Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 302/2019-T
Data da decisão: 2020-01-08  IRC  
Valor do pedido: € 333.112,02
Tema: IRC - Cessão de créditos. Menos-valia. Artigo 23.º do CIRC.
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DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)

 

                Os árbitros Dr. José Poças Falcão (árbitro-presidente), Dr. Joaquim Pedro Lampreia e Dr. Gustavo Lopes Courinha, designados, respetivamente, pela Requerente e pela Requerida, para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 29-07-2019, acordam o seguinte:

 

1.            Relatório

 

A... SGPS, S.A., contribuinte fiscal n.º..., com sede na Rua ..., ...-..., ... (doravante abreviadamente designada de “Requerente”), requereu a constituição de tribunal arbitral coletivo tendo em vista a declaração de ilegalidade e consequente anulação da liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) n.º 2019..., de 16-01-2019, relativa ao período de tributação de 2016, bem como da demonstração de liquidação de juros compensatórios n.º 2019... e consequente demonstração de acerto de contas com o n.º 2019..., referente à compensação n.º 2019..., da qual resultou um valor total a pagar (incluindo juros compensatórios) de € 333.112,02.

A Requerente pretende que o Tribunal Arbitral se pronuncie sobre a legalidade do ato de liquidação adicional de IRC do Grupo B..., relativo ao período de tributação de 2016, no que se refere à não consideração como gasto fiscalmente dedutível da menos-valia realizada com a cessão de créditos por valor inferior ao respetivo valor nominal, pretendendo a declaração de ilegalidade da referida liquidação adicional e a consequente anulação, bem como o reembolso da quantia em causa, acrescida de juros indemnizatórios.

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA.

A Requerente designou como Árbitro o Senhor Dr. Joaquim Pedro Lampreia, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea b) e 6.º, n.º 3, do RJAT.

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 24-04-2019.

Nos termos do disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 6.º do RJAT, e dentro do prazo previsto no n.º 1 do artigo 13.º do RJAT, o dirigente máximo do serviço da Administração Tributária designou como Árbitro o Senhor Prof. Doutor Gustavo Lopes Courinha.

Os Árbitros designados não acordaram em designar terceiro Árbitro, na sequência do que o Conselho Deontológico do CAAD designou o Senhor Dr. José Poças Falcão como árbitro presidente, que aceitou a designação.

Nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 7 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do CAAD informou as Partes dessa designação em 08-07-2019.

Assim, em conformidade com o preceituado no n.º 7 artigo 11.º do RJAT, decorrido o prazo previsto no n.º 1 do artigo 13.º desse diploma sem que as Partes nada viessem dizer, o Tribunal Arbitral Coletivo ficou constituído em 29-07-2019.

Em 09-09-2019 foi proferido despacho arbitral a notificar a Autoridade Tributária e Aduaneira para apresentar resposta no prazo legal, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 17.º do RJAT. A Requerida apresentou resposta em 14-10-2019, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

Por despacho de 22-10-2019 foi marcada a reunião arbitral prevista no artigo 18.º do RJAT, que se realizou a 15-11-2019 com o depoimento de parte do Senhor I..., na qualidade de administrador da Requerente.

As Partes apresentaram alegações escritas.

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente (artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, n.º 1, do RJAT).

As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

O processo não enferma de nulidades nem existe matéria de exceção.

 

2.            Posição das Partes e questão a decidir

 

A questão decidenda reconduz-se a aferir se a menos-valia realizada com a cessão de créditos por valor inferior ao respetivo valor nominal é ou não dedutível nos termos do disposto no artigo 23.º do Código do IRC.

A Autoridade Tributária e Aduaneira entendeu que “(…) não cabe no conceito de perda dedutível, à luz do n.° 1 do artigo 23°, a perda registada como «menos valia realizada» resultante da cessão de créditos por valor inferior ao valor nominal, uma vez que não foi comprovado o risco de incobrabilidade, nem o critério utilizado para a determinação do alegado valor de mercado fixado pelo revisor oficial de contas”.

A Requerente defende, em suma, o seguinte:

             A comprovação da incobrabilidade dos créditos não é um requisito legal para que a menos-valia realizada seja aceite à luz do disposto no artigo 23.º do Código do IRC;

             A AT desconsiderou o gasto em discussão apenas porque entendeu, nesta parte, que o preço dos créditos determinado no relatório do ROC não corresponde ao respetivo preço de mercado;

             A exclusão de gastos incorridos apenas poderá ser aceite, ao abrigo do nº 1 do artigo 23º do Código do IRC, quando aqueles tenham sido incorridos na prossecução de outro interesse que não o interesse empresarial;

             O gasto incorrido teve um propósito empresarial, tendo cabimento expresso no disposto no n.º 1 e na alínea l) do n.º 2 do artigo 23.º do Código do IRC.

 

3.            Matéria de facto

 

3.1.        Factos provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos:

 

a)            A Requerente é a sociedade dominante do Grupo B..., o qual é tributado, em sede de IRC, pelo Regime Especial de Tributação de Grupos de Sociedades (RETGS), previsto no artigo 69.º e seguintes do Código do IRC;

b)           No período de tributação de 2016, o Grupo B... integrava as seguintes sociedades:

a.            A... SGPS, S.A.;

b.            C..., S.A.;

c.            D..., Lda.

c)            Em 26-12-2016, a Requerente celebrou um contrato de cessão de créditos com a C..., em que a segunda cedeu à primeira, pelo valor global de € € 1.069.830,77, um conjunto de créditos que detinha sobre as seguintes sociedades subsidiárias da Requerente:

a.            E..., no valor nominal de € 1.119.855,14;

b.            F..., no valor nominal de € 94.840,55;

c.            G... no valor nominal de € 251.935,87;

d.            H..., no valor nominal de € 1.679.929,49.

d)           Os créditos cedidos revestiam natureza de (i) créditos comerciais (relacionados com as relações comerciais estabelecidas ao longo dos anos entre a C... e as suas congéneres estrangeiras, por referência a fornecimentos), devidamente refletidos nos respetivos extratos da conta corrente que era mantida com essas sociedades e, por outro lado, (ii) empréstimos (registados na conta #411302);

e)           Do valor relativo a empréstimos – que respeita exclusivamente à H... e que se encontrava registado na conta #411302 da referida H... –, apenas o valor de € 17.878,68 dizia respeito a créditos que na sua origem já revestiam a natureza de empréstimos, resultando o montante remanescente de faturas emitidas entre 1998 e 2012;

f)            No momento da celebração do contrato de cessão de créditos, o saldo dos créditos encontrava-se vencido e não pago;

g)            Para determinar o valor da transmissão dos créditos a C... solicitou a intervenção de um Revisor Oficial de Contas independente, que elaborou um relatório de avaliação, nos termos do qual:

“6. A característica daqueles créditos é a de estarem em mora em 30 de setembro deste ano e não serem recuperáveis ou de o seu grau de recuperabilidade ser manifestamente reduzido, devendo anotar-se que a C... continuará a ser titular de outros créditos sobre as mesmas sociedades que se admite serem cobráveis nas condições normais esperadas de negócio das sociedades devedoras

(…)

8. A análise aprofundada do percurso das sociedades devedoras permite, agora, concluir que aqueles créditos por fornecimentos e financiamentos se mostram total ou parcialmente perdidos e correspondem a custos que, de todo o modo, teriam de ser suportados no quadro do referido processo de internacionalização, se esta tivesse sido operada mediante a contratação com terceiras entidades (por exemplo, agentes, em hipóteses de simples comercialização – o que seria restritivo para a expansão dos negócios – dos produtos da C..., ou de parcerias, como, no mínimo, teria de acontecer se tivesse sido adotado, como foi, um modelo de instalação local de unidades industriais. Aliás, o panorama atual decorre de, precisamente, se ter começado com parcerias, mediante sociedades locais em que a A... ou a C... detinham parte do capital, tendo evoluído para soluções corporativas em que, decididamente, o Grupo assumiu, inclusivamente porque a continuação do empreendimento implicava, a maioria clara da titularidade do capital e a gestão plena.

9. Os créditos objeto da transmissão respeitam a sociedades cuja sustentabilidade se antolha como adquirida, mas sem a possibilidade de pagamento da totalidade daquelas dívidas”.

h)           O ROC independente avaliou os créditos objeto da cessão no montante global de

€ 1.069.830,77;

i)             Após a cessão de créditos acima referida, a C... continuou a faturar as mesmas entidades e a não receber, verificando-se que, no final de 2017, estas entidades já apresentavam uma dívida à C... de valor substancial;

j)             A coberto das OI 2017... e OI 2017... a Requerente foi objeto de ação de inspeção de âmbito parcial referente a IRC dos períodos de tributação de 2015 e 2016;

k)            As correções empreendidas à Requerente no período de tributação de 2016 são o mero resultado das correções que haviam sido empreendidas à matéria coletável e às deduções à coleta em IRC desse período de tributação da sociedade dominada C..., S.A. (doravante abreviadamente designada C...) no âmbito do procedimento externo de inspeção credenciado pelas OI 2017..., OI 2017... e OI 2017...;

l)             Nessa inspeção foi elaborado o Relatório de Inspeção Tributária que consta do processo administrativo, cujo teor se dá como reproduzido. Na fundamentação da correção em causa refere-se, além do mais, o seguinte:

III.2.1.4. CESSÃO DE CRÉDITOS

III.2.1.4.1. Situação detetada

Em dezembro de 2016, a C... registou como gasto na conta 6886 - Outros gastos e perdas/Perdas em Instrumentos Financeiro, o montante de €2.076.730,28. Este valor não foi acrescido no quadro 07 da declaração modelo 22 de IRC, pelo que concorreu negativamente para a formação do resultado tributável declarado.

Na origem deste gasto está um contrato de cessão de créditos celebrado entre a C...  e a A... SGPS, SA (holding do grupo) em que a primeira cede á segunda, os créditos que tem sobre outras empresas do grupo, por 34% dos seus valores nominais. O quadro seguinte apresenta as entidades devedoras, o valor nominal dos créditos, o preço contratado e o apuramento do gasto contabilizado:

 

Os créditos cedidos caracterizam-se por créditos comerciais, porquanto tiveram origem em faturas emitidas pela C... àquelas entidades, enquanto clientes. Assim, o crédito cedido corresponde ao valor das faturas vencidas e não pagas, total ou parcialmente, à data 30-09-2016.

No caso da H..., alguns dos créditos comerciais mais antigos tinham sido convertidos em empréstimos concedidos. Esta conversão em empréstimos concedidos originou uma reclassificação contabilística: os créditos que tinham sido registados na conta 211 - "Clientes conta corrente" foram transferidos para a conta 411302 - "Empréstimos concedidos / H...”.

Assim, apesar de estes créditos estarem registados em contas de empréstimos, é possível identificar as faturas a que dizem respeito, sendo que o valor pendente de pagamento dessas faturas, embora registado na conta 411302, também foi incluído no contrato de cessão.

Em suma, o contrato versou os créditos resultantes das faturas emitidas para os já citados quatro clientes, faturas que, à data de 30-09-2016, se encontram vencidas e não pagas, registadas, quer na conta 211 - “Clientes conta corrente", quer na conta 411302 - "Empréstimos concedidos / H... Ltda"

Ao valor assim determinado foram abatidas as dívidas que a C... tinha para com aquelas entidades, resultantes de fornecimentos residuais de bens.

O quadro seguinte resume o valor nominal dos créditos cedidos, após a compensação com as dívidas a pagar às mesmas empresas:

 

Para determinar o valor de transmissão dos créditos, a C... solicitou a intervenção de um revisor oficial de contas independente da sociedade que concluiu, em relatório elaborado para o efeito, que os créditos tinham os seguintes valores de mercado:

 

III.2.1.4.2. Notificação efetuada

A C... foi notificada para apresentar documentos e prestar esclarecimentos sobre esta operação de cessão de créditos, nomeadamente:

• Esclarecer se os créditos cedidos tinham sido considerados de cobrança duvidosa e se, sobre eles, tinha constituído imparidades.

• Numa perspetiva de racionalidade económica, esclarecer de que forma a cedência dos créditos, por valor muito inferior ao valor nominal, contribui para a obtenção dos rendimentos sujeitos a IRC da C..., para que a menos valia gerada tenha enquadramento no artigo 23° do Código do IRC.

• Considerando que os créditos cedidos foram avaliados por um revisor oficial de contas independente do grupo, facultar à inspeção tributária o dossier que lhe foi disponibilizado e que esteve na base da avaliação dos créditos

• Apresentar os extratos das contas correntes das entidades devedoras dos créditos cedidos onde estejam evidenciados todos os movimentos, desde a origem da dívida até ao final de 2017.

III.2.1.4.3. Resposta à notificação e apreciação dos factos

Em resposta ao solicitado a C..., informou o que a seguir se apresenta e analisa.

III.2.1.4.3.1. Imparidades sobre o crédito cedido

Questionada sobre se havia considerado os créditos cedidos como de cobrança duvidosa ou se tinha constituído imparidades, a C... informou que não.

III.2.1.4.3.2. Racionalidade económica subjacente à operação realizada

Como justificação para a realização da operação de cessão de créditos em análise, foram apresentados dois grupos de razões:

A primeira razão prende-se com:

• Situação economicamente difícil em que se encontravam as empresas devedoras dos créditos alienados;

A alegada situação economicamente difícil das devedoras não foi concretizada nem demonstrada, e não pode ser caracterizada da mesma forma para as várias entidades, nomeadamente pela simples análise das demostrações financeiras que evidenciam resultados líquidos negativos nos últimos anos e capital próprio negativo ou baixo.

De facto, quando se fala em empresas numa situação economicamente difícil, fala-se em empresas que não estão a gerar resultados positivos na fase de maturidade do projeto.

Assim, não é razoável considerar que as empresas que iniciaram a sua atividade dois anos antes, como é o caso da G... e da F..., estão numa situação económica difícil, porque estão numa fase de arranque do projeto, não sendo expectável, em atividades de grande investimento inicial, que o retorno do investimento ocorra no prazo de um ou dois anos. Note-se que a faturação para a G... começou apenas em 2015 e, no caso da F..., a faturação de 2014 não atingiu os €50.000,00.

A segunda motivação apresentada prende-se com a posição da C... face aos parceiros externos e quanto ao grupo económico a que pertence. Assim, a operação de cessão de créditos terá visado:

• “Mitigar/eliminar questões reputacionais perante a banca e outros parceiros independentes”

• “Transferência do potencial risco de não recebimento dos créditos pela C... para a esfera da A... (holding do grupo), cuja atividade compreende, entre outras, a concentração das necessidades de financiamento das suas subsidiárias”

• “Eliminar o risco associado ao entendimento da AT (e impactos financeiros adversos que daí têm advindo - ainda que em fase de discussão Judicial), plasmado nos relatórios de inspeções realizadas a períodos de tributação anteriores, no sentido de que uma parte dos encargos financeiros suportados pela C... não seria dedutível por, alegadamente, estarem relacionados com créditos gratuitos.”

De facto, o entendimento da AT é o de que as sociedades, apesar de terem uma direção económica comum, são entidades jurídicas distintas e que devem operar no mercado segundo o princípio da maximização do seu lucro e não suportar custos e perdas que deverão ser suportados por outras entidades.

Portanto, não merece reparo a decisão de concentrar na holding do grupo o financiamento das suas participadas, assumindo a holding o ónus desses financiamentos, designadamente o risco de incobrabilidade.

Contudo, a citada intenção de transferir “o potencial risco de não recebimento dos créditos peta C... para a esfera da A..., cumpria-se integralmente caso a cedência tivesse sido feita ao valor nominal. Nesse caso, a A... t assumia completamente o risco de não recebimento das suas subsidiárias.

Mas, no caso em apreço, ao ceder um crédito de €3.146.561,05 por €1.069.830,77, a C... não transfere integralmente o risco, transfere apenas o risco de não ser recebido €1.069.830,77. O risco de não recebimento do restante suportou-o, registando-o como perda.

(…)

Assim, conforme ficou demonstrado, não cabe no conceito de perda dedutível, à luz do n.° 1 do artigo 23°, a perda registada como “menos valia realizada” resultante da cessão de créditos por valor inferior ao valor nominal, uma vez que não foi comprovado o risco de incobrabilidade, nem o critério utilizado para a determinação do alegado valor de mercado fixado pelo revisor oficial de contas, pelo que se considera que a menos valia de €2.076.730,28 não concorre para a formação do lucro tributável.

m)          Na sequência da inspeção foi emitida a liquidação de IRC n.º 2019..., de 16-01-2019, relativa ao período de tributação de 2016, bem como a demonstração de liquidação de juros compensatórios n.º 2019 ... e consequente demonstração de acerto de contas com o n.º 2019..., referente à compensação n.º 2019...;

n)           Em 27-02-2019, a Requerente pagou a quantia liquidada, no valor de € 333.112,02 (documento n.º 3 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

o)           Em 23-04-2019 a Requerente apresentou o pedido de constituição de tribunal arbitral que deu origem ao presente processo.

 

3.2.        Factos não provados

 

Com relevo para a apreciação e decisão da causa não resultam factos não provados.

 

3.3.        Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

O Tribunal não tem que se pronunciar sobre todos os detalhes da matéria de facto que foi alegada pelas partes, cabendo-lhe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada (artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

No presente caso a matéria de facto encontra-se sustentada nos documentos juntos aos autos pela Requerente e dos constantes do procedimento inspetivo realizado juntos com o Processo Administrativo (PA) junto pela Requerida.

O depoimento de parte produzido no processo comprova os factos provados acima elencados.

A matéria de facto, na verdade, não se afigura controvertida, mas tão só a fundamentação e a interpretação do Direito aplicável ao caso concreto.

Assim, à luz do disposto no artigo 110.º, n.º 7, do CPPT, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, a prova documental junta aos autos pela Requerente e a que consta do Processo Administrativo e o depoimento de parte produzido nos autos, consideram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

 

4.            Matéria de Direito

 

Assim fixados os factos, vejamos agora a matéria de Direito.

A questão decidenda, como se vê acima, reconduz-se a saber se o critério vertido no Código do IRC a respeito das condições de dedutibilidade das imparidades relativas a créditos em atraso pode ser igualmente exigível quanto às menos-valias apuradas na venda desses mesmos créditos. Ou seja, saber se, além das exigências advenientes do facto de a operação ter sido realizada com parte relacionada (como sucede no caso, entre a compradora e a requerente vendedora), consubstanciadas na exigência de prática de preços de mercado para efeitos fiscais, é ainda exigível o cumprimento de outras as condições, paralelas àquelas vertidas nos artigos 28.º-A/n.º 1ª/alínea a) e 28.º-B do Código do IRC.

  Para o efeito, sustenta a autoridade tributária ora requerida, que o artigo 23.º do Código do IRC deve ser in casu interpretado como exigindo a demonstração de incobrabilidade de tais créditos para efeitos da aceitação fiscal das menos-valias apuradas aquando da alienação onerosa dos créditos aqui em causa, de modo a impedir o contorno das duras exigências vertidas naqueles dispositivos e que a Requerente teria contornado, por meio da alienação dos créditos ora em análise.

Acresce, ainda segundo a Requerida, que o Relatório do Revisor Oficial de Contas, elaborado para efeitos do apuramento do valor de mercado dos créditos objeto da referida transação, não constituiria prova adequada ou bastante para demonstrar a correção de um tal valor de mercado.

Cumpre decidir.

                Começamos por sublinhar que julgamos não andar a Requerida muito longe da verdade, ao suspeitar de uma motivação fortemente, senão predominantemente, fiscal da presente operação de venda de créditos a uma entidade do próprio grupo.

Com efeito, nas circunstâncias do presente caso, dificilmente lograria a Requerente obter o reconhecimento em sede fiscal da desvalorização patrimonial incorrida com o não reembolso dos créditos aqui em causa de que era titular. Só por meio da alienação dos mesmos a um preço de mercado poderia a requerente ultrapassar os exigentes requisitos vertidos nos artigos 28.º-A e 28.º-B, ou, mais ainda, aqueles outros constantes do artigo 41.º do Código do IRC. 

Acresce que uma tal venda intra-grupo por parte requerente permite ainda, como vantagem comercial muito importante – como resulta, aliás, dos testemunhos – impedir que um terceiro ao grupo,  acaso adquirisse  tais créditos a valores equivalentes àquele pelo qual teve lugar a transação (e considerado pela Requerente valor de mercado), viesse a exigir   a cobrança coerciva dos mesmos pelo respetivo valor nominal,  o que conduziria a uma mais do que provável  situação de insolvência  das devedoras,  também elas integrando o grupo; esta situação foi, na opinião do presente Coletivo, também ela decisiva na opção pela venda intra-grupo.

                Se foi razoavelmente correta a análise produzida pela Requerida, já não o foi a identificação da base legal suscetível de neutralizar os efeitos fiscais de uma tal opção, em especial o recurso ao artigo 23.º do código do IRC enquanto normativo adequado a um tal desiderato.

Com efeito, se antes da introdução, à viragem para o presente século, da Cláusula Geral Anti-Abuso (doravante, CGAA) no ordenamento fiscal nacional, uma tal opção podia ser eventualmente aceitável , já idêntica conclusão não se pode extrair desde então. A aceitação deste dispositivo geral de dedução de gastos enquanto um instrumento geral anti-elisivo retiraria qualquer efeito útil à CGAA, vertida no artigo 38.º/n.º 2 da Lei Geral Tributária, pelo que não pode, atualmente, ser minimamente aceite. Naquela que é a leitura claramente maioritária (senão mesmo, unânime) na doutrina e jurisprudência fiscais, não é possível extrair um desígnio anti-elisivo daquele dispositivo: essa tarefa está concentrada nas normas anti-abuso, sejam elas de natureza geral ou especiais.

Naquele normativo – artigo 23.º do Código do IRC – é apenas e somente o requisito da empresarialidade (naquilo que ora nos ocupa) que mereceria ser discutido, sendo que não vemos como as perdas advenientes de operações de cessões de créditos com entidades do grupo possam configurar, por si só, uma negação de tal empresarialidade.

Seria, por isso, nos requisitos autónomos (e mais exigentes) da CGAA que poderia, porventura, radicar o sustento legal para a desconsideração dos efeitos fiscais da menos-valia registada pela Requerente; desconsideração esta que, em tal quadro legal, já não se bastaria com a mera demonstração de uma motivação fiscal prevalecente.

Quanto ao mais, cabe apenas sublinhar que não são materialmente confundíveis as situações de reconhecimento fiscal de uma imparidade quanto a um ativo de que o sujeito passivo ainda é titular (enquanto perda latente relevante, mas suscetível de uma eventual reversão/correção), com aquelas outras situações, desta bem distintas, em que já ocorreu o desreconhecimento de tal ativo do património do sujeito, por ocasião da sua alienação onerosa, com a consequente verificação de uma definitiva.

Uma tal diferença de situações não permite a aplicação de raciocínio de equivalência quanto aos respetivos enquadramentos e requisitos quanto à aceitação dos correspetivos gastos fiscais. E esta proibição não se resume ao raciocínio analógico mas, igualmente, à tentativa de utilizar o artigo 23.º para obter idêntico desiderato.

Por fim, apenas salientar que não foram apresentadas – ou, ao menos, não o foram em termos convincentes - razões para duvidar da justeza do valor de mercado determinado no relatório do ROC elaborado para o efeito e seguido pela Requerente na cessão de créditos aqui sob análise; em particular, faltam razões sólidas para considerar que a contraprestação pela alienação em causa deveria ter tido lugar por um valor superior àquele praticado pelas partes relacionadas envolvidas nessa operação, não sendo de todo claro que um terceiro estivesse disposto a suportar um valor superior pela aquisição daqueles créditos com um potencial de cobrabilidade altamente duvidoso.

Daqui, e em conclusão, decorre a procedência total do pedido.

 

5.            Decisão

 

Pelo exposto, decide este Tribunal:

a)            Declarar a ilegalidade do ato de liquidação adicional de IRC nº 2019 ... com a inerente liquidação de juros compensatórios nº 2019 ... e respetiva demonstração de acerto de contas nº 2019 ..., na parte respeitante à desconsideração como gasto fiscalmente dedutível da menos-valia realizada com a sobredita cessão de créditos;

b)           Anular, em consequência, os sobreditos atos;

c)            Condenar a Requerida no reembolso à Requerente das quantias que lhe foram pagas por esta [cf. alínea n), dos factos provados], no pressuposto da legalidade daqueles atos;

d)           Condenar ainda a Requerida no pagamento à Requerente de juros indemnizatórios sobre as importâncias a reembolsar, à taxa legal supletiva das dívidas cíveis, nos termos dos arts. 35.º, n.º 10, e 43.º, n.ºs 1 e 5, da LGT, 61.º, do CPPT, 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril (ou diploma ou diplomas que lhe sucederem), desde a data do pagamento (27-2-2019), até à do processamento da nota de crédito, em que serão incluídos (art.º 61.º, n.º 5, do CPPT).

 

Valor do processo

De harmonia com o disposto no art. 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 333 112,02.

 

Custas

Não tendo o Tribunal sido constituído nos termos previstos no nº 1 e na alínea a) do nº 2, do artigo 6º, do RJAT, não tem lugar a fixação do montante das custas e sua repartição pelas partes (Cfr artigo 22º-4, do RJAT).

 

Lisboa e CAAD, 8 de janeiro de 2020

 

O Tribunal Arbitral Coletivo,

 

José Poças Falcão

(árbitro presidente)

 

Joaquim Pedro Lampreia

(árbitro vogal)

 

Gustavo Courinha

(árbitro vogal)