Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 324/2022-T
Data da decisão: 2023-03-27   
Valor do pedido: € 4.729.060,86
Tema: IRC – Mais e menos valias; Imóveis adquiridos em venda judicial.
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SUMÁRIO:

Nos imóveis adquiridos em venda judicial, o valor de aquisição a ter em conta para efeitos do disposto no artigo 64.º, n.º 3, alínea b), do Código do IRC, é o valor que consta do acto ou contrato a que alude a subalínea 16.ª, do n.º 4, do artigo 12.º do Código do IMT.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

 

            Os Árbitros Carla Castelo Trindade, João Gonçalves da Silva e Ana Pinto Moraes, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral, decidem no seguinte:

 

I. RELATÓRIO

 

            1. A..., S.A., com o número de identificação fiscal..., com sede na Rua ..., n.º ..., em Lisboa (“Requerente”), apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto no artigo 10.º do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), em conjugação com os artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, tendo em vista a declaração de ilegalidade do despacho de indeferimento do recurso hierárquico apresentado contra o despacho de indeferimento da reclamação graciosa que teve como objecto o acto de autoliquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (“IRC”) n.º 2019..., referente ao período de tributação de 2017.

 

            2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite em 18 de Maio de 2022 pelo Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT” ou “Requerida”).

 

            3. O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As partes foram notificadas dessa designação em 7 de Julho de 2022, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

 

            4. O Requerente veio sustentar a procedência do seu pedido, em síntese, tendo em conta os seguintes argumentos:

  1. Nos termos do artigo 64.º do Código do IRC, os alienantes e adquirentes de bens imóveis devem adoptar valores normais de mercado que não podem ser inferiores aos valores patrimoniais tributários (“VPT”) definitivos;
  2. O legislador concedeu ao sujeito passivo o direito à prova do preço efectivo nas transmissões de bens imóveis ao prever um procedimento, no artigo 139.º, n.º 1 do Código do IRC, que permite ao sujeito passivo demonstrar que o preço praticado é efectivamente inferior ao VPT e, como tal, afastar a aplicação do n.º 2 do artigo 64.º do Código do IRC;
  3. Como em 2017 o Requerente alienou diversos activos imobiliários – cujos valores de aquisição eram inferiores ao respectivo VPT –, e uma vez que o anterior detentor dos imóveis e o Requerente não utilizaram o procedimento de prova do preço efectivo previsto no artigo 139.º, n.º 1 do Código do IRC, o Requerente deu cumprimento às diligências previstas no artigo 64.º do Código do IRC;
  4. Assim, no apuramento do resultado tributável de 2017, o Requerente efectuou (i) um acréscimo correspondente à diferença entre o valor patrimonial tributário e o valor de transmissão dos imóveis alienados e (ii) uma dedução correspondente à diferença entre o valor patrimonial tributário e o valor de aquisição dos imóveis alienados que tinham sido adquiridos por um valor inferior ao VPT à data;
  5. Porém, o Requerente não efectuou a correcção prevista no artigo 64.º, n.º 3, alínea b), do Código do IRC aos imóveis adquiridos por via de arrematação judicial;
  6. Sucede que não decorre da lei qualquer limitação àquela correcção, que deverá ser aplicada a todos os activos imobiliários independentemente do seu processo de aquisição, razão pela qual se impunha a aplicação do artigo 64.º, n.º 3, alínea b), do Código do IRC aos imóveis adquiridos por via de arrematação judicial;
  7. O artigo 64.º do Código do IRC remete para o VPT que serviu de base à liquidação do IMT ou que serviria no caso de não haver lugar à liquidação deste imposto;
  8. No caso dos imóveis adquiridos mediante arrematação judicial, o valor tributável para efeitos de incidência de IMT é o preço constante do acto ou contrato (subalínea 16.º, do n.º 4, do artigo 12.º do Código do IMT), não se aplicando por isso a regra geral de determinação do valor tributável prevista no n.º 1, do artigo 12.º do Código do IMT;
  9. Poderia considerar-se que os casos de imóveis adquiridos mediante arrematação judicial não se enquadram nas “situações normais de mercado”, e como tal não se deverá ter em consideração a diferença entre o VPT e o valor de aquisição para efeitos do apuramento do lucro tributável;
  10. Poderia sustentar-se que nas situações de arrematação judicial o valor a considerar para efeitos do ajustamento previsto no artigo 64.º do Código do IRC corresponde ao preço constante do acto ou contrato, por força das disposições do artigo 12.º do Código do IMT, o qual prevê a sua incidência sobre este valor independentemente do VPT do imóvel em causa;
  11. No entanto, tal conclusão só seria possível por via de uma leitura extensiva de um artigo previsto no Código de IRC com recurso às normas de incidência aplicáveis em sede de IMT;
  12. Tanto mais que o n.º 1 do artigo 64.º do Código do IRC refere que o valor de referência a ter em conta para efeitos do cômputo da mais ou menos-valia fiscal é o VPT definitivo que serviu de base à liquidação do IMT ou que teria servido, caso não tenha havido liquidação deste imposto;
  13. Para além disso, aquelas disposições (dos Códigos do IRC e IMT) têm distintos âmbitos de aplicação;
  14. O artigo 64.º do Código do IRC pretende determinar as correcções a efectuar para o apuramento do lucro tributável, quando haja lugar à transmissão onerosa de imóveis, estabelecendo as regras específicas para o efeito;
  15. Já o artigo 12.º do Código do IMT destina-se a fixar o valor tributável relativamente ao IMT, constituindo-se a obrigação tributária apenas no momento em que ocorrer a transmissão;
  16. Nas situações de compra por arrematação judicial, o Código do IMT estabelece uma regra específica para a fixação do valor tributável, não sendo por isso necessário estabelecer qualquer termo de comparação com o VPT;
  17. No entanto, entende o Requerente que o facto de os imóveis adquiridos mediante arrematação judicial não se enquadrarem na regra geral do n.º 1 do artigo 12.º do Código do IMT, por si só, não justifica a elisão do normativo previsto no artigo 64.º do Código do IRC;
  18. Se assim fosse, o âmbito de aplicação do artigo 64.º do Código do IRC estaria limitado apenas aos imóveis não enquadráveis nas excepções previstas no artigo 12.º do Código do IMT, restrição essa que não encontra respaldo na letra da lei;
  19. A subalínea 16.º do n.º 4 do artigo 12.º do Código do IMT consubstancia uma norma de carácter excepcional e não de carácter geral, sendo que o legislador não consagrou semelhante derrogação no Código do IRC, pelo que não se pode retirar a mesma conclusão para os dois impostos;
  20. Sublinhe-se ainda que entendimento diverso implica a supressão do procedimento previsto no Código do IRC com recurso a uma norma específica de determinação do valor tributável para efeitos de IMT;
  21. Em suma, sempre que o valor constante do contrato de compra e venda seja inferior ao VPT definitivo do imóvel, deve ser este o valor a considerar pelo alienante e adquirente na determinação do lucro tributável, conforme estabelece o n.º 2 do artigo 64.º do Código do IRC;
  22. O Requerente procedeu à recolha dos elementos probatórios relevantes para suportar o VPT dos imóveis adquiridos por via de arrematação judicial, os quais foram disponibilizados à AT;
  23. O Requerente reuniu elementos probatórios suficientes, na reclamação graciosa e no recurso hierárquico, para comprovar e apurar um montante a deduzir de € 3.715.265,30, correspondente à diferença positiva entre o VPT e o valor de aquisição dos imóveis, adquiridos por arrematação judicial, que foram alienados no período de 2017, o qual aliás foi comprovado pela AT;
  24. O Requerente junta nesta sede elementos adicionais justificativos do montante de € 921.258,69, que decorre da diferença positiva entre o VPT e o valor de aquisição de imóveis não considerados no valor comprovado junto da AT no montante de € 3.715.265,30, e que não teve oportunidade de juntar numa fase anterior;
  25. Adicionalmente, importa salientar que por força do disposto nos n.ºs 4 e 5 do artigo 123.º do Código do IRC na redacção em vigor à data dos factos, em sintonia com o artigo 40.º do Código Comercial, o Requerente não é obrigado a deter documentação com antiguidade superior a 10 anos;
  26. Entende, portanto, o Requerente, que relativamente aos 4 imóveis adquiridos mediante arrematação judicial cujo prazo de detenção já excedeu o período de 10 anos, e cuja diferença positiva entre o VPT e o valor de aquisição ascende a € 92.536,87, não existe obrigação de apresentar elementos probatórios para justificar o montante correspondente;
  27. Face ao exposto, para além do valor de € 3.715.265,30 já comprovado à AT, e do valor de € 921.258,69 para o qual se juntaram novos elementos justificativos nesta sede, também o montante de € 92.536,87, deverá ser considerado no presente pedido.

 

            5. Em conformidade com o disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo ficou constituído em 26 de Julho de 2022, sendo que naquela mesma data foi a Requerida notificada para apresentar a sua resposta.

 

            6. Em 30 de Setembro de 2022, a Requerida apresentou a sua resposta e juntou aos autos cópia do processo administrativo, tendo concluído pela improcedência do pedido arbitral e pela sua absolvição de todos os pedidos, com base nos seguintes argumentos:

  1. O legislador ao introduzir o artigo 64.º no Código do IRC, entendeu que nas transmissões onerosas de direitos reais sobre bens imóveis efectuadas através de arrematação judicial ou administrativa não havia o risco de que fossem considerados, para efeitos de apuramento do rendimento tributável, valores de transmissão inferiores aos efectivamente praticados;
  2. Não havendo esse risco, justifica-se que não seja aplicável aquela norma anti-abuso nas referidas transmissões de bens imóveis;
  3. O fundamento para que assim seja reside no facto de nestes casos ser seguro que o preço praticado é efectivamente o que consta no acto ou contrato, pois este tipo de transmissões representa o resultado final de processos administrativos e judiciais dirigidos por entidades independentes e imparciais;
  4. Por força do disposto no artigo 64.º, n.º 1 do Código do IRC, para efeitos de determinação do lucro tributável devem ser adoptados os valores normais de mercado, que não podem ser inferiores aos VPT’s definitivos que serviram de base à liquidação de IMT ou que serviriam no caso de não haver lugar à liquidação deste imposto;
  5. O valor tributável para efeitos de IMT é determinado de acordo com o artigo 12.º do Código do IMT que determina que aquele imposto incidirá sobre o valor constante do acto ou do contrato, ou sobre o VPT dos imóveis, consoante o que for maior;
  6. Todavia, tal regra é aplicável sem prejuízo das regras previstas no n.º 4 do mesmo artigo e diploma;
  7. As regras consignadas no n.º 4 do artigo 12.º do Código do IMT, têm natureza especial em relação às determinadas no n.º 1 do mesmo artigo, sendo aplicáveis preferencialmente nos seus específicos domínios;
  8. Assim, nos casos de transmissão dos imóveis por venda judicial, o valor que serve ou serviria de base à liquidação de IMT é, de acordo com a regra 16, do n.º 4, do artigo 12.º do Código do IMT, o preço constante do acto ou do contrato;
  9. É o próprio Código do IRC que preenche o conceito de VPT definitivo, remetendo para a aplicação daquele regra especial;
  10. Por outro lado, não tem qualquer pertinência estabelecer a comparação entre o preço do contrato e o VPT respectivo, na medida em que esta comparação apenas ocorre quando o VPT serve como base tributável para a liquidação de IMT;
  11. Para efeitos de IMT, o valor sobre o qual a respectiva taxa incide é, justamente, o preço da transmissão e não o VPT, ainda que superior;
  12. Para efeitos de IRC, em face do disposto no n.º 1 do artigo 64.º do Código do IRC, a regra é exactamente a mesma e, consequentemente, o lucro tributável para efeitos deste imposto deve ser o preço constante do contrato, e não o VPT;
  13. Logo, só há lugar a correcção do lucro tributável do IRC com base no VPT superior ao preço se, para efeitos de IMT, tal regra for igualmente aplicável;
  14. Como a regra da prevalência do VPT não se aplicou, e nem se aplicaria, na liquidação de IMT, então de igual forma a mesma não é aplicável para efeitos de IRC;
  15. Assim sendo, não tem razão o Requerente ao querer fazer aplicar às transmissões que presidiram às correcções, para efeitos de determinação do lucro tributável, as regras estatuídas no n.º 1 do artigo 64.º do Código do IRC, não lhe sendo igualmente aplicáveis o disposto no n.º 2 e 3 daquele artigo, porquanto apenas relevam quando o VPT foi tido em consideração e comparado com o valor dos contratos;
  16. Acresce que o mecanismo previsto no artigo 64.º do Código do IRC está subordinado a uma lógica de neutralidade fiscal, impondo que os ajustamentos terão de ocorrer correlativamente em sede de alienante/adquirente;
  17. Neste desiderato, e para efeitos do disposto no n.º 1, do artigo 64.º do Código do IRC, os valores que deviam ser adoptados para determinação do lucro tributável são os que constam nos contratos de venda, por serem estes os que seriam considerados para efeitos de liquidação em sede de IMT;
  18. Perante tudo o quanto foi exposto, não poderá atender-se à pretensão do Requerente de ver deduzido no campo 772 do quadro 07, o valor adicional de € 4.729.060,86 a título de correcção do valor de aquisição dos imóveis adquiridos mediante arrematação judicial, nos termos da alínea b) do n.º 3 do artigo 64.º do Código do IRC.

 

            8. Em 3 de Outubro de 2022, foi proferido despacho no qual se dispensou a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal na condução do processo e da celeridade, simplificação e informalidade processuais, previstos nos artigos 16.º, alínea c) e 29.º, n.º 2, ambos do RJAT. Facultou-se ainda às partes a possibilidade de, querendo, apresentarem alegações escritas, por prazo simultâneo de 15 dias, direito que o Requerente e a Requerida exerceram, respectivamente, em 17 e em 21 de Outubro de 2022, embora sem apresentar argumentos de diferente teor face aos anteriormente expostos.

 

II. SANEAMENTO

 

            9. O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 4.º e 5.º, todos do RJAT. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e estão regularmente representadas, em conformidade com o disposto nos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e dos artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março. O processo não enferma de nulidades, nem existem excepções ou outras questões prévias que cumpram conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa.

 

III. DO MÉRITO

 

III.1. MATÉRIA DE FACTO

III.1.1. Factos provados

 

            10. Analisada a prova produzida nos presentes autos, com relevo para a decisão da causa consideram-se provados os seguintes factos:

  1. O Requerente é uma instituição de crédito controlada pelo B..., que se encontra sujeito à supervisão do Banco de Portugal;
  2. No decurso do período de 2017, o Requerente procedeu à alienação de diversos activos imobiliários, que tinha adquirido no âmbito de vendas judiciais;
  3. Em 28 de Junho de 2018, o Requerente procedeu à entrega da declaração de rendimentos Modelo 22 para o período de 2017 (n.º...), onde inscreveu o montante de € 1.135.107,94 no campo 772 do Quadro 07, da qual resultou um prejuízo fiscal no valor de € 25.637.492,27 e um total de imposto a recuperar de € 2.892.976,61;
  4. Em 4 de Setembro de 2018, o Requerente foi notificado da liquidação n.º 2018...;
  5. Em 10 Janeiro de 2019, o Requerente apresentou uma declaração de rendimentos Modelo 22 de substituição (n.º...), na qual manteve o valor inscrito no campo 772 do Quadro 07, não tendo existido alteração do valor do imposto a reembolsar;
  6. Em 24 de Janeiro de 2019, o Requerente foi notificado da liquidação n.º 2019...;
  7. Ao abrigo da ordem de serviço n.º 0I2019..., de 18 de Julho de 2019, foi realizada pela Unidade dos Grandes Contribuintes uma acção de inspecção, de âmbito geral e com referência ao período de tributação de 2017, da qual resultaram diversas correcções, quer em sede de IRC quer em sede de outros impostos;
  8. Em 10 de Dezembro de 2019, no decorrer da acção de inspecção, o Requerente fez uso da faculdade prevista no artigo 58.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária e Aduaneira (“RCPITA”), e apresentou uma declaração de rendimentos Modelo 22 de IRC de substituição (n.º...), na qual procedeu à regularização voluntária de diversas correcções propostas pelos SIT, designadamente a reversão parcial do valor inscrito no campo 772 do Quadro 07, no montante de € 215.239,70, onde passou a inscrever o valor de € 919.868,24;
  9. Em 14 de Janeiro de 2020, o Requerente foi notificado da liquidação n.º 2019 ...;
  10. Em 1 de Junho de 2020, o Requerente apresentou um pedido de reclamação graciosa quanto ao acto de liquidação do IRC n.º 2019 ..., referente ao período de 2017, cujo correspondente processo foi instaurado sob o n.º ...2020...;
  11. No âmbito do pedido de reclamação graciosa referido no número anterior, o Requerente alegou não ter incluído no campo 772 do Quadro 07 da declaração de rendimentos modelo 22 do período de 2017, uma dedução correspondente ao montante de € 6.119.281,78, respeitante aos imóveis alienados no período de 2017 cuja aquisição ocorreu mediante arrematação judicial ou adjudicação fiscal, por aplicação da correcção prevista no n.º 3, do artigo 64.º do Código do IRC;
  12. Em 31 de Agosto de 2020, o Requerente foi notificado do projecto de decisão de indeferimento da reclamação graciosa, no qual a AT mencionou, por um lado, que “[n]ão se encontra provado que «a diferença positiva entre o VPT e o valor de aquisição dos imóveis adquiridos em processo de arrematação judicial» […], ascendeu ao valor de € 6.119.281,78” (cfr. parágrafo 21 do mencionado Despacho) e, por outro lado, que “justifica-se que o n.º 2 do artigo 64.º [do Código do IRC] não seja aplicável às transmissões de direitos reais sobre imóveis registadas através de arrematação judicial ou administrativa (…)”, pelo que “(…) não existem razões válidas que sustentem a pretensão da Reclamante no sentido de proceder à dedução do montante de € 6.119.281,78 (…).” (cfr. parágrafos 59 e 63 do mencionado Despacho);
  13. O Requerente exerceu o direito de audição prévia quanto ao projecto de indeferimento da reclamação graciosa e juntou nessa sede elementos probatórios com o intuito de suportar o VPT e o valor de aquisição dos imóveis adquiridos por venda judicial;
  14. Em 15 de Outubro de 2020, o Requerente foi notificado do indeferimento definitivo do pedido de reclamação graciosa;
  15. Naquela decisão de indeferimento, considerou a AT que do montante de € 6.119.281,78 que o Requerente pretendia deduzir no campo 772 do Quadro 07 da declaração modelo 22, apenas existia prova documental de suporte à quantia de € 3.715.265,30, pelo que existia um montante remanescente por comprovar no valor de € 2.404.016,48;
  16. Considerou ainda a AT naquela decisão de indeferimento que, mesmo que fosse possível comprovar integralmente o montante de € 6.119.281,78, sempre seria de considerar “improcedente a pretensão da Reclamante de deduzir ao lucro tributável a diferença positiva entre o valor patrimonial tributário e o valor de aquisição através de adjudicação ou arrematação judicial, uma vez que estas situações não são contempladas pelo disposto no artigo 64.º do CIRC, face à norma prevista na regra 16.ª do n.º 4 do artigo 12.º, do CIMT.”;
  17. Em 2 de Dezembro de 2020, por não se conformar com o indeferimento da reclamação graciosa, o Requerente recorreu hierarquicamente daquela decisão para a Direcção de Serviços de IRC, cujo procedimento foi instaurado sob o n.º ...2020...;
  18. Em 18 de Fevereiro de 2022, o recurso hierárquico apresentado pelo Requerente foi objecto de decisão de indeferimento, na qual se referiu, designadamente, o seguinte:

“(…) as transmissões de direitos reais sobre os bens imóveis em causa não se subsumem na previsão ínsita no referido preceito. É como se a presunção de rendimentos tivesse sido ilidida.

E em consequência, o n.º 2 do mesmo artigo, porque se refere às “transmissões onerosas previstas no número anterior”, também é inaplicável.

Conclui-se, assim, que para efeitos do n.º 1 do artigo 64.º do CIRC, os valores mínimos que deviam ser adotados para determinação do lucro tributável eram os que constam dos atos ou contratos de aquisição operados nos processos de insolvência, por serem esses os que deveriam ser considerados para efeitos de liquidação de IMT, se não existissem as isenções”;

Concluindo, reforça-se que terá sido entendimento do legislador que, quando o Estado é parte num ato ou contrato de transmissão onerosa de imóvel, não se justifica pôr em causa o preço dele constante;

Sendo que o artigo 64.º do CIRC deve ser aplicado a situações normais de mercado, decorrendo do n.º 2 a obrigação de o alienante e o adquirente adotarem o mesmo valor para efeitos de determinação do lucro tributável;

Ora, perante tudo o quanto foi exposto, afigura-se-nos que não poderá atender-se à pretensão da Requerente de ver deduzido no campo 772 do quadro 07, o valor de € 6.119.281,78 a título de correção do valor de aquisição dos imóveis adquiridos mediante arrematação judicial, nos termos da alínea b) do n.º 3 do artigo 64.º do Código do IRC.

Deste modo acompanhamos a decisão da UGC quando na informação/decisão final do pedido de reclamação graciosa propõe o indeferimento do pedido.

Concluindo, não se vê razões para alterar a decisão proferida pela UGC em sede de procedimento de reclamação graciosa.”;

  1. Em 17 de Maio de 2022, o Requerente apresentou o pedido arbitral que desencadeou o presente processo;
  2. No pedido arbitral, para além dos elementos probatórios que suportam o montante de € 3.715.265,30 referido na alínea o) da presente matéria de facto, o Requerente juntou elementos justificativos do montante de € 869.938,69, correspondente à diferença positiva entre o VPT e o valor de aquisição determinado no âmbito de vendas judiciais, relativo a imóveis alienados no exercício de 2017, que não foram juntos na fase graciosa do procedimento;
  3. No exercício de 2017 o Requerente alienou 4 imóveis que adquiriu em vendas judicias há mais de 10 anos, cuja diferença positiva entre o VPT e o valor de aquisição corresponde ao montante de € 92.536,87;
  4. O Requerente comprovou nos presentes autos o montante total de € 4.677.740,86 correspondente à diferença positiva entre o VPT e o valor de aquisição determinado no âmbito de vendas judiciais, relativo aos imóveis alienados no exercício de 2017.

 

III.1.2. Factos não provados

 

            11. Com relevo para a decisão da causa, não se considera provado o VPT dos imóveis descritos com os números de processo ..., ... e ..., na listagem disponibilizada pelo Requerente, nem se considera provado o valor de aquisição do imóvel descrito com o número..., na listagem disponibilizada pelo Requerente, que de acordo com o Requerente resultariam numa dedução total no montante de € 51.320,00, conforme discriminado no seguinte quadro:

 

N.º do processo

VPT Aquisição

Valor de aquisição

Campo 722

Observações

...

47 120,00

30 000,00

17 120,00

S/ comprovação do VPT

...

53 040,00

36 125,00

16 915,00

S/ comprovação do VPT

...

58 830,00

50 000,00

8 830,00

S/ comprovação do VPT

...

73 455,00

65 000,00

8 455,00

S/ comprovação do Valor de Aquisição

 

 

Total

51 320,00

 

 

III.1.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

12. Ao Tribunal Arbitral incumbe o dever de seleccionar os factos que interessam à decisão da causa e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada, não tendo de se pronunciar sobre todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre da aplicação conjugada do artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e do artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

 

13. Neste sentido, os factos pertinentes para o julgamento da causa foram seleccionados e conformados em função das posições assumidas pelas partes e tendo em conta a sua relevância jurídica determinada com base nas várias soluções plausíveis das questões de direito para o objecto do litígio, conforme decorre do artigo 596.º, n.º 1 do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

14. Tendo em conta as posições assumidas pelas partes no decurso do procedimento gracioso e, bem assim, nos respectivos articulados, tendo em conta a livre apreciação da falta de contestação especificada dos factos prevista no artigo 110.º, n.ºs 6 e 7, do CPPT, tendo em conta a prova documental junta aos autos pelo Requerente e o processo administrativo junto aos autos pela Requerida, consideraram-se provados e não provados, com relevo para a decisão da causa, os factos acima elencados.

 

15. Quanto ao facto dado como provado na alínea t), cujo montante de dedução de € 869.938,69 resulta da diferença entre o valor de dedução peticionado pelo Requerente no montante de € 921.258,69 e valor de € 51.320,00 subjacente aos factos dados como não provados, cumpre apenas registar que nada obsta a que o Requerente apresente no pedido arbitral prova documental para suportar a mencionada dedução, mesmo que não tenha apresentado tais documentos no âmbito da fase graciosa do procedimento. A junção de tais documentos, que não foi sequer objecto de contestação especificada pela Requerida, sempre seria admissível ao abrigo dos poderes conferidos ao Tribunal Arbitral pelo artigo 16.º do RJAT, assim se concretizando os princípios da descoberta da verdade material e da justa composição do litígio entre as partes.

 

16. Relativamente ao facto dado como provado na alínea u), cuja adesão à realidade também não foi posta em causa pela Requerida, considerou este Tribunal assistir razão ao Requerente ao sustentar que a inexistência de suporte documental não obstava a que se considerasse devidamente suportado o custo de aquisição dos imóveis ali referidos. Efectivamente, por força do disposto nos n.ºs 4 e 5 do artigo 123.º do Código do IRC e do artigo 40.º do Código Comercial, o Requerente não se encontrava obrigado a dispor dos “livros, registos contabilísticos e respectivos documentos de suporte” com antiguidade superior a 10 anos, sendo certo que a Requerida não contestou a veracidade ou correcção do mencionado valor.

 

17. Esta é, de resto, a posição expressa pelo Supremo Tribunal Administrativo (“STA”) no acórdão proferido em 8 de Novembro de 2006, no âmbito do processo n.º 0244/06, ao referir que “não tendo o contribuinte apresentado quaisquer elementos justificativos dos valores considerados como valores de aquisição de imóvel, alegando que já não os possuía «pelo decurso do tempo», não pode a Administração Fiscal concluir que aquele não fez a prova dos elementos que compõem o respectivo valor de aquisição» e que «não tendo a Administração Fiscal feito a demonstração da incorrecção da fixação do valor contabilístico, não é legítimo, uma vez decorrido o prazo (...) exigir do contribuinte a prova do mesmo”. No mesmo sentido, veja-se o acórdão arbitral proferido em 24 de Outubro de 2018, no âmbito do processo n.º 170/2018-T, ou, ainda que por referência a outro imposto, o acórdão do STA proferido em 19 de Novembro de 2011, no âmbito do processo n.º 056/14.

 

III.2. MATÉRIA DE DIREITO

 

            18. O objecto da questão em litígio nos presentes autos reside na interpretação e aplicação da alínea b) do n.º 3 do artigo 64.º do Código do IRC às alienações de imóveis adquiridos no âmbito de vendas judiciais.

 

            19. O artigo 64.º do Código do IRC, na redacção introduzida pelo artigo 2.º do Decreto‑Lei n.º 159/2009, de 13 de Julho, dispunha na parte com relevância para a decisão aqui em apreço, o seguinte:

 “1 – Os alienantes e adquirentes de direitos reais sobre bens imóveis devem adoptar, para efeitos da determinação do lucro tributável nos termos do presente Código, valores normais de mercado que não podem ser inferiores aos valores patrimoniais tributários definitivos que serviram de base à liquidação do imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis (IMT) ou que serviriam no caso de não haver lugar à liquidação deste imposto.

2 – Sempre que, nas transmissões onerosas previstas no número anterior, o valor constante do contrato seja inferior ao valor patrimonial tributário definitivo do imóvel, é este o valor a considerar pelo alienante e adquirente, para determinação do lucro tributável.

3 – Para aplicação do disposto no número anterior:

a) O sujeito passivo alienante deve efectuar uma correcção, na declaração de rendimentos do período de tributação a que é imputável o rendimento obtido com a operação de transmissão, correspondente à diferença positiva entre o valor patrimonial tributário definitivo do imóvel e o valor constante do contrato;

b) O sujeito passivo adquirente adopta o valor patrimonial tributário definitivo para a determinação de qualquer resultado tributável em IRC relativamente ao imóvel.”.

 

            20. Por sua vez, o artigo 12.º do Código do IMT, na redacção vigente à data dos factos, previa, ao que importa, o seguinte, quanto à determinação do valor tributável para efeitos desse imposto:

1 – O IMT incidirá sobre o valor constante do acto ou do contrato ou sobre o valor patrimonial tributário dos imóveis, consoante o que for maior.

2 – No caso de imóveis omissos na matriz ou nela inscritos sem valor patrimonial tributário, bem como de bens ou direitos não sujeitos a inscrição matricial, o valor patrimonial tributário é determinado nos termos do CIMI.

3 – Ao valor patrimonial tributário junta-se o valor declarado das partes integrantes, quando o mesmo não esteja incluído no referido valor patrimonial.

4 – O disposto nos números anteriores entende-se, porém, sem prejuízo das seguintes regras:

(…)

16.ª O valor dos bens adquiridos ao Estado, às Regiões Autónomas ou às autarquias locais, bem como o dos adquiridos mediante arrematação judicial ou administrativa, é o preço constante do acto ou do contrato”.

 

            21. Portanto, a questão que se coloca é a de saber se nos casos de transmissões de imóveis adquiridos por venda judicial, a remissão feita pelo artigo 64.º do Código do IRC para os valores patrimoniais tributários definitivos que serviram de base à liquidação do IMT ou que serviriam no caso de não haver lugar à liquidação deste imposto, se deve ou não considerar feita para o VPT que consta da matriz predial ou para o valor do acto ou contrato a que alude a subalínea 16.ª, do n.º 4, do artigo 12.º do Código do IMT.

 

            22. A resposta a esta questão dividiu a jurisprudência dos Tribunais Arbitrais. Em sentido favorável às pretensões do Requerente, existe jurisprudência que considera que o n.º 1 do artigo 64.º do Código do IRC remete especificamente para o VPT – que é um dos tipos de valores tributáveis para efeitos de liquidação de IMT –, e não para outros tipos de valores tributáveis utilizados na liquidação daquele imposto, designadamente para os “valores de actos ou contratos”. De acordo com esta jurisprudência, a remissão para o VPT que consta da matriz corresponde à interpretação mais imediata da expressão “valor patrimonial tributário” a que alude o artigo 64.º do Código do IRC, não sendo admissível outra interpretação em função do disposto no n.º 2 do artigo 9.º do Código Civil. Neste sentido, vejam-se as decisões arbitrais proferidas nos processos n.ºs 570/2017-T, 75/2018-T, 105/2019-T, 494/2021-T e 317/2022-T.

 

            23. Em sentido desfavorável às pretensões do Requerente, existe jurisprudência que entende que a referência feita no n.º 1 do artigo 64.º do Código do IRC ao “valor patrimonial tributário” não pode ser lida e interpretada isoladamente, já que aquele artigo se refere ao VPT que serviu ou que serviria de base à liquidação do IMT. Assim, para esta jurisprudência, é necessário averiguar se foi liquidado IMT ou, não o sendo, qual o valor tributável que serviria de base à sua liquidação, nos termos previstos no artigo 12.º do Código do IMT, sendo esse o valor a ter em conta, independentemente de este ser, ou não, o VPT. Com base neste pressuposto, conclui esta jurisprudência que nos casos de aquisição de imóveis em vendas judiciais, o valor patrimonial a ter em conta para efeitos da correcção prevista no artigo 64.º do Código do IRC é o valor do acto ou do contrato, já que é este o valor tributável determinado pela subalínea 16.ª, do n.º 4, do artigo 12.º do Código do IMT. Neste sentido, vejam-se as decisões arbitrais proferidas nos processos n.ºs 180/2015-T, 43/2019-T, 780/2020-T e 108/2022-T.

 

            24. Em resultado destas divergências doutrinárias, o Supremo Tribunal Administrativo foi chamado a pronunciar-se, tendo proferido o acórdão de uniformização de jurisprudência, em 19 de Outubro de 2022, no âmbito do processo n.º 077/22.8BALSB, onde decidiu o seguinte:

Avançando, no que diz respeito à primeira questão enunciada nos autos, ou seja, “no caso dos imóveis alienados e adquiridos ao Estado, Regiões Autónomas ou Autarquias locais, mediante arrematação judicial ou administrativa, ou ainda adquiridos no âmbito de processos de insolvência ou processos especiais de revitalização sob controlo judicial, o valor que serviu de base à liquidação do IMT, para efeitos do artigo 64.º, n.ºs 2 e 3, do Código do IRC, é o VPT definitivo ou o preço constante do ato ou do contrato, conforme determina a regra 16.ª do n.º 4 do artigo 12.º do Código do IMT”, temos que a primeira das normas apontadas - art. 64º do CIRC - afasta-se da contabilidade e do preço declarado pelos contribuintes, na medida em que dispõe que o preço de venda (para cálculo das mais valias imobiliárias do vendedor) será o maior entre o VPT e o preço declarado (mesmo que real, evidentemente).

Na verdade, como é sabido os factos tributários em IRC assentam, em geral, nos preços reais e efectivos das transacções, tal como são declaradas pelas partes - e documentadas pela contabilidade, não podendo escamotear-se que em relação aos imóveis há uma enorme distorção a esta regra geral, até porque deparamos, em geral, com transacções que envolvem valores elevados e, sobretudo, porque nas transmissões de imóveis, comprador e vendedor podem ter um interesse alinhado em potencialmente defraudar o Estado, através da manipulação do preço, declarando no contrato um preço inferior ao real, que permite ao vendedor poupar IRC e ao comprador poupar IMT.

 

Nesta sequência, surge o modelo descrito no art. 64º do CIRC para ambos os contraentes, de acordo com o qual o VPT (quando superior ao preço do contrato) prevalece, em imposto de rendimento (CIRC), para o “alienante e adquirente” (nº 1 e 3 da norma apontada).

 

Pois bem, no que concerne à aplicação do modelo no caso dos autos importa notar que o nº 2 da norma em apreço determina que para efeitos de determinação do lucro tributável nas transmissões onerosas de imóveis referidas no nº 1, sempre que o valor do contrato seja inferior ao VPT definitivo, então é esse o que deve ser considerado tanto para o adquirente como para o alienante, sendo que o sujeito passivo deve efectuar “uma correcção correspondente à diferença positiva entre o valor patrimonial tributário definitivo do imóvel e o valor constante do contrato” que, por força do corpo no nº 1 do art. 64º, tem que ser o valor que serviu ou serviria de base para a liquidação do IMT.

 

Ora, é neste ponto que a decisão arbitral recorrida, e bem, introduz na discussão a norma decorrente do artº 12º do CIMT que prevê na regra 16ª do nº 4 que para efeitos desse imposto (IMT) o valor a considerar nos casos de aquisição de imóveis por dação em pagamento ou ao Estado, Regiões Autónomas ou Autarquias locais, mediante arrematação judicial ou administrativa, ou adquiridos no âmbito de processos de insolvência ou processos de revitalização sob controlo judicial, é o valor do contrato, pelo que para efeitos do art. 64º do CIRC temos que aceitar como valor patrimonial definitivo o que serve ou serviria de base à liquidação de IMT na alienação destes imóveis (cfr. Rui Marques, Código do IRC anotado e comentado, Almedina, 2019, pág. 549, em anotação ao art. 64º).

 

Aliás, a decisão arbitral recorrida encontra a razão de ser da posição assumida no Ac. deste Supremo Tribunal de 05-11-2014, Proc. nº 01508/12, www.dsgi.pt, onde se aponta que “as razões de perigo de evasão ou fraude fiscal no que respeita à declaração do valor real das transacções não existirão, por regra em condições normais, quando o facto tributário sujeito a imposto for a aquisição de imóveis ou direitos sobre eles ao Estado, Regiões Autónomas e Autarquias Locais.” E, citando José Maria Fernandes Pires (Lições de Impostos sobre o Património e do Selo, Almedina, 2010, pág. 211/213), acrescentava: “pelas mesmas razões referidas, a Lei manda alargar a sua aplicação a outras aquisições sujeitas a imposto em que essas entidades intervenham. É o caso das arrematações judiciais ou administrativas de bens imóveis”.

 

Assim sendo, referindo a norma que as transmissões em causa são as do número anterior e que o número anterior se refere ao valor tributário definitivo que serviu ou serviria de base à liquidação de IMT, então não restam dúvidas de que o CIRC não contém qualquer conceito de valor patrimonial tributários definitivo diferente daquele que serve de base à liquidação de IMT e que deve servir de base às correcções do art. 64º.

 

Deste modo, em termos de determinação do valor para efeito de IRC, temos de concluir que no respeitante aos imóveis adquiridos ao Estado, Regiões Autónomas ou Autarquias Locais ou mediante arrematação judicial ou administrativa, ou ainda adquiridos no âmbito de processos de insolvência ou processos especiais de revitalização sob controlo judicial, o valor que serviu de base à liquidação de IMT não é o VPT definitivo, mas sim o preço constante do acto ou contrato, dando expressão ao art. 64º do CIRC em conjugação com o que decorre da regra 16ª do nº 4 do art. 12º do CIMT.

 

Note-se que este Supremo Tribunal, no âmbito do Ac. de 21-11-2019, Proc. nº 0816/08.0BECBR 0558/17, www.dgsi.pt, com referência a esta mesma matéria, entendeu que se justificava a aplicação do disposto no parágrafo 16 do n.º 4 do artigo 12.º do CIMT, correspondendo o valor a atender ao preço constante do contrato, para efeitos de IMT e, consequentemente, para efeitos de IRC.

 

Neste domínio, cabe ainda ter presente que a decisão fundamento no âmbito do Proc. nº 105/2021-T reconhece que o artigo 12.º do Código do IMT fixa uma regra própria para a fixação do valor tributável relativamente a imóveis adquiridos mediante arrematação judicial, fazendo-o coincidir com o preço do acto ou do contrato, significando que, nesse caso, fica afastada a regra geral do n.º 1 desse artigo, não havendo que tomar em consideração o valor patrimonial tributário. Isto é, em geral, o IMT incide sobre o maior dos valores a considerar de entre o valor do contrato ou o valor patrimonial tributário (n.º 1) e bem assim que nas situações consideradas na falada norma da subalínea 16.ª do n.º 4 do artigo 12.º do Código do IMT não subsistam as razões de perigo de evasão ou fraude fiscal no que respeita à declaração do valor real das transacções, pelo que não se torna necessário comparar o valor declarado com o valor patrimonial (cfr. JOSÉ MARIA FERNANDES PIRES, Lições de Impostos sobre o Património e o Selo, Coimbra, 2010, pág. 211), mas depois, sem grande convicção, alude a uma derrogação do nº 3 do art. 64º do CIRC, quando o que está em causa é precisamente a aplicação de tal norma e o funcionamento da fórmula que aí se encontra prevista para determinar o lucro tributável em IRC quando haja lugar à transmissão onerosa.”.

 

            25. Concluiu, assim, o STA que “[n]o respeitante aos imóveis adquiridos ao Estado, Regiões Autónomas ou Autarquias Locais ou mediante arrematação judicial ou administrativa, ou ainda adquiridos no âmbito de processos de insolvência ou processos especiais de revitalização sob controlo judicial, o valor que serviu de base à liquidação de IMT não é o VPT definitivo, mas sim o preço constante do acto ou contrato, dando expressão ao art. 64º do CIRC em conjugação com o que decorre da regra 16ª do nº 4 do art. 12º do CIMT.”.

 

            26. Tendo presente as considerações do acórdão do STA acabado de citar, com as quais se concorda e que devem aqui ser acolhidas por respeito aos princípios da coerência sistemática e da segurança jurídica na aplicação do direito (artigo 8.º, n.º 3, do Código Civil), entende este Tribunal Arbitral que não assiste razão ao Requerente quanto à sua pretensão.

 

            27. O artigo 64.º do Código do IRC funciona como uma disposição anti-abuso que visa obstar a que, nas transmissões de direitos reais sobre bens imóveis, os contribuintes adoptem valores inferiores aos que normalmente praticam com o intuito de reduzir a tributação. É este o motivo pelo qual se determina que o valor a considerar para efeitos de tributação em sede de IRC não pode ser inferior ao VPT determinado nos termos do Código do IMT. Esta regra não é, contudo, absoluta, permitindo-se aos sujeitos passivos que provem o preço efectivo da transacção nos termos previstos no artigo 139.º do Código do IRC. Tudo porque o objectivo da norma é fazer corresponder o valor sujeito a tributação com o valor real praticado pelos sujeitos passivos.

 

            28. Assim sendo, não faria sentido que com base num argumento meramente literal, que não tem presente a ratio legis e que desconsidera por completo a materialidade subjacente das operações, se afastasse para efeitos de tributação em sede de IRC o real preço de aquisição que se encontra inclusivamente controlado e sindicado no âmbito do processo de venda judicial, para fazer prevalecer um valor artificialmente determinado, isto é, para fazer prevalecer o VPT constante da matriz, quando nem se coloca o potencial abuso que convoca a aplicação da norma.

 

            29. Nestes termos, concluiu o presente Tribunal Arbitral que o valor de transmissão que deve ser considerado na determinação do lucro tributável em sede de IRC, quanto aos imóveis adquiridos em vendas judiciais, é o valor “do acto ou contrato” e não o valor do VPT constante da matriz, conforme resulta da aplicação conjugada do artigo 64.º do Código do IRC e da subalínea 16.ª, do n.º 4, do artigo 12.º do Código do IMT.

 

            30. Em face do exposto, não assiste razão ao Requerente quanto à sua pretensão de deduzir ao IRC do exercício de 2017, um montante correspondente à diferença positiva entre o VPT e o valor de aquisição dos imóveis adquiridos por via arrematação judicial, já que tal correcção não tem suporte na alínea b), do n.º 3, do artigo 64.º do Código IRC.

 

IV. DECISÃO

 

            Termos em que se decide julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral formulado pelo Requerente e, em consequência, absolver a Requerida do pedido.

 

V. VALOR DO PROCESSO

           

            Atendendo ao disposto no artigo 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 4.729.060,86.

 

VI. CUSTAS

 

            Nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, as custas são no valor de € 59.670,00, a suportar pelo Requerente, conforme ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 27 de Março de 2023

 

A Árbitra Presidente,

 

 

Carla Castelo Trindade

(Relatora)

 

 

O Árbitro Adjunto,

 

 

João Gonçalves da Silva

 

 

A Árbitra Adjunta,

 

 

Ana Pinto Moraes