónomas são imposto sobre a despesa, não sobre o rendimento, incidindo sobre cada despesa em si mesma, isto é, sobre um facto tributário «instantâneo» (e sem que a circunstância de o seu apuramento abranger o conjunto anual das despesas as transforme num «imposto periódico»). De modo semelhante, mas com muito menor desenvolvimento, também nos acórdãos tirados nos processos nºs 727/2015 e 785/2015 se considera que as tributações autónomas não são IRC «em sentido estrito». Já no acórdão tirado no processo nº 174/2016 se desvaloriza este aspecto conceptual ou dogmático da qualificação das tributações autónomas como IRC ou não: o Tribunal cinge-se a reconhecer que, por força das tributações autónomas (que entretanto considera na sua mesma distinção interna, segundo a sua diferente incidência e finalidade), o IRC é uma «realidade complexa e multifacetada», em suma, «um sistema dual», mas «o mesmo» sistema – um sistema ou um regime tributário «onde converge a liquidação de duas formas de imposição» de raízes e natureza distintas, mas onde a tributação «marginal» (as tributações autónomas), ainda que «subtraída em grande parte à lógica, natureza e princípios do IRC», «só faz sentido no contexto da tributação em sede [deste último]».

A partir daqui, em dois dos acórdãos em causa (os dos processos nºs 727/2015 e 785/2015) entende-se que das normas que consagram os benefícios se extrai, sem mais, que estes só podem referir-se à colecta imputável ao lucro tributável [cita-se, quanto ao SIFIDE, a alínea a) do artigo 5º do diploma que o criou, correspondente hoje à alínea a) do artigo 37º do CFI, e, quanto ao CFEI, em particular, a norma do artigo 3º, nº 5, do mesmo diploma, respeitante aos grupos de sociedades] – e conclui-se que, assim, «existe um impedimento legal expresso no Código do IRC para que os créditos [deles] decorrentes sejam deduzidos às tributações autónomas».

Nos outros dois arestos, a questão é analisada muito mais detidamente e sob outros prismas. Assim, e muito em resumo: no acórdão relativo ao processo nº 722/2015, o essencial do argumento, contra a dedutibilidade dos benefícios à colecta das tributações autónomas, reside na natureza dissuasora e anti-abuso destas últimas e na descaracterização dessa natureza que uma tal dedutibilidade significaria, quando, no limite, esta última podia mesmo conduzir à completa eliminação daquela colecta; no acórdão tirado no processo nº 174/2016, começando por reconhecer-se que, considerado o artigo 90º do Código do IRC em termos puramente literais e semânticos, outra conclusão não poderia tirar-se senão a da dedutibilidade dos benefícios a toda a colecta do IRC, desce-se depois à ratio legis do preceito (ou dos preceitos atinentes à questão) para – a partir de vários tópicos do regime do IRC, por um lado, e da natureza e de certos aspectos das tributações autónomas (ou de algumas delas), aí incluída a sua finalidade anti-abuso, por outro – se concluir, logo por aí, em sentido diverso. 

Entretanto, também não é idêntica a consideração em que estes quatro acórdãos tiveram o aditamento do nº 21 ao artigo 88º do Código do IRC, operado, com carácter interpretativo, pela Lei do Orçamento para 2016: em dois deles (ainda os tirados nos citados processos nºs 727 e 785), o ponto nem sequer é abordado; no acórdão proferido no processo nº 722/2015, sublinha-se expressamente a desnecessidade da invocação desse preceito para firmar a conclusão do aresto – e, coerentemente, diz-se que tal preceito se limitou a consagrar o «sentido interpretativo» que já antes devia ser o adoptado; finalmente, no acórdão do processo nº 174/2016, chegando-se de igual modo à decisão independentemente do preceito em causa, aborda-se ex professo, todavia, a questão da sua natureza interpretativa, relativamente ao artigo 90º, nº 2, do Código do IRC, e considera-se que estão verificados, no caso, os pressupostos que permitem real e validamente reconhecer esse seu carácter – pelo que sempre por aí, e em último termo, se haveria de concluir pela indedutibilidade dos benefícios às tributações autónomas.

 

15. Posto isto – exposta a argumentação desenvolvida pelas Partes a sustentar os respectivos pontos de vista e evidenciada, nos seus fundamentos, a divergência jurisprudencial que vem ocorrendo relativamente à questão em apreço – como decidir?

Ponderados devidamente essa divergente argumentação e esses divergentes fundamentos, entende este Tribunal – o que desde já adianta – que a razão está do lado da Requerida, AT, pelo que deverá improceder in totum o pedido do Grupo Requerente. Justificar-se-á de seguida este entendimento, destacando o que nele é essencial.

 

16. Assim, começar-se-á por dizer – nesse aspecto seguindo o percurso inicial do acórdão tirado no processo nº 174/2016 – que se tem por desnecessário, para o efeito aqui em vista, entrar no tema conceptual da qualificação das tributações autónomas, no quadro do IRC, ou seja, na questão de saber se ainda aí estamos perante esse imposto (que é um imposto periódico sobre o rendimento), ou perante uma imposição diversa, mormente sobre a despesa (e configurando-se como um imposto de obrigação única, só que de cobrança anual agregada). Essa será mais uma questão dogmática do domínio da «fiscalidade» (da ciência e da técnica fiscal), antes que propriamente (e, se em alguma medida, não para o ponto ora em causa) uma questão «jurídica» – ademais de ser, no mínimo, uma questão altamente controversa (mormente – e se posta, apesar de tudo, num plano jurídico – no que concerne à qualificação das tributações autónomas como «imposto de obrigação única», acolhida nos demais arestos que antes, e por último, se consideraram, bem como em alguma doutrina).

Basta reconhecer – e isso é, sem dúvida, relevante – que na mesma figura jurídico-formal ou jurídico-estrutural do IRC se depara hoje com duas fontes (ou causas) de tributação, de natureza distinta: uma, a tradicional, e que se reconduz, grosso modo, à ocorrência de um «lucro tributável», traduzida na diferença entre os proveitos realizados e as despesas e encargos dispendidos pelo sujeito passivo no desenvolvimento da sua actividade durante o período (artigos 3º e 15º do respectivo Código); e outra (se se quiser, periférica ou marginal), que se reconduz directamente a certas despesas efectuadas ou encargos assumidos pelo sujeito passivo ao longo do período, tudo como se discrimina no artigo 88º do mesmo diploma (a que acrescem os lucros por aquele distribuídos aos beneficiários que se encontrem nas condições referidas no nº 11 desse preceito).

E tanto se trata, jurídico-formal ou jurídico-estruturalmente, da mesma figura tributária – e, com isto, passa-se a um segundo ponto primacial – que, se as duas fontes ou causas de tributação implicam liquidações «substantivas» distintas (sendo diferentes, em cada uma, a matéria colectável e a taxa ou taxas), estas vão fundir-se num único acto jurídico de liquidação, que dá lugar a uma colecta global – em cuja obrigação de pagamento fica também unitariamente constituído o sujeito passivo. Que assim é, decorre inequivocamente dos artigos 89º e 90º do Código do IRC – únicos que regem a liquidação (normal) deste imposto. Di-lo agora expressamente o nº 21 do artigo 88º do mesmo Código, na sua primeira parte: mas já antes não podia entender-se outra coisa – como era unanimemente aceite (veja-se toda a jurisprudência atrás referida).

 

17. Ora, sendo assim, uma primeira conclusão pode já firmar-se – e será a de que a legalidade e a legitimidade da liquidação das tributações autónomas, porque tendo o seu título nas disposições citadas, estará sempre assegurada – sejam ou não dedutíveis, à parte da colecta de IRC que lhes respeita, os benefícios fiscais em causa neste processo (ou outros quaisquer montantes). Donde resulta que sempre improcederá o pedido subsidiário formulado pelo Requerente – o que fica já dito, sem necessidade de voltar ao ponto.

É que o problema não está realmente no «procedimento», em si, da liquidação das tributações autónomas: está só em saber se, integrado esse procedimento no da liquidação global ou unitária do IRS, é, todavia, admissível (juridicamente admissível) que, nesse procedimento unitário, a dedução relativa aos benefícios fiscais (ou outras) possa fazer-se à parte da colecta respeitante àquelas liquidações.

 

18. Pois bem: como decorre do já exposto, a uma tal conclusão não pode seguramente chegar-se por simples interpretação «declarativa», seja das normas legais que consagram os benefícios fiscais ora em causa, seja da norma da alínea c) do nº 2 do artigo 90º do Código do IRC: é indiscutível que, falando as primeiras (ou usando formulação equivalente) e reportando-se a segunda à «colecta» do IRC, decerto que uma sua leitura puramente literal e semântica, só pode levar a concluir que é toda a colecta desse imposto que por elas (por essas normas) é abrangida. É o que expressamente já se reconhece no atrás referido acórdão do processo nº 174/2016 – e não é diverso, naturalmente, o pressuposto em que primeiro se funda toda a jurisprudência arbitral (acima elencada) que vai no sentido da dedutibilidade dos benefícios em apreço também à parte da colecta do IRC emergente das tributações autónomas.

O ponto, por conseguinte, está (ou estava) em saber – isto, consideradas as coisas antes, ou independentemente, de a Lei nº 7-A/2016 haver aditado o nº 21 ao artigo 88º do Código do IRC (pois que, antes desse preceito, nenhum outro afastava expressamente o resultado indicado) – se as normas citadas não devem (ou deviam) ser objecto de uma interpretação «restritiva», tal que nelas se visse apenas referida a parte da colecta «comum» (por assim dizer) do IRC, ou seja, a correspondente ao lucro tributável apurado.

 

19. Colocadas assim as coisas – e assim não podem (ou não podiam) deixar de ser colocadas, já que a interpretação da lei não pode satisfazer-se com a simples consideração do seu elemento «literal» – tudo está (ou estava) em saber se algum obstáculo se levanta (ou levantava) a semelhante interpretação restritiva, de todo a inviabilizando; ou se, ao contrário, alguma ou algumas circunstâncias, de natureza sistemática ou teleológica, antes a favorecem (ou favoreciam) e mesmo a impõem (ou impunham). Ora, entende este Tribunal que a resposta deve ir, efectivamente, no sentido da segunda das duas alternativas enunciadas, e, isso, atentos os tópicos que a seguir se desenvolvem, tão sucintamente quanto possível.

 

a) Em primeiro lugar, importará dizer que, do facto de as normas que consagram benefícios fiscais poderem ou deverem considerar-se normas «excepcionais», ou, pelo menos normas «especiais», nada se poderá, in limine, concluir contra a possibilidade da uma sua interpretação restritiva. Com efeito – e desconhecendo-se, desde logo, qualquer orientação doutrinária que alguma vez haja excluído, em geral, essa possibilidade quanto a normas excepcionais – tão pouco poderá encontrar-se argumento para, na matéria em apreço, ter por excluída tal modalidade de interpretação (ou então, e pelo menos, encontrar-se argumento em desfavor dela) no artigo 10º do EBF, segundo o qual as normas que estabeleçam esses benefícios «não são susceptíveis de aplicação analógica, mas admitem interpretação extensiva»: é que a directriz aí estabelecida situa-se verdadeiramente na sua primeira parte, na proibição da analogia, que não também na segunda, ou seja, numa qualquer indicação deôntica de favorecimento da interpretação extensiva nessa matéria. Ao cabo e ao resto, esse preceito nada mais faz do que (antecipadamente) reflectir ou traduzir, no domínio específico dos benefícios fiscais, o que a LGT veio genericamente dispor sobre a interpretação da lei fiscal (artigo 11º, nº 1 e nº 4), subordinando-a aos princípios gerais da interpretação legal, mas proibindo a analogia nas matérias «abrangidas na reserva de lei da Assembleia da República», ou seja, no domínio substantivo do que usa chamar-se os «elementos essenciais do imposto» (em que precisamente também aqueles benefícios se incluem).

Por outro lado: é certo que pode dizer-se que a restrição do alcance literal de uma norma instituidora de um beneficio fiscal acarreta ou traduz-se, substantivamente, numa extensão da obrigação impositiva; só que, tão-pouco isso poderá constituir obstáculo a tal restrição, face à circunstância de não se achar vedada a interpretação extensiva das normas de tributação – como hoje resulta expressamente do preceito da LGT acabado de citar e como era de há muito a orientação dominante (permita-se recordar a este último respeito, por todos, J.M.Cardoso da Costa, Curso de Direito Fiscal, 2ª ed., Coimbra, 1970, pp. 201 ss.).

 

b) Em segundo lugar – e chegamos, neste ponto, a um argumento que tem sido nuclear na jurisprudência (ut supra, nºs 13 e 14) que perfilha a tese de que os benefícios fiscais não podem deixar de ser dedutíveis ainda à parte da colecta de IRC relativa às tributações autónomas – também não se julga que possa efectivamente valer, contra a possibilidade de uma interpretação restritiva das normas criadoras de tais benefícios, a invocação do disposto no nº 1 do artigo 2º do EBF.

Aí se diz – repetindo e recordando o que já se transcreveu acima – que se consideram benefícios fiscais «as medidas de carácter excepcional instituídas para a tutela de interesses públicos extrafiscais relevantes que sejam superiores ao da própria tributação que impedem». Este, porém, não é mais do que um enunciado «definitório», «qualificativo» e «reassuntivo», em que se explicita o critério que preside (ou deve presidir) à criação de benefícios fiscais: dele não há-de extrair-se, pois, nenhuma indicação, quanto à interpretação das normas legais que criam estes últimos.

Concretizando: sem dúvida que do enunciado legal em apreço decorre que há-de entender-se que o legislador, onde instituiu um benefício fiscal, deu prevalência a um outro interesse público (v.g., de ordem económica) sobre o interesse tributário (o interesse da obtenção de receita através da cobrança dos impostos) – e que, por conseguinte, foi isso que justamente fez ao instituir os benefícios SIFIDE, RFAI e CFAI (cuja relevante importância não pode pôr-se em causa e não se discute); simplesmente, daí não decorre também (ou seja, tal não pode também servir de fundamento para) que, numa situação em que o resultado de uma interpretação puramente declarativa da norma criadora do benefício se confronte com outros elementos interpretativos (mormente de ordem sistemática e teleológica) que apontam para uma interpretação restritiva, se dê necessariamente prevalência àquela primeira interpretação. Tudo há-de depender do peso relativo de todas os elementos de interpretação em presença.

 

c) Ora o que sucede no caso – no entendimento deste Tribunal – é que, ponderados os diversos elementos interpretativos nele ocorrentes, e não havendo razões dogmáticas que impeçam uma interpretação restritiva de tais preceitos, se perfilam razões ou, pelo menos, uma razão, que decisivamente impõem (ou impunham) uma interpretação dessa índole (ou com esse resultado) das normas que estabelecem os benefícios fiscais em causa e da norma da alínea c) do nº 2 do artigo 90º do Código do IRC.

Nesse sentido, não se julga de todo impertinente invocar o facto de se estar aqui perante benefícios fiscais que, respeitando à realização de investimentos pelas empresas, têm a ver com o incentivo ao desenvolvimento da sua actividade e ao aumento dos seus resultados produtivos e económico-financeiros, ou seja, e consequentemente, do seu lucro – pelo que (dir-se-á) a sua incidência (de tais benefícios) visará directamente o desagravamento fiscal desse lucro e, logo, a colecta do IRC que ao mesmo imediatamente respeita.

Não se porá nesta consideração, no entanto, um peso decisivo. Por um lado, porque as tributações autónomas não deixam de constituir (ao menos, seguramente, em certa medida ou até certo ponto) uma tributação «sucedânea» da tributação do lucro; e, por outro lado, porque a ela se poderia opor que a orientação restritiva assim propugnada iria implicar uma redução do impacto do benefício e mesmo do universo dos beneficiários (já não poderiam sê-lo as empresas sem lucro), num contexto económico-financeiro em que porventura se desejaria que os benefícios tivessem o maior impacto e a maior abrangência possível.

Mas há outra consideração, e essa realmente decisiva – até porque, face a ela, e atenta a ligação dela à natureza «sistemática» das tributações autónomas, o contra-argumento acabado de evocar já não poderá assumir relevo determinante. Essa consideração é – naturalmente – a que tem a ver com a natureza e a finalidade do instituto das tributações autónomas.

Visam estas o objectivo de contrabater práticas, seja propiciadoras de evasão fiscal ilegítima, seja susceptíveis de desvirtuarem a lógica da tributação em IRC e mesmo do sistema em geral de tributação do rendimento – o que significa que vêm a ter uma natureza anti-abuso e de tributação de mínimos (para dizê-lo em termos gerais). Ora, não se vê como realmente isso seja compatível com a dedução de benefícios fiscais à correspondente colecta: haveria aí, certamente, algo de contraditório, porquanto tal dedução viria necessariamente a pôr em causa a lógica (a lógica «substantiva» e não uma qualquer simples lógica «formal») das mesmas tributações e a impedi-las de realizar o precípuo objectivo de cada uma.

O ponto é objecto de amplo desenvolvimento no acórdão tirado no processo nº 722/2015 – nele (e destacando) se escrevendo designadamente: «…as [tributações autónomas] configuram normas anti-abuso dirigidas a racionalizar comportamentos específicos dos contribuintes face ao dever de imposto […] […]. Consequentemente […] […] seria ilógico permitir a dedução de encargos quando tal dedução, na prática, destruiria o sentido anti-abusivo que as impregna». E mais adiante: «a colecta das tributações autónomas […] não pode […] permitir a dedução de benefícios fiscais, sob pena de descaracterização dos princípios que especificamente se pretendem prosseguir».

É este mesmo entendimento que aqui se subscreve – nele residindo a razão decisiva para excluir a dedutibilidade dos benefícios fiscais em apreço, globalmente abrangidos pela alínea c) do nº 2 do artigo 90º do Código do IRC, à parte da colecta deste imposto emergente das tributações autónomas.

Em resumo: comportando a colecta de IRC montantes de imposto provenientes de duas fontes diversas, a natureza e razão de ser de uma dessas fontes (a das tributações autónomas) impõe (ou impunha) que se interprete restritivamente o preceito acabado de citar, e os preceitos criadores dos benefícios fiscais que para ele remetem, no sentido de que os mesmos abrangem unicamente a parte da colecta de tal imposto que se reporta à tributação emergente da outra, e primeira, dessas fontes, a saber, o lucro produzido pelo sujeito passivo. 

 

20. Eis, no que fica exposto, o que o Tribunal entende ser verdadeiramente determinante, para concluir no sentido que se acaba de enunciar.

Sendo assim, não se mostra necessário – e seria supérfluo – entrar na análise de outros argumentos, mas realmente secundários, que, seja nas peças processuais produzidas pelas Partes, seja na jurisprudência atrás considerada, não deixaram ainda de ser invocados (como, de resto, se deu nota) no sentido de uma ou da outra das duas teses em presença, na questão sub judice. Prescinde-se por isso, e sem mais, de tal análise.

 

21. Consoante resulta do que precede e começou por advertir-se (ut supra, nº 17, in fine), deixou-se de remissa, no até aqui exposto, o alcance que para a decisão do caso em apreço terá vindo a assumir, entretanto, o aditamento que a Lei nº 7-A/2016 fez ao artigo 88º do Código do IRC, ao acrescentar-lhe o nº 21, com carácter interpretativo. Não deixará, porém, de abordar-se ainda esse outro lado das coisas.

 

a) Assim, e a tal respeito, terá de começar por referir-se a impossibilidade de acompanhar o entendimento – acolhido primeiro no acórdão arbitral proferido no processo nº 673/2015 – segundo o qual o preceito em apreço pura e simplesmente não afectou as normas relativas aos benefícios fiscais SIFIDE, RFAI e CFAI, por serem estas «normas especiais», que continuavam por isso, de acordo com a conhecida regra lex generalis non derrogat legi speciali, a prevalecer face à norma geral (agora a do nº 21 do artigo 88º do Código do IRC).

É que não se vê que outro objectivo possa ter sido o do legislador, ao esclarecer que ao montante liquidado das tributações autónomas não são efectuadas quaisquer deduções (como se lê agora na disposição citada), senão justamente o de impedir que esse montante seja atingido pelas deduções previstas no nº 2 do artigo 90º do Código – entre elas, a da alínea c), respeitante aos benefícios fiscais. Ora, esta alínea, ao referir-se genericamente à dedução dos benefícios, remete, necessariamente, para as normas (decerto «especiais»), e para todas, que consagram benefícios fiscais traduzidos em deduções à colecta – remete para elas e reassume-as, de modo que, definido e delimitado mais precisamente pelo legislador o seu âmbito e alcance, essa delimitação vai ao fim e ao cabo operar-se através ou no âmbito dessas outras normas. 

 

b) Impõe-se seguidamente dizer que tão-pouco pode aceitar-se a tese, defendida pelo Grupo requerente no presente processo, de que o alcance interpretativo atribuído pelo artigo 135º da Lei nº 7-A/2016 ao preceito ora em questão apenas pode referir-se à sua primeira parte – isto, sob pena de contradição.

Não se vê onde esta última possa estar. No novo nº 21 do artigo 88º do Código do IRS vieram dizer-se duas coisas diferentes: uma, a de que a liquidação das tributações autónomas se operava através do único procedimento liquidatório previsto no Código, que era o do artigo 89º (e seguintes); outra, a de que nesse procedimento não seria efectuada nenhuma dedução ao montante liquidado imputável a essas tributações. Onde está a impossibilidade de atribuir eficácia interpretativa – naturalmente diversa no seu alcance – a estas duas também diversas dimensões do preceito?

De resto, se necessidade de interpretação havia, ela não estava na primeira dessas dimensões (que era indisputada): conhecido como é o correspondente contexto, estaria, sim, na segunda. Mas compreende-se bem que, movido a intervir para clarificar este aspecto da questão, o legislador acha procedido a um esclarecimento global – abrangendo as duas vertentes dela.

 

c) Posto isto, o problema que, face ao novo nº 21 do artigo 88º do Código do IRC e ao seu carácter interpretativo se levanta, em casos (como o dos autos) de tributação relativa a anos anteriores à sua entrada em vigor, é o de saber se tal carácter ou natureza do preceito permite e mesmo impõe a sua aplicação – retroactiva, portanto – ainda nesses casos.

O posicionamento da questão – largamente debatida nas peças processuais produzidas por ambas as Partes – é conhecido: trata-se de saber se, no domínio do direito fiscal, recte, no domínio dos «elementos essenciais dos impostos», ainda pode valer, e até que ponto, a regra, consignada no artigo 13º do Código Civil, segundo a qual «a lei interpretativa integra-se na lei interpretada», ressalvado o que aí se consigna (grosso modo, as situações já consumadas, v.g, por força de caso julgado), o que significa que, fora dessa ressalva, terá eficácia retroactiva. E a pergunta decorre, hoje, da circunstância de a Constituição da República haver passado a consagrar, no seu artigo 103º, nº 3, a proibição de impostos de «natureza retroactiva», proibição que a LGT retomou no seu artigo 12º, nº 1.

 

d) Pois bem: na resposta a um tal problema não poderá deixar de atender-se primacialmente aos termos em que o próprio Tribunal Constitucional tem delimitado os termos da proibição da retroactividade em matéria de tributação.

Ora, a jurisprudência do Tribunal Constitucional está longe de fazer um entendimento estrito e radical dessa proibição, distinguindo essencialmente entre situações de retroactividade autêntica, que a Constituição vedará, e situações de mera retrospectividade, que já não estarão abrangidas pela proibição constitucional – a menos que ocorra aí uma violação intolerável do princípio da confiança (já que – e essa é outra vertente da mesma jurisprudência – sempre um tal princípio se haverá de impor, independentemente daquela proibição constitucional expressa). 

Simplesmente, se é assim em geral, o Tribunal, no seu Acórdão nº 172/2000 (invocado pelo Requerente, como se deixou dito a seu tempo), veio a assumir, ainda que de modo não unânime, uma posição extremamente restritiva, no tocante ao ponto específico da atribuição de eficácia retroactiva a normas fiscais «interpretativas» – considerando que, mesmo quando se trate de verdadeira interpretação (e não de uma norma «inovatória», disfarçada sob aquela veste), sempre aí ocorre um elemento de retroactividade inaceitável (não se diz exactamente assim, mas é o que está em causa), traduzido na circunstância de o órgão de aplicação do direito ficar impedido de optar por uma interpretação alternativa, o que afecta a segurança dos destinatários das normas (que a Constituição quer proteger, na matéria em causa, num grau ou sentido forte). Na lógica deste aresto, teremos, pois, que, no domínio de normas de tributação, a Constituição se opõe a que valha a directriz do artigo 13º, nº 1, do Código Civil, mesmo que de efectiva «lei interpretativa» se trate.

A verdade, porém, é que – tanto quanto se conhece – na jurisprudência do Tribunal Constitucional não se voltou à questão, não tendo assim vindo a ser reafirmada, ao menos até agora, a orientação acabada de referir.

Seja como for, e reexaminando o problema, não se crê que tal orientação se deva impor – o que um juiz não constitucional terá tanto maior «liberdade» para entender e assumir, quanto justamente ela (essa orientação) não se baseia numa jurisprudência continuada, consolidada e uniforme. 

É que, do facto de uma norma «verdadeiramente» interpretativa tolher ao aplicador do direito a possibilidade de optar por uma interpretação alternativa, não decorre necessariamente uma afectação da confiança dos destinatários daquela, tão grave quanto se poderá crer – se é que mesmo ocorre sempre uma qualquer afectação dessa  confiança: ora, só esta consideração (que não a retirada de liberdade decisória ao aplicador do direito, maxime ao juiz) poderia justificar a exclusão radical da eficácia «retroactiva» de uma tal norma.

Recorde-se, a esse propósito, o que a doutrina (a doutrina oportunamente citada pelo Requerente, e que tem a sua expressão por excelência na lição de Baptista Machado) exige para que se esteja perante uma autêntica lei ou norma interpretativa: é necessário, primeiro, que ela venha decidir uma questão de direito que seja controvertida ou incerta; e é necessário, depois, que ela consagre um dos entendimentos possíveis da norma interpretanda, isto é, um entendimento a que a jurisprudência podia ter chegado, pelos seus próprios meios.

Mas, se é sim, então que crédito firme de confiança pode ter o destinatário de uma certa interpretação de uma norma, se ela é controvertida? E que frustração grave da sua confiança ocorre, se o legislador põe termo à dúvida ou incerteza interpretativa acolhendo uma interpretação possível (ainda que outra) da norma – e isto, sobretudo, quando essa interpretação já tenha tido acolhimento jurisprudencial?

Eis por que não se acompanha a orientação do Acórdão nº 172/2000 do Tribunal Constitucional (entretanto reflectida também em alguma doutrina), no sentido de excluir, por princípio, no domínio dos elementos essenciais dos impostos, a eficácia retroactiva de normas autenticamente interpretativas.

 

e) Resta transpor o que acaba de considerar-se para o caso sub judice – transposição que, face ao atrás exposto e ao resultado a que aí se chegou, não se antolha particularmente árdua.

Com efeito, não pode questionar-se que a questão de saber se os benefícios fiscais (mormente os incentivos ao investimento em causa no presente processo) eram dedutíveis à parte da colecta de IRC emergente das tributações autónomas se perfilava como uma questão controvertida – com entendimentos diversos sobre a matéria entre contribuintes (ou alguns contribuintes) e a Administração tributária e mesmo já na jurisprudência arbitral (havendo de salientar-se, a este último propósito, que os termos quantitativos da discrepância jurisprudencial sempre haverão de ter-se por irrelevantes); por outro lado, é igualmente inquestionável que, ao pôr termo a essa controvérsia, com a norma interpretativa da segunda parte do nº 21 do artigo 88º do Código do IRC, o legislador consagrou uma das interpretações da alínea c) do nº 2 do artigo 90º do mesmo Código (e dos específicos preceitos legais que estabelecem os benefícios SIFIDE, RFAI e CFAI) não só possíveis, como já acolhida por parte da jurisprudência.

Assumindo a norma, pois, uma natureza verdadeiramente interpretativa – e não podendo dizer-se que ela veio afectar inesperada e intoleravelmente a confiança dos interessados – eis por que se entende que ela sempre será aplicável no caso sub judice – sem que desse modo se viole a proibição constitucional de tributação retroactiva, consignada no artigo 103º, nº 3, da Constituição.

    

III. Decisão

 

22. Pelos fundamentos expostos:

a) Julga-se improcedente o Requerimento arbitral do A…, SGPS, de impugnação da autoliquidação, a que procedeu, do IRC relativo ao exercício de 2014 e do indeferimento da reclamação graciosa que deduziu contra a mesma liquidação, não se declarando ilegal a mesma liquidação;

b) Julga-se improcedente, por via de consequência, o pedido do Requerente de liquidação de juros indemnizatórios, relativos ao pagamento da parte da colecta impugnada;

c) Julga-se improcedente o pedido subsidiário, formulado pelo Requerente, não se declarando ilegal a liquidação relativa às tributações autónomas incorporada no acto de liquidação antes referido, na alínea a);

d) Fixa-se, em função do valor do pedido, o valor do processo em € 511.240,12 (quinhentos e onze mil duzentos e quarenta euros e doze cêntimos), não havendo que estabelecer o montante das custas e respectiva responsabilidade, por força do disposto nos artigos 22º, nº 4, e 12º, nº 3, do RJAT.

 

Lisboa e Centro de Arbitragem Administrativa, 28 de Março de 2017.

 

Os Árbitros,

 

 

José Manuel Cardoso da Costa

(com declaração de voto anexa)

 

 

João Taborda da Gama

(vencido conforme declaração anexa)

 

 

João Menezes Leitão

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Declaração de voto

 

Integrando à época o Tribunal Constitucional e havendo, em tal circunstância, participado na discussão e votação do Acórdão nº 172/2000 desse Tribunal, citado no texto, cumpre-me esclarecer que, porém, o fiz vencido – desde logo por entender que à situação versada no mesmo aresto não era (ainda) aplicável, de acordo com os princípios que devem reger a aplicação da Constituição no tempo, a regra expressa da proibição de impostos retroactivos, constante do seu artigo 103º, nº 3.

Assim, dispensado que estava de entrar no tema, não me pronunciei então sobre a questão dos reflexos de tal proibição constitucional em sede da eficácia no tempo de «normas interpretativas» respeitantes a elementos essenciais dos impostos – tendo-me limitado a reconhecer que essa era uma questão com pertinência. Daí que o presente ensejo acabe por ser o primeiro (em qualquer sede, jurisdicional ou outra) em que tomo posição acerca dela – o que faço, como se vê, em sentido divergente do daquele acórdão. Ou seja: entendendo que da proibição expressa da retroactividade em matéria fiscal, que consta do texto constitucional a partir da Revisão de 1997, não deve retirar-se a consequência da exclusão, em absoluto e sem mais, de normas interpretativas nessa matéria, com a eficácia «retroactiva» que lhes estará em princípio associada, desde que tais normas consubstanciem uma verdadeira interpretação.

Poderei de todo o modo, e em tese, concedendo uma análise casuística, admitir que em algum caso deva concluir-se por tal exclusão, quando o princípio da confiança jurídica esteja posto intoleravelmente em causa. Não julgo, porém, que seja esse o caso dos autos. 

  

 

 

 

José Manuel M. Cardoso da Costa

 

 

 

 

Declaração de voto

 

Votei vencido o presente acórdão por discordar da sua fundamentação e da decisão, remetendo as razões da minha discordância, de entre os muitos que consagram a posição em que me revejo, para aqueles dois arestos que subscrevi: o acórdão tirado no Processo n.º 740/2015, de 16.05.2016, e o acórdão no Processo n.º 360/2016, de 16.02.2017.

Tendo em conta a relevância que tomou na presente decisão a aplicação de uma norma interpretativa retroativa, não posso deixar de acrescentar uma breve nota a que a questão obriga.

A aplicação do artigo 88.º, n.º 21 do Código do IRC ao presente caso consiste na aplicação de uma norma jurídica a factos que ocorreram antes da sua entrada em vigor, algo que é constitucionalmente inadmissível à luz do que é hoje disposto no artigo 103.º da Constituição da República Portuguesa que consagra expressamente uma proibição de retroatividade em matéria fiscal.

Se em geral é metodologicamente muito discutível a articulação entre normas interpretativas e a própria ideia de separação de poderes, bem como o seu fundamento metodológico, não vejo como, após a proibição constitucional de retroatividade fiscal, possa ter acolhimento a conduta do legislador fiscal de pretender dispor com força de lei sobre o sentido de uma fonte de direito desde a sua criação, fixando um desses sentidos e afastando outros (que aliás, no caso, continuam a merecer consagração jurisprudencial maioritária).

Admitir normas interpretativas retroativas em matéria fiscal não apenas viola a proibição constitucional expressa de retroatividade em matéria fiscal como distorce os termos de um princípio de justiça fiscal e de igualdade tributária no contexto da atual conformação da relação jurídica tributária, assente nos deveres de cooperação dos contribuintes. Com efeito, e para mais num contexto estrutural de forte pressão orçamental, legitimar o uso de normas fiscais interpretativas-retroativas não pode deixar de funcionar como um incentivo ao legislador orçamental para, e sabendo-se o papel  de direito e de facto da Administração e do Governo na feitura das leis fiscais, a coberto de elaboradas distinções doutrinárias de âmbito geral sobre o que sejam normas (apelidadas de) verdadeiramente interpretativas, afastar, com efeitos retroativos, o sentido interpretativo de normas fiscais que não maximize a cobrança de receita. Escolhendo um sentido que, como legislador, não exprimiu corretamente no momento certo, porque não soube, ou não quis.

Na maioria dos casos, não será difícil a este legislador de segunda-de-mão encontrar um sentido interpretativo possível a seu contento, desde logo aquele que tiver vindo a ser consagrado após a edição da norma pela concretização da Administração fiscal em casos concretos ou em orientações genéricas, e independentemente do que seja o sentido extraído pelos contribuintes, pela comunidade, ou até pelos tribunais. Fazendo, através deste expediente, com que seja esse sentido aquele que deve, ab initio, regular as situações jurídicas já ocorridas, distorce o legislador de modo inadmissível os termos da relação entre o Estado e o Cidadão, e entre os vários poderes constitucionalmente previstos e garantido.

Essa fixação retroativa de um sentido normativo, que é o mesmo que dizer esse afastamento retroativo de todos os outros sentidos, influindo até de várias formas sobre a decisão de casos concretos, viola frontalmente, nomeadamente, a proibição constitucional de retroatividade em matéria fiscal.

Abre-se assim o caminho à revisibilidade permanente das leis fiscais por via de leis interpretativas, tendência que, de resto, começa já a fazer o seu curso. Esta revisibilidade do plano normativo inicial a coberto de normas interpretativas tem, não se pode deixar de destacar, traços de insídia legislativa, insídia inadmissível num Estado de Direito Democrático, porque é uma atitude a que falta a frontalidade do legislador que opta por assumir com clareza perante a comunidade o caminho da retroatividade tributária, submetendo-se então aos cânones que a comunidade jurídica, num determinado tempo e local, tenha aperfeiçoado para lidar com essa complexa questão. Ao escolher regular o passado de forma enviesada, dizendo que não está a tocar no passado porque afinal sempre devia ter sido como só agora vem dizer, e porque fugindo a uma assunção frontal da retroatividade nos planos político, jurídico, dogmático e metodológico, o legislador tributário extravasa os limites dos seus poderes e nega a essência da sua função, conduta que só pode merecer a mais clara repugnância jurídica.

São estas as razões pelas quais não pude subscrever a presente decisão.

 

 

 

Lisboa, 28.03.2017

 

 

(João Taborda da Gama)