Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 306/2022-T
Data da decisão: 2022-11-09  IRC  
Valor do pedido: € 124.902,36
Tema: IRC - Dedutibilidade de gastos. IVA não dedutível. Princípios da justiça, da imparcialidade e da descoberta da verdade material.
Versão em PDF

 

 

                                                           Decisão Arbitral

 

 

            Os árbitros Cons. Jorge Lopes de Sousa (árbitro-presidente, designado pelo Conselho Deontológico do CAAD outros Árbitros), Dr. João Taborda da Gama e Prof. Doutor Jónatas Machado, designados pela Requerente e pela Requerida, respectivamente, para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 23-09-2022, acordam no seguinte:

 

        

         1. Relatório

 

            A..., LDA, titular do número de identificação fiscal..., com sede na Rua ... n.º..., ...-..., em ... (doravante designada como ”Requerente"), veio, nos termos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante “RJAT”), apresentar pedido de pronúncia arbitral, tendo em vista a anulação da liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) n.º 2021... e da liquidação de juros compensatórios n.º 2021..., ambas referentes ao período de tributação de 2017, e da liquidação adicional de IRC n.º 2022 ... e de juros compensatórios n.º 2022..., ambas referentes ao período de tributação de 2018.

            A Requerente pede ainda indemnização por prestação indevida de garantia.

            É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante também identificada por “AT” ou simplesmente “Administração Tributária”).

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 06-05-2022.

Os signatários comunicaram a aceitação do exercício das funções no prazo aplicável.

Em 05-09-2022, as Partes foram notificadas da designação dos árbitros, não tendo manifestado vontade de recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1 alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 23-09-2022.

A AT apresentou Resposta, em que defendeu a improcedência do pedido de pronúncia arbitral.

Por despacho de 27-10-2022, foi decidido dispensar a realização de reunião e alegações.

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado na alínea e) do n.º 1 do artigo 2.º, e do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do RJAT, e é competente.

As partes estão devidamente representadas gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

Não há nulidades.

 

2. Matéria de facto

 

2.1. Factos provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos com relevância para apreciação desta questão:

  1. A Requerente é uma sociedade por quotas de capitais privados, com fins lucrativos, que exerce a sua actividade económica na área da prestação de cuidados de saúde em unidade hospitalar;
  2. A coberto das OI2021... de 21-04-2021, 0I2021... de 21-04-2021, 0I2021... de 15-07-2021 e 0I2021... de 15-07-2021, foi efectuado à Requerente um procedimento de inspeção externo e de âmbito geral, aos períodos de 2017, 2018 e 2019 e de âmbito parcial, (IVA), ao período de 2020/12;
  3. Nessa inspecção foi elaborado o Projecto de Relatório da Inspecção Tributária que consta do documento n.º 3 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido, em que, além do mais, se referiam correcções em sede de IVA, por a Autoridade Tributária e Aduaneira entender que não podia ser deduzido o IVA constante de notas de crédito emitidas pela Requerente no âmbito de regularização que efectuou;
  4. No Projecto de Relatório da Inspecção Tributária, que consta do processo administrativo e do documento n.º 3, junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido, em que se refere, além do mais o seguinte:

III – 1 .4. REGULARIZAÇÕES A FAVOR DO SUJEITO PASSIVO – CAMPO 40

(...)

Quanto à situação da regularização do IVA a favor do sujeito passivo, relativo à emissão das notas de crédito e novas faturas, em dezembro de 2020, que o sujeito passivo fez refletir, indevidamente, nas DP's de IVA dos períodos de 2017/01 a 2019/08, o sistema de validação das declarações submetidas à AT não validou as declarações dos períodos de 2017/01 a 2018/11, constando estas declarações como “não liquidável (definitiva)”. porque o A... estava a regularizar IVA a seu favor, sem cumprir o disposto no nº 3 do artigo 78.º do Código do IVA.

Assim, face às correções propostas anteriormente para os anos de 2017 a 2019, faltam corrigir os valores declarados pelo sujeito passivo no período de dezembro de 2020, onde terão de ser considerados no campo 9 da declaração periódica de IVA, o valor total faturado em dezembro de 2020 relativo aos acordos convencionados, cujas faturas com IVA emitidas nos anos de 2017, 2018 e 2019 foram anuladas com recurso a notas de crédito também emitidas em dezembro de 2020, às entidades com as quais o A... prestou serviços no âmbito dos acordos convencionados.

(...)

As notas de crédito emitidas pelo sujeito passivo visaram, essencialmente, anular as prestações de serviços pela totalidade, passados anos/meses da emissão das faturas que estiveram na origem de tais “regularizações”, procedendo de seguida à emissão de novas faturas, em que o valor inicialmente faturado como IVA passou a ser faturado como base tributável.

Quanto ao IVA liquidado pelo sujeito passivo, nos termos das disposições previstas na alínea c) do n.º 1 do artigo 2.º do Código do IVA e no n.º 2 do artigo 27.º do mesmo diploma, o IVA que tenha sido liquidado indevidamente deverá ser entregue ao Estado.

Estabelece o nº 7 do artigo 29.º do Código do IVA, que “quando o valor tributável de uma operação ou o imposto correspondente sejam alterados por qualquer motivo, incluindo inexatidão, deve ser emitido documento retificativo de fatura".

A primeira parte do nº 2 do artigo 78.º do Código do IVA. diz-nos que “se, depois de efetuado o registo referido no artigo 45.º, for anulada a operação ou reduzido o seu valor tributável em consequência de invalidade, resolução, rescisão ou redução do contrato, pela devolução de mercadorias ou pela concessão de abatimentos ou descontos, o fornecedor do bem ou prestador do serviço pode efetuar a dedução do correspondente imposto (...)". (sublinhado nosso). Ou seja, regulam-se neste preceito os motivos que poderão dar origem às retificações de imposto, estabelecendo-se a obrigatoriedade de emissão de nova fatura, sempre que esses documentos hajam sido

emitidos com incorreções, inexatidões ou se verifiquem alteração dos elementos deles constantes.

Ou seja, o nº 2 do artigo 78.º do Código do IVA contempla os casos em que a base tributável é reduzida, depois de ter sido efetuado o registo das transmissões de bens/prestações de serviços realizadas pelo sujeito passivo, 0 fornecedor/prestador poderá retificar o imposto anteriormente liquidado a mais, até ao final do período de imposto seguinte àquele em que se verificaram as circunstâncias que determinaram a

retificação.

De acordo com o n.º 3 do artigo 78.º do Código do IVA, “nos casos de faturas inexatas que já tenham dado lugar ao registo referido no artigo 45. º, a retificação é obrigatória quando houver imposto liquidado a menos, podendo ser efetuada sem qualquer penalidade até ao final do período seguinte àquele a que respeita a fatura a retificar, e é facultativa quando houver imposto liquidado a mais mas apenas pode ser efetuada no prazo de dois anos" (sublinhado nosso).

Destes normativos legais, conclui-se que a retificação do IVA liquidado indevidamente é uma prerrogativa de sujeito passivo, pelo que a iniciativa compete ao sujeito passivo.

(...)

 

  1. A Requerente foi notificada do Projecto de Relatório da Inspecção Tributária, para exercer o direito de audição, o que fez nos termos que constam do documento n.º 4 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido, em que se refere, além do mais, o seguinte:

 

B. Da invalidade das correções de IRC

48. As correções propostas em sede de IRC também não podem ser mantidas, pois violam frontalmente as normas deste imposto, bem como os princípios que devem nortear a actuação da AT e dos SIT em particular.

49. Com efeito, e tal como acima referido, os SIT consideram que o IVA constante das notas de crédito emitidas não é dedutível.

50. Ora, mas se não é dedutível, tal significa que este IVA terá de ser considerado como um custo da atividade do Requerente.

51. Com efeito, estabelece a alínea f) do n.º 2 do artigo 23.º do CIRC que os gastos de natureza fiscal são considerados como custo dedutível para efeitos de IRC, sendo bem sabido – e inquestionável – que o custo suportado com o IVA não dedutível integra esta classificação.

52. Tal como referiu o STA no acórdão n.º 0372/16, de 15.11.2017: ”a AT apenas pode desconsiderar como custos fiscais os que não se inscrevem no âmbito da actividade do contribuinte e foram contraídos, não no interesse deste, mas para a prossecução de objectivos alheios. (....)

53. Nos termos do artigo 55.º da LGT, ”A administração tributária exerce as suas atribuições na prossecução do interesse público, de acordo com os princípios da legalidade, da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da celeridade, no respeito pelas garantias dos contribuintes e demais obrigados tributários"

54. Por seu lado, o artigo 5.º do RCPITA estabelece que “O procedimento de inspecção tributária obedece aos princípios da verdade material, da proporcionalidade, do contraditório e da cooperação".

55. Ora, não podem os SIT considerar que o IVA constante das notas de crédito não é dedutível e, ao mesmo tempo, efetuar correções em sede de IRC, desconsiderando este valor como custo para efeitos deste imposto, o que configura uma clara e evidente violação da alínea f) do n.º 2 do artigo 23.º do CIRC, bem como dos princípios da legalidade, proporcionalidade, justiça, imparcialidade e da verdade material, que devem nortear a atividade da AT, nos termos previstos no artigo 55.º da LGT e do artigo 5.º do RCPITA.

56. É que, das duas, uma: ou o IVA em causa é dedutível, e não podem os SIT efetuar correções em sede deste imposto; ou então o IVA não é dedutível, mas os SIT não podem desconsiderar que este valor constitui um custo para efeitos de IRC.

57. O que os SIT não podem, em caso algum, efetuar é uma dupla correção nos dois impostos, considerando, por um lado, o IVA como não dedutível, mas não o considerando como custo para efeitos de IRC.

 

  1. No Relatório da Inspecção Tributária final elaborado no referido procedimento inspectivo foi elaborado o Relatório da Inspecção Tributária (RIT) que consta do processo administrativo, cujo teor se dá como reproduzido, refere-se, além do mais, o seguinte, na apreciação do alegado pela ora Requerente no exercício do direito de audição:

Relativamente à parte B) da "audição prévia, referente às correções de IRC, não se entende o argumento apresentado pelo sujeito passivo na "audição prévia", quando o que está em causa é a emissão das novas faturas em 2020/12, em que o valor do IVA contido nas faturas iniciais (emitidas entre 2017 e 2019), passou a ser considerado "base tributável", e que não foi declarada/sujeita a IRC, nas declarações Modelo 22, quer do ano de 2020 (ano em que as novas, faturas e notas de crédito foram emitidas) nem nos anos a que o rendimento respeita, por aplicação do regime da periodização económica, previsto no artigo 18.° do Código do IRC (anos 2017 a 2019).

Esta correção nada tem a ver com o IVA. Isso será outra matéria a desenvolver à parte. O que está aqui em causa é um rendimento obtido pelo sujeito passivo, no exercício da sua atividade, faturado pelo mesmo, correspondente à diferença da base tributável, entre as novas faturas e as notas de créditos, emitidas em 2020/12.

Pelo exposto, mantem-se o vertido no PRIT, referente a esta matéria.

Apesar deste ponto da "audição prévia" ser referente às correções do IRC, o sujeito passivo, veio fundamentar com a desconsideração das notas de crédito para efeitos de IVA e por sua vez a desconsideração do "gasto" para efeitos do IRC.

Não está em causa a desconsideração de nenhum gasto. O que está em causa é consideração de um rendimento não declarado pelo sujeito passivo, quando tentou regularizar voluntariamente a situação em análise, mas só o fez para efeitos de IVA, abstendo-se de o fazer para efeitos de IRC.

Como o sujeito passivo invoca as correções efetuadas em IVA, como tendo repercussão no IRC, não podemos deixar de referir que as novas faturas emitidas pelo sujeito passivo em 2020/12, foram declaradas pelo mesmo no campo 9 das DP's de IVA de substituição, bem como, aceites pela AT mas a ser declaradas no campo 9 da DP de IVA de 2020/12. por sua vez as notas de crédito emitidas em 2020/12, também estão a ser consideradas pela AT, com a limitação imposta pelo artigo 78.° do Código do IVA.

Quando o sujeito passivo emitiu as faturas iniciais, liquidou indevidamente IVA, cuja obrigação de entrega ao Estado está prevista no Código do IVA. Efetivamente, nos termos das disposições previstas na alínea c) do n.° 1 do artigo 2.° do Código do IVA e no n.° 2 do artigo 27.° do mesmo diploma, o IVA que tenha sido liquidado indevidamente deverá ser entregue ao Estado.

Por outro lado, o sujeito passivo pode proceder à regularização da liquidação indevida de IVA, mas tem que cumprir o normativo legal, previsto no artigo 78.° do Código do IVA, não sendo aceite as correções referente ao IVA indevidamente liquidado há mais de 2 anos.

Ou seja, o argumento apresentado pelo sujeito passivo na "audição prévia", se por mera hipótese se colocasse, seria para os períodos de 2017/01 a 2018/11 e nunca à totalidade das correções do IRC, como invocado.

 

  1. Na sequência da inspecção, emitidas foram efectuadas, em sede de IRC, correcções à matéria tributável nos montantes de € 254.469,99 e € 241.649,27, relativamente a 2017 e 2018, respectivamente e foram emitidas a liquidação de IRC n.º 2021... e a liquidação de juros compensatórios n.º 2021..., ambas referentes ao período de tributação de 2017, e a liquidação adicional de IRC n.º 2022 ... e a liquidação de juros compensatórios n.º 2022..., ambas referentes ao período de tributação de 2018;
  2. As notas de crédito emitidas pela Requerente visaram anular as prestações de serviços inicialmente faturadas pela totalidade, procedendo aquela de seguida à emissão de novas facturas, em que o valor inicialmente faturado como IVA passou a ser faturado como base tributável (Relatório da Inspecção Tributária);
  3. A Requerente prestou garantias sob a forma de hipotecas voluntárias para suspender processos de execução fiscal instaurados para cobrança coerciva das quantias determinadas nas liquidações impugnadas (documento n.º 8 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
  4. Em 04-05-2022, a Requerente apresentou o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo.

 

2.2. Factos não provados e fundamentação da decisão da matéria de facto

 

Não há factos relevantes para decisão da causa que não se tenham provado.

Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos pela Requerente e o que constam do processo administrativo.

Não há controvérsia sobre a matéria de facto.

 

 

3. Matéria de direito

 

A Autoridade Tributária e Aduaneira efectuou uma inspecção à Requerente de que resultaram várias correcções em sede de IRC e IVA.

A Requerente aceita que liquidou IVA indevidamente em facturas por serviços prestados em 2017 e 2018 (e também em 2019, ano que não está aqui em causa), que as Partes estão de acordo quanto a deverem ter sido considerados isentos.

Como se refere no Relatório da Inspecção Tributária, em 2020, a Requerente emitiu novas faturas «em que o valor do IVA contido nas faturas iniciais (emitidas entre 2017 e 2019), passou a ser considerado "base tributável", e que não foi declarada/sujeita a IRC, nas declarações Modelo 22, quer do ano de 2020 (ano em que as novas, faturas e notas de crédito foram emitidas) nem nos anos a que o rendimento respeita, por aplicação do regime da periodização económica, previsto no artigo 18.° do Código do IRC (anos 2017 a 2019)».

Relativamente ao IVA, que entregou ao Estado na sequência da emissão das facturas iniciais com IVA, a Requerente procedeu a regularização nos termos do artigo 78.º do CIVA, que, no seu n.º 3, permite a rectificação de facturas inexactas «quando houver imposto liquidado a mais, mas apenas pode ser efectuada no prazo de dois anos».

Aplicando esta norma, a Autoridade Tributária e Aduaneira aceitou a rectificação com direito da Requerente à dedução do IVA referido nas facturas emitidas em 2019, mas não também quanto ao IVA respeitante a facturas relativas aos períodos de 2017/01 a 2018/11, por entender que não a regularização foi efectuada depois de expirado o referido prazo de 2 anos.

No presente processo, a Requerente defende o seguinte, em suma:

– o custo suportado com o IVA não dedutível integra a classificação de ”gasto de natureza fiscal” e que deve, indubitavelmente, ser considerado como custo dedutível para efeitos de IRC, à face do artigo 23.º, n.ºs 1 e 2, alínea f), do CIRC;

– apenas podem ser desconsiderados como custos fiscais os que não se inscrevem no âmbito da actividade do contribuinte e foram contraídos, não no interesse deste, mas para a prossecução de objectivos alheios;

– o IVA em causa foi incorrido na prestação pelo Requerente dos serviços que integram o seu objeto social, tendo o Requerente, em resultado de um erro de direito, entregue indevidamente IVA ao Estado que procurou depois regularizar a seu favor, tendo esta dedução sido impedida pela AT;

– o IVA não dedutível no caso concreto resultou diretamente da prestação dos serviços que são objeto social do Requerente pelo que é absolutamente inequívoca a ligação intrínseca à actividade do Requerente;

– não subsistem dúvidas quanto ao valor probatório das notas de crédito e das novas faturas por este emitidas, desde logo porque as mesmas foram utilizada pela AT para efetuar as correções em sede de IVA, nunca tendo a veracidade das mesmas sido posta em causa;

– ou a inspeção considerava o IVA em causa como dedutível, e não poderia então efetuar correções em sede deste imposto; ou então considerava o IVA como não dedutível, mas então não poderia desconsiderar que este valor constitui um custo para efeitos de IRC;

– ao considerar o IVA constante das notas de crédito como não dedutível, efetuando, ao mesmo tempo, correções em sede de IRC, desconsiderando este valor como custo para efeitos deste imposto, a AT violou de forma clara e evidente a alínea f) do n.º 2 do artigo 23.º do CIRC, bem como os princípios da legalidade, proporcionalidade, justiça, imparcialidade e da verdade material, que devem nortear a atividade da AT, nos termos previstos no artigo 55.º da LGT e do artigo 5.º do RCPITA;

– quando a AT atua de forma desconforme aos princípios previstos no artigo 55.º da LGT está também a agir de forma desconforme à CRP;

– não se mostra admissível que a AT, no âmbito de um procedimento de inspeção ou fora dele, trate os diferentes impostos a que está sujeito o contribuinte como se de realidades independentes e sem qualquer relação se tratassem, porque essa não é a vontade do legislador espelhada no sistema fiscal português e, portanto, assim não acontece;

– não é admissível a posição da AT ao concluir que a não dedutibilidade do IVA constante das faturas emitidas pelo Requerente não impacta no IRC e, bem assim, de fazer correções em sede deste último, já que (além de uma violação do disposto no artigo 23.º do CIRC) tal se configura como uma violação inaceitável dos princípios da legalidade, proporcionalidade, justiça, imparcialidade e da verdade material, que devem nortear a atividade da AT;

– não se admite de forma alguma é que haja lugar a uma dupla correção dos dois impostos, ao considerar por um lado, o IVA não dedutível (cujo reembolso é devido pelo Requerente) e desconsiderando esse valor como um custo para efeito de IRC;

– a admissibilidade de tal pretensão da AT equivaleria a aceitar que as correções efetuadas pela AT tivessem como único objetivo a angariação de receita fiscal ao invés da mais correta interpretação da lei, o que é manifestamente inconstitucional, para além de ilegal;

– as normas que resultam do artigo 55.º da LGT e do artigo 5.º do RCPITA, interpretadas no sentido de permitirem à Administração efetuar, em sede de uma mesma inspeção, uma correção em sede de um imposto e uma outra correção em sede de outro imposto, sem que a segunda correção tenha em conta o efeito causado pela primeira, é inconstitucional por violação do artigo 266.º da CRP.

 

No presente processo, a Autoridade Tributária e Aduaneira mantém a posição assumida no Relatório da Inspecção Tributária, dizendo, em suma, o seguinte:

 

– a Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, que aprovou o Orçamento do Estado para 2016, ao alterar o artigo 12.º do CIVA, fez com que os sujeitos passivos deixassem de poder renunciar à isenção de IVA relativamente às prestações de serviços médicos e sanitários e operações com elas estreitamente conexas, que decorriam de acordos com o Estado, no âmbito do sistema de saúde, nos termos da respetiva lei de bases;

– a Requerente ao continuar a liquidar IVA nestas operações, nos anos de 2017 a 2020, fez com que parte da regularização do imposto a seu favor se tornasse impraticável face à limitação do prazo de dois anos prevista no n.º 3 do artigo 78.º do CIVA;

– foi aceite a dedução do IVA relativo aos períodos de dezembro de 2018 e todo o ano de 2019 e excluída a dedução do IVA respeitante a todo o ano de 2017 e a janeiro a novembro de 2018, por já ter sido ultrapassado o prazo de dois anos previsto no n.º 3 do artigo 78.º do CIVA;

– este IVA não foi objeto de correção por parte dos SIT pois não foi considerado na determinação do lucro tributável destes dois períodos de tributação, 2017 e 2018, mas perante a impossibilidade de o poder deduzir a seu favor nas declarações periódicas de IVA a Requerente pretende que o mesmo seja aceite como encargo dedutível para efeitos fiscais;

– o IVA aqui em causa não poderá ser considerado como encargo dedutível para efeitos fiscais pois não foi incorrido ou suportado para obter ou garantir rendimentos sujeitos a IRC;

– e, por outro lado, a sua dedutibilidade para efeitos da determinação do lucro tributável parece afastada pela alínea f) do n.º 1 do artigo 23.º-A do Código do IRC;

– o IVA aqui em causa corresponde ao imposto que a Requerente liquidou aos seus clientes e cuja regularização a seu favor poderia ser efetuada desde que observadas as condições impostas pelo Código do IVA;

– o facto de a regularização do IVA a seu favor não se poder efetuar por ter sido ultrapassado o prazo de dois anos, previsto no n.º 3 do artigo 78.º do Código do IVA, não conduz à sua automática dedução para efeitos fiscais;

– o IVA aqui em causa foi liquidado aos seus clientes, e recebido destes, e não constitui encargo que o sujeito passivo esteja obrigado a suportar;

– por isso a sua dedução para efeitos fiscais parece afastada pelo artigo 23.º do CIRC por não se mostrar incorrido ou suportado para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC, mas também pela alínea f) do n.º 1 do artigo 23.º-A, por constituir um imposto que incide sobre terceiros que a Requerente não está legalmente obrigada a suportar.

 

Assim, a questão essencial que é objecto de controvérsia no presente processo é a de saber se o montante de IVA que a Requerente não pôde deduzir referente às notas de crédito emitidas para anulação de facturas emitidas relativamente aos períodos de 2017/01 a 2018/11 , deve ser considerado como gasto em sede de IRC desses respectivos períodos.

Em caso de resposta afirmativa a esta questão, coloca-se a de saber se a Autoridade Tributária e Aduaneira deveria ter considerado esses hipotéticos gastos nas correcções que efectuou com base no Relatório da Inspecção Tributária, relativamente à determinação da matéria tributável de IRC, como pretende a Requerente.

Antes de mais, há que esclarecer que a fundamentação a atender para aferir da legalidade ou ilegalidade das liquidações é a que consta do Relatório da Inspecção Tributária, pois o processo arbitral tributário, como meio alternativo ao processo de impugnação judicial (n.º 2 do artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril), é, como este, um meio processual de mera legalidade, em que se visa eliminar os efeitos produzidos por actos ilegais, anulando-os ou declarando a sua nulidade ou inexistência [artigos 2.º do RJAT e 99.º e 124.º do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a), daquele].

Por isso, os actos têm de ser apreciados tal como foram praticados, não podendo o tribunal, perante a constatação da invocação de um fundamento ilegal como suporte da decisão administrativa, apreciar se a sua actuação poderia basear-se noutros fundamentos. ( [1] )

Assim, a fundamentação sucessiva ou a posteriori não é relevante para aferir a sua suficiência, quando não acompanhada de revogação e prática de um novo acto. ( [2] )           

Na verdade, admitir, na pendência do processo jurisdicional, uma alteração a posteriori da fundamentação em que assentam os actos impugnados, afectaria o direito da Requerente à tutela judicial efectiva, constitucionalmente reconhecido nos artigos 20.º, n.º 1, e 268,º, n.º 4, da CRP, pois prejudicaria a possibilidade de utilizar todos os meios de defesa administrativos e jurisdicionais previstos na lei.

Pelo exposto, não tendo no Relatório da Inspecção Tributária sido invocado o artigo 23.º-A, n.º 1, alínea f) ,do CIRC como fundamento para a posição nele adoptada de não aceitação da posição manifestada pela Requerente no exercício do direito de audição no procedimento inspectivo, não pode esse hipotético fundamento ser considerado por este Tribunal Arbitral.

 

 

3.1. Questão da relevância do IVA não dedutível como gastos em sede de IRC

 

O artigo 23.º do CIRC estabelece o seguinte no que aqui interessa:

 

Artigo 23.º

 

Gastos e perdas

 

1 - Para a determinação do lucro tributável, são dedutíveis todos os gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC.

 

2 - Consideram-se abrangidos pelo número anterior, nomeadamente, os seguintes gastos e perdas:

(...)

f) De natureza fiscal e parafiscal;

 

(...)

 

A Autoridade Tributária e Aduaneira defende que «o IVA aqui em causa não poderá ser considerado como encargo dedutível para efeitos fiscais pois não foi incorrido ou suportado para obter ou garantir rendimentos sujeitos a IRC» (artigo 24.º da Resposta). 

Na redacção deste n.º 1 do artigo 23.º anterior à Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, estabelecia-se que «consideram-se gastos os que comprovadamente sejam indispensáveis para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora».

À face desta anterior redacção do n.º 1 do artigo 23.º do CIRC, foi-se estabilizando o entendimento doutrinal e jurisprudencial no sentido de para ser permitida a dedutibilidade de gastos e para se demonstrar sua indispensabilidade para obtenção de rendimentos sujeitos a imposto não era necessária uma relação de causalidade entre os gastos e a obtenção de rendimentos, bastando que aqueles fossem suportados no interesse da empresa, no âmbito das actividades decorrentes ao seu escopo societário (business purp0se). Só quando os custos resultarem de decisões que não preencham tais requisitos, nomeadamente quando não apresentem qualquer afinidade com a actividade da sociedade, é que deverão ser desconsiderados, como se refere no acórdão do Pleno do Supremo Tribunal Administrativo de 27-06-2018, processo n.º 1402/17:

Quanto à indispensabilidade dos custos, como vem afirmando a doutrina de referência (António Moura Portugal, A Dedutibilidade dos Custos na Jurisprudência Fiscal Portuguesa e Tomás de Castro Tavares, Da Relação de Dependência Parcial entre a Contabilidade e o Direito Fiscal na Determinação do Rendimento Tributável das Pessoas Colectivas, Ciência e Técnica Fiscal n.º 396, págs. 7 a 180) e também a mais significativa jurisprudência, o conceito a que se reporta o artº 23º do CIRC tem sido ligado aos custos incorridos no interesse da empresa ou suportado no âmbito das actividades decorrentes ao seu escopo societário.

Só quando os custos resultarem de decisões que não preencham tais requisitos, nomeadamente quando não apresentem qualquer afinidade com a actividade da sociedade, é que deverão ser desconsiderados.

Como ficou exarado no Acórdão deste Supremo Tribunal Administrativo de 28.06.2017, proferido no recurso 627/16, «no entendimento que a doutrina e a jurisprudência têm vindo a adoptar para efeito de averiguar da indispensabilidade de um custo (cfr. art. 23.º do CIRC na redacção em vigor em 2001), a AT não pode sindicar a bondade e oportunidade das decisões económicas da gestão da empresa, sob pena de se intrometer na liberdade e autonomia de gestão da sociedade.

Assim, um custo ou perda será aceite fiscalmente caso, num juízo reportado ao momento em que foi efectuado, seja adequado à estrutura produtiva da empresa e à obtenção de lucros, ainda que se venha a revelar uma operação económica infrutífera ou economicamente ruinosa, e a AT apenas pode desconsiderar os que não se inscrevem no âmbito da actividade do contribuinte e foram contraídos, não no interesse deste, mas para a prossecução de objectivos alheios (quando for de concluir, à face das regras da experiência comum que não tinha potencialidade para gerar proveitos)» - neste sentido vide também os Acórdãos Secção de Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo de 30 de Novembro de 2011, recurso n.º 107/11, e de 24.09.2014, recurso 779/12. (negrito nosso)

 

Assim, o conceito de indispensabilidade de custos que constava do artigo 23.º, n.º 1, do CIRC, não exigia uma ligação causal entre gastos e proveitos, bastando que as despesas tenham uma relação com o objecto da empresa, sejam incorridas no âmbito da sua actividade ou evidenciem um business purpose.

Para existir esse business purpose, não é necessário que os gastos tenham relação directa com a actividade operacional do sujeito passivo, sendo também relevantes os gastos que tenham uma relação meramente indirecta, desde que tenham sido motivados pelo objectivo último de obtenção de lucros. ( [3] )

Embora esta jurisprudência tenha sido produzida à face da redacção anterior do artigo 23.º do CIRC, ela continua a ser aplicável à face da nova redacção, introduzida pela Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, designadamente quanto à não exigibilidade de uma relação de causalidade entre gastos e rendimentos.

Na verdade, no Relatório Final da Comissão para a Reforma do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas – 2013, não se alude a qualquer intenção de alterar o regime anteriormente previsto no artigo 23.º do CIRC quanto à desnecessidade de uma relação de causalidade entre gastos e rendimentos, antes se refere expressamente esclarecer essa desnecessidade:

 

Ora, na doutrina, é hoje bastante consensual que a indispensabilidade dos gastos deve, num plano geral, ser entendida como considerando dedutíveis aqueles que sejam incorridos no interesse da empresa, na prossecução das respetivas atividades. Tem-se afastado, pois, a interpretação do conceito de indispensabilidade como significando uma necessária ligação causal entre gastos e rendimentos.

A jurisprudência tem firmado, consistentemente, uma linha interpretativa na qual se sustenta que o critério da indispensabilidade foi criado para impedir a consideração fiscal de gastos que não se inscrevem no âmbito da atividade das empresas sujeitas ao IRC. Isto é, encargos que foram incorridos no âmbito da prossecução de interesses alheios, mormente dos sócios.

Neste contexto, entendeu a Comissão propor uma evolução normativa quanto ao princípio geral da aceitação dos gastos. Tal proposta acolhe a linha que a doutrina e a jurisprudência vêm sustentando, e pode revelar-se um meio para incrementar o grau de certeza na aplicação concreta do princípio basilar relativo à dedutibilidade. Adicionalmente, pode ainda constituir uma via para o decréscimo da significativa litigância decorrente da aplicação do preceito em causa.

Assim, o artigo 23.º do Código do IRC passa a consagrar como princípio geral de que, para a determinação do lucro tributável, são dedutíveis os gastos relacionados com a atividade do sujeito passivo por este incorridos ou suportados. (negrito nosso)

 

            É certo, no entanto, que a formulação proposta pela Comissão para o n.º 1 do artigo 23.º e a que veio a ser adoptada são diferentes.

            A Comissão propôs a seguinte redacção:

«Para a determinação do lucro tributável, são dedutíveis os gastos relacionados com a atividade do sujeito passivo por este incorridos ou suportados».

 

A redacção que veio a ser adoptada pela Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, é:

«Para a determinação do lucro tributável, são dedutíveis todos os gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC».

 

No entanto, se é certo que a nova redacção do artigo 23.º inclui uma referência à relação entre os gastos e os rendimentos sujeitos a IRC que não constava da proposta de Comissão, também o é que a nova fórmula não é, neste ponto, substancialmente diferente da utilizada na redacção anterior do artigo 23.º, n.º 1 do CIRC, pois nela já de incluía uma referência a gastos «para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora», que era generalizadamente interpretada, inclusivamente pelo Supremo Tribunal Administrativo, como não exigindo uma relação de causalidade entre gastos e rendimentos.

No caso em apreço, o IVA que a Autoridade Tributária e Aduaneira não aceitou que fosse deduzido, por entender que não foi observado o prazo para regularização de facturas inexatas previsto no arguido 78.º, n.º 3, do CIVA, está manifestamente conexionado a actividade da Requerente de prestação de serviços de saúde, pois foi cobrado aos seus clientes nas facturas inicialmente emitidas relativamente a esses serviços e foi entregue ao Estado com as respectivas declarações periódicas.

Por isso, a ser o encargo do pagamento desse IVA sendo suportado pela Requerente, terá se entender que a sua dedutibilidade é assegurada pelo artigo 23.º, n.º s 1 e 2, alínea f), do CIRC, pois tratar-se-á de um gasto relacionado com a sua actividade.

Por outro lado, no contexto das correcções efectuadas no procedimento inspectivo, é claro que se está perante um gasto suportado pela Requerente e não um rendimento como aventa a Autoridade Tributária e Aduaneira.

Na verdade, a Requerente cobrou o IVA aos seus clientes, com base nas facturas iniciais, que entregou ao Estado, Mas, em face da posição assumida pela Autoridade Tributária e Aduaneira de considerar esses serviços isentos, diligenciou no sentido de regularizar a situação, emitindo notas de crédito destinadas a anular as facturas iniciais e novas facturas sem liquidação de IVA, mas mantendo o valor total das facturas iniciais, agora como valor das prestações de serviços, o que se reconduz a uma situação em que os seus clientes não pagaram IVA, mas sim o valor dos serviços. ( [4] ) Trata-se de um procedimento que se se compagina com o preceituado no n.º 7 do artigo 29.º do CIVA , que estabelece que «quando o valor tributável de uma operação ou o imposto correspondente sejam alterados por qualquer motivo, incluindo inexatidão, deve ser emitido documento retificativo de fatura»

Foi este valor total das facturas, e não o valor inicial sem IVA, que foi considerado rendimento da Requerente para efeitos de determinação da matéria tributável de IRC e, por isso, trata-se de rendimentos que foram integralmente sujeitos a IRC.

Assim, efectuada a rectificação, a situação criada com a emissão das notas de crédito e novas facturas em substituição das iniciais, que é a que subsiste na ordem jurídica, é a de que os clientes da Requerente não pagaram o IVA que esta entregou ao Estado, mas sim o preço dos serviços sem IVA, sendo o pagamento do imposto um encargo que a Requerente acabou por suportar, quanto ao IVA que a Autoridade Tributária e Aduaneira não aceitou que fosse deduzido, no âmbito de regularização.

Aliás, esta realidade de ter sido a Requerente quem acabou por suportar o encargo do IVA referido, relativo às facturas relativas aos períodos de 2017/01 a 2018/11, nem sequer é verdadeiramente questionada pela Autoridade Tributária e Aduaneira, como se infere do facto de ter aceitado a regularização e a dedução do IVA quanto às facturas relativas aos períodos de 2018/12 a 2019/08, perante situações absolutamente idênticas. Esta aceitação da dedução relativa às novas facturas emitidas relativamente aos períodos de 2018/12 a 2019/08 implica o reconhecimento de que dessas operações resultou ser a Requerente e não os seus clientes quem suportou efectivamente o encargo do pagamento do IVA.

Na verdade, foi pelo facto de terem decorrido mais de dois anos entre as datas das facturas relativas aos períodos de 2017/01 a 2018/11 e a data em que foi efectuada a regularização e não por hipoteticamente a Requerente não ter suportado o encargo do IVA, que a Autoridade Tributária e Aduaneira não aceitou a possibilidade de dedução, com fundamento no n.º 3 do artigo 78.º do CIVA.

Quando a Requerente emitiu as facturas iniciais, com o objectivo de obtenção de lucros, liquidou IVA, pelo que as consequências decorrentes dessa liquidação, inclusivamente a Requerente ter de suportar o IVA indevidamente liquidado por ser inviável a regularização, têm uma relação indirecta com aquele objectivo último de obtenção de lucros, que basta para assegurar a dedutibilidade, à face da referida jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo.

Assim, está-se perante um encargo de natureza fiscal suportado no âmbito da actividade empresarial da Requerente pelo que a dedutibilidade em sede de determinação da matéria tributável de IRC é assegurada pelo artigo 23.º, n.ºs 1 e 2, alínea f), do CIRC.

 

3.2. Questão de saber se a Autoridade Tributária e Aduaneira tinha de efectuar a correcção o âmbito do processo inspectivo em que concluiu pela inexistência de direito à dedução

 

A Autoridade Tributária e Aduaneira não questiona explicitamente a pretensão da Requerente, manifestada no exercício do direito de audição sobre o Projecto de Relatório da Inspecção Tributária de que, «se não é dedutível, tal significa que este IVA terá de ser considerado como um custo da atividade do Requerente» e que «não podem os SIT considerar que o IVA constante das notas de crédito não é dedutível e, ao mesmo tempo, efetuar correções em sede de IRC, desconsiderando este valor como custo para efeitos deste imposto» (artigos 50.º e 55.º do exercício do direito de audição).

Porém, a Autoridade Tributária e Aduaneira, embora tenha dito sobre essa pretensão que «o argumento apresentado pelo sujeito passivo na "audição prévia", se por mera hipótese se colocasse, seria para os períodos de 2017/01 a 2018/11 e nunca à totalidade das correções do IRC, como invocado», acabou por não efectuar as correcções pretendidas pela Requerente relativamente a esses períodos dos anos de 2017 e 2018.

Por isso, assente, pelo que se disse no ponto anterior, que decorre daquele entendimento sobre a indedutibilidade do IVA que a quantia não dedutível deva ser considerada como gasto para efeitos de IRC, coloca-se a questão de saber se as correspondentes correcções favoráveis a Requerente deveriam ter sido efetuadas no âmbito do procedimento inspectivo.

A Requerente defende que essas correcções devia ser feitas no âmbito do procedimento inspectivo, invocando os «princípios da legalidade, proporcionalidade, justiça, imparcialidade e da verdade material, que devem nortear a atividade da AT, nos termos previstos no artigo 55.º da LGT e do artigo 5.º do RCPIT» (artigo 108.º do pedido de pronúncia arbitral).

Afigura-se ser claro que os princípios da legalidade da imparcialidade, de justiça e da prossecução da verdade material, que são impostos à actuação da Autoridade Tributária e Aduaneira pelos artigos 266.º, n.º 2, da CRP e 55.º e 58.º da LGT e 6.º do RCPITA, implicam que deva proceder a todas as correcções de erros que se detectem no procedimento de inspecção, quer quanto a erros favoráveis à Fazenda Pública quer quanto a erros favoráveis ao contribuinte.

Neste sentido, pode ver-se o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 04-05-2022, processo n.º 596/09.1BEPRT 0411/18, em que se refere:

«(...) o art. 58.º da LGT e o art. 6.º do RCPIT, que definem os princípios do inquisitório e da verdade material, impõem à AT a realização oficiosa de todas as diligências necessárias à descoberta da verdade material, a nível do apuramento da situação tributária do contribuinte, o que permite concluir que é dever da AT, no âmbito do apuramento da matéria tributável, não só retirar relevância fiscal aos elementos de facto resultantes de actos dos contribuintes que os favoreçam indevidamente, mas também atribuir relevância tributária a situações de facto que os favoreçam, independentemente de estes terem praticado os actos que deveriam evidenciá-las. Isto é, o mesmo dever de busca da verdade material que permite à AT retirar relevância contabilística a erros praticados pelo contribuinte na elaboração da contabilidade que o favoreçam, também lhe impõe que atribua relevância a outros erros contabilísticos que o prejudiquem. Trata-se, afinal, de um corolário do princípio da legalidade, no seu entendimento mais amplo, do qual decorre que, no cumprimento da legalidade a que está adstrita, a AT deve procurar conformar a sua actuação com a lei em sentido material, de modo a lograr na aplicação da lei aos casos concretos a repartição dos encargos tributários legalmente determinada; exige-se-lhe, pois, que procure e releve, tanto quanto lhe for possível, todos os factos que permitam a mais completa e fidedigna percepção da situação tributária do contribuinte».

 

Assim, na linha desta jurisprudência e do que se expôs no ponto anterior, é de entender que a Autoridade Tributária e Aduaneira, depois de concluir que a Requerente não tinha direito a dedução do IVA relativo às facturas referentes aos períodos de 2017/01 a 2018/11, tinha o dever de considerar o montante desse IVA que considerou não dedutível como gasto para efeito de determinação da matéria tributável de IRC e liquidar em conformidade.

 

 

3.3. Conclusão

 

Pelo exposto, as liquidações impugnadas de IRC impugnadas enfermam de vícios de erro sobre os pressupostos de direito, por errada interpretação do artigo 23.º, n.ºs e 2 alínea f), do CIRC, e vício procedimental, por não incluir nas correcções efectuadas as referidas correcções favoráveis à Requerente, com violação dos artigos 266.º, n 2, da CRP, 55.º e 58.º da LGT e 5.º do RCPITA.

Estes vícios justificam a anulação das liquidações de IRC impugnadas, nas partes em que têm como pressupostos a não consideração como gastos do IVA suportado pela Requerente relativo a facturas referentes aos períodos de 2017/01 a 2018/11 que foi considerado não dedutível, de harmonia com o disposto no artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo, subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.

As liquidações de juros compensatórios têm como pressupostos as respectivas liquidação de IRC (artigo 35.º, n.º 8, da LGT), pelo que enfermam dos mesmos vícios e, por isso, justifica-se também a sua anulação nas partes respectivas.

 

4. Indemnização por garantia indevida

 

A Requerente prestou garantias através de hipotecas voluntárias para suspender processos de execução fiscal instaurados para cobrança coerciva das quantias determinadas nas liquidações impugnadas e pede indemnização.

O artigo 171.º do CPPT, estabelece que «a indemnização em caso de garantia bancária ou equivalente indevidamente prestada será requerida no processo em que seja controvertida a legalidade da dívida exequenda» e que «a indemnização deve ser solicitada na reclamação, impugnação ou recurso ou em caso de o seu fundamento ser superveniente no prazo de 30 dias após a sua ocorrência».

Assim, é inequívoco que o processo de impugnação judicial abrange a possibilidade de condenação no pagamento de garantia indevida e até é, em princípio, o meio processual adequado para formular tal pedido, o que se justifica por evidentes razões de economia processual, pois o direito a indemnização por garantia indevida depende do que se decidir sobre a legalidade ou ilegalidade do acto de liquidação.

O pedido de constituição do tribunal arbitral tem como corolário passar a ser no processo arbitral que vai ser discutida a «legalidade da dívida exequenda», pelo que, como resulta do teor expresso daquele n.º 1 do referido artigo 171.º do CPPT, é também o processo arbitral o adequado para apreciar o pedido de indemnização por garantia indevida.

O regime do direito a indemnização por garantia indevida consta do artigo 53.º da LGT, que estabelece o seguinte:

 

Artigo 53.º

Garantia em caso de prestação indevida

   1. O devedor que, para suspender a execução, ofereça garantia bancária ou equivalente será indemnizado total ou parcialmente pelos prejuízos resultantes da sua prestação, caso a tenha mantido por período superior a três anos em proporção do vencimento em recurso administrativo, impugnação ou oposição à execução que tenham como objecto a dívida garantida.

   2. O prazo referido no número anterior não se aplica quando se verifique, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços na liquidação do tributo.

3. A indemnização referida no número 1 tem como limite máximo o montante resultante da aplicação ao valor garantido da taxa de juros indemnizatórios prevista na presente lei e pode ser requerida no próprio processo de reclamação ou impugnação judicial, ou autonomamente.

4. A indemnização por prestação de garantia indevida será paga por abate à receita do tributo do ano em que o pagamento se efectuou.

 

Como resulta do teor expresso do n.º 1 deste artigo 53.º, apenas se prevê indemnização, com este regime simplificado a que alude o artigo 171.º do CPPT, nos casos de prestação de garantia bancária ou equivalente e não nos de prestação de garantia da dívida por outros meios, designadamente hipotecas. ( [5] )

Assim, por falta de suporte legal, improcede o pedido de indemnização por garantia indevida, sem prejuízo de o eventual direito a indemnização poder ser exercido em processo autónomo. ( [6] )

 

 

 

 5. Decisão

 

Nestes termos acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

  1.  Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral quanto aos pedidos de anulação de liquidações;
  2.  Anular parcialmente a liquidação de IRC n.º 2021 ... e a liquidação de juros compensatórios n.º 2021 ... ambas referentes ao período de tributação de 2017, nas partes em que têm como pressuposto a não consideração como gasto do IVA suportado pela Requerente em facturas emitidas relativamente aos períodos de 2017/01 a 2017/12;
  3.  Anular parcialmente a liquidação adicional de IRC n.º 2022 ... e a liquidação de juros compensatórios n.º 2022 ..., ambas referentes ao período de tributação de 2018, nas partes em que têm como pressuposto a não consideração como gasto do IVA suportado pela Requerente em facturas emitidas relativamente aos períodos de 2018/01 a 2018/11;
  4.  Julgar improcedente o pedido de indemnização por garantia indevida.

 

 

 

6. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 124.902,36, valor indicado pela Requerente, sem oposição da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

 

 

Lisboa, 09-11-2022

Os Árbitros

 

 

 

(Jorge Lopes de Sousa)

(relator)

 


 

 

 

(João Taborda Gama)

 

 

 

 

(Jónatas Machado)



[1] Essencialmente neste sentido, podem ver–se os seguintes acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, a propósito de situação paralela que se coloca nos processos de recurso contencioso:

–   de 10–11–98, do Pleno, proferido no recurso n.º 032702, publicado em Apêndice ao Diário da República de 12–4–2001, página 1207:

–   de 19-06-2002, processo n.º 047787, publicado em Apêndice ao Diário da República de 10–02–2004, página 4289.

–   de 09-10-2002, processo n.º 0600/02.

–   de 12-03-2003, processo n.º 01661/02;

– de 22–03–2018, processo nº 0208/17.

 

               Em sentido idêntico, podem ver–se:

 –  MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, volume I, 10.ª edição, página 479 em que refere que é "irrelevante que a Administração venha, já na pendência do recurso contencioso, invocar como motivos determinantes outros motivos, não exarados no acto", e volume II, 9.ª edição, página 1329, em que escreve que "não pode (...) a autoridade recorrida, na resposta ao recurso, justificar a prática do acto recorrido por razões diferentes daquelas que constam da sua motivação expressa".           

 –  MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, Direito Administrativo, Volume I, página 472, onde escreve que "as razões objectivamente existentes mas que não forem expressamente aduzidas, como fundamentos do acto, não podem ser tomadas em conta na aferição da sua legalidade".

 

( [2] ) Neste sentido, podem ver-se os seguintes acórdãos da Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo: de 11-2-93, do Pleno, processo n.º 026389, publicado em Apêndice ao Diário da República de 16-10-95, página 103; de 4-11-93, processo n.º 031798, publicado em Apêndice ao Diário da República de 15-10-96, página 6007; e de 03-02-94, processo n.º 032325, publicado em Apêndice ao Diário da República de 20-12-96, página 791.         

No mesmo sentido, podem ver-se os acórdãos da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 24-11-1999, processo n.º 023720; e 19-12-2007, recurso n.º 0874/07.

[3]            Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 30-11-2011, processo n.º 0107/11, e de 21-05-2014, processo n.º 01636/13, citando TOMÁS TAVARES, Da relação de dependência parcial entre a contabilidade e o direito fiscal na determinação do rendimento tributável das pessoas colectivas: algumas reflexões ao nível dos custos, in Ciência e Técnica fiscal, n.º 396, 1999, páginas 136-137:

 

“A noção legal de indispensabilidade recorta-se, portanto, sobre uma perspectiva económico-empresarial, por preenchimento, directo ou indirecto, da motivação última para a obtenção do lucro. Os custos indispensáveis equivalem aos gastos contraídos no interesse da empresa ou, por outras palavras, em todos os actos abstractamente subsumíveis num perfil lucrativo. Este desiderato aproxima, de forma propositada, as categorias económicas e fiscais, através de uma interpretação primordialmente lógica e económica de causalidade legal. O gasto imprescindível equivale a todo o custo realizado em ordem à obtenção de ingressos e que represente um decaimento económico para empresa. Em regra, portanto, a dedutibilidade fiscal do custo depende, apenas, de uma relação causal e justificada com a actividade produtiva da empresa”.

               (…)

“A indispensabilidade subsume-se a todo qualquer acto realizado no interesse da empresa…A noção legal de indispensabilidade reprime, pois, os actos desconformes com o escopo da sociedade, não inseríveis no interesse social, sobretudo porque não visam o lucro…”.

 

[4] Como diz a Autoridade Tributária e Aduaneira no Relatório da Inspecção Tributária: «As notas de crédito emitidas pelo sujeito passivo visaram, essencialmente, anular as prestações de serviços pela totalidade, passados anos/meses da emissão das faturas que estiveram na origem de tais “regularizações”, procedendo de seguida à emissão de novas faturas, em que o valor inicialmente faturado como IVA passou a ser faturado como base tributável».

[5]             Neste sentido, podem ver-se os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 24-10-2012, processo n.º 0528/12, e de 10-10-2018, processo n.º 033/18.

[6]             Como também entendeu o Supremo Tribunal Administrativo nos acórdãos citados.