Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 322/2017-T
Data da decisão: 2018-02-15  IRC  
Valor do pedido: € 6.858,91
Tema: IRC – Incompetência relativa em razão do valor do processo
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Decisão Arbitral

 

  1. Relatório
  1. A…– SOCIEDADE GESTORA DE PARTICIPAÇÕES SOCIAIS, S.A., pessoa coletiva com o número de identificação fiscal (“NIF”) … (doravante apenas designada por Requerente), apresentou, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, i.e., Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), pedido de constituição de tribunal arbitral singular, de forma a ser declarada a ilegalidade do ato tributário consubstanciado na liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) n.º 2017… de 18 de janeiro de 2017, na liquidação de juros compensatórios n.º 2017… e na demonstração de acerto de contas n.º 2017…, ambas datadas de 20 de janeiro de 2017, referente ao exercício de 2012.
  2. É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira (“Requerida” ou “AT”).
  3. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico deste Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) designou como árbitro singular o signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável, e notificou as partes dessa designação no dia 8 de junho de 2017.
  4. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, e mediante a comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, o Tribunal Arbitral Singular ficou constituído no dia 16 de agosto de 2017.
  5. Por despacho de 10 de janeiro de 2018, o Tribunal Arbitral Singular, ao abrigo do disposto na alínea c) do artigo 16.º do RJAT, decidiu, sem oposição das partes, que não se mostrava necessário promover a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT.
  6. Não obstante o supra exposto, e de harmonia com o princípio do contraditório, assegurado, designadamente, através da faculdade conferida às partes de se pronunciarem sobre quaisquer questões de facto ou de direito suscitadas no processo, foi concedido um prazo simultâneo de quinze dias para ambas as partes se pronunciarem sobre o cálculo do valor da causa associado ao processo em apreço, inicialmente definido pela Requerente em € 6.858,91.
  7. Com efeito, considerando o valor dos ajustamentos refletidos no ato tributário cuja ilegalidade a Requerente peticiona, o Tribunal Arbitral Singular considerou verificar-se uma potencial situação de incompetência relativa fruto do valor da causa considerado.
  8. Salienta-se que a eventual incompetência relativa é de conhecimento oficioso do tribunal e pode ser decidida independentemente de ser arguida pelas partes.
  9. Não obstante, e ao abrigo do princípio do contraditório, o Tribunal Arbitral Singular considerou que, em qualquer caso, a decisão a ser tomada deveria ser precedida da possibilidade do exercício do contraditório pelas partes.
  10. A 14 de fevereiro de 2018, em conformidade com o n.º 2 do artigo 18.º do RJAT, o Tribunal Arbitral Singular decidiu não ser necessária a produção de alegações orais, por estarem perfeitamente definidas as posições das partes nos respetivos articulados, e fixou como prazo para a decisão arbitral o dia 16 fevereiro de 2018.
  1. Matéria de facto
  1. Examinada a prova documental produzida, o tribunal julga provados, com relevo para a decisão da causa, os seguintes factos:
  1. A Requerente era a sociedade dominante do perímetro de sociedades do Grupo B… tributada ao abrigo do Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades, previsto no artigo 69.º do Código do IRC.
  2. Na sequência de uma ação inspetiva externa, com referência ao exercício de 2012, os serviços de inspeção tributária efetuaram um conjunto de correções ao resultado individual da Requerente, no valor de € 1.017.292,53.
  3. No que releva para o presente efeito, a Requerente peticiona a ilegalidade do ato tributário supra referido e, consequentemente, a anulação relativamente à parte resultante das seguintes correções propostas no âmbito da ação inspetiva:
    1. Acréscimo ao resultado tributável do exercício do montante de € 347.222,21 referente a um ajustamento de transição positivo, com fundamento no disposto no artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de julho e nos artigos 18.º, n.º 9, alínea a) e 45.º, n.º 3 do Código do IRC.
    2. Acréscimo ao resultado tributável do exercício do montante de € 344.456,71, referente a prestações acessórias não remuneradas, com fundamento no disposto no artigo 23.º do Código do IRC.
    3. Acréscimo ao resultado tributável do exercício do montante de € 125.711,01, referente a encargos financeiros suportados com a aquisição de partes de capital, com fundamento no disposto no artigo 32.º, n.º 2 do Estatuto dos Benefícios Fiscais.
  4. As correções em apreço totalizam € 817.389,93, sendo que a diferença face ao valor global das correções propostas (€ 1.017.292,53) não foi objeto de qualquer tipo de contestação pela Requerente no âmbito do pedido de pronúncia arbitral.
  5. Em resultado da ação inspetiva o resultado fiscal individual da Requerente foi alterado passando de um prejuízo fiscal de € 645.228,22 para lucro tributável de € 372.064,31.
  6. Não obstante a correção produzida ao nível individual da Requerente, manteve-se o prejuízo fiscal na esfera do consolidado fiscal que domina, não tendo existido, portanto, qualquer encargo adicional direto em sede de IRC por via das correções em apreço.
  7. Do ato de liquidação em contestação resultou um montante adicional a pagar pela Requerente no total € 6.858,91, decomposto em € 6.042,44 a pagar por Derrama Municipal fruto do lucro tributável individual apurado pela Requerente e, bem assim, € 816,47 decorrente dos respetivos juros indemnizatórios.
  1. A convicção do Tribunal sobre os factos dados como provados resultou dos documentos anexados aos autos e constantes do pedido e das alegações, não impugnadas, das partes, conforme se especifica nos pontos da matéria de facto acima enunciados.
  1. Apreciação da questão da incompetência (relativa)
  1. Entendimento das Partes
  1.  Em face do despacho produzido, a Requerente apresentou a sua resposta no dia 29 de janeiro, pugnando pela consideração do valor da causa proposto no respetivo pedido de pronúncia arbitral, na medida em que o mesmo corresponde ao IRC a pagar adicionalmente pela Requerente decorrente das correções efetuadas em sede inspetiva, defendendo que o que está em causa é a impugnação de um ato tributário de liquidação de imposto pelo que o valor da causa é o da importância cuja anulação se pretende.
  2.  A Requerente concede também que tal não obsta a que esteja em causa a legalidade de correções ao resultado individual da Requerente num montante total de € 1.017.292,53 que se encontram refletidas no aludido ato tributário.
  3.  A Requerida, instada a pronunciar-se sobre a mesma matéria, concorda com as justificações apresentadas pela Requerente para a indicação do valor da causa atribuído na petição inicial, as quais considera adequadas e pertinentes, considerando o aludido valor como o da utilidade económica imediata do pedido, pelo que informa nada opor à fixação do mesmo como o valor da causa.
  1. Apreciação do tribunal
  1. Em termos gerais, as regras relativas à fixação do valor da causa nos processos tributários encontram-se atualmente no artigo 97.º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”). Em geral, existe uma dicotomia entre a impugnação da liquidação, em que relevaria a importância cuja anulação se pretende [alínea a)] e quando seja impugnado o ato de fixação da matéria coletável, em que se consideraria o valor contestado [alínea b)].
  2. Ora, nos casos de fixação da matéria coletável constata-se que, para efeitos de determinação do valor da causa, podem estar em discussão as mesmas correções fiscais, em termos quantitativos, mas um diferente valor da causa – com impacto, por exemplo, na determinação da alçada nos tribunais ou de cálculo de custas em processos de arbitragem.
  3. De facto, veja-se as situações em que a AT possa proceder a avultadas correções à matéria coletável, sem que tais correções originem qualquer imposto a pagar, considerando, por exemplo, a existência de prejuízos fiscais reportáveis. Nestas circunstâncias, o valor da causa corresponderia, portanto, ao valor das próprias correções impugnadas.
  4. Por outro lado, numa situação em que a AT proceda a correções idênticas à matéria coletável mas, desta feita, porque o contribuinte não tinha prejuízos fiscais reportáveis, era gerada uma liquidação de imposto a pagar, então, e embora, reitere-se, estivesse em causa a mesma quantificação da matéria coletável, o valor da causa corresponderia ao valor da liquidação – o qual, como é facilmente percetível, seria muitíssimo inferior ao valor das correções que a geraram.
  5. Nesse caso, o tribunal seria chamado a sindicar a legalidade das mesmas correções, eventualmente decorrentes de um semelhante procedimento inspetivo, mas o valor da ação seria diametralmente diferente.
  6. De facto, em sede administrativa, por exemplo, poderia implicar a impossibilidade de recurso de uma determinada decisão para instância superior.
  7. A este respeito, reconhece-se, ainda assim, a eventual justificação para este enquadramento distinto no caso em que não exista qualquer liquidação e, portanto, inexiste um impacto financeiro imediato, enquanto no outro caso existe um impacto (negativo) imediato por impor o pagamento de um montante (ou prestação de garantia) que poderá nunca se vir a verificar no primeiro caso, justificando-se, em parte, por exemplo, a redução das custas (por via de um valor da causa inferior) quando se trate da contestação a uma liquidação (ainda que como supra se demonstrou, tal possa impactar subsequentemente as possibilidades de recurso em sede administrativa).
  8. Contudo, o princípio enunciado supra não se pode sobrepor àquilo que é o princípio básico de igualdade, constitucionalmente consagrado.
  9. A este respeito, veja-se o entendimento de Jorge Lopes de Sousa (Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado, 6ª Edição, 2011, Áreas Editora, p. 73)

Nos casos em que é impugnado diretamente o ato de fixação da matéria coletável, referido na alínea b) do n.º 1 do artigo 97º-A, o benefício que se pretende obter não é equivalente ao “valor contestado”, adotado como critério de fixação do valor, mas sim ao imposto que deixaria de ser cobrado com a alteração do valor da matéria coletável contestado, que será sempre muito menor que aquele.”.

  1. Daí que, como refere o mesmo autor, “(…) em coerência com a opção legislativa subjacente à fixação do valor prevista na alínea a), deveria, nestas situações de impugnação de ato de fixação de matéria coletável, optar-se pela fixação do valor da ação em função do valor do imposto que estaria conexionado com a matéria coletável contestada.».
  2. Assim, conclui, «Podem colocar-se, aqui, problemas de compatibilidade deste critério com o princípio constitucional da igualdade, já que a impugnação judicial de atos de fixação da matéria coletável em que está em causa a contestação de valor idêntico terá valor diferente para efeitos de tributação em custas, conforme seja ou não praticado um ato de liquidação, podendo suceder mesmo que a uma mais ampla impugnação corresponda menor valor da ação. É, assim, de aventar a inconstitucionalidade material do critério utilizado na alínea b), à face do princípio constitucional da Igualdade (art. 13º da CRP).».
  3. Em face do contexto supra, e fruto, desde logo, da introdução (ainda recente) da arbitragem tributária no meio jurídico português, é essencial ao bom funcionamento deste mecanismo uma abordagem prudente na análise destas questões perante a eventualidade de um erro de julgamento lesivo do interesse de qualquer uma das partes, posteriormente sujeito às reduzidas possibilidades de impugnação e recurso das decisões arbitrais.
  4. A este respeito, e não por acaso, veja-se o disposto no artigo 5.º do RJAT no qual se definem os critérios subjacentes à composição dos tribunais arbitrais, nomeadamente o seu funcionamento com árbitro singular ou com intervenção do coletivo de três árbitros.
  5. Ora, nos termos da alínea a), n.º 2 do aludido artigo os tribunais singulares funcionam quando o valor do pedido de pronúncia não ultrapasse duas vezes o valor da alçada do Tribunal Central Administrativo (atualmente o valor da alçada é de € 30.000) e o sujeito passivo opta por não designar árbitro.
  6. Por outro lado, os tribunais arbitrais funcionam com intervenção do coletivo de três árbitros quando o valor do pedido da pronúncia ultrapasse o aludido limite de duas vezes o valor da alçada ou quando o sujeito passivo opte por designar árbitro (independentemente do valor do pedido da pronúncia).
  7. Neste contexto, salienta-se como variável determinante à constituição de um tribunal coletivo o valor do pedido (inicialmente definido pela Requerente), procurando, por esta via, garantir-se a adequada proteção dos direitos e garantias das partes em diferendo, ao promover a análise do tema por um coletivo, e não unicamente por um único árbitro.
  8. Com efeito, tal consubstancia um dos principais mecanismos no âmbito da arbitragem tributária no sentido de garantir a necessária ponderação e discussão de qualquer decisão a proferir, particularmente relevante quando o valor do pedido assume um caráter potencialmente material na esfera dos contribuintes, nos termos definidos no referido artigo 5.º.
  9. De facto, existem múltiplas referências no artigo 5.º do RJAT ao “valor do pedido”, ainda que não exista nenhuma indicação sobre a forma de o determinar.
  10. Neste contexto, refira-se a alínea e) do n.º 2 do artigo 10.º do RJAT, em que se faz referência à “indicação do valor da utilidade económica do pedido”, como um dos requisitos do pedido de constituição do tribunal arbitral a apresentar pela Requerente.
  11. De facto, o RJAT transfere para a Requerente a responsabilidade pela definição inicial do valor da utilidade económica do pedido, ainda que, naturalmente, sujeita a apreciação pelo tribunal, como se verifica no caso em apreço.
  12. Neste contexto, não se vislumbra qualquer outra conclusão possível que não seja que a referência do artigo 10.º não é mais do que uma definição (ainda que apenas ligeiramente) mais detalhada do conceito do valor do pedido constante do artigo 5.º.
  13. A este respeito, e conforme desenvolvido em doutas decisões arbitrais (veja-se, a título de exemplo, a decisão proferida no âmbito do processo n.º 151/2013-T) a legislação subsidiária em relação ao RJAT para este efeito é o CPPT em que se encontram, no artigo 97.º-A, as regras expressas para a determinação do valor da causa, potencialmente aplicáveis a todas as situações referidas no artigo 2.º, n.º 1 do RJAT.
  14. De facto, apesar do Regulamento de Custas da Arbitragem Tributária também conter normas sobre a determinação do valor da causa, aplicáveis para efeitos de custas, não é de supor que se deva recorrer àquele documento para aferir os métodos de determinação dos valores dos litígios, desde logo pela sua introdução posterior à publicação do todo o RJAT.
  15. Ademais, a potencial utilização daquele Regulamento (que nos termos do ario 12.º do RJAT é da exclusiva responsabilidade do CAAD, uma entidade de direito privado, sem fins lucrativos) na determinação do valor do litígio (entenda-se, utilidade económica do pedido) suscitaria, desde logo, questões relacionadas com a vinculação da própria Requerida à arbitragem tributária dado que pela Portaria n.º 112.º-A/2011 esta se encontra vinculada a um valor de litígio até ao valor máximo de € 10 milhões.
  16. Caso assim não fosse, estaria na área de decisão do CAAD a definição dos critérios subjacentes à vinculação da AT ao mecanismo da arbitragem tributária, o que resultaria numa interferência numa esfera de competência que, naturalmente, não será a sua, mas do poder executivo.
  17. Em regresso ao caso concreto, resultando a liquidação que consubstancia o valor da causa proposto pela Requerente e com o acordo da Requerida, apenas do montante a pagar em sede de Derrama Municipal (e não diretamente em sede de IRC) considera o Tribunal importante, igualmente, salientar o enquadramento da Derrama Municipal no ordenamento jurídico-tributário português, objeto de discussões desde a sua introdução.
  18. A este respeito, recorre-se, para este efeito, ao acórdão n.º 197/2013 de 15 de maio de 2013 do Tribunal Constitucional, no qual se define a Derrama Municipal como “(…) um imposto municipal, expressão, portanto, da autonomia financeira de que gozam as autarquias locais e concretamente os municípios (…)”

(…) um imposto reputa-se adicional quando incide sobre a coleta do imposto principal, e adicionamento quando incide sobre a matéria coletável daquele (…) tendo a derrama passado a ser calculada a partir do lucro tributável - e não já a partir da coleta - há que concluir que a mesma se converteu, de uma perspetiva jurídico-financeira, num adicionamento ao IRC, perdendo a sua natureza de adicional.[1]

À luz dos novos dados normativos, a derrama assume-se como um imposto autónomo, no sentido de dependente - leia-se, não acessório - fundando a doutrina tal convicção na circunstância de que todos os seus elementos essenciais constam da lei ou dependem da vontade dos municípios, cujo interesse é determinante na decisão quanto ao respetivo lançamento. A sua relação com o IRC cinge-se, portanto, para efeitos do seu cálculo e por razões de simplicidade, a uma base tributável comum, que não prejudica nem obsta à existência de relações jurídico-tributárias autónomas entre os dois impostos[2].

“É certo que a derrama incide sobre o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas, de onde decorre que nos casos em que não haja lugar a tributação do rendimento, também não haverá obrigação de pagamento da derrama, por falta de base de incidência. No entanto, relativamente a qualquer outra vicissitude com repercussão no IRC - v.g., invalidade da liquidação, deduções à matéria coletável e à coleta, reduções de taxa - a derrama adquiriu estatuto de imunidade, desligando-se efetivamente do imposto principal[3]”.

  1. De facto, verifica-se que a liquidação em apreço resulta unicamente do impacto em sede de Derrama Municipal, não existindo, portanto, qualquer tipo de encargo adicional direto em sede de IRC por via dos ajustamentos efetuados ao resultado fiscal da Requerente.
  2. Com efeito, e fruto do contexto descrito, entende o presente Tribunal que a consideração do valor a pagar por conta de um imposto autónomo do IRC para efeitos da determinação do valor do pedido no presente processo, sem prejuízo de constar da mesma nota de liquidação, suscita fundadas dúvidas no sentido de garantir o necessário equilíbrio na definição do valor da utilidade económica do presente pedido de pronúncia arbitral.
  3. De facto, a jurisprudência e doutrina produzida sobre esta matéria admite os desafios associados à interpretação desta temática, decorrente das várias fontes de direito disponíveis, nem sempre coerentes entre si e que dificultam a aplicação de uma abordagem sistemática, simples e clara à determinação do valor relevante, desde logo para determinar a utilidade económica do pedido e, por consequência, a necessidade do mesmo ser analisado no âmbito de um Tribunal Arbitral Coletivo.
  4. A título de exemplo, veja-se um cenário em que as correções ao resultado fiscal propostas à Requerente eram concretizadas a um sujeito passivo estabelecido num município em que não é aplicada a Derrama Municipal. Tal implicaria a consideração de um valor do pedido completamente distinto, ainda que a realidade subjacente à matéria contestada fosse exatamente igual, com as consequências já anteriormente identificadas.
  5. Veja-se ainda o caso em que a potencial correção fosse de dezenas de milhões de euros, ainda que a liquidação espelhasse um valor a pagar de apenas € 1 (fruto, por exemplo, da existência de prejuízos fiscais), pelo que não se comprovando um valor de utilidade económica distinto, resultaria daí potencialmente um valor do pedido equivalente ao valor a pagar, sendo o processo analisado por um árbitro singular (não tendo existido opção em contrário), com claros prejuízos em todos mecanismos de proteção dos direitos e garantias das partes envolvidas.
  6. Com efeito, e novamente salientando-se a necessidade de utilizar o mecanismo da arbitragem tributária de forma conscienciosa, prudente e responsável, afigura-se ao Tribunal que o valor do pedido, relevante para efeitos da aplicação do artigo 5.º do RJAT, não pode corresponder, neste caso, ao valor da liquidação paga pela Requerente no montante de € 6.858,91 quando existem correções objeto de contestação no total de € 817.389,93.
  7. A este respeito, saliente-se ainda a necessidade de aferir a utilidade económica de um determinado pedido não com base no seu mero efeito imediato (que poderá ser muito reduzido ou mesmo inexistente), mas considerando, igualmente, o seu potencial impacto futuro.
  8. Neste contexto, reconhece o presente tribunal a escassa doutrina e jurisprudência sobre o conceito da utilidade económica do pedido relevante para o presente efeito, reconhecendo que, em determinadas situações, tal possa ser suscetível de divergência de posição.
  9. De facto, e conforme amplamente discutido anteriormente, considera o presente tribunal que a interpretação literal do valor da nota de liquidação de um imposto para a determinação do valor do pedido suscitaria graves questões de iniquidade e um sério risco na correta abordagem em sede arbitral[4], por exemplo, em situações em que eventuais correções ao resultado fiscal de um contribuinte fossem apreciadas por um Tribunal Arbitral Singular quando, pelo disposto no RJAT e pelo espírito do legislador com a introdução da arbitragem tributária, tal deveria ser objeto de apreciação por um Tribunal Arbitral Coletivo (quando o valor do pedido seja superior a € 60.000).
  10. Neste contexto, e por forma a não esvaziar de sentido o disposto no artigo 5.º e 10.º do RJAT no que se refere ao valor do pedido (entenda-se, utilidade económica do pedido), considera o tribunal que deverá ser considerado, não havendo sido disponibilizada informação adicional pela Requerente em sentido contrário, o montante de € 817.389,93, correspondente ao somatório das correções propostas pela Requerida em sede de inspeção tributária e objeto de contestação neste pedido de pronúncia arbitral.
  1. Decisão
  1. Termos em que este Tribunal Arbitral Singular decide declarar-se incompetente em razão do valor da causa, sem prejuízo do disposto no artigo 24.º, n.º 3 do RJAT.
  1. Valor do processo
  1. Fixa-se o valor do processo em € 817.389,93.
  2. A fixação do valor do processo nesta instância não prejudica, naturalmente, que a Requerente seja capaz de calcular e justificar um valor de utilidade económica distinto, desde logo pelo facto do direito à dedução do prejuízo fiscal apurado no exercício de 2012 terminar no exercício de 2017 (entretanto encerrado).
  1. Custas
  1. Entende-se que o único valor possível de se considerar para efeitos da determinação do valor das custas no processo em apreço será aquele que motivou a constituição do presente Tribunal Arbitral Singular e que, no caso em apreço, corresponde ao valor da nota da liquidação recebida e paga pela Requerente, € 6.858,91.
  2. De harmonia com o disposto no artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 612, nos termos da Tabela I do mencionado Regulamento, a cargo da Requerente, dada a sua responsabilidade na definição do valor do pedido que suscitou a constituição do presente Tribunal Arbitral Singular.

Notifique-se.

Lisboa, CAAD, 15 de fevereiro de 2018

O Árbitro

 

(Sérgio Santos Pereira)

 



[1] Sérgio Vasques, "O sistema de tributação local e a derrama", Fiscalidade, n.º 38, 2009, p. 121; Jónatas Machado/Paulo Nogueira da Costa, "As derramas municipais e o conceito de estabelecimento estável", Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor J. L. Saldanha Sanches, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, p. 854.

[2] Saldanha Sanches, "A derrama, os recursos naturais e o problema da distribuição de receita entre os municípios", Fiscalidade, n.º 38, 2009, p. 137

[3] Saldanha Sanches, "A derrama, os recursos naturais e o problema da distribuição de receita entre os municípios", cit., p. 138.

[4] Serena Cabrita Neto e Carla Castelo Trindade in “Contencioso Tributário, Volume II”, Almedina, 2017, pp. 172-173.