Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 103/2019-T
Data da decisão: 2019-10-14  IRS  
Valor do pedido: € 52.564,40
Tema: IRS - Residente Não Habitual. Atividades de elevado valor acrescentado.
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DECISÃO ARBITRAL

 

I. Relatório

 

1. A..., titular do número de identificação fiscal ... e B..., titular do número de identificação fiscal ..., com domicílio em ..., ..., na Dinamarca, notificados da decisão de indeferimento expresso do procedimento de recurso hierárquico deduzido contra o indeferimento de reclamação graciosa incidente sobre a liquidação de IRS n.º 2014..., relativa ao ano de 2013, vêm, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, alínea a), do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT) aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20/01, apresentar pedido de constituição de Tribunal Arbitral, em que figura como Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT).

 

2. O pedido de pronúncia arbitral, apresentado em 15-02-2019, visa a declaração de ilegalidade do referido ato de indeferimento de recurso hierárquico e, de forma mediata, a declaração de ilegalidade do ato de liquidação de IRS acima identificado.

 

3. Como fundamento do pedido que formulam, argumentam os Requerentes que a questionada liquidação deveria ter sido efetuada ao abrigo do regime especial aplicável aos rendimentos da Categoria A do IRS (rendimentos do trabalho dependente) auferidos por residente não habitual.

 

4. Esta pretensão fundamenta-se no facto de a Requerente A..., detentora daquele estatuto, ter auferido aqueles rendimentos, no referido ano, como remuneração do exercício em território português de uma atividade de elevado valor acrescentado, enquadrada no âmbito da Portaria 12/2010, de 07/01, ou seja, que a tributação dos referidos rendimentos deveria ser efetuada com base na taxa especial de 20% prevista no artigo 72.º, n.º 6 (atual n.º 10), do Código do IRS, e não com base na taxa geral progressiva a que foram sujeitos.

 

5. Em resposta ao que vem solicitado, a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) pronunciou-se no sentido da improcedência do presente pedido de pronúncia arbitral, invocando duas exceções dilatórias: a impropriedade do meio utilizado no presente processo e a incompetência do Tribunal Arbitral, em razão da matéria, ambas com base no entendimento de que a questão decidenda não comporta, verdadeiramente, qualquer apreciação da legalidade da liquidação, mas sim de um ato autónomo e anterior à mesma, o “ato pressuposto”.

 

6. Em suporte do que alega, sustenta a Requerida que a liquidação em causa foi efetuada considerando os elementos constantes do cadastro da AT, resultantes de anterior declaração da Requerente, omissa quanto à atividade de elevado valor acrescentado. Daí que entenda que o que aqui se pretende, efetivamente, é contestar uma informação que consta do cadastro da AT, ou seja, a pretensão visa assim um ato administrativo autónomo e prévio à liquidação, pelo que o meio de reação judicial posto à disposição do contribuinte seria a ação administrativa e não a impugnação judicial.

 

7. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (AT).

 

8. Os Requerentes não procederam à nomeação de árbitro.

 

9. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20/01, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31/12, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular o signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável, tendo, oportunamente, notificado as partes.

 

10. Devidamente notificadas dessa designação, as partes não manifestaram vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

11. Pelo que em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31/12, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 26-04-2019.

 

12. O pedido arbitral é tempestivo, nos termos do artigo 10º n.º 1 alínea a) do Decreto-Lei n.º 10/2011 de 20/01, e do artigo 102º n.º 1 alínea a) do Código do Procedimento e do Processo Tributário.

 

13. Atento o conhecimento que decorre das peças processuais juntas pelas Partes, que se julga suficiente para a decisão, o Tribunal decidiu dispensar a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT.

 

14. Assim, por despacho de 07-09-2019, objeto de oportuna notificação, foi decidido, salvo oposição das Partes, dispensar a referida reunião, sendo concedido um prazo de 10 dias para apresentação de alegações escritas.

 

15. Apenas a Requerente apresentou alegações escritas, no essencial reafirmando a posição já anteriormente expressa na sua petição e resposta às exceções dilatórias suscitadas pela Requerida.

 

II. Saneamento

 

16. O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20/01.

 

17. As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se legalmente representadas (cfr. art.º 4.º e n.º 2 do art.º 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011 e art.º 1.º da Portaria n.º 112/2011, de 22/03).

 

III. Matéria de facto

 

18. Com base nos elementos documentais que integram o presente processo destacam-se os seguintes elementos factuais que, não sendo contestados pelas Partes, se consideram inteiramente provados:

 

18.1. Em 3 de Agosto de 2012, a Requerente A..., então residente na Rua ..., n.º..., ...-... Porto, celebrou, com a empresa C..., Ldª, com sede na Rua ..., n.º..., ...–..., um contrato de trabalho a termo certo, com início em 1 de Setembro de 2012 e termo em 31 de Agosto de 2015 (Doc. 3).

 

18.2. De acordo o referido contrato, e declaração da entidade empregadora, a outorgante A... contratou com a empresa a prestação de serviços com a categoria e funções de Diretorde Serviços de Logística, reconhecidamente envolvendo serviços de elevada exigência técnica e responsabilidade (Docs. 3 e 4).

 

18.3. Em 5 de Março de 2014, a Requerente dirigiu ao Diretor de Serviços de Registo de Contribuintes da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) um pedido de inscrição no registo de contribuintes como residente não habitual (Doc.5)

 

18.4. Em 30 do mês seguinte, os Requerentes submeteram, através do Portal das Finanças, a Declaração Periódica de Rendimentos relativa ao ano de 2013 (Doc. 6).

 

18.5. A referida declaração integra os anexos A e H relativos, respetivamente, a rendimentos da Categoria A – Trabalho Dependente – e Benefícios Fiscais e Deduções.

 18.6. É declarada a residência no Continente do território português, constando daquele anexo A rendimentos do trabalho dependente, auferidos pela Requerente naquele ano, no valor de € 225 569,67, sobre que incidiram retenções efetuadas pela entidade patronal no montante de € 95 102,00.

18.7. Com base nos elementos declarados, considerada designadamente a qualidade de residentes em território português com a consequente aplicação das taxas gerais previstas no artigo 68.º do Código do IRS, foi operada a liquidação de IRS n.º 2014..., relativa àquele ano, sendo apurada uma coleta líquida de € 98 728,66 de que, deduzidas as retenções na fonte no montante de € € 98 690,00 e acrescida a coleta de € 3 084,24 da sobretaxa extraordinária, resultou o valor de imposto a pagar de € 3 122,91 (Doc. 8).

 

18.8. Foi oportunamente emitida a correspondente Nota de Cobrança n.º 2014... para pagamento até 31 de Agosto, o qual foi efetuado em 29 do mesmo mês (Doc. 8 e informação que integra o processo administrativo).

 

18.9. Em 8 de Setembro de 2014 foi a Requerente notificada, através do Ofício n.º..., da Direcção de Serviços de Registo de Contribuintes da decisão relativa ao pedido de inscrição como residente não habitual, cujo teor é o seguinte (Doc.9):

 

“Da análise ao pedido de inscrição como residente não habitual, efectuado em 14 de março de 2014, informo V.Exª, que o mesmo foi deferido, por despacho de 2014-09-04, do Diretor de Serviços, pelo que se procedeu ao respectivo registo em cadastro, com efeitos ao ano de 2013.

 

Considerando que já entregou a declaração de rendimento IRS, do ano de 2013, pode entregar no prazo de 30 dias, a respectiva declaração de substituição, sem qualquer penalidade.

 

Após a entrega da declaração supra referida, deverá dar conhecimento ao seu Serviço de Finanças (Porto ...) através do endereço “sf...2...)”

 

18.10. Na sequência da referida comunicação, os Requerentes, em 2 de Outubro de 2014, submeteram uma declaração de rendimentos modelo 3 de IRS, de substituição, dando conhecimento desse facto ao Serviço de Finanças de Porto ... por correio eletrónico, datado de 7 do mesmo mês (Docs. 10 e 11).

 

18.11. A declaração de substituição apresentada, além dos anexos A (“Trabalho Dependente”) e H (“Benefícios Fiscais e Deduções”) integra ainda o anexo L (“Residente não habitual”).

 

18.12. No referido anexo L, foram declarados no Quadro 4A os rendimentos auferidos pela Requerente, no valor de € 225.569,67, relativamente aos quais foi indicado código de atividade de elevado valor acrescentado “802”, referente aos “quadros superiores de empresas”, nos termos previstos na Portaria n.º 12/2010, de 7 de janeiro e n.º 6 (atual n.º 10) do artigo 72.º do Código do IRS.

 

18.13. Segundo se extrai de informação que integra o PA, a declaração apresentada não produziu os efeitos pretendidos pelos Requerentes, tendo, ao abrigo do artigo 59-º, n.º 5, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), sido a mesma convolada em procedimento de reclamação graciosa, que correu termos junto do Serviço de Finanças do Porto ..., sob o número ...2017... .

 

18.14. Em 3 de Julho de 2017, foi notificado aos Requerentes, para efeitos de exercício do direito de audição prévia, o projeto de decisão de indeferimento da referida reclamação graciosa, com base na seguinte fundamentação:

 

“15. Consultada a DSRC, verifica-se que o s.p., deu entrada em março de 2014 de requerimento para inscrição como RNH, tendo este pedido sido deferido em setembro de 2014 (…), ou seja, efetivamente o s.p. obteve o estatuto de RNH em território Português para efeitos fiscais com o período de vigência de 2013 a 2022, constando como atividade de elevado valor acrescentado o código 888 (outras atividades).

 

16. No entanto, do referido requerimento afere-se que o s.p. requereu a sua inscrição como RNH, mas não especificou qual a atividade a desenvolver bem como o respetivo código de atividade, pelo que ficou inscrito como RNH com o código de atividade – 888 (outras atividades).

 

17. Atividade esta que não consta da tabela de atividade de elevado valor acrescentado, anexa à Portaria n.º 12/2010, de 7 de janeiro, pelo que o s.p. não pode ser tributado à taxa especial de 20%. (…).

 

19. Assim, cumpre informar que cabe ao s.p. requerer a alteração do código de atividade junto da Direção de Serviços de Registo de Contribuintes para a atividade pretendida (código de atividade – 802, descrição da atividade – quadros superiores de empresas) (…).”

 

18.15. No exercício do respetivo direito de audição, os Requerentes apresentaram, como prova documental do alegado exercício de atividade de elevado valor acrescentado, o contrato de trabalho e uma declaração da entidade patronal atestando que a Requerente desempenhava na empresa a função de Diretora de Serviços de Logística, atividade esta que envolvia elevada existência técnica e responsabilidade designadamente na gestão de orçamentos de elevado valor.

 

18.16. Por despacho de 27-09-2017, o Chefe do Serviço de Finanças do Porto ..., no uso de subdelegação competência, proferiu despacho de indeferimento da reclamação graciosa em que havia sido convolada a declaração de substituição apresentada pelos Requerentes, com a seguinte fundamentação (Doc. 2 e PA):

 

 “Cumprido o disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 60.º da Lei Geral Tributária, veio o reclamante exercer o direito de audição, que se dá aqui por integralmente reproduzido, alegando no essencial que não deve ser penalizado por um mero erro acessório e de caráter formal quanto à inscrição como residente não habitual em relação ao cônjuge. Ora, aquando do pedido de inscrição, a DSRC inscreveu a reclamante com o código residual (888) por esta não ter indicado no pedido que exercia atividade constante da tabela de atividades de elevado valor acrescentado (Portaria 12/2010, de 7 de janeiro), inscrição efetuada de acordo com o requerido e provado pelo s.p., tendo o reclamante na declaração de IRS indicado o código 802. Conclui-se que nesta fase não foram trazidos ao processo elementos novos e por a AT já se ter pronunciado sobre o agora alegado, sou de parecer que o pedido deve ser indeferido."

 

18.17. Notificados desta decisão em 06-10-2017, através do Ofício n.º 2017..., do Serviço de Finanças do Porto ..., os Requerentes dela interpuseram recurso hierárquico peticionando a sua revogação com o consequente reconhecimento da validade da declaração de substituição oportunamente apresentada, com os inerentes efeitos designadamente a aplicação da taxa especial de 20% aos rendimentos do trabalho dependente auferidos pela Requerente no ano de 2013 e consequente reembolso do imposto indevidamente cobrado (Doc. 16).

 

18.18. Por despacho de 13-11-2018, do Diretor de Finanças Adjunto, ao abrigo de subdelegação de competências, foi indeferido o recurso, fundamentando-se o decidido na adesão à seguinte informação (Doc.1):

 

“1. No requerimento apresentado a fim de solicitar a sua inscrição como residente não habitual, não especificou a atividade a desenvolver bem como o código de atividade, pelo que ficou inscrito no código 888-outras atividades.

 

2. Não demonstrou de forma inequívoca que exercia uma atividade de elevado valor acrescentado constante da Tabela, já devidamente identificada.

 

3. Perante o exposto, somos de opinião de que os argumentos invocados pelos recorrentes não conduzem à alteração da decisão proferia no processo de reclamação graciosa, sendo de indeferir o pedido.”

 

18.19. A decisão referida foi notificada aos Requerentes em 14-11-2018, através do ofício n.º 2018..., do Serviço de Finanças do Porto... .

 

19. Os factos provados baseiam-se nos documentos juntos ao processo, não existindo, com relevo para a decisão, factos que devam considerar-se como não provados.

 

II. Matéria de direito

 

20. No que concerne ao mérito e em matéria de direito, a questão essencial que se suscita no presente pedido de pronúncia arbitral consiste em saber se à Requerente assiste ou não o direito a ser tributada, em sede de IRS do ano de 2013, na qualidade de residente não habitual considerando que a actividade por ela desenvolvida no referido ano – quadro superior de empresa – se enquadra do âmbito da Portaria n,º 12/2010 e se o reconhecimento prévio desse facto constitui, ou não, pressuposto de aplicação da taxa especial prevista no artigo 72.º, n.º 6 (atual n.º 10), do Código do IRS.

 

21. Porém, considerando o disposto nos artigos 13.º do Código do Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) e 278.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis por força do artigo 29.º, n.º 1, alíneas d) e e) do RJAT, cabe ao Tribunal, a apreciação prévia das exceções invocadas pela Requerida.

 

Questões prévias

 

22. Na Resposta apresentada pela Requerida são invocadas duas exceções dilatórias, a saber: a impropriedade do meio utilizado no presente processo e a incompetência do Tribunal Arbitral em razão da matéria, ambas com o fundamento de que a pretensão dos Requerentes se centra na contestação de um ato administrativo autónomo e prévio à liquidação, ou seja, de um ato pressuposto.

 

23. Assim, considerando que a liquidação impugnada “foi efectuada de acordo com a declaração dos Requerentes, cotejando com os elementos conhecidos pela AT quanto à actividade da Requerente mulher, elementos estes que resultam, também, da declaração (anterior) da Requerente (omissa quanto ao exercício de uma “actividade de valor acrescentado”)” conclui a Requerida na sua resposta que “... o que aqui se pretende, efectivamente, é contestar uma informação que consta do cadastro da AT, informando que a Requerente exerce uma “actividade de valor acrescentado”, o que depois terá efeitos quando tal informação for convocada por situações de facto ou de direito (como, por exemplo, para efectuar uma liquidação de IRS).”

 

24. Nesta perspetiva, entende a Requerida que “o acto anteriormente praticado (de enquadramento cadastral do contribuinte), não tem um carácter preparatório da liquidação, sendo antes um “acto pressuposto”, pois a liquidação atenderá ao mesmo, mas este acto mantém-se para além dessa liquidação,” pelo que, consequentemente, “o meio de reacção judicial posto à disposição do contribuinte para aqueles efeitos é a acção administrativa, não a impugnação.”

 

25. Com esta fundamentação, conclui que a Requerida, das circunstâncias referidas (... resultam, umbilicalmente ligadas entre si, duas excepções dilatórias: a impropriedade do meio utilizado no presente processo e a incompetência do Tribunal Arbitral, em razão da matéria, pois a questão decidenda não comporta, verdadeiramente, qualquer apreciação da legalidade da liquidação, mas sim de um acto autónomo e anterior à mesma, o mencionado “acto pressuposto”. Pelo que perante as invocadas excepçoes dilatórias, que nos termos do artigo 577.º do CPC, importam a absolvição da instância, em cumprimento do n.º 2 do artigo 576.º do mesmo diploma, devem as mesmas ser julgadas procedentes, absolvendo-se em conformidade a entidade Requerida da instância.

 

26. Em suporte da posição que sustenta, a Requerida invoca o acórdão n.º 718/2017, do Tribunal Constitucional, que, em recurso interposto pela Autoridade Tributária e Aduaneira de decisão arbitral, decidiu não julgar inconstitucional “ a interpretação normativa retirada do artigo 54.º do Código de Procedimento e Processo Tributário, com o sentido de que a não impugnação judicial de atos de indeferimento de pedidos de reconhecimento do estatuto de residente não habitual impede a impugnação judicial das decisões finais de liquidação do imposto com fundamento em vícios daqueles”.

 

27. Notificados da resposta apresentada Autoridade Tributária e Aduaneira, os Requerentes vieram pronunciar-se sobre as invocadas exceções, nos termos e com os fundamentos seguintes: “9. Nos presentes autos e por referência à matéria da residência não-habitual, o ato que veio notificado aos Requerentes foi o ato de deferimento do seu pedido de reconhecimento do estatuto de residente não habitual (“RNH”) da Requerente-mulher, conforme melhor resulta do ofício que se juntou como Documento n.º 9 com a petição que dá causa aos presentes autos.

10. Sendo que esse ato de deferimento notificado aos Requerentes não continha qualquer limitação ou indicação relativa à atividade de elevado valor acrescentado exercida,

11. Em particular, não continha qualquer menção a que a Requerente mulher havia ficado inscrita com o código de atividade “888”

12. Nesse sentido, os aqui Requerentes não foram notificados dessa inscrição com o código de atividade “888” promovida pela DSRC,

13. Sendo certo que, em face do teor do ato praticado que lhes veio notificado (que, recorde-se, deferiu a sua pretensão de reconhecimento do estatuto de RNH e os convidou a apresentar uma Declaração de Rendimentos de IRS de substituição em conformidade), os Requerentes careciam do necessário interesse em agir contra o mesmo.”

 

28. Acentuam, ainda, os Requerentes que não tendo sido notificados da decisão de enquadramento cadastral da Requerente A... com o código de atividade “888” não tiveram oportunidade de contra ela reagir pelo que “.17. por um lado, é sabido que os atos em matéria tributária que afetem os direitos e interesses legítimos dos contribuintes só produzem efeitos em relação a estes quando lhes sejam validamente notificados – e só se lhes forem notificados é que os contribuintes poderão ter o ónus (ou, na nossa perspetiva, o direito) - de reagir contra os mesmos.

18. E, por outro lado, é pacífico que, como o próprio Acórdão do TC n.º 718/2017 invocado pela AT na sua resposta nos lembra “o que importa determinar, do ponto de vista do direito de ação, é se ao contribuinte foi conferida efetiva possibilidade de reação contenciosa contra o ato (…) – isto é, se, relativamente àquele ato, lhe foi assegurada uma tutela jurisdicional efetiva.”

19. Ou seja, os pressupostos do juízo de não inconstitucionalidade proferido no mencionado Acórdão e demais conclusões aí apontadas, que a AT despropositadamente procura transpor para os presentes autos para fundamentar o seu entendimento, são:(i) a existência de um ato que, no caso concreto, sendo o ato de indeferimento do reconhecimento do estatuto de RNH, foi qualificado pelo TC como autónomo e prévio; e (ii) o contribuinte, tendo sido notificado do mesmo, teve possibilidade efetiva de reagir contra o mesmo.

20. Por isso, o TC expressamente consagra nesse seu Acórdão n.º 718/2017 a dependência entre o seu juízo de não inconstitucionalidade e a possibilidade de os contribuintes terem reagido do ato: “na medida em que o particular ora recorrido dispôs de uma possibilidade efetiva de reagir contenciosamente contra o ato (…),o comando cuja aplicação foi recusada não restringe intoleravelmente a garantia de defesa, perante os tribunais, dos seus direitos e interesses legítimos.”

21. Ora, como já se apontou, no caso dos presentes autos, e desde logo, não se verifica o pressuposto fundamental de os Requerentes terem tido uma possibilidade efetiva de reagir contenciosamente contra o pretenso ato prévio e autónomo.

22. Não tendo sido conferida possibilidade de reação contra o pretenso “ato administrativo autónomo e prévio à liquidação”, caem por terra, desde logo, os pressupostos em que a AT funda a invocação das duas exceções ou o seu entendimento plasmado na resposta,

23. Que, por isso e desde logo, deve improceder.”

 

29. Com efeito, extrai-se dos documentos que integram o presente processo, mormente do processo administrativo, que à Requerente A... foi reconhecido o estatuto de residente não habitual, com efeitos desde 2013, facto que foi oportunamente notificado com a indicação de que, desse facto, decorria a possibilidade legal de apresentar, sem penalidade, uma declaração de rendimentos de IRS em substituição da que havia sido anteriormente apresentada.

 

30. Dos mesmos elementos e informações que integram o processo administrativo se extrai também que não foi solicitado qualquer esclarecimento ou prova relativos ao alegado exercício de uma atividade de elevado valor acrescentado enquadrada no âmbito da Portaria n.º 12/2010, de 07/01.

 

31. Com efeito, o que se verifica desses elementos é que, tal como vem alegado pelos Requerentes, a AT, promoveu oficiosamente o enquadramento da Requerente A... num código “888” – isto é, não lhe atribuiu o código 802 “quadros superiores de empresas” - sem curar de efetuar a notificação do ato. .

 

32. Não foi, pois, facultado aos Requerentes qualquer possibilidade de reação por qualquer meio, administrativo ou judicial, contra um ato que, na sua Resposta, a Requerida considera “ato pressuposto”, e que não foi levado ao seu conhecimento pela forma legal.

 

33. Por outras palavras, os factos evidenciados no presente processo não correspondem minimamente à situação a que se reporta o acórdão do Tribunal Constitucional invocado pela AT: no processo a que o mesmo se reporta estava em causa o direito de acesso ao regime de desagravamento fiscal de que beneficiam os residentes não habituais, ali se considerando que, sendo a eficácia desse regime dependente de reconhecimento prévio, o ato que recuse tal reconhecimento apenas poderia ser objeto de ação administrativa, não cabendo possibilidade de reação judicial contra o ato de liquidação consequente. 

 

34. Em termos conclusivos, o Tribunal Constitucional decidiu, no acórdão citado, “Não julgar inconstitucional a interpretação normativa retirada do artigo 54.º do CPPT, com o sentido de que a não impugnação judicial de atos de indeferimento de pedidos de reconhecimento do estatuto de residente não habitual impede a impugnação judicial das decisões finais de liquidação do imposto com fundamento em vícios daqueles”.

 

35. Manifestamente, não é este o caso: à Requerente A... foi por decisão da entidade competente, reconhecido o estatuto de residente não habitual sendo, pela mesma decisão, determinada a substituição, sem qualquer penalidade, da declaração de rendimentos do ano de 2013 anteriormente apresentada. 

 

36. Por outro lado, não pode deixar de tomar-se em consideração o facto de o objeto do presente pedido de pronúncia arbitral ser, no plano imediato, a ilegalidade do ato de indeferimento de recurso hierárquico interposto do indeferimento de reclamação graciosa e, de forma mediata, a ilegalidade do ato de liquidação de IRS do ano de 2013.

 

37. Com efeito, os Requerentes impugnam o ato de liquidação de IRS e não a ilegalidade de um qualquer ato de indeferimento de pedido de enquadramento em atividade de elevado valor acrescentado. De resto, nem tal pediu existiu, porquanto à Requerente A... foi reconhecido o estatuto de residente não habitual mas, por decisão oficiosa, não lhe foi atribuído o enquadramento da sua atividade como de elevado valor acrescentado, sendo antes, de forma arbitrária e sem qualquer fundamentação, atribuído um código residual que seria, no entender da AT, o correspondente a outras atividades.

 

38. Como se viu, tal decisão não foi objeto de notificação aos Requerentes, que, confrontados com uma decisão de indeferimento de reclamação graciosa decorrente da convolação de declaração de substituição apresentada, dela vieram a interpor recurso hierárquico.

 

39. Analisando-se as decisões contestadas, quer da reclamação graciosa, quer do recurso dela interposto, se constata que, em ambos os casos, o objeto de apreciação não é a decisão relativa ao não enquadramento da Requerente no âmbito das atividades de elevado valor acrescentado elencadas no Portaria 12/2010, mas antes o próprio ato tributário.

 

40. E em ambos os casos, as decisões de indeferimento pronunciam-se sobre o mérito da questão, no sentido da legalidade do ato de liquidação, com o fundamento de que a Requerente não pode ser enquadrada no âmbito daquelas atividades por não o ter declarado oportunamente. Não é, assim, apreciada a legalidade ou ilegalidade do ato de enquadramento oficioso no âmbito de outras atividades (código 888), mas da própria liquidação.

 

41. Pelo que, sem necessidade de mais explanações e com os fundamentos expostos, não se tem dúvida em acompanhar a argumentação dos Requerentes, entendendo o Tribunal que não se está perante a impropriedade do meio processual utilizado para reagir contra uma liquidação reputada de ilegal, improcedendo, neste parte, a exceção invocada pela Requerida.  

 

42. Dado que, como de resto entende a Requerida, a exceção de incompetência do Tribunal decorreria necessariamente como consequência da impropriedade do meio processual utilizado, considera-se, pelas razões expostas, improceder igualmente a exceção de incompetência do tribunal arbitral suscitada pela Requerida, declarando-se o Tribunal competente para apreciar e pronunciar-se sobre o ato de liquidação impugnado.

 

Do mérito do pedido

 

43. A questão de mérito a decidir consiste, pois, em determinar-se se o ato de liquidação de IRS do ano de 2013 notificado aos Requerentes se encontra ou não ferido de ilegalidade, isto é, se os Requerentes têm ou não o direito a ser tributados, no tocante aos rendimentos auferidos pela Requerente A... naquele ano, à taxa especial de 20%, considerando a atividade por ela exercida enquanto residente não habitual.

 

44. Importa, assim, antes de mais, a análise do quadro normativo relativo a esta matéria em vigor à data da ocorrência do facto tributário em causa no presente processo.

 

45. O regime fiscal do residente não habitual foi instituído pelo Decreto-Lei n.º 249/2009, de 23/09, que aprovou o Código Fiscal do Investimento, de que ficou a constituir os artigos 23.º a 25.º. Posteriormente, através da Lei n.º 20/2012, de 14/05, foram revogados aqueles preceitos, passando este regime a constar dos artigos 16.º, 22.º, 72.º, e 81.º do  Código do IRS, complementado com a Portaria n.º 12/2010, de 07/01, que aprovou a tabela de atividades de elevado valor acrescentado.

 

44. No ano de 2013, em que se situa o facto tributário em causa no presente processo, o artigo 16º do Código do IRS definia o estatuto de residente não habitual nos seguintes termos:

 

"6 - Consideram-se residentes não habituais em território português os sujeitos passivos que, tornando-se fiscalmente residentes nos termos dos n.ºs 1 ou 2, não tenham sido residentes em território português em qualquer dos cinco anos anteriores.

 

7 - O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal pelo período de 10 anos consecutivos a partir do ano, inclusive, da sua inscrição como residente em território português.

 

8 - O sujeito passivo deve solicitar a inscrição como residente não habitual no ato da inscrição como residente em território português ou, posteriormente, até 31 de março, inclusive, do ano seguinte àquele em que se torne residente nesse território.

 

9 - O gozo do direito a ser tributado como residente não habitual em cada ano do período referido no n.º 7 depende de o sujeito passivo ser, nesse ano, considerado residente em território português.

 

10 - O sujeito passivo que não tenha gozado do direito referido no número anterior em um ou mais anos do período referido no n.º 7 pode retomar o gozo do mesmo em qualquer dos anos remanescentes daquele período, a partir do ano, inclusive, em que volte a ser considerado residente em território português".

 

45. No que concerne à tributação de rendimentos derivados do exercício de atividades de elevado valor acrescentado, estabelecia o artigo 72.º, n.º 6, na redação então em vigor que:

 

"6 - Os rendimentos líquidos das categorias A e B auferidos em actividades de elevado valor acrescentado, com carácter científico, artístico ou técnico, a definir em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, por residentes não habituais em território português, são tributados à taxa de 20 %".

 

46. Para efeitos do disposto no preceito acima transcrito foi aprovada, através da Portaria n.º 12/2010, de 07/01, a tabela de atividades de elevado valor acrescentado, nelas se enquadrando as de:

 

"8 – Investidores, administradores e gestores:

...

802 – Quadros superiores de empresas".

 

47. Por despacho do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, de 26-04-2010, divulgado através da circular n.º 2/2010, da AT, de 6 de Maio, foi fixado entendimento no sentido de que, para efeitos de aplicação daquela tabela, “os quadros superiores de empresas (Código 802), são as pessoas com cargo de direcção e poderes de vinculação da pessoa colectiva.”

 

48. É, pois, no âmbito deste quadro normativo que a Requerente A..., considerando que a atividade por ela exercida naquele ano de 2013 se integra naquela tabela como quadro superior de empresas, impugna a liquidação de IRS de que foi destinatária na medida em que viu recusada a aplicação do referido regime.

 

49. Conforme decorre das decisões administrativas contestadas, o fundamento dessa recusa não terá passado pela qualificação da atividade concretamente exercida pela Requerente mas no facto de não ter a mesma sido oportunamente declarada no momento da sua inscrição como residente não habitual.

 

50. Conforme se extrai do n.º 7 do artigo 16.º do Código do IRS “O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal pelo período de 10 anos consecutivos a partir do ano, inclusive, da sua inscrição como residente em território português.”

 

51. No período a que respeita a liquidação ora impugnada, o entendimento da Autoridade Tributária e Aduaneira, divulgado através da Circular referida, orientava-se no sentido de que o acesso às medidas de desagravamento fiscal por residentes não habituais se encontrava depende não só da atribuição do respetivo estatuto como, também, do reconhecimento prévio, no caso, do exercício de uma atividade de valor acrescentado.

 

52. Será, pois, com base neste entendimento, que a Requerida vem alegar que o ato administrativo que reconheça o benefício constitui “ato pressuposto”, daí sustentando que, do indeferimento do respetivo pedido, caberia acção administrativa, autónoma em relação ao ato tributário de liquidação.

 

53. Não se acompanha tal entendimento, porquanto, do texto da lei decorre, com clareza, que o sujeito passivo considerado residente não habitual adquire, automaticamente, o direito a ser tributado como tal.

 

54. Entende, assim, o Tribunal que, no caso em análise, a notificação efetuada aos Requerentes no sentido de entregarem declaração de substituição na sequência do reconhecimento da qualidade de residente não habitual da Requerente A..., se mostra uma decisão conforme com a legislação aplicável, mostrando-se igualmente conforme com a legislação invocada, a entrega dessa declaração com a invocação do exercício de atividade de elevado valor acrescentado. Sem prejuízo de poder a AT exigir a prova dos elementos declarados, se assim o entendesse.

 

55. Salienta-se, de resto, ser esta a atual posição da AT que, reconhecendo o errado da posição até então por ela sustentada, veio agora, por despacho da Diretora-Geral, de 26-06-2019 – divulgado através de Circular n.º 4/2019 – afirmar o  seguinte entendimento: “ 1 - As normas constantes do n.º 10 do artigo 72.º e do n.º 5 do artigo 81.º, ambas do Código do IRS, consubstanciam medidas excecionais de desagravamento da tributação de caráter automático, pois os seus efeitos resultam direta e imediatamente da lei pela simples verificação dos respetivos pressupostos e condições, não estando a sua aplicação dependente de qualquer ato de reconhecimento por parte da AT, conforme determina o artigo 5.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF).”

 

56. Sobre a aplicação do regime em causa, é definido, na citada Circular, o seguinte procedimento: “2 - Assim, deve entender-se que, com o ato de inscrição como residente não habitual o contribuinte adquire o direito a ser tributado nos termos do respetivo regime fiscal.

Consequentemente, caso o contribuinte em algum ano, dos 10 anos de direito ao regime, aufira rendimentos da categoria A e/ou B de atividades que estejam elencadas na Portaria n.º 12/2010, de 7 de janeiro, alterada pela Portaria n.º 230/2019, de 23 de julho - rendimentos de atividades de EVA -, o direito a ser tributado de acordo com o regime excecional, aplicável aos rendimentos advenientes daquelas atividades, adquire-se no momento da verificação dos respetivos pressupostos.

3 - E, sendo o IRS um imposto de periocidade anual, esta observância dos pressupostos legais deve manter-se para efeitos de renovação anual da respetiva aquisição do direito.

Exercício deste direito em cada ano: anexo L da modelo 3

4 - Consequentemente, para exercer o direito ao regime fiscal dos rendimentos derivados de atividades de EVA, bastará que o contribuinte proceda à sua invocação na declaração anual de rendimentos mediante a inscrição do adequado código de atividade de EVA no anexo L da declaração modelo 3, sem necessidade da obtenção de reconhecimento prévio por parte da AT do exercício da atividade invocada.

Elementos de prova

5 - Não obstante, deve o contribuinte estar munido dos elementos comprovativos do efetivo exercício dessa(s) atividade(s) e da correspondente obtenção de rendimentos, bem como dos demais pressupostos legais do direito que invoca em qualquer um dos anos, do período máximo de dez anos em que pode usufruir do estatuto de RNH, e proceder à respetiva apresentação sempre que tal seja solicitado pelos serviços da AT, nos termos previstos no artigo 128.º do Código do IRS.

6 - Deste modo, a verificação dos factos/pressupostos do direito invocados na declaração ocorre através das provas a apresentar pelos contribuintes em fase posterior à entrega da declaração de rendimentos, e não mediante o averbamento do respetivo código na aplicação do cadastro (SGRC), tal como ocorreu até ao presente momento.

Elementos de prova – Atividades de Eva previstas na Portaria n.º 12/2010, de 7 de janeiro

7 - No caso das atividades de EVA previstas na Portaria n.º 12/2010, de 07 de janeiro, em conjugação com os pontos 7 e 8 da Circular n.º 2/2010, de 6 de maio, constituem elementos de prova, designadamente, os seguintes:

a) Contrato de trabalho ou de prestação de serviços que identifique objetivamente as funções exercidas, acompanhado de documento comprovativo de inscrição em Ordem Profissional, no caso de exercer atividade que careça dessa inscrição;

b) Documento comprovativo do exercício do cargo de direção (por exemplo contrato de trabalho) e procuração onde conste que o requerente possui poderes de vinculação da pessoa coletiva, no caso de atividade "Quadro Superior de Empresa" (ponto 7 da Circular n.º 2/2010, de 06 de maio), sendo considerada prova bastante uma procuração com poderes conjuntos;...”

 

56. Todavia, mantém-se na atual orientação a noção de quadro superior de empresa já anteriormente divulgada através da Circular n.º 2/2010, no sentido de que “os quadros superiores de empresas (Código 802), são as pessoas com cargo de direção e poderes de vinculação da pessoa coletiva.”

 

57. Entende-se, porém, que a noção de quadro superior de empresa não pode ser interpretada no sentido vertido nas circulares acima referidas.

 

58. Com efeito, esta matéria foi já objeto de análise em decisão arbitral de 18-06-2019, proferida no processo n.º 505/2018-T, na qual foi expresso entendimento que a seguir se transcreve, “ 4.4. Da noção de quadro superior. Em relação à atividade desenvolvida pelo Requerente, a noção de quadro superior não se confunde com a noção de gerente ou administrador. E não pode ser interpretada no sentido vertido na Circular da AT.

Quadro superior de uma empresa é um conceito típico de Direito do Trabalho.

Nos termos do artigo 11º n.º 2 da LGT "sempre que, nas normas fiscais, se empreguem termos próprios de outros ramos de direito, devem os mesmos ser interpretados no mesmo sentido daquele que aí têm, salvo se outro decorrer diretamente da lei".

Assim, é no Direito do Trabalho que devemos procurar o que venha a ser um quadro superior.

Segundo o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça do processo n.º 0851540 de 24-09-2008, o que releva para que alguém se qualifique como quadro superior é não só o exercício de funções de maior complexidade técnica, mas também o que pressupõe uma elevada confiança, mais elevado grau de responsabilidade ou mais especial qualificação.

No mesmo sentido, veja-se NETO, Abílio, in «Código do Trabalho e Legislação Complementar Anotados», Ediforum, 3.ª Edição, pág. 246, que considera integrar o núcleo funcional de um quadro superior, aquele trabalhador que exerce funções que pressupõem elevada confiança, elevado grau de responsabilidade ou mais especial qualificação, não se exigindo, porém, para o preenchimento do conceito de quadro superior, que esse trabalhador, necessariamente, dirija ou supervisione outros trabalhadores ou se insira numa organização dentro da qual detenha, em termos hierárquicos, uma posição superior em relação a outros elementos da mesma.

 

59. Aderindo, sem reservas, ao entendimento que acima se transcreve, considera o Tribunal que sendo a Requerente diretora de serviços de logística, atividade que exigia uma elevada capacidade técnica e de responsabilidade, bem como a gestão de elevados orçamentos da empresa, conforme decorre do contrato de trabalho e declaração da entidade empregadora, deve a mesma ser considerada como quadro superior da empresa.

 

60. Consequentemente, considera o Tribunal que os rendimentos auferidos no ano de 2013 pela Requerente A... ao serviço da empresa C... são provenientes do exercício de uma atividade de elevado valor acrescentado enquadrável no código 802 – quadros superiores de empresas – da tabela anexa à Portaria 12/2010, de 07 /01.

 

61. Aos referidos rendimentos deve, assim, ser aplicada a taxa especial de 20% prevista no n.º 6 (atual n.º 10), do Código do IRS, concluindo-se, portanto, pela ilegalidade, por vício de violação da lei, da liquidação e decisão administrativa impugnadas, devendo esta ser revogada e anulada aquela.

 

Do direito a juros indemnizatórios

 

62. A par da anulação dos atos de liquidação, e consequente reembolso das importâncias indevidamente cobradas, os Requerente solicitam ainda que lhes seja reconhecido o direito a juros indemnizatórios, ao abrigo do artigo 43.º da LGT.

 

63. Com efeito, nos termos da norma do n.º 1 do referido artigo, serão devidos juros indemnizatórios "quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido." Para além dos meios referidos na norma que se transcreve, entendemos que, conforme decorre do n.º 5 do art. 24.º do RJAT, o direito aos mencionados juros pode ser reconhecido no processo arbitral e, assim, se conhece do pedido.

 

64. O direito a juros indemnizatórios a que alude a norma da LGT supra referida pressupõe que haja sido pago imposto por montante superior ao devido e que tal derive de erro, de facto ou de direito, imputável aos serviços da AT.

 

65. No caso dos autos, é manifesto que, na sequência da ilegalidade do ato de liquidação, pelas razões que se apontaram anteriormente, a Requerente efetuou o pagamento de importância manifestamente indevida.

 

66. Resulta, também, dos autos, que a ilegalidade do ato de liquidação objeto do presente processo é diretamente imputável à Requerida, que, por sua iniciativa, o praticou sem suporte legal, padecendo de errada aplicação das normas jurídicas ao caso concreto.

 

67. Reconhece-se, assim, aos Requerentes o direito aos juros indemnizatórios peticionados, contados, à taxa legal, sobre o montante indevidamente cobrado, desde a data do respetivo pagamento até ao momento do efetivo reembolso (cfr. LGT, art.43.º, n.º 1 e CPPT, art. 61.º).

 

IV. Decisão

 

Nestes termos, e com os fundamentos expostos, o Tribunal Arbitral decide:

 

a) Julgar improcedente a exceção de impropriedade do meio processual utilizado;

 

b) Julgar improceder a exceção de incompetência do Tribunal Arbitral para conhecer do presente pedido;

 

c) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, determinando-se a revogação da decisão administrativa e declarando-se a ilegalidade da liquidação impugnada, com a consequente anulação e reembolso das importâncias indevidamente cobradas, acrescidas dos correspondentes juros indemnizatórios, contados nos termos legais.

 

Valor do processo: Fixa-se o valor do processo em € 52 564,40, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável por remissão do artigo 29.º, n,º1, alíneas a) e b), do RJAT e artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

Custas: Ao abrigo do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, e nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixo o montante das custas em € 2 142,00, a cargo da Requerida (AT).

 

Lisboa, 14 de outubro de 2019,

 

O árbitro,

Álvaro Caneira