Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 804/2021-T
Data da decisão: 2022-06-06  IVA  
Valor do pedido: € 545.828,28
Tema: IVA – Direito à dedução. Opção entre o método "pro rata" e o método da afectação real. Proibição da sua alteração retroactiva.
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DECISÃO ARBITRAL

 

 

1. RELATÓRIO

 

1.1 A..., S.A., com o número de identificação fiscal ... e sede na Rua ..., n.º ..., ...-... Lisboa, veio, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e dos n.ºs 1 e 2 do artigo 10.º, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária ou RJAT) e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, requerer no dia 1 de Dezembro de 2021 a constituição de Tribunal Arbitral destinado à apreciação da legalidade da decisão de indeferimento do Recurso Hierárquico interposto pela Requerente com o n.º ...2020..., sobre a decisão de indeferimento emitida no âmbito do procedimento de Revisão Oficiosa com o n.º ...2019..., apresentado igualmente pela Requerente com vista à anulação do acto tributário de autoliquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) referente ao ano 2015, materializado na declaração periódica de imposto com referência a Dezembro de 2015, no montante de € 545.828,28, e a consequente declaração de ilegalidade daquele acto de autoliquidação de IVA.

 

1.2 É Requerida nos autos a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA.

 

1.3 O Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) designou os signatários, Professora Doutora Regina Almeida Monteiro (Presidente), Professor Doutor Luís Menezes Leitão (relator) e Dr. José Nunes Barata, para formarem o Tribunal Arbitral Coletivo, disso notificando as partes, e o Tribunal foi constituído a 8 de Fevereiro de 2021.

 

1.4  O pedido de pronúncia arbitral tem por objeto imediato a declaração de ilegalidade da decisão de indeferimento que recaiu sobre o pedido de revisão oficiosa formulado pela Requerente ao abrigo do art.º 78.º da Lei Geral Tributária, e por objeto mediato a declaração da ilegalidade do acto tributário de autoliquidação de IVA relativo ao ano de 2015, no montante de €545.828,28, sua correspondente anulação, a condenação da AT ao reembolso das quantias pagas a titulo de imposto e dos juros indemnizatórios calculados desde a data do pagamento do IVA.

 

A Requerente invoca, como fundamentos deste pedido a ilegalidade da autoliquidação de IVA relativa ao ano 2015, materializada na entrega das declarações periódicas de imposto referentes aos meses de Janeiro a Dezembro daquele ano, nos termos das quais a Requerente deduziu o imposto incorrido na aquisição de recursos de utilização mista de acordo com o coeficiente de imputação específico imposto pela Autoridade Tributária no Ofício-Circulado n.º 30108, de 30 de Janeiro de 2009.  

Entende a Requerente que deveria ser efectuada a correcção da dedução de IVA incorrido na aquisição de recursos de utilização mista afectos às actividades de (i) gestão de carteira própria de títulos e de (ii) terminais de pagamento de automático (“TPAs”) por si desenvolvidas, porquanto esta verificou que tais deduções se encontram viciadas por erro relativamente ao regime jurídico aplicável à dedução do imposto incorrido na aquisição de tais recursos.

 

Sustenta a Requerente que a dedução do imposto por si incorrido de acordo com o coeficiente de imputação específico imposto pela Autoridade Tributária no Ofício-Circulado n.º 30108, de 30 de Janeiro de 2009 não se afigura consentânea com o princípio da neutralidade que rege o sistema comum do IVA, porquanto não permite determinar, com precisão, o grau de recursos de utilização mista empreendidos em cada uma das actividades acima referidas.  

Pelo que, verificou a Requerente que, em virtude do link directo existente entre um conjunto de recursos por si adquiridos e as áreas da gestão de carteira própria de títulos e de TPAs por si desenvolvidas, esta deveria ter deduzido o respectivo IVA de acordo com o método da afectação real, preceituado na alínea a) do n.º 1 e no n.º 2, ambos do artigo 23.º do Código do IVA. 

 

Em consequência, e uma vez que a dedução do IVA incorrido na aquisição de recursos de utilização mista das duas áreas de actividade acima referidas com recurso ao método da afectação real se traduz numa dedução adicional de imposto no montante de € 545.828,28, considera a Requerente que deveria ocorrer a revisão das deduções de imposto materializadas definitivamente na entrega da declaração periódica de IVA de Dezembro de 2015, e a consequente validação da dedução adicional de imposto naquele montante, devendo a AT restituir o montante de € 545.828,28 à Requerente, acrescido de juros indemnizatórios desde a data de apresentação da declaração periódica relativa ao mês de Dezembro de 2015 até ao respectivo pagamento à Requerente, porquanto este respeita a prestação tributária entregue em excesso.

 

1.5 A AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA respondeu a 11 de Março de 2022. Na sua resposta, a Requerida considera que em nenhum momento se debruça sobre a bondade da própria alteração ou revisão de procedimentos internos, levada a cabo pela Requerente, nem discute sobre se o novo método da Requerente cumpre, com maior ou menor precisão, o princípio da neutralidade, por comparação à aplicação do método previsto no Ofício-Circulado n.º 30108/2009.

 

O que de facto se discute são os pressupostos temporais acerca da oportunidade do pedido efectuado pela Requerente da revisão da metodologia a aplicar para achar a proporção do direito à dedução de IVA, prazo que, para a AT, segue as regras do artigo 23.º, n.º 6 do CIVA, enquanto que para a Requerente, por se tratar de erro de direito, segue as regras do artigo 98.º, n.º 2 do CIVA e 78.º da LGT.

 

Mas, salvo o devido respeito, discutir a natureza do erro cometido pela própria Requerente no acto voluntário de autoliquidação e, seguidamente, discutir qual o prazo correcto para corrigir, perante a administração, o aludido erro, é substancialmente distinto de discutir o âmago daquela autoliquidação.

 

Isto é, é distinto de discutir a bondade dos motivos que sustentam a tese da Requerente, de que a nova metodologia que pretende aplicar a períodos de anos fiscais anteriores é mais precisa e neutral que o método que, até à dita revisão, e de acordo com as regras do Ofício-Circulado, vinha aplicando.

 

Deste modo, não foi apreciada a legalidade de qualquer acto tributário de liquidação porquanto a mesma ficou prejudicada na medida em que faltava um pressuposto procedimental necessário à sua efectiva apreciação.

 

Resulta inequívoco que estamos perante um acto administrativo em matéria tributária que, por não apreciar ou discutir a legalidade do acto de liquidação, não pode ser sindicável através de impugnação judicial, nos termos previstos na alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º do CPPT.

 

Pelo exposto, considera a Requerida que se verifica, no caso concreto, uma excepção dilatória que se traduz na incompetência material do tribunal arbitral, a qual prejudica o conhecimento do mérito da causa, devendo determinar a sua absolvição da instância, atento o disposto nos artigos 576.º, n.º 1 e 577.º, alínea a) do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

Por impugnação, a Requerida sustenta que na situação de operações que conferem direito à dedução, a par de outras que não conferem esse mesmo direito, a dedutibilidade do imposto que onere as aquisições desses bens e serviços encontra-se limitado à parte do IVA proporcional ao montante relativo às operações tributáveis que conferem direito à dedução, por força do disposto no artigo 173.º da Diretiva IVA, transposto para o CIVA através do artigo 23.º, onde se definem os diversos métodos de dedução passiveis de ser adotados pelos sujeitos passivos.

 

Esses métodos são dois - a afectação real e a percentagem de dedução ou pro rata - este com a natureza de percentagem geral ou genérica, apelando aos montantes das transmissões de bens e prestações de serviços, montantes esses que serão os que resultam das disposições estabelecidas como base ou valor tributável pelo artigo 16.º do CIVA. 

 

Resulta do art. 23º CIVA que quaisquer correcções no cálculo do montante de dedução apurado durante um determinado ano civil, devam ser efetuadas no final desse mesmo ano, tendo por base os valores definitivos das operações realizadas.

Aquele preceito legal não contempla a possibilidade de um sujeito passivo que tenha optado por um método de cálculo do direito à dedução do imposto suportado nos também denominados “inputs promíscuos" poder alterar retroactivamente o método utilizado, recalculando a dedução inicialmente efetuada.

 

Sem prejuízo do n.º 6 do artigo 23.º do CIVA se referir literalmente à correcção das percentagens de (pro rata) e aos critérios de dedução (afetação real) calculados provisoriamente, deve admitir-se que os sujeitos passivos, na última declaração do ano, possam proceder à aplicação ou alteração do método de dedução, assumindo-se uma provisoriedade global da dedução relativa aos bens de utilização mista.

 

De acordo com Oficio-circulado n.º 30082/2005, de 17 de novembro, os casos como o presente não são susceptíveis de serem enquadrados nos casos de regularização previstos no artigo 78.º do CIVA, identificando o n.º 8 da mencionada instrução administrativa as situações que se encontram excluídas do respetivo âmbito, não porque não se pudessem aí incluir, mas porque a sua disciplina está regulamentada noutros normativos legais, como sejam os artigos 23.º a 25.º do CIVA.

O mesmo entendimento foi veiculado no parecer do Centro de Estudos Fiscais (CEF) n.º 41/2013, de 2013-10-04, da autoria da Dr.ª Cidália Lança, com despacho concordante do Diretor do CEF de 2013-10-08, onde se refere expressamente que: “as correcções ao cálculo da percentagem de dedução devem ser feitas no final do ano em causa e também que devem ser refletidas na declaração referente ao último período do ano em causa (…)” não sendo possível, “proceder a correções ao cálculo da percentagem de dedução definitiva apurada em determinado ano com fundamento no artigo 78.º do Código do IVA”.

 

Não existe qualquer norma no CIVA que sirva de suporte legal à alteração retroactiva do método de dedução pretendida pela Requerente, já que esta escolha apenas pode ser realizada para cada aquisição de bens ou de serviços no momento em que se constitui o direito à dedução nas condições previstas no n.º 1 do artigo 20.º, n.º 1 do artigo 22.º e no artigo 23.º do CIVA.

 

A alteração retroativa do método de dedução aplicado, não é subsumível na norma geral do n.º 2 do art.º 98.º do Código do IVA, que prevê um prazo de caducidade, uma vez que já foi exercido o direito a deduzir o imposto contido nas faturas registadas relativamente a cada bem ou serviço, pelo que o direito que a norma pretende acautelar foi praticado pela Requerente.

 

Sobre a matéria de métodos de dedução, regularização das deduções e prazo de caducidade, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) pronunciou-se, em acórdão proferido a 30 de Abril de 2020, no âmbito do processo C-661/18, CTT – Correios de Portugal, que teve por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Tribunal Arbitral Tributário (Centro de Arbitragem Administrativa - CAAD).

 

Concretamente, o TJUE considerou, relativamente ao princípio da proporcionalidade, que “uma legislação nacional como a que está em causa no processo principal, que recusa aos sujeitos passivos a possibilidade de aplicar, após a fixação do pro rata definitivo, o regime de dedução por afectação real, não vai além do que é necessário à cobrança exata do IVA (v., por analogia com o regime de isenção das pequenas empresas, Acórdão de 17 de maio de 2018, Vámos, C 566/16, n.os 43 a 45 e jurisprudência referida).” - cf. n.º 35.

 

Também é entendimento do TJUE, explanado no citado acórdão, caso CTT, que “o princípio da neutralidade fiscal não pode ser interpretado no sentido de que, em cada situação, deve ser procurado o método de dedução mais preciso, a ponto de exigir que se ponha sistematicamente em causa o método de dedução aplicado inicialmente, mesmo após a fixação do pro rata definitivo.” - n.º 38.

 

No que concerne ao princípio da segurança jurídica, para o TJUE, este princípio exige que a situação fiscal do sujeito passivo, atentos os seus direitos e obrigações face à Administração Tributária, não possa ser indefinidamente posta em causa (v., neste sentido, Acórdãos de 6 de fevereiro de 2014, Fatorie, C 424/12, n.° 46, e de 17 de maio de 2018, Vámos, C 566/16, n.° 51, para os quais remete).

 

1.6 Em 15 de Março de 2022 foi proferido despacho arbitral, dispensando a reunião prevista no art. 18º do RJAT, determinando que as partes poderiam apresentar alegações, onde poderia ser discutida a questão das excepções.

 

1.7 A Requerente veio apresentar alegações a 25 de Março de 2022, nas quais defendeu a improcedência da excepção, sustentando ser entendimento pacífico tanto na Jurisprudência como na Doutrina que os actos de indeferimento de pretensões dos sujeitos passivos – i.e., actos de segundo grau - poderão ser arbitráveis junto do CAAD, na condição de eles próprios terem apreciado a legalidade de um acto de liquidação de imposto - i.e., de um acto de primeiro grau. Em relação ao fundo da causa, sustentou que se encontravam cumpridos os requisitos cumulativos para a Revisão Oficiosa (pela AT) da autoliquidação de IVA do ano 2015, a saber: a) a Requerente encontrava-se dentro do prazo de 4 anos previsto no n.º 1 do artigo 78.º da LGT e no n.º 2 do artigo 98.º do Código do IVA para a apresentação do Pedido de Revisão Oficiosa; b) o erro relativo ao regime jurídico aplicável à dedução do imposto incorrido na aquisição de recursos de utilização mista durante o ano de 2015 considera-se “imputável aos serviços”.

 

 

1.8 Por sua vez, a Autoridade Tributária limitou-se nas suas alegações a reproduzir tudo quanto já tinha deduzido e contestado em sede de Resposta, considerando que a acção deverá ser julgada totalmente improcedente.

 

1.9 As partes não mais vieram aos autos manifestar-se.

 

2. SANEAMENTO

 

O Tribunal foi regularmente constituído.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas.

O processo não sofre de quaisquer vícios que o invalidem.

 

 

3. QUESTÕES A DECIDIR

 

São as seguintes as questões a decidir no presente processo:

 

- A eventual incompetência material do Tribunal Arbitral para conhecer da questão.

- A eventual ilegalidade da decisão de indeferimento do Recurso Hierárquico interposto pela Requerente com o n.º ...20201..., sobre a decisão de indeferimento emitida no âmbito do procedimento de Revisão Oficiosa com o n.º ...2019..., apresentado igualmente pela Requerente com vista à anulação do acto tributário de autoliquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) referente ao ano 2015, materializado na declaração periódica de imposto com referência a Dezembro de 2015, no montante de € 545.828,28, e a consequente declaração de ilegalidade daquele acto de autoliquidação de IVA.

- O eventual direito a juros indemnizatórios.

 

 

4. MATÉRIA DE FACTO

 

 

Factos provados.

 

Com relevância para a decisão de mérito, o Tribunal considera provada a seguinte factualidade:

 

 

1. A Requerente é uma instituição de crédito, encontrando-se enquadrada no regime mensal do IVA.

 

2. No âmbito da sua actividade, a Requerente realiza operações financeiras enquadráveis na norma de isenção constante do n.º 27 do artigo 9.º do Código do IVA, que não conferem o direito à dedução deste imposto, como sucede com as operações de financiamento e concessão de crédito, ou operações relativas a pagamentos.

 

3. Simultaneamente, a Requerente realiza também operações que conferem o direito à dedução deste imposto, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 20.º do Código do IVA, como sucede com as operações de locação financeira mobiliária, locação de cofres e custódia de títulos.

 

4. Para determinar a medida de IVA dedutível relativamente às demais aquisições de bens e serviços, afectos indistintamente às diversas operações por si desenvolvidas (recursos de “utilização mista”), a Requerente aplicou o coeficiente de imputação específico imposto pela Autoridade Tributária e Aduaneira no Ofício-Circulado n.º 30108, de 30 de Janeiro de 2009.

 

5. Nesta esteira, com referência ao ano 2015, a Requerente determinou um critério de dedução de imposto correspondente a um pro rata de 2%.

 

6. Consequentemente, a Requerente efectuou a autoliquidação de IVA referente ao ano 2015, materializado na declaração periódica de imposto com referência a Dezembro de 2015, n.º..., onde considerou haver imposto a favor do sujeito passivo de € 851.126,89 e imposto a favor do Estado no montante de € 1.246.008,53, tendo em consequência entregue ao Estado € 394.881,64.

 

7. No entanto, a Requerente veio a concluir, na sequência de uma revisão de procedimentos, que a dedução do imposto incorrido na aquisição de recursos de utilização mista com referência às áreas da gestão da carteira própria de títulos e dos terminais de pagamento automático, de acordo com o critério de imputação específico (pro rata), não se afigurava consentânea com o efectivo consumo de recursos pelas referidas áreas.

 

8. Pelo que a Requerente considerou, com referência ao ano de 2015, que deduziu imposto a menos do que aquele determinado pela legislação do IVA, e exigido pelo princípio da neutralidade que rege o sistema comum deste imposto, no valor de € 545.828,28 [i.e., € 142.682,95 (referente à área da gestão da carteira própria de títulos) e € 403.145,33 (referente à área dos terminais de pagamento automático)].

 

9. Em consequência, a Requerente apresentou um Pedido de Revisão Oficiosa junto da Unidade dos Grandes Contribuintes, com o n.º ...2019..., no qual requereu a anulação parcial do acto de autoliquidação materializada na declaração periódica de IVA de Dezembro de 2015 e, consequentemente, a restituição do valor de IVA pago em excesso no montante global de € 545.828,28 (acrescido de juros indemnizatórios).

 

 

10. Em 4 de Maio de 2020, o pedido de revisão oficiosa foi indeferido por despacho do Chefe de Divisão da Justiça Tributária da Unidade dos Grandes Contribuintes, por delegação e subdelegação de competências, exarado na informação nº 42-ADP/2020, de 21 de Abril de 2020.

 

11. Em 19 de Junho de 2020, a Requerente interpôs recurso hierárquico para a Directora-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira, com o nº ...2020....

 

12. Em 16 de Agosto de 2020, o recurso foi indeferido por despacho do Subdirector-Geral da AT, proferido por delegação e subdelegação de competências.

 

13. Em 1 de Dezembro de 2021, a Requerente apresentou o pedido de constituição de Tribunal Arbitral.

 

 

Factos não provados

 

Não foram alegados pelas partes quaisquer outros factos, com relevo para a apreciação do mérito da causa, que não se tenham provado.

 

Fundamentação da Decisão sobre a Matéria de Facto

 

A convicção sobre os factos dados como provados fundou-se nas alegações da Requerente e da Requerida não contraditadas pela parte contrária, sustentadas na prova documental junta pela Requerente, cuja autenticidade e correspondência à realidade também não foram questionadas.

 

 

5. MATÉRIA DE DIREITO

 

1. A primeira questão a examinar prende-se com a competência deste Tribunal Arbitral.

A Autoridade Tributária suscita a questão da incompetência material do tribunal arbitral por considerar que se encontram excluídas do âmbito da arbitragem tributária as decisões de indeferimento de pedidos de revisão oficiosa e que nesta revisão oficiosa não foi apreciada a legalidade de qualquer acto tributário de liquidação porquanto a mesma ficou prejudicada na medida em que faltava um pressuposto procedimental necessário à sua efectiva apreciação.

Em causa está a interpretação do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a), da Portaria 112-A/2011, de 22 de Março, diploma que, em aplicação do artigo 4.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT), regulamenta o âmbito de vinculação da administração tributária aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD. Nos termos dessa disposição, os serviços e organismos que integram a Administração Tributária vinculam-se à jurisdição arbitral no tocante a qualquer dos tipos de pretensões identificadas no n.º 1 do artigo 2.º desse Regime, com exceção das relativas à “declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário”.

A excepção deduzida pela Autoridade Tributária foi já decidida em sentido negativo por jurisprudência amplamente maioritária dos tribunais arbitrais (entre muitos, os acórdãos proferidos nos Processos n.º 617/2015-T e 550/2017-T), que veio a ser sufragada pelo acórdão de 27 de abril de 2017 do Tribunal Central Administrativo do Sul (Processo n.º 08599/17), e não há motivo para alterar esse entendimento.

Segundo o disposto no artigo 2.º, n.º 1, do RJAT, a competência dos tribunais arbitrais compreende, entre outras pretensões, a apreciação da declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta (alínea a), ainda que a lei faça depender a vinculação da administração tributária à jurisdição arbitral de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que deverá estabelecer, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos (artigo 4.º, n.º 1).

Esta última disposição veio a ser regulamentada pela Portaria n.º 112-A/2011 que, no seu artigo 2.º, define como objeto da vinculação a apreciação das pretensões referidas no artigo 2.º, n.º 1, do RJAT, com excepção - na parte que agora interessa considerar - das “pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário”.

É ainda de fazer notar que a lei permite que o sujeito passivo, por sua iniciativa, possa solicitar a revisão dos actos tributários pela entidade que os praticou dentro do prazo de reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade (artigo 78.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária).

O pedido de revisão constitui igualmente um procedimento de segundo grau, que tem o mesmo efeito jurídico da reclamação necessária a que se refere o artigo 131.º do CPPT, na medida em que permite o reconhecimento pela Administração da existência de ilegalidade na prática do acto tributário, e que pode ser deduzido no mesmo prazo e desencadear, em idênticos termos, em caso de indeferimento, o recurso à via contenciosa.

Conferindo a lei ao interessado dois meios alternativos de reacção administrativa contra o acto tributário com idênticos efeitos de direito, nenhum motivo existe para que não possa estabelecer-se a equiparação entre esses meios para o efeito de sujeitar o litígio à arbitragem.

 

Assim, torna-se claro que não há qualquer obstáculo à sujeição de um litígio tributário à arbitragem quando a Administração tenha podido pronunciar-se, num procedimento de segundo grau, sobre a matéria da impugnação jurisdicional.

Nestes termos se indefere a excepção relativa à incompetência deste Tribunal Arbitral.

Julga-se assim o Tribunal Arbitral competente para a apreciação desta questão.

 

2. A segunda questão a apreciar prende-se com a eventual ilegalidade da decisão de indeferimento do Recurso Hierárquico interposto pela Requerente com o n.º ...2020..., sobre a decisão de indeferimento emitida no âmbito do procedimento de Revisão Oficiosa com o n.º ...2019..., apresentado igualmente pela Requerente com vista à anulação do acto tributário de autoliquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) referente ao ano 2015, materializado na declaração periódica de imposto com referência a Dezembro de 2015, no montante de € 545.828,28, e a consequente declaração de ilegalidade daquele acto de autoliquidação de IVA.

Neste âmbito, a questão a colocar prende-se com a possibilidade de alterar retroactivamente o método de dedução utilizado pelo sujeito passivo.

Sobre este assunto há a considerar o seguinte enquadramento legal.

O artigo 173.º da Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006, estabelece o seguinte:

 

Artigo 173.º

 

No que diz respeito aos bens e aos serviços utilizados por um sujeito passivo para efectuar tanto operações com direito à dedução, referidas nos artigos 168.º, 169.º e 170.º, como operações sem direito à dedução, a dedução só é admitida relativamente à parte do IVA proporcional ao montante respeitante à primeira categoria de operações.

 

O artigo 175.º do mesmo diploma estabelece o seguinte:

 

Artigo 175.º

1. O pro rata de dedução é determinado anualmente, fixado em percentagem e arredondado para a unidade imediatamente superior.

2. O pro rata aplicável provisoriamente a determinado ano é calculado com base nas operações do ano anterior. Na falta de tal referência, ou quando esta não seja significativa, o pro rata é estimado provisoriamente, sob controlo da administração, pelo sujeito passivo, de acordo com as suas previsões.

Todavia, os Estados–Membros podem continuar a aplicar a sua regulamentação em vigor em 1 de Janeiro de 1979 ou, no que respeita aos Estados–Membros que tenham aderido à Comunidade após essa data, na data da respectiva adesão.

3. A fixação do pro rata definitivo, que é determinado para cada ano durante o ano seguinte, implica a regularização das deduções operadas com base no pro rata aplicado provisoriamente.

 

Os artigos 184.º a 186.º da Directiva n.º 2006/112/CE estabelecem o seguinte:

 

Artigo 184.º

A dedução inicialmente efectuada é objecto de regularização quando for superior ou inferior à dedução a que o sujeito passivo tinha direito.

 

Artigo 185.º

1.  A regularização é efectuada nomeadamente quando se verificarem, após a declaração de IVA, alterações dos elementos tomados em consideração para a determinação do montante das deduções, por exemplo no caso de anulação de compras ou de obtenção de abatimentos nos preços.

2.  Em derrogação do disposto no n.º 1, não é efectuada qualquer regularização no caso de operações total ou parcialmente por pagar, no caso de destruição, perda ou roubo devidamente comprovados ou justificados, bem como no caso das afectações de bens a ofertas de pequeno valor e a amostras referidas no artigo 16.º.

No caso de operações total ou parcialmente por pagar e nos casos de roubo, os Estados-Membros podem, todavia, exigir a regularização.

 

Artigo 186.º

Os Estados-Membros determinam as normas de aplicação dos artigos 184.º e 185.º.

 

Os artigos 22.º, 23.º e 98.º do Código do IVA (CIVA) estabelecem o seguinte, no que aqui interessa:

 

Artigo 22.º

Momento e modalidades do exercício do direito à dedução

 

1 - O direito à dedução nasce no momento em que o imposto dedutível se torna exigível, de acordo com o estabelecido pelos artigos 7.º e 8.º, efectuando-se mediante subtracção ao montante global do imposto devido pelas operações tributáveis do sujeito passivo, durante um período de declaração, do montante do imposto dedutível, exigível durante o mesmo período.

2 - Sem prejuízo do disposto no artigo 78.º, a dedução deve ser efetuada na declaração do período ou de período posterior àquele em que se tiver verificado a receção das faturas ou de recibo de pagamento do IVA que fizer parte das declarações de importação. (Redacção do Decreto-Lei n.º 197/2012, de 24 de Agosto)

3 - Se a recepção dos documentos referidos no número anterior tiver lugar em período de declaração diferente do da respectiva emissão, pode a dedução efectuar-se, se ainda for possível, no período de declaração em que aquela emissão teve lugar.

(...)

 

Artigo 23.º

Métodos de dedução relativa a bens de utilização mista

 

1 - Quando o sujeito passivo, no exercício da sua actividade, efectuar operações que conferem direito a dedução e operações que não conferem esse direito, nos termos do artigo 20.º, a dedução do imposto suportado na aquisição de bens e serviços que sejam utilizados na realização de ambos os tipos de operações é determinada do seguinte modo:

(...)

b) Sem prejuízo do disposto na alínea anterior, tratando-se de um bem ou serviço afecto à realização de operações decorrentes do exercício de uma actividade económica prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, parte das quais não confira direito à dedução, o imposto é dedutível na percentagem correspondente ao montante anual das operações que dêem lugar a dedução.

            (...)

6 - A percentagem de dedução referida na alínea b) do n.º 1, calculada provisoriamente com base no montante das operações realizadas no ano anterior, assim como a dedução efectuada nos termos do n.º 2, calculada provisoriamente com base nos critérios objectivos inicialmente utilizados para aplicação do método da afectação real, são corrigidas de acordo com os valores definitivos referentes ao ano a que se reportam, originando a correspondente regularização das deduções efectuadas, a qual deve constar da declaração do último período do ano a que respeita.

 

 

Artigo 78.º

 

Regularizações

 

(...)

6 - A correcção de erros materiais ou de cálculo no registo a que se referem os artigos 44.º a 51.º e 65.º, nas declarações mencionadas no artigo 41.º e nas guias ou declarações mencionadas nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 67.º é facultativa quando resultar imposto a favor do sujeito passivo, mas só pode ser efectuada no prazo de dois anos, que, no caso do exercício do direito à dedução, é contado a partir do nascimento do respectivo direito nos termos do n.º 1 do artigo 22.º, sendo obrigatória quando resulte imposto a favor do Estado.

(...)

 

Artigo 98.º

 

Revisão oficiosa e prazo do exercício do direito à dedução

 

(...)

 

2 - Sem prejuízo de disposições especiais, o direito à dedução ou ao reembolso do imposto entregue em excesso só pode ser exercido até ao decurso de quatro anos após o nascimento do direito à dedução ou pagamento em excesso do imposto, respectivamente.

 

Alega a Requerente que, uma vez que os critérios de afectação real cuja aplicação pretendeu visaram corrigir o erro cometido na (incorrecta) dedução do IVA incorrido na aquisição de recursos de utilização mista durante o ano 2015, encontrando-se a ora Requerente dentro do prazo de quatro anos previsto no n.º 2 do artigo 98.º do Código do IVA para o reembolso do imposto que, por motivo de erro de direito, foi entregue em excesso, deveria a AT ter promovido a anulação da decisão de indeferimento da Revisão Oficiosa apresentada e, consequentemente, a correcção da autoliquidação de imposto realizada no ano 2015, validando o direito de a Requerente regularizar, a seu favor, o imposto no montante de € 545.828,28.

 

            Por sua vez, a Requerida salienta que não existe qualquer norma no CIVA que sirva de suporte legal à alteração retroactiva do método de dedução pretendida pela Requerente, já que esta escolha apenas pode ser realizada para cada aquisição de bens ou de serviços no momento em que se constitui o direito à dedução nas condições previstas no n.º 1 do artigo 20.º, n.º 1 do artigo 22.º e no artigo 23.º do CIVA. No entender da Requerida, o direito à dedução não se configura como um poder-dever, mas antes uma faculdade na disponibilidade dos sujeitos passivos, a que acresce o seu carácter formalista estando sujeito ao cumprimento de determinadas formalidades, designadamente, temporais. Em consequência, a aplicação retroativa de um método de dedução apenas pode ser realizada até à data constante do n.º 6 do artigo 23.º do CIVA, ou seja, até à última declaração periódica do ano a que respeita, sem que seja viável a reclamação graciosa prevista no n.º 1 do artigo 131.º do CPPT, atenta, como já referiu a inexistência de um erro na autoliquidação.

 

A questão em análise nestes autos é semelhante à decidida no processo 136/2018-T, em que o relator deste processo participou, onde foi determinado reenvio prejudicial para o TJUE, tendo este Tribunal vindo a pronunciar-se no sentido de que:

– o artigo 173.°, n.º 2, alínea c), da Diretiva 2006/112/CE, lido à luz dos princípios da neutralidade fiscal, da segurança jurídica e da proporcionalidade, deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a que o Estado Português proíba aos sujeitos passivos mistos de IVA alterar o método de dedução do IVA após a fixação do pro rata definitivo;

– os artigos 184.º a 186.º daquela Directiva lidos à luz dos princípios da neutralidade fiscal, da efectividade e da proporcionalidade, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a que seja recusada a possibilidade a esses sujeitos passivos de rectificação da dedução de IVA, após a fixação do pro rata definitivo,  quando ignoravam de boa‑fé que uma operação que considerava isenta não o estava, dentro do prazo geral de caducidade do direito de regularizar deduções, em situação em que a alteração do método de dedução permite estabelecer com maior precisão a parte do IVA referente a operações com direito à dedução.

 

Ao contrário do que se verificou nesses autos não está em causa neste processo a alteração do método de dedução em virtude da consideração como isentas operações que não o estavam, mas antes uma diferente avaliação feita pelo sujeito passivo sobre o melhor método a aplicar para o cálculo das deduções relativas a bens de utilização mista.

Considera-se consequentemente que as alterações retroactivas aplicadas pela Requerente no cálculo do direito à dedução de bens e serviços de utilização mista não têm por base quaisquer erros materiais ou de cálculo previstos no artigo 78.º nem erros de qualquer outra natureza, pois nos termos do artigo 23.º do Código do IVA o sujeito passivo fez uma opção no momento do nascimento do direito à dedução, conforme estabelecido no n.º 1 do artigo 22.º do Código do IVA, a qual se encontra no âmbito da autonomia de actuação permitida pelo imposto e é materializada na autoliquidação efetuada pelo sujeito passivo.

 

            Nada existe na lei que permita estabelecer essa alteração posteriormente com eficácia retroactiva e o TJUE já declarou que o artigo 173.°, n.º 2, alínea c), da Diretiva 2006/112/CE, lido à luz dos princípios da neutralidade fiscal, da segurança jurídica e da proporcionalidade não se opõe a que o Estado português limite a possibilidade de efectuar essa alteração.

 

Nestes termos, improcede o pedido de anulação da autoliquidação, devendo considerar-se correcta a decisão da AT em relação ao pedido de revisão oficiosa e respectivo recurso hierárquico.

 

3. A última questão a examinar prende-se com o eventual direito a juros indemnizatórios.

No entanto, como foi julgado improcede o pedido principal, em consequência improcede igualmente o pedido de juros indemnizatórios solicitado pela Requerente.

 

 

 6. DECISÃO

 

Nestes termos e com a fundamentação supra, decide-se:

 

 

- Julgar totalmente improcedentes os pedidos da Requerente, com as consequências que da lei decorrem, designadamente em relação a custas.

 

 

 

* * *

 

Fixa-se o valor do processo em € 545.828,28 (quinhentos e quarenta e cinco mil, oitocentos e vinte e oito euros e vinte e oito cêntimos) de harmonia com o disposto nos artigos 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT) e 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT.

 

O montante das custas é fixado em 8.262,00€ (oito mil, duzentos e sessenta e dois euros) ao abrigo do artigo 22.º, n.º 4 do RJAT e da Tabela I anexa ao RCPAT, que ficam totalmente a cargo da Requerente, de acordo com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 do RJAT, 4.º, n.º 4 do RCPAT.

 

            Lisboa e CAAD, aos 6 de Junho de dois mil e vinte e dois.

 

Notifique-se.

 

Os Árbitros,

 

 

 

(Regina Almeida Monteiro)

 

 

 

(Luís Menezes Leitão)

 

 

 

(José Nunes Barata)