Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 305/2013-T
Data da decisão: 2014-09-18  IRC  
Valor do pedido: € 309.600,23
Tema: IRC - Cláusula Geral Anti Abuso – artigos 38º, da LGT e 63º, do CPPT
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Decisão Arbitral

 

Processo n.º 305/2013-T

           

            Os árbitros, Juiz Dr. José Poças (árbitro-presidente), Dr. José Nunes Barata e Dr. António Rocha Mendes, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 26-02-2014, acordam no seguinte:

 

I RELATÓRIO

            1. A SGPS, SA, NIF …, (que ulterior se designará também por “requerente” e “A”), com sede na …, veio, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 10.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011 de 20 de Janeiro (doravante “RJAT”) submeter à apreciação de Tribunal Arbitral a legalidade da liquidação de IRC, no montante final global de €309.600,23, incluindo juros compensatórios, relativa ao ano de 2008, por aplicação da cláusula geral anti-abuso (CGAA), prevista no artigo 38º-2, da LGT, com fundamento em aplicação abusiva desse mesmo regime fiscal.

            A fundamentação da liquidação impugnada é a que consta da decisão de 14 de Dezembro de 2012 de aplicação da cláusula antiabuso, notificada à impugnante através do ofício n.º ..., de 18.12.12, que constitui a fundamentação do ato tributário em causa (doc. n.º 3), constante do relatório de exame à contabilidade.

            A requerente conclui pedindo a procedência da impugnação e, em consequência, determinada a anulação integral daquela liquidação de imposto e demais acréscimos legais (juros compensatórios) e pede ainda que a Autoridade Tributária e Aduaneira seja condenada no pagamento de juros indemnizatórios.

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.

Os Requerentes optaram pela não designação de árbitro.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

            As Partes foram notificadas e não manifestaram vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

            Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 26-02-2014.

            A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta em que defendeu a improcedência dos pedidos.

            Com a anuência de ambas as partes, foi prescindida a realização da reunião prevista no artigo 18º, do RJAT, bem como a produção de provas adicionais e de alegações finais, orais ou escritas.

            Por deliberação do Tribunal de 18-7-2014, foi prorrogado, pelos fundamentos invocados, o prazo para a decisão arbitral nos termos e pelo período de 2 meses previstos no artigo 21º-2, do RJAT.

           

 

            2. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente.

            As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

            O processo não enferma de nulidades.

 

II FUNDAMENTAÇÃO

 

            3. Matéria de facto

            3.1. Factos provados

            Consideram-se provados os seguintes factos:

            a) Em 19.05.1993 foi constituída a sociedade B, com o NIPC …, doravante designada por (B), tendo como objecto o “exercício da atividade de prestação de serviços de consultoria e assistência oficial, contabilística e financeira, projetos e gestão de empresas, representações nacionais e estrangeiras, com quotas no valor de € 5 000,00, tendo como sócios:

  • Sócio 1, NIF … (quota no montante de € 3 750,00);
  • Sócio 2, NIF … (quota no montante de € 1 250,00).

b)Em 26.06.2008, foi realizado um aumento de capital, através de incorporação de reservas [€44 7000] e dinheiro [€300,00], de € 5 000 para € 50 000,00 e transformação da sociedade por quotas em sociedade anónima – B

c) O aumento de capital de € 300,00 foi subscrito pela entrada de novos sócios, com € 100,00 cada, sendo eles:

  • Sócio 3, NIF …;
  • Sócio 4, NIF …;
  • Sócio 5, NIF ….

d) O capital ficou deste modo composto por 50 000 acções, com o valor nominal de € 1,00.

e) Em 18.12.2008, verificou-se novo aumento de capital para € 96 995,00 e uma incorporação por fusão da sociedade C, NIPC ….

  • Número de acções: 96 995;
  • Valor nominal: € 1,00.

e) Por consequência, o capital da B, após a incorporação da C, ficou distribuída do seguinte modo:

  • Sócio 1, NIF ... (quota no montante de € 84 570,00);
  • Sócio 2, NIF ... (quota no montante de € 12 425,00).

 (…)

f) Em 2009 o acionista maioritário da B, o Sr. Sócio 1, vendeu as 84 570 acções (87,19%) que detinha desta empresa à SGPS, que tinha sido constituída em 28.02.2008, sendo o valor desta aquisição realizado pela SGPS de € 2 186 980,00.

 (…)

g) A sociedade A é uma Sociedade Gestora de Participações Sociais, com a designação social de A – SGPS, SA, NIPC …, constituída em 28.02.2008, encontrando-se juridicamente regulada pelo Dec. Lei nº 495/88, de 30 de Dezembro, com a nova redação dada pelo Dec. Lei nº 318/94, de 24 de Dezembro, pelo Dec. Lei nº 378/98, de 30 de Dezembro e pela Lei nº 109-B/2001, de 27 de Dezembro e tem como objecto social a “gestão de participações sociais de outras sociedades, como forma indireta de exercício de atividades económicas – CAE 64202.”

h) A A foi constituída com o capital social de € 50 000,00, correspondentes a 50 000 acções ao portador ou nominativas com o valor nominal de € 1,00, pertencentes aos seguintes accionistas:

  • Sócio 7, NIF ...(participação no montante de € 49 996,00);
  • Sócio 3, NIF ...(participação no montante de € 1,00);
  • Sócio 4, NIF ...(participação no montante de € 1,00);
  • Sócio 5, NIF ... (participação no montante de € 1,00);
  • Sócio 6, NIF ...(participação no montante de € 1,00).

i) [Segundo consta de fls. 6 do relatório de exame], existem acionistas comuns às duas sociedades [A e B], nos termos ali descritos, que aqui se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais.

j)A AT considerou que no “ano de 2008, foram apurados negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos por meios oficiosos e com abuso das formas jurídicas à redução de impostos que seriam devidos sem a utilização desses meios, que, em nosso entender, constituem fundamento para proceder à aplicação da norma legal anti-abuso prevista no nº 2 do artigo 38º da Lei Geral Tributária (LGT).”

k) Tais negócios jurídicos que se encontram descritos a fls. 8 e segs. do relatório, foram sumariamente os seguintes:

l) Em 28.12.2009, o Sr. Sócio 1 procedeu à venda de parte das ações disponíveis da sociedade B, NIPC …, à sociedade A SGPS, NIPC …, conforme contrato de compra e venda das ações que foram juntas ao Anexo 1 ao relatório, tendo a mesma sido declarada pelo acionista alienante no Anexo G1 da Declaração Modelo 3, do ano a que se refere.

m) Estas ações eram detidas pelo acionista há mais de um ano [pelo que a sua alienação se encontrava excluída de tributação em sede de IRS nos termos da alínea a) do nº 2 do artigo 10º do CIRS (redação dada pelo Dec. Lei nº 228/2002, de 31 de Outubro)].

n) Em 28.12.2009, foi efetuado um contrato de transmissão de ações, em Anexo 1, em que o Sr. Sócio 1, NIF …, alienou à A, SGPS, 84 570 ações da sociedade B, pelo valor de € 2 186 980,00, correspondendo a um preço unitário de € 25,86 (€ 2 186 980,00 / 84 570 ações).

o) Decorrente desta alienação, foi reconhecido um crédito ao sócio da A, SGPS que originou a movimentação das contas nesta sociedade, conforme diário de lançamento em Anexo 7 (ponto 4) ao relatório de exame.

p) A AT verificou ainda que a sociedade B apesar de apresentar resultados positivos nos exercícios de 2008 a 2010, não distribuiu aos seus acionistas qualquer lucro nesses anos, conforme Termo de Declarações, efetuado em 13.09.2012

q) E que só em 14 de Janeiro de 2011, ou seja, após a realização das operações descritas – constituição da A SGPS e efetiva aquisição da B – procedeu à distribuição de dividendos, conforme ata nº 22, anexa ao relatório de exame, onde foi aprovada no exercício de 2011, a distribuição de dividendos ao acionista único A SGPS SA.

r) Tendo, subsequentemente, procedido à análise dos fluxos monetários no período em análise da A SGPS SA, a AT conclui que se verificaram, diversos fluxos financeiros entre as várias entidades envolvidas, conforme descrito a fls. 12 a 14 do relatório, que aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais.

s) A AT veio, após análise desses fluxos, a considerar que os factos se subsumem no disposto no nº 2 do art. 38º da LGT considerando que estão verificados os seus quatro pressupostos, a saber, os elementos: meio, resultado, intelectual e normativo, conforme descrito no relatório de exame a fls. 17 e segs. que aqui se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais;

t) Em consequência procedeu à liquidação adicional de IRC, no montante global final de €309 600,23, incluindo juros compensatórios, relativa ao ano de 2008, por aplicação da cláusula geral antiabuso (CGAA);

u) Tal liquidação foi determinada por decisão de 14 de dezembro de 2012, notificada à impugnante em 18-12-2012

 

3.2. Factos não provados

 

            - Não se provou que as operações ou negócios descritos nas alíneas k) a s) dos factos provados, tivessem sido efetuados apenas com o desígnio de obtenção de vantagens fiscais dos intervenientes.   

 

3.3. Motivação 

Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos pela requerente, no Relatório da Inspeção Tributária e nos documentos que constam do processo instrutor, com ponderação ainda da circunstância de inexistir controvérsia entre as partes quanto ao quadro factual e objetivo descrito pela requerente.

 

4. Fundamentação (cont)

O Direito

O artigo 38.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária estabelece uma cláusula geral antiabuso, nos termos da qual «são ineficazes no âmbito tributário os atos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, atos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efetuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas».

No caso em apreço, a Administração Tributária decidiu a aplicação da cláusula geral antiabuso considerando que os negócios jurídicos que devem ser desconsiderados para efeitos de tributação são as alienações/vendas à requerente A, SGPS, do sócio/acionista Sócio 1 das ações detidas há mais de 12 meses no capital social da sociedade B, operação que permitiu ao alienante financiar a sua própria compra e tornar-se credor pelo pagamento das ações alienadas e, montada esta operação, quando a B distribui dividendos à A, fica dispensada de qualquer encargo tributário em face do disposto no artigo 32º-1, do EBF [este proveito na SGPS nunca chega a dividendo e, consequentemente, não há tributação em sede de IRS na esfera dos sócios/acionistas]. Ou seja: sem as operações descritas e a utilização da A, SGPS, os fluxos financeiros chegariam aos acionistas sob a forma de dividendos, com sujeição a IRS e não, como aconteceu, sob a forma de reembolso de crédito sem tributação ao nível de IRS.

 

            A Autoridade Tributária e Aduaneira entendeu que as referidas operações de realizadas no sobredito enquadramento são abusivas, na medida em que pretenderam dissimular distribuições de dividendos, pelo que decidiu aplicar a cláusula geral antiabuso e considerar as quantias recebidas como se fossem dividendos.

 

 

4.1. Planeamento fiscal legítimo e ilegítimo[1]

 

Nas definições elaboradas por Saldanha Sanches ( [2] ): o planeamento fiscal legítimo «consiste numa técnica de redução da carga fiscal pela qual o sujeito passivo renuncia a um certo comportamento por este estar ligado a uma obrigação tributária ou escolhe, entre as várias soluções que lhe são proporcionadas pelo ordenamento jurídico, aquela que, por ação intencional ou omissão do legislador fiscal, está acompanhada de menos encargos fiscais»; enquanto que o planeamento fiscal ilegítimo «consiste em qualquer comportamento de redução indevida, por contrariar princípios ou regras do ordenamento jurídico-tributário, das onerações fiscais de um determinado sujeito passivo».

Dentro do quadro do planeamento fiscal podemos, assim, distinguir as situações em que o sujeito passivo atua contra legem, extra legem e intra legem.

Quando este atua contra legem, a sua atuação é frontal e inequivocamente ilícita, pois infringe diretamente a lei fiscal, e configura uma fraude fiscal ( [3] ) passível, inclusive, de ser objeto de censura contra-ordenacional ou criminal.

A atuação extra legem ocorre quando o sujeito passivo aproveita de forma abusiva a lei para chegar a um resultado fiscal mais favorável, pese embora este não a violar diretamente. Este adota «um comportamento que tem como finalidade exclusiva ou principal contornar uma ou várias normas jurídico-fiscais, de modo a conseguir a redução ou a supressão do encargo fiscal» ( [4] ). Sendo que dessa ou dessas normas jurídico-fiscais se deve detetar uma tentativa de contornar «uma clara intenção de tributar afirmada pelos princípios estruturantes do sistema» ( [5] ). Este tipo de atuação é comummente designada de «fraude à lei fiscal» mas, conforme alerta Saldanha Sanches, pretendendo melhor ilustrar e distinguir estas situações das de fraude fiscal, também designada de «evitação abusiva de encargos fiscais», «evitação fiscal abusiva» ou ainda «elisão fiscal»( [6] ).

Só se afigura legítima – e, assim, planeamento fiscal legítimo ou não abusivo – a atuação intra legem. Com efeito, a obtenção de uma poupança fiscal não constitui um comportamento proibido pela lei, desde que a atuação não se enquadre na supra referida atuação extra legem ([7] ).

A doutrina e a jurisprudência têm vindo a desconstruir a letra da norma apontando cinco elementos nela patentes. Correspondendo um dos elementos à estatuição da norma, os restantes quatro afiguram-se requisitos cumulativos que permitem aferir – como se de um teste se tratasse – quanto à verificação de uma atividade caracterizável como um planeamento fiscal abusivo ( [8] ).

Estes elementos, em torno dos quais ambas as partes aliás constroem a sua argumentação, consistem:

– no elemento meio, que diz respeito à via livremente escolhida – ato ou negócio jurídico, isolado ou parte de uma estrutura de atos ou negócios jurídicos sequenciais, lógicos e planeados, organizados de modo unitário – pelo contribuinte para obter o desejado ganho ou vantagem fiscal ( [9] );

– no elemento resultado, que contende com a obtenção de uma vantagem fiscal, em virtude da escolha daquele meio, quando comparada com a carga tributária que resultaria da prática dos atos ou negócios jurídicos «normais» e de efeito económico equivalente ( [10] );

– no elemento intelectual, que exige que a escolha daquele meio seja «essencial ou principalmente dirigida [...] à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos» (artigo 38.º, n.º 2 da LGT), ou seja, que exige não a mera verificação de uma vantagem fiscal, mas antes que se afira, objectivamente, se o contribuinte «pretende um ato, um negócio ou uma dada estrutura, apenas ou essencialmente, pelas prevalecentes vantagens fiscais que lhe proporcionam» ( [11] );

– no elemento normativo, que «tem por sua função primordial distinguir os casos de elisão fiscal dos casos de poupança fiscal legítima, em consideração dos princípios de Direito Fiscal, sendo que só nos casos em que se demonstre uma intenção legal contrária ou não legitimadora do resultado obtido se pode falar naquela »( [12] );

– e, por fim, no elemento sancionatório, que, pressupondo a verificação cumulativa dos restantes elementos, conduz à sanção de ineficácia, no exclusivo âmbito tributário, dos atos ou negócios jurídicos tidos por abusivos, «efetuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas» (parte final do artigo 38.º, n.º 2, da LGT).

Apesar desta desconstrução, a análise dos elementos não pode ser estanque, pois, como realça Courinha, «a fixação de um elemento pode, na prática, depender de um outro», pelo que estes «não deixarão com frequência [...] de auxiliar-se mutuamente» ( [13] ).

Apreciemos, tendo este aspecto em consideração, os elementos da cláusula geral antiabuso considerando a fundamentação da decisão, os factos provados, e a argumentação jurídica das partes.

 

4.2. Análise da situação

 

Nesta análise, tem de partir-se do pressuposto de que a fundamentação do ato que decidiu a aplicação da cláusula geral antiabuso que se tem de apreciar é apenas a que consta do próprio ato e elementos para que remete, pois o processo arbitral tributário, como meio alternativo ao processo de impugnação judicial (n.º 2 do artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril), é, como este, um meio processual de mera legalidade, em que se visa eliminar os efeitos produzidos por atos ilegais, anulando-os ou declarando a sua nulidade ou inexistência [artigos 2.º do RJAT e 99.º e 124.º do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a), daquele]. Por isso, os atos que são objeto do processo têm de ser apreciados tal como foram praticados, não podendo o tribunal, perante a constatação da invocação de um fundamento ilegal como suporte da decisão administrativa, apreciar se a sua atuação poderia basear-se noutros fundamentos.

No caso sub juditio, a requerente contesta que configure planeamento fiscal abusivo as sobreditas operações comerciais, ou seja, a transformação da sociedade B, de sociedade por quotas em sociedade anónima e a subsequente venda a crédito à requerente A, SGPS, das respetivas ações, sem sujeição a imposto as respetivas mais-valias, considerando a detenção daquelas participações há mais de 12 meses de modo que, quando a B, distribui dividendos à A – SGPS, não são devidos quaisquer encargos tributários em face do disposto no artigo 32º-1, do EBF, sendo que esse proveito nunca chega a dividendo com a consequente sujeição a tributação em sede de IRS.

Mas será que toda este encadeamento de operações visou tão só e apenas subtrair a tributação rendimentos a ela sujeitos ou, pelo contrário, não foi esse o único ou principal leit motiv?

Vejamos:

A cláusula geral anti abuso (abreviadamente, CGAA) foi introduzida no sistema fiscal português durante a década de noventa, altura em que começaram a ser adotadas também em Portugal algumas outras medidas antiabuso, especiais, no âmbito dos impostos sobre o rendimento.

E, na essência das alterações introduzidas à redação inicial da CGAA pela Lei nº 100/99, de 26 de julho, está a “importação” da doutrina germânica do missbrauch von formen [abuso de formas ou possibilidades de configurações jurídicas dos negócios][14]

A sua razão de ser e principal motivação encontra-se na necessidade de se estabelecerem meios de relação – e, também, de prevenção – que sejam mais adequados a reprimir estes comportamentos tidos por “antijurídicos”, ainda que lícitos, exigindo que a Administração Fiscal faça a prova da verificação concreta dos pressupostos legais que permitem desencadear as suas consequências próprias.

Antevêm-se e verificam-se enormes dificuldades de aplicação com sucesso de que nos dá conta a escassez de decisões judiciais a favor da Autoridade Tributária e Aduaneira.[15]

Nestas, acolheu-se a chamada step transaction doctrine segundo a qual a disposição antiabuso pode e deve aplicar-se atendendo ao momento decisivo e final das operações em causa.

O princípio subjacente à CGAA é o da prevalência da substância económica  sobre a forma jurídica dos atos ou negócios jurídicos, sem, no entanto, se chegar ao ponto de retirar alcance prático aos princípios da legalidade e da tipicidade taxativa dos impostos.

Por isso é que, para o pleno funcionamento da CGAA, ter-se-á, no limite de concluir pela existência duma “roupagem” de formas jurídicas destinadas tão só e apenas a encobrir realidades económicas que, sem essa “roupagem”, seriam tributadas.

Se, pelo contrário, os contribuintes são norteados por outras preocupações ou razões quando escolhem uma via que redunda em dispensa ou redução de tributação, então revelar-se-á excessivo concluir pela obrigação de opção do contribuinte pela via que implique um maior agravamento na tributação. 

            Subsumindo:

A transformação da sociedade por quotas da sociedade B, em sociedade anónima é ato normal que se insere no campo da liberdade de gestão geral e fiscal, com expressão nas liberdades de iniciativa económica e de empresa, normalmente destinada a robustecer a estrutura societária e permitir a abertura do seu capital.

O ato seguinte de aumento de capital social e de incorporação, por fusão, da sociedade C, insere-se nessa linha de gestão e estratégia empresarial, com necessário aumento da estrutura da clientela, das competências e das perspetivas de negócios.

A questão premente e essencial é a de saber se podem ou devem considerar-se juridicamente “artificiosos ou fraudulentos” os sobreditos passos objetivamente legais adotados e que se reconduziram (ou também se reconduziram) a final a uma objetiva poupança fiscal.

Antes de mais, não pode ver-se a venda das ações sem sujeição a tributação (regime então em vigor até à revogação do artigo 10º-2, do CIRS) como algo abusivo ou proibitivo: se existia essa denominada “lacuna consciente de tributação[16], desta se aproveitou legal, compreensível e legitimamente o vendedor.

É certo que podem suscitar-se algumas dúvidas quanto ao sobredito enquadramento factual; todavia, por força do disposto no artigo 100.º do CPPT, subsidiariamente aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, essa hipotética dúvida sempre teria de ser valorada processualmente a favor da Requerente, o que equivale a considerar não provado que tenham sido razões exclusiva ou principalmente fiscais as determinantes para as sobreditas operações.

Por isso, a utilização das sobreditas e legais formas jurídicas não pode ser considerada como utilização de meios artificiosos ou fraudulentos, para efeitos do artigo 38.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária, nem se pode vislumbrar qualquer abuso de formas jurídicas na concretização de tais operações.

Por outro lado, o facto de a estas operações estar associada uma vantagem fiscal não pode ser considerado um obstáculo à aceitação da opção para efeitos fiscais, pois os contribuintes não são obrigados a optar pelos negócios que sejam fiscalmente mais onerosos, quando a lei lhes propicia mais de um meio para atingir os fins que visam na reestruturação e gestão de sociedades.

Assim, sendo cumulativos os requisitos previstos no artigo 38.º,  n.º 2, da LGT para aplicação da cláusula geral antiabuso ,tem de se concluir que a atuação da requerente não pode ser considerada um planeamento fiscal ilegítimo destinado a evitar a liquidação (retenção) de IRS

 

5. Conclusão

 

Conclui-se, assim, que não se verifica um dos pressupostos de facto de que depende a aplicação da cláusula geral antiabuso, que é o ato ou negócio ter sido essencial ou principalmente dirigido à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos.

À face do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, quando esta norma refere que, para aplicação da cláusula geral antiabuso, os negócios devem ser dirigidos à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos, não basta que sejam obtidas vantagens fiscais, sendo antes indispensável que a obtenção destas tenha sido um objetivo essencial ou principal visado pelo contribuinte.

Ora é a prova da essencialidade desse objetivo para finalidades de menor tributaçãoo que, no caso, não se afigura, pelo menos, evidente.

E, ainda que se pudessem suscitar algumas dúvidas quanto a ter sido essa ou não, a finalidade essencial ou principal das operações comerciais objetivamente efetuadas, a verdade é que sempre essa dúvida teria de ser valorada a favor do sujeito passivo à luz do disposto no artigo 414º, do CPC.

Por isso, tem de ser julgado procedente pedido de anulação dos atos de liquidação de IRC do ano de 2008 e juros compensatórios objeto deste processo.

 

6. Juros indemnizatórios

Nos termos do artigo 43º da Lei Geral Tributária, os requisitos do direito a juros indemnizatórios são os seguintes:

- Que haja um erro num ato de liquidação de um tributo;

- Que ele seja imputável aos serviços;

- Que a existência desse erro seja determinada em processo de reclamação graciosa, de impugnação judicial ou de pronúncia arbitral;

- Que desse erro tenha resultado o pagamento de uma dívida tributável em montante superior ao legalmente devido.

 

No que se refere ao artigo 100º da Lei Geral Tributária, exige-se que:

- Tenha havido uma decisão de procedência total ou parcial de reclamação graciosa, impugnação judicial ou recurso, de que resulte a anulação de um ato tributário;

- Que não sejam devidos juros indemnizatórios relativamente a período anterior ao termo do prazo de execução da decisão anulatória e

- Que a decisão a executar não seja uma decisão judicial.

 

A Lei Geral Tributária não refere, de forma genérica, os termos iniciais e finais da contagem dos juros indemnizatórios.

Encontramos alguns casos, porém, em que existe uma indicação do termo inicial: é o caso da alínea b) do nº 3 do artigo 43º daquela Lei, onde se prevê que os juros indemnizatórios são devidos a partir do 30º dia posterior à decisão da Administração Tributária de anular o ato tributário por sua iniciativa, e da alínea c) do mesmo número e artigo, de onde resulta que, no caso de revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte - fora das situações de reclamação graciosa enquadráveis no nº 1 do mesmo artigo - , os juros indemnizatórios só são devidos a partir de um ano após a apresentação do pedido de revisão e, mesmo nesta hipótese, poderão ser contados a partir de momento posterior se o atraso não for imputável à administração tributária.         

Nos casos não previstos, a contagem deve fazer-se com base na natureza destes juros e das situações que geram a dívida, devendo, em princípio, corresponder ao início do período em que o sujeito passivo esteja privado de quantias que deveriam estar em seu poder se não se

verificasse uma situação ilegal.

Assim sendo e concluindo:

- Se os juros indemnizatórios forem provocados pela existência de um erro imputável aos serviços (cfr. artigo 43º, Nº 1 e Nº 2 da Lei Geral Tributária), eles serão devidos desde o momento em que foi paga ou retida a quantia em excesso até ao momento em que seja elaborada a nota de crédito que permita ao sujeito passivo receber a quantia de que,

indevidamente, ficou privado;

 - Se os juros indemnizatórios se deverem ao não cumprimento do prazo de restituição

oficiosa dos impostos (cfr. artigo 43º , nº 3, alínea a), da Lei Geral Tributária) , os juros

indemnizatórios serão devidos desde o termo do prazo legal para a restituição até ao momento

em que seja elaborada a nota de crédito.

Relativamente à taxa, nos termos do nº 4 do artigo 43º da Lei Geral tributária, a taxa de juros indemnizatórios é idêntica à dos juros compensatórios, ou seja, a taxa fixada nos termos do artigo 559º, do Cód Civil, por força do disposto no nº 10 do artigo 35º da Lei Geral Tributária.

No caso, a requerente efetuou o pagamento das liquidações sob impugnação.

Tem assim, à luz do exposto, direito a ser reembolsada da importância paga acrescida de juros indemnizatórios contados desde essa data de pagamento até ao momento de emissão da respetiva nota de crédito.

 

7. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 309 600,23.

 

III DECISÃO

8. De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

a)       Julgar totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral e determinar a anulação da liquidação de imposto objeto dos autos e demais acréscimos (juros compensatórios) e

b)       Condenar a AT no pagamento de juros indemnizatórios à requerente A SGPS, SA, desde o momento em que o imposto liquidado e acréscimo, foi pago,  até à data em que for emitida pela Autoridade Tributária e Aduaneira a respetiva nota de crédito.

 

 

9. Custas

 

Fica a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira o pagamento das custas, fixando-se o respetivo montante em € 5.508,00 (cinco mil e quinhentos e oito euros), nos termos do artigo 22º-4, do RJAT e da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

Lisboa, 18-9-2014

Os Árbitro

 

 

 

 

 

 (José Poças Falcão)

 

 

 

 

 

(José Nunes Barata)

 

 

 

 

 

(António Rocha Mendes)

 



[1]              Segue-se muito de perto, a Jurisprudência do CAAD sobre esta matéria, publicada no respetivo sítio da internet e, muito especialmente, o Acórdão proferido no processo nº 311/2013-T (Conselheiro Jorge Lopes de Sousa).      

[2]              Cfr. Saldanha Sanches, J.L., Os Limites do Planeamento Fiscal, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, p. 21.

[3]              Cfr. AcTCAS de 12-02-2011, proc. n.º 04255/10.

[4]              Cfr. Jónatas Machado e Nogueira da Costa, Curso de Direito Tributário, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, pp. 340-341.

[5]              Cfr. Saldanha Sanches, J.L., Os Limites..., p. 181.

[6]              Cfr. Saldanha Sanches, J.L., Os Limites..., pp. 21-23; ainda Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 12-02-2011, processo n.º 04255/10.

[7]              Cfr. Saldanha Sanches, J.L., Reestruturação de empresas e limites do planeamento fiscal, As duas constituições – nos dez anos da cláusula geral antiabuso, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, pp. 49-50, que afirma, a este respeito: «a consagração da cláusula geral antiabuso implica [...] que a partir da sua introdução está claramente delimitado aquilo que o sujeito passivo pode e não pode fazer. As habilidades fiscais, a destreza fiscal deixam de ser possíveis (as operações artificiosas e fraudulentas que têm como fim principal ou exclusivo a obtenção de uma poupança fiscal mediante a fraude à lei) e o sujeito passivo passa a ter o seu comportamento julgado de acordo com este critério. [...] a evolução da lei é clara no sentido de proporcionar fundamento legal para o planeamento fiscal, desde que seja praticado sem o abuso de formas jurídicas, sem negócios jurídicos artificiosos e fraudulentos mas limitando-se a escolher a via que se encontra aberta e que lhe permite realizar economias fiscais». Cfr., também, Marques, Paulo, Elogio do Imposto, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, pp. 360-364.

[8]              Ou seja, a uma «actuação planeada do contribuinte que se traduz num comportamento aparentemente lícito, geradora de uma vantagem fiscal não admitida pelo ordenamento tributário» (cfr. Courinha, Gustavo Lopes, Cláusula Geral Antiabuso no Direito Tributário: Contributos para a sua compreensão, Almedina, Coimbra, 2009, pp.15-17 e 163-165; bem como Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 15-02-2011, proc. n.º 04255/10, conclusões XIII e XIV).

[9]              Como decorre da seguinte parte do artigo 38.º, n.º 2, da LGT: «actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos».

[10]             Tal decorre do seguinte segmento do artigo 38.º, n.º 2, da LGT: «redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios». Decorre ainda do artigo 63.º, n.º 3, alíneas a) e b) do CPPT, na redacção dada pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, que exigem que a Administração Tributária inclua na sua fundamentação, respectivamente, «a descrição do negócio jurídico celebrado ou do acto jurídico realizado e dos negócios ou actos de idêntico fim económico, bem como a indicação das normas de incidência que se lhes aplicam» e «a demonstração de que a celebração do negócio jurídico ou prática do acto jurídico foi essencial ou principalmente dirigida à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em caso de negócio ou acto com idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais».

[11]             Cfr. Courinha, Gustavo Lopes, Cláusula..., p. 180.

[12]             Cfr. Courinha, Gustavo Lopes, Cláusula..., p. 211.

[13]             Cfr. Courinha, Gustavo Lopes, Cláusula..., p. 165. Identicamente, Saldanha Sanches, J.L., Os Limites..., p. 170, que aponta uma «relação de conexão e interdependência em relação aos requisitos exigidos pela lei».

[14]             Cfr Saldanha Sanches, Os Limites do Planeamento Fiscal, Coimbra Editora, pp. 169-175 e Gustavo Courinha, A Cláusula Geral Anti-Abuso no Direito Tributário: Contributos para a sua Compreensão, reimpressão da 1ª Ed, Almedina, 2009, pp. 157 e ss..

[15]             Conhecem-se apenas, no sentido apontado, os Acórdãos do TCAS de 15-23-2011 (Proc nº 4255/10 e de 14-2-2011 (Proc nº 5104/11),  que podem ser consultados em http://www.dgsi.pt/

 

[16]             Saldanha Sanches, Obra Citada