Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 327/2019-T
Data da decisão: 2020-01-14  IRC  
Valor do pedido: € 58.271,71
Tema: IRC – Correcção do lucro tributável; especialização de exercícios; princípio da justiça.
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DECISÃO ARBITRAL

 

1.            Relatório

 

A - Geral

 

1.1.        A..., S.A., com sede na Rua ..., n.º..., ...-... ..., com o número de identificação fiscal ... (de ora em diante designada “Requerente”), apresentou no dia 07.05.2019 um pedido de constituição de tribunal arbitral singular em matéria tributária, que foi aceite, visando, por um lado, a declaração de ilegalidade do acto de liquidação de Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Colectivas (de ora em diante “IRC”) e de juros compensatórios n.º 2018..., no montante de € 58.271,71 (cinquenta e oito mil duzentos e setenta e um euros e setenta e um cêntimos), como adiante melhor se verá e, por outro, o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios pelo pagamento indevido de prestação tributária.

 

1.2.        Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do art.º 6.º e da alínea b) do n.º 1 do art.º 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, na redacção que lhe foi dada pelo art.º 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (de ora em diante, “RJAT”), o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) designou como árbitro o signatário, não tendo as partes, depois de devidamente notificadas, manifestado oposição a essa designação.

 

1.3.        Por despacho de 16.05.2019, a Administração Tributária e Aduaneira (de ora em diante designada “Requerida”) procedeu à designação dos Senhores Dr. B... e Dra. C... para intervirem no presente processo arbitral, em nome e representação da Requerida.

 

1.4.        Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do art.º 11.º do RJAT, o tribunal arbitral foi constituído a 17.07.2019.

 

1.5.        No mesmo dia 17.07.2019 foi notificado o dirigente máximo dos serviços da Requerida para remeter ao Tribunal Arbitral cópia do processo administrativo que pudesse existir e, querendo, no prazo de 30 dias, apresentar resposta e solicitar produção de prova adicional.

 

1.6.        No dia 27.09.2019 a Requerida apresentou a sua resposta e juntou o processo administrativo.

 

B – Posição da Requerente

 

1.7.        A Requerente foi objecto de um procedimento de inspecção externa ao exercício de 2014, de que resultou a correcção à matéria colectável do IRC de 2014 no montante de € 238.568,49 (duzentos e trinta e oito mil quinhentos e sessenta e oito euros e quarenta e nove cêntimos).

 

1.8.        A correcção supra referida respeita à desconsideração da perda na liquidação da sociedade D..., S.A., (de ora em diante “D..., S.A.”) por ter a Requerida entendido que a perda associada à dissolução e liquidação dessa sociedade devia ter sido imputada no período de 2013, e não no de 2014, já que os seus accionistas deliberaram a sua dissolução e liquidação em 2013, tendo a matrícula da sociedade sido cancelada na respectiva conservatória do registo comercial a 14.06.2013, não tendo sido demonstrado o carácter imprevisível ou desconhecido da perda associada à dissolução e liquidação da D..., S.A. à data do fecho das contas de 2013, nos termos do n.º 2 do art.º 18.º do Código do IRC (de ora em diante “CIRC”).

 

1.9.        Sucede que o princípio da periodização do lucro tributável na vertente em que veda a dedução num exercício das componentes negativas respeitante a períodos anteriores não pode ser tomado com carácter dogmático, devendo ser ponderado por outras condicionantes, nomeadamente, o princípio da justiça, sob pena de conduzir a tributação violadora dos princípios constitucionais.

 

1.10.      Certo é que, aquando da correcção, a Requerente já não podia lançar mão do pedido de revisão do acto tributário relativamente a 2013, pelo que a desconsideração, em 2014, da perda associada à dissolução e liquidação da D..., S.A. se traduziria numa intolerável violação do princípio da justiça.

 

1.11.      A injustiça radicaria na circunstância de, na prática, se impedir o sujeito passivo de considerar para efeitos tributários a perda associada à dissolução e liquidação da D..., S.A., até porque o Estado em nada foi prejudicado pelo atraso no registo dessa perda.

 

1.12.      O princípio da periodização do lucro tributável consagrado no art.º 18.º do CIRC tem de ser aplicado em conformidade com os desígnios constitucionais, desde logo os constantes do n.º 2 do art.º 104.º e do n.º 2 do art.º 266.º da Lei Fundamental.

 

1.13.      Assim, entende a Requerente que deve ser declarada a ilegalidade da liquidação de IRC ora posta em crise e consequentemente o montante indevidamente pago ser reembolsado, acrescido de juros indemnizatórios contados desde a data de pagamento.

 

C – Posição da Requerida

 

1.14.      Os accionistas da D..., S.A., deliberaram a dissolução e liquidação da sociedade no dia 26.03.2013, tendo as suas contas sido aprovadas por unanimidade e aprovada a liquidação do activo por partilha imediata, tendo sido atribuído à Requerente o montante de € 101.531,50 (cento e um mil quinhentos e trinta e um euros e cinquenta cêntimos), correspondente à sua participação de 50 % no capital social da D..., S.A..

 

1.15.      No dia 16.04.2013 foi apresentada declaração de cessação de actividade para efeitos de IRC.

 

1.16.      No dia 14.06.2013 foi apresentada a dissolução e encerramento da liquidação da D..., S.A. na competente conservatória do registo comercial, tendo a respectiva matrícula sido cancelada.

 

1.17.      Assim, a perda associada à dissolução e liquidação da D..., S.A. devia ter sido imputada no exercício de 2013, e não no de 2014, não tendo a Requerente demonstrado o carácter imprevisível ou desconhecido dessa perda, no montante de € 238.469,49 (duzentos e trinta e oito mil quatrocentos e sessenta e nove euros e quarenta e nove cêntimos), à data do fecho das contas do período de 2013.

 

1.18.      O princípio da especialização dos exercícios (ínsito nos artigos 17.° e 18.° do CIRC), não tolera - fora dos casos expressamente consignados na lei - qualquer margem de manobra do contribuinte na afectação temporal dos movimentos económico-financeiros da empresa, pretendendo-se com ele impedir práticas de manipulação do resultado fiscal.

 

1.19.      A exigibilidade da periodização das componentes negativas e positivas do lucro tributável impõe que nenhum sujeito passivo transporte para um período tributável diferente essas componentes, uma vez que face ao vertido no n.º 2 do art.º 18.º do CIRC, a imputação das componentes positivas ou negativas respeitantes a exercícios anteriores apenas poderá ser reconhecida se as mesmas eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas na data do encerramento das contas do período a que respeitam e esse desconhecimento terá de ser fundamentado, desculpável e atendível.

 

1.20.      Ora, a Requerente, em 2013, estava em condições de saber a perda sofrida com a dissolução e liquidação da D..., S.A..

 

1.21.      Acresce que o regime tributário aplicável às perdas decorrentes de uma partilha (no caso menos-valia), foi alterado do período de 2013 para o de 2014, pelo que não é inócuo o seu reconhecimento num período ou noutro, uma vez que os critérios para a sua aceitação fiscal são diferentes num e no outro período.

 

1.22.      Em 2013, aplicava-se o art.º 45.º do CIRC nos termos do qual “a diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remição e amortização com redução de capital, bem como outras perdas ou variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio, designadamente prestações suplementares, concorrem para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor”.

 

1.23.      Já a partir de 2014, desaparece a restrição dos 50% na aceitação da perda apurada.  

 

1.24.      Ora, não sendo o acto de liquidação ora sindicado ilegal, não pode aos serviços ser imputado qualquer erro de facto ou de direito, pelo que igualmente falece a pretensão da Requerente aos juros indemnizatórios. 

 

D – Conclusão do Relatório e Saneamento

 

1.25.      Por despacho de 13.12.2019 o Tribunal Arbitral dispensou a reunião prevista no art.º 18.º do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), por entender que as Partes haviam já carreado para o processo os elementos de facto necessários e suficientes para a prolação da decisão, que se previu pudesse ter lugar até ao dia 16.01.2020, tendo sido as partes convidadas a apresentar, querendo, as suas alegações, direito que apenas a Requerente exerceu.

 

1.26.      Nas suas alegações, a Requerente refere-se à suposta finalidade fiscal da consideração, apenas em 2014, da perda associada à dissolução e liquidação da D..., S.A., reiterando que nenhuma vantagem fiscal obteve pelo facto de não ter reconhecido a referida perda em 2013, não tendo prejuízos fiscais em risco de caducidade, lembrando que o revogado art.º 45.º do CIRC não era aplicável às menos-valias decorrentes da partilha.

 

1.27.      O tribunal arbitral é materialmente competente, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, al. a) do RJAT.

 

1.28.      As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade nos termos do art.º 4.º e do n.º 2 do art.º 10.º do RJAT, e art.º 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, não padecendo o processo de qualquer nulidade.

 

1.29.      A cumulação de pedidos efectuada no presente pedido de pronúncia arbitral, em homenagem ao princípio da economia processual, justifica-se uma vez que o art.º 3.º do RJAT, ao admitir expressamente a possibilidade de “cumulação de pedidos ainda que relativos a diferentes actos”, acomoda, sem abuso hermenêutico, a apreciação de um pedido que decorre, em termos necessários, do juízo que o tribunal arbitral sufrague quanto à validade da liquidação mediatamente posta em crise.

 

2.            Matéria de facto

 

2.1.        Factos provados

 

2.1.1.     A Requerente adquiriu, em Março de 2006, por € 340.000,00 (trezentos e quarenta mil euros), 10.000 (dez mil) acções representativas do capital social e dos direitos de voto da D..., S.A. (cf. contrato de compra e venda de acções, constante do processo administrativo, junto com a resposta).

 

2.1.2.     No dia 26.03.2013, reunidos em assembleia geral, os accionistas da D..., S.A., deliberaram a dissolução imediata da sociedade (acta n.º 41 da assembleia geral da D..., S.A., constante do processo administrativo, junto com a resposta).

 

2.1.3.     Na mesma assembleia geral, os accionistas da D..., S.A., também por unanimidade, aprovaram as contas e a liquidação do activo por partilha imediata, tendo sido atribuído à Requerente o montante de € 101.531,50 (cento e um mil quinhentos e trinta e um euros e cinquenta cêntimos) (acta n.º 41 da assembleia geral da D..., S.A., constante do processo administrativo, junto com a resposta).

 

2.1.4.     A Requerente apenas em 2014 inscreveu nas suas contas a perda associada à dissolução e liquidação da D..., S.A. no montante de € 238.469,49 (duzentos e trinta e oito mil quatrocentos e sessenta e nove euros e quarenta e nove cêntimos) (consenso das Partes).

 

2.1.5.     A Requerente não demonstrou o carácter imprevisível ou desconhecido da perda associada à dissolução e liquidação da D..., S.A. à data do fecho das contas de 2013 (confissão da Requerente nas suas alegações – art.º 3.º).

 

2.2.        Factos não provados

 

Não há factos relevantes para a apreciação do mérito da causa que hajam sido dados como não provados.

 

2.3.        Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos aos autos pelas Partes e nas posições por elas assumidas nos articulados apresentados.

 

3.            Matéria de direito

 

3.1.        Questões a decidir

 

Resulta do que acima se deixou dito que as questões a apreciar são, no fundo, as seguintes: 

a)            A de saber se, no caso dos autos, a Requerida pode corrigir o resultado tributável de Requerente em 2014, desconsiderando a perda associada à dissolução e liquidação da D..., S.A., quando não é já possível imputar essa perda ao resultado tributável referente ao período de tributação de 2013; e

b)           A de esclarecer se, caso se julgue procedente o pedido de declaração de ilegalidade do acto de liquidação ora posto em crise, a Requerente, no âmbito do presente processo arbitral, poderá obter a condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios relativamente à quantia por si entregue para satisfação de prestação tributária não devida.

 

3.2.        A periodização do lucro tributável

 

A questão que cumpre ao tribunal julgar reporta-se ao exercício de 2014, ano em que a Requerente imputou a perda associada à dissolução e liquidação da D..., S.A., cuja dissolução e liquidação haviam tido lugar em 2013.

 

O n.º 1 do art.º 17.º do CIRC, sob a epígrafe “determinação do lucro tributável”, dispõe que:

 

O lucro tributável das pessoas colectivas e outras entidades mencionadas na alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do período e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não reflectidas naquele resultado, determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos deste Código.

 

Já pelo n.º 1 do art.º 8.º do mesmo diploma fica claro que o período de tributação coincide com o ano civil.

 

O art.º 18.º do CIRC, por sua vez, prescreve o seguinte:

 

 1 - Os rendimentos e os gastos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, são imputáveis ao período de tributação em que sejam obtidos ou suportados, independentemente do seu recebimento ou pagamento, de acordo com o regime de periodização económica.

2 - As componentes positivas ou negativas consideradas como respeitando a períodos anteriores só são imputáveis ao período de tributação quando na data de encerramento das contas daquele a que deviam ser imputadas eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas.

 

O princípio da especialização dos exercícios visa, a par de outras manifestações da indisponibilidade da relação jurídico-tributária, impedir práticas de manipulação do resultado fiscal que resultem na imputação de mais rendimentos nos exercícios em que se verificam prejuízos fiscais ou lucros mais reduzidos e mais gastos nos exercícios que geraram maiores lucros.

 

Vale a pena percorrer a esclarecida e esclarecedora fundamentação da decisão arbitral prolatada no processo n.º 334/2018-T que correu termos no CAAD:

O princípio da periodização económica ou da especialização dos exercícios está positivado no n.º 1 do artigo 18.º do Código do IRC e traduz-se na regra de que devem ser considerados como ganhos ou perdas de determinado exercício os proveitos e os custos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, que a esse exercício digam respeito, sendo irrelevante o exercício em que elas se materializam.

No n.º 2 daquele mesmo artigo 18.º prevê-se uma exceção para as componentes positivas ou negativas do lucro tributável que, na data do encerramento das contas de determinado exercício, eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas.

O princípio da especialização dos exercícios deriva da periodização dos resultados que é imposta por necessidades de gestão e de informação, sendo «caracterizado pela cisão da vida da empresa em intervalos temporais e pela imputação dada a um deles das componentes, positivas e negativas, que tornem possível determinar o resultado que lhe corresponde», impondo essa especialização «a realização de inventário de fim de exercício, dela decorrendo a necessidade de imputar a cada exercício todos os proveitos e custos que lhe são inerentes e só esses» ; desta forma, «a periodização anual do imposto implica que tanto os rendimentos como os gastos (e as variações patrimoniais fiscalmente relevantes) sejam imputados a cada período de tributação. Esta imputação resulta essencialmente da aplicação das normas contabilísticas, justamente porque o nosso legislador entendeu que as regras de periodização aí previstas oferecem um sistema coerente, fiável e eficaz também para efeitos fiscais.»

                Como é mencionado por Tomás Cantista Tavares, “a periodização temporal dos proveitos e dos gastos é uma característica imanente à noção de rendimento. O rédito obtém-se pela comparação entre dois pontos temporais definidos. (…)

                A periodização do rendimento das sociedades encaixa-se, assim, em dois magnos princípios que se interpenetram numa relação de complementaridade – e por vezes de contraposição: por um lado, o conjunto das regras técnicas e operacionais que definem a imputação temporal das componentes positivas e negativas do rendimento, aglutinadas no chamado princípio prático da especialização dos exercícios ou, na actual nomenclatura, no princípio do acréscimo. Por outro lado, o princípio material da justiça, concretizado, em grande medida, na regra da solidariedade dos exercícios, onde na constatação da real continuidade do rendimento, se permite uma certa interpenetração entre os vários períodos temporais, que não funcionam assim como compartimentos completamente estanques. (…)

                O princípio da especialização dos exercícios (do acréscimo ou da periodização económica) tem fonte contabilística [parágrafo 22 da Estrutura Conceptual] e reprodução tributária.”

A importância e razão de ser do princípio da periodização económica resultam evidentes se se tiver presente que «a especialização temporal das componentes do lucro é ainda mais importante para efeitos fiscais do que contabilísticos, dados os condicionalismos em que decorre a determinação do imposto a pagar, de modo a evitar desvios de resultados entre exercícios diferentes com propósitos de minimização da carga fiscal, (…). Com efeito, essa imputação temporal pode ser instrumento de uma manipulação de resultados, de modo a, designadamente:

                a) Diferir no tempo os lucros;

                b) Fraccionar os lucros, distribuindo-os por exercícios diferentes, com o objectivo de evitar, num imposto de taxas progressivas, a tributação por taxas mais elevadas;

                c) Concentrar o lucro em exercício onde se podem efectivar deduções mais avultadas (v. g. por reporte de prejuízos ou por incentivos fiscais).»  

                Efetivamente, existem, «em abstracto, dois tipos de erros fiscais ligados à imputação temporal das componentes positivas e negativas do rédito ao exercício competente:

                - a omissão ou esquecimento (erro voluntário ou involuntário): conhece-se a regra, que é indisputável, mas por algum motivo (ilegítimo ou justificado) não se regista o proveito ou o custo no ano devido;

                - a álea ou abertura interpretativa: errónea inscrição temporal dum proveito ou um custo, efectuada, todavia, com base numa interpretação plausível da regra fiscal (geral ou específica) da especialização dos exercícios, regra essa que possui um conteúdo aplicativo equívoco (ou não concludente) diante do caso concreto.»

É, pois, vedado aos contribuintes definirem como bem entenderem ou segundo critérios de oportunidade ou, ainda, em conformidade com a sua estratégia comercial ou de gestão, o timing para declararem os proveitos e os custos decorrentes da sua atividade comercial ou industrial, porquanto lhes são legalmente impostos limites e regras para o efeito, designadamente no sentido de os obrigar a imputar esses proveitos e custos ao exercício a que digam respeito.

                Assim, todos os custos e proveitos que sejam reconhecidos em determinada data devem ser registados no exercício a que correspondem de modo a que se produza uma imagem fidedigna da posição da empresa para esse período; ou seja, devem ser imputados «ao exercício os encargos que emergem de operações nele realizadas, ainda que nele não suportadas, do mesmo modo que se devem imputar a um exercício os proveitos resultantes de operações nele feitas mesmo que arrecadados noutro» (acórdão do STA, proferido em 02/04/2008, no processo n.º 0807/07, disponível em www.dgsi.pt). Como afirma Rui Duarte Morais, «a imputação de um proveito ou custo a certo exercício obedece a um critério económico (e não a um critério financeiro), ou seja, as operações nele efectuadas afectam o respectivo resultado, independentemente do recebimento ou pagamento do respectivo preço ou outra contrapartida. Contabilizam-se créditos e débitos e não pagamentos e recebimentos.» 

Não obstante o que se vem de dizer, como salienta Tomás Cantista Tavares, os tribunais nacionais já se confrontaram «com o problema da compaginação entre o interesse tributário e os erros contabilísticos e fiscais da especialização dos exercícios. Com a questão da hipotética aceitação fiscal (e, em caso afirmativo, sob que condições) duma errónea inscrição contabilística, em violação formal do princípio da especialização dos exercícios; com a admissibilidade do registo fiscal de um custo ou de um proveito num ano diverso (anterior ou posterior) ao da sua correcta imputação temporal. [sublinhados nossos]

                A Jurisprudência gira em torno de duas teses antagónicas:

                a) a corrente primitiva, de cariz formal e legalista, não admite quaisquer violações do princípio da especialização de exercícios;

                b) a tese actual, de cariz material, aceita a violação formal do princípio da especialização, desde que essas inscrições erróneas não se reconduzam a comportamentos voluntários e intencionais, com vista a operar a transferência de resultados entre exercícios.

                (…)

                Esta corrente jurisprudencial [a tese primitiva] não pactua com a violação da regra legal da especialização de exercícios. Não aceita a inscrição duma rubrica (positiva ou negativa) do rendimento, em exercício diverso do que lhe compete. Fica-se pelo mero enunciado do princípio. Sobrevaloriza-o face à ponderação doutros factores de justiça material, como a interferência em exercício alheio ao objecto do processo ou ao atendimento de razões desculpabilizantes (actuação de boa-fé, sustentada numa interpretação plausível dum comando complexo).

                (…)

                A Jurisprudência consente, actualmente, a violação formal do princípio da especialização de exercícios, desde que não se reconduzam a comportamentos voluntários e intencionais, com vista a operar a transferência de resultados entre exercícios. [sublinhados nossos] Aceita a inscrição dum custo ou proveito em exercício diverso do que lhe competia, por intervenção de razões desculpabilizantes (actuação de boa-fé, sustentada numa interpretação séria e plausível dum comando complexo, assente em interpretações abertas e dúbias da sua estatuição).

(…)

A tese actual (…) rompe com o facilitismo do formalismo legalista. Procura a solução material e justa. Faz prevalecer um princípio estrutural (capacidade contributiva) sobre uma regra operacional (especialização de exercícios). O seu ponto de partida é irrepreensível: se a sociedade incorreu num verdadeiro custo, esse decaimento tem de modelar, obrigatoriamente, o rédito fiscal. A convenção formal da especialização não tem o condão de impedir o efeito material, nem de torná-lo excessivamente oneroso ou complexo. O mesmo se passa, mutatis mutandis, com os proveitos. Contribuem uma só vez para o lucro (…)» 

                Com efeito, constitui jurisprudência reiterada do Supremo Tribunal Administrativo que a rigidez do princípio da especialização dos exercícios tem de ser temperada com a invocação do princípio da justiça – nomeadamente, nas situações em que, estando já ultrapassados todos os prazos de revisão do ato tributário e não havendo prejuízo para o Estado, se deve evitar cair numa injustiça não justificada para o administrado –, o qual funcionará então como uma válvula de escape. Neste sentido, ficou lapidarmente consignado o seguinte no acórdão proferido em 19/11/2008, no processo n.º 0325/08 (disponível em www.dgsi.pt) :

                «O princípio da justiça é um princípio básico que deve enformar toda a actividade da Administração Tributária, como resulta do preceituado nos arts. 266.º, n.º 2, da CRP e 55.º da LGT.

Embora estes princípios constitucionais tenham um domínio primacial de aplicação no que concerne aos actos praticados no exercício de poderes discricionários, introduzindo neste exercício aspectos vinculados cuja não observância é susceptível de constituir vício de violação de lei, a sua relevância não se esgota nos actos praticados no exercício desses poderes discricionários.

Na verdade, por um lado, o texto do art. 266.º da CRP não deixa entrever qualquer restrição à sua aplicação a qualquer tipo de actividade administrativa, pelo que, em princípio, dever-se-á fazer tal aplicação, se não se demonstrar a sua inviabilidade.

Por outro lado, na aplicação da legalidade, tanto pela Administração como pelos tribunais, não pode ser encarada isoladamente cada norma que enquadra uma determinada actuação da Administração, antes terá de se atender à globalidade do sistema jurídico, com primazia para o direito constitucional, como impõe o princípio da unidade do sistema jurídico, que é o elemento primacial da interpretação jurídica (art. 9.º, n.º 1, do CC).

Não se pode afirmar, que, nos casos de exercício de poderes vinculados, a obediência a uma determinada lei ordinária se sobrepõe aos princípios constitucionais referidos, pois estes princípios fazem também parte do bloco normativo aplicável, eles são também definidores da legalidade e, como normas constitucionais, são de aplicação prioritária em relação ao direito ordinário.

Tanto são normas legais a primeira parte do n.º 2 do art. 266.º da CRP, que impõe à Administração a observância do princípio da legalidade (…), como a sua segunda parte em que se prevêem os outros princípios e que generalizadamente impõem os modelos de actuação de toda a actividade administrativa, como também é uma norma legal a que, em determinada situação específica, prevê uma determinada actuação da Administração, designadamente, no caso em apreço, a aplicação do princípio da especialização dos exercícios (art. 18.º, n.º 1, do CIRC).

Por isso, para definir a legalidade a que a Administração está vinculada, terão de se ter em conta todas essas normas e fazer uma ponderação e escolha entre elas caso a sua aplicação global, abstractamente compatível, se demonstre inviável em determinada situação concreta.

Assim, (…), do referido art. 18.º, n.º 1, do CIRC resulta uma vinculação para a Administração, que, em regra, deve aplicar o princípio da especialização dos exercícios na sua actividade de controle das declarações apresentadas pelos contribuintes.

Mas, o exercício deste poder de controle, predominantemente vinculado, pode conduzir a uma situação flagrantemente injusta e, nessas situações, é de fazer operar o princípio da justiça, consagrado nos arts. 266.º, n.º 2, da CRP e 55.º da LGT, para obstar a que se concretize essa situação de injustiça repudiada pela Constituição.

Na ponderação dos valores em causa (por um lado o princípio da especialização dos exercícios que é uma regra legislativamente arbitrária de separação temporal, para efeitos fiscais, de um facto tributário de duração prolongada e, por outro lado, o princípio da justiça, que reflecte uma das preocupações nucleares de um Estado de Direito), é manifesto que, numa situação de incompatibilidade se deve dar prevalência a este último princípio.»

Neste mesmo sentido, pronunciou-se o Tribunal Central Administrativo Sul da seguinte forma:

«I - O princípio da especialização ou autonomia dos exercícios impõe que os proveitos e os custos economicamente imputáveis a um determinado exercício, sejam considerados apenas nesse exercício, só eles podendo, assim, influenciar o seu resultado.

II - Tal princípio sofre as excepções, previstas na lei, quais sejam: nos casos em que haja imprevisibilidade ou manifesto desconhecimento das componentes positivas ou negativas e das obras de carácter plurianual (artigos 18.º, n.ºs 2 e 5 e 19.º do CIRC); nas situações em que a administração fiscal não teve qualquer prejuízo com o erro praticado pelo contribuinte e quando esse erro não resultar de omissões voluntárias ou intencionais, com vista a operar as transferências de resultados entre exercícios.»  

 

«I. O princípio da especialização ou autonomia dos exercícios, tendo em vista a tributação do rendimento que se gera em cada um. Este princípio, consagrado no POC sob a designação de princípio de efectivação dos encargos, impõe que os proveitos e os custos economicamente imputáveis a um determinado exercício, sejam considerados apenas nesse exercício, só eles podendo, assim, influenciar o seu resultado.

II. Este princípio da especialização dos exercícios surge como corolário do princípio da anualidade dos tributos, sendo ele o garante da tributação real, se tivermos em vista que com a imposição do tributo em causa se visa agravar apenas o fluxo de rendimento gerado num determinado período de tempo: razão pela qual apenas a esse período se deverão imputar os custos nele efectivamente suportados.

III. Todavia, a lei admite (por força de um outro princípio – o da solidariedade dos exercícios) excepções ao princípio em questão, dispondo que os custos fiscalmente relevantes e os proveitos respeitantes a exercícios anteriores possam ser imputados ao exercício em causa quando, na data do encerramento das contas daquele a que deveriam ser imputados, eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidos.»

Na jurisprudência tributária do CAAD, também constatamos o mesmo sentido decisório, entre outros, nos acórdãos proferidos em 24/11/2014, no processo n.º 367/2014-T, em 22/01/2016, no processo n.º 262/2015-T, em 29/04/2016, no processo n.º 588/2015-T, em 15/12/2017, no processo n.º 244/2017-T e em 24/10/2017, no processo n.º 233/2017-T (disponíveis em www.caad.org.pt/tributário/decisoes), respigando-se aqui o seguinte segmento deste último aresto:

«(…) Questão da prevalência do princípio da justiça sobre o princípio da especialização dos exercícios

O princípio da justiça, invocado pela Requerente, é imposto à globalidade da actividade da Administração Tributária pelos artigos 266.º, n.º 2, da CRP e 55.º da LGT.

Da observância concomitante dos princípios da legalidade e da justiça conclui-se que o dever de a Administração Tributária aplicar o princípio da legalidade não se traduz numa mera subordinação formal às normas que especificamente regulam determinadas situações, abrangendo também o dever de a Administração Tributária ter em conta as consequências da sua actividade e abster-se da aplicação estrita de normas quando delas decorra um resultado manifestamente injusto.

A aplicação do princípio da justiça será de sobrepor ao princípio da especialização dos exercícios nos casos em que do incumprimento não tenha resultado prejuízo para o erário público e aquele não tenha sido concretizado intencionalmente com o objectivo de obter vantagens fiscais.

O Supremo Tribunal Administrativo tem adoptado este entendimento, tendo decidido, relativamente ao princípio da especialização dos exercícios, que «esse princípio deve tendencialmente conformar-se e ser interpretado de acordo com o princípio da justiça, com conformação constitucional e legal (artigos 266.º, n.º 2 da CRP e 55.º da LGT), (…), desde que não resulte de omissões voluntárias e intencionais, com vista a operar a transferência de resultados entre exercícios».

A própria Administração Tributária há muito reconheceu a necessidade de flexibilidade na aplicação do princípio da especialização dos exercícios, no Ofício-circular n.º C-1/84, de 8-6-84, publicado, com o respectivo parecer, em Ciência e Técnica Fiscal, n.ºs 307-309, páginas 781-791, em que se adoptou o seguinte entendimento, a propósito da questão paralela que se colocava no domínio da Contribuição Industrial:

“Sempre que em determinado exercício existam custos e proveitos de exercícios anteriores, o tratamento fiscal correspondente deverá obedecer às seguintes regras:

a) Não aceitação dos custos e dos proveitos resultantes de omissões voluntárias ou intencionais no exercício em que são contabilizados, considerando-se, em princípio, como tais as que forem praticados com intenções fiscais, designadamente, quando:

- está para expirar ou para se iniciar um prazo de isenção;

- o contribuinte tem interesse em reduzir os prejuízos em determinado exercício para retirar maior benefício do reporte dos prejuízos previsto no artigo 43.º do Código;

- o contribuinte pretende reduzir o montante dos lucros tributáveis para aliviar a sua carga fiscal.

b) Nos restantes casos, não deverão corrigir-se os custos e proveitos de exercícios anteriores.”

(…)

Nos casos em que o Supremo Tribunal Administrativo tem admitido que deva prevalecer o princípio da justiça sobre a legalidade estrita relativa ao princípio da especialização dos exercícios são situações em que da não observância desse princípio não advém qualquer prejuízo para o erário público, nomeadamente situações em que o sujeito passivo não obteve vantagens ou até foi prejudicado pelo erro que praticou na aplicação do princípio da especialização dos exercícios. Em situações desse tipo, não se pode justificar que seja infligida ao contribuinte uma maior oneração fiscal, em nome de um respeito fetichista e acrítico pela observância da legalidade e à margem de qualquer perspectiva de prossecução do interesse público, que é o dever primacial a observar pela Administração Pública, como decorre do n.º 1 do artigo 266.º da CRP.»

Acompanhando este entendimento jurisprudencial, Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa preconizam a seguinte posição quanto à aplicação do princípio da especialização dos exercícios:

«Quando há divergência entre o critério do contribuinte e o da administração fiscal sobre a imputação de determinado ganho ou perda a determinado exercício esta deve proceder a correcção da matéria colectável, fazendo acrescer o proveito ou custo ao ano a que entende que ele deve respeitar e, correspondentemente, deveria abater tal proveito ou custo à matéria colectável do ano ao qual o contribuinte a imputou.

Com este procedimento, não haverá qualquer situação de injustiça, pois ao acréscimo de imposto em determinado ano, corresponderá uma diminuição tendencialmente semelhante noutro, não havendo, assim, tributação de um mesmo proveito em dois exercícios ou não dedução em qualquer deles de um custo que deva ser considerado.

Porém, em certas situações em que a correcção é efetuada no último ano em que pode ser feita e tem por objecto um custo que deveria ter sido considerado no exercício anterior, não é já (ou pode não ser já) possível corrigir a matéria colectável desse anterior ano, por ter já transcorrido o prazo em que podiam ser efectuadas correcções. O mesmo sucede quando, embora no momento em que a administração fiscal faz a alteração da matéria colectável fosse possível efectuar a correspondente correcção no ano a que se entende ser de imputar os custos, ela não o faz e, com o decurso do tempo, se torna inviável fazê-lo.

Nestas condições, se a administração fiscal tinha razão na correcção que efectuou, o contribuinte, em princípio, teria sido prejudicado pelo seu próprio erro ao declarar a matéria colectável, pois, abatendo um custo no ano seguinte àquele em que o deveria ter deduzido, deixou de ver diminuído o montante do imposto correspondente no ano em que tal diminuição deveria ter ocorrido, para só ver tal diminuição ocorrer no ano seguinte e, paralelamente, a administração fiscal não tinha tido qualquer prejuízo, pois recebera no ano anterior o imposto sem que fosse tido em conta esse custo que o deveria diminuir.

Assim, no caso de não poder ser feita já a correcção relativamente ao ano anterior, o contribuinte, que já era o único prejudicado pelo seu erro, veria ainda agravada a sua situação, vendo-se impossibilitado de efectuar a dedução desse custo em qualquer dos anos. A administração fiscal, assim, reteria em seu poder um imposto a que manifestamente não tinha direito.

Esta é uma situação em que o exercício de um poder vinculado (correcção da matéria colectável em face de uma violação do princípio da especialização dos exercícios) conduz a uma situação flagrantemente injusta e em que, por isso, se coloca a questão de fazer operar o princípio da justiça, consagrado nos arts. 266.º, n.º 2, da CRP e 55.º da LGT, para obstar à possibilidade de efectuar a referida correcção.

Há, nesta situação, dois deveres a ponderar, ambos com cobertura legal: um é o de repor a verdade sobre a determinação da matéria colectável dos exercícios referidos, dando execução ao princípio da especialização, reposição essa que a administração fiscal deve efectuar mesmo que não lhe traga vantagem; outro é o de evitar que a actividade administrativa se traduza na criação de uma situação de injustiça.

Entre esses dois valores, designadamente nos casos em que a administração fiscal não teve qualquer prejuízo com o erro praticado pelo contribuinte, deve optar-se por não efectuar a correcção, limitando aquele dever de correcção por força do princípio da justiça.

Por outro lado, é de notar que numa situação deste tipo não se verifica sequer qualquer interesse público na actuação da administração fiscal, pois não está em causa a obtenção de um imposto devido, pelo que, devendo toda a actividade administrativa ser norteada pela prossecução deste interesse, a administração deveria abster-se de actuar.

Consequentemente, serão de considerar anuláveis, por vício de violação de lei, actos de correcção da matéria tributável que conduzam a situações de injustiça deste tipo.»

 

Veja-se, pois, que na exigível ponderação dos valores em causa se digladiam, por um lado, o princípio da especialização dos exercícios, de preocupações, diríamos, sobretudo formais e, por outro lado, o princípio da justiça, com a sua ressonância material, eminentemente axiológica. Como é bom de ver, havendo um conflito entre estes dois princípios, é o da Justiça que deve imperar. Aliás, importa não esquecer, o alegado princípio da justiça impõe-se à globalidade da actividade da Administração Tributária, como disso são eco os artigos 266.º, n.º 2, da CRP e 55.º da Lei Geral Tributária (LGT). Quer isto significar, consequentemente, que a Administração Tributária tem o dever de ponderar as consequências da sua actividade, abstendo-se de dar às normas que entende aplicáveis um sentido e um alcance que redundem em resultado manifestamente injusto.

 

Como na transcrição acima deixada é afirmado, quando a correcção é efectuada no último ano em que ela pode ser feita nos casos em que tem por objecto um custo ou perda que deveria ter sido considerado no exercício anterior, não se mostra possível corrigir a matéria colectável desse anterior ano, o que pode traduzir-se numa manifesta injustiça.

 

No caso que nos ocupa, não se põe em dúvida que a Requerente registou uma perda com a dissolução e liquidação da D..., S.A.. Não se põe sequer em causa o montante dessa perda. A única coisa que se questiona é o momento em que essa perda deveria ser contabilisticamente registada e considerada para efeitos fiscais. Parece resultar claro que esse momento é o ano de 2013. Foi no exercício de 2013 que a dissolução e liquidação foram deliberadas, que a partilha foi feita e que a matrícula da sociedade na conservatória do registo predial foi cancelada.

 

Sucede que a Requerente só procedeu ao registo contabilístico dessa perda em 2014. Entende a Requerida, com toda a razão, que não é esse o momento atendível. E por isso propõe-se fazer uma correcção na matéria colectável de 2014, expurgando dela a dita perda (que em rigor pertence ao período imediatamente anterior). Tendo o lucro uma natureza diferencial, tal significa que essa correcção teria um impacto positivo na quantificação do lucro tributável em 2014 e, consequentemente, no imposto a pagar nesse dito ano. Menos perdas significa, como é bom de ver, mais lucro e, por sua vez, mais lucro é sinónimo de mais imposto. Ora, como se procurou demonstrar, não põe a Requerida em dúvida a relevância tributária da perda apurada com a dissolução e liquidação da D..., S.A.. Portanto, no entender da Requerida, a um maior lucro em 2014, resultante da correcção pretendida, corresponderia um menor lucro em 2013, caso essa perda tivesse sido lançada, como era suposto, nos registos contabilísticos de 2013.

 

Como bem vêm notando a doutrina e a jurisprudência, situações como esta aqui trazida, em princípio, traduzem-se em desvantagens para os contribuintes. Na verdade, se um sujeito passivo não registou num determinado ano uma perda, podendo e devendo fazê-lo, e apenas a registou no ano seguinte, tal significa que no ano em que esse registo deveria ter ocorrido terá tido um lucro tributável superior ao real e terá pago um imposto também superior ao que seria devido. O registo da perda em causa no ano seguinte permitirá compensar, apenas em termos absolutos, mas nunca em termos financeiros, a antecipação do pagamento do imposto. Portanto, repita-se, em princípio, o registo de uma perda tributariamente atendível num exercício posterior àquele em que poderia ser registada resulta no pagamento antecipado de imposto, de nenhuma vantagem para o sujeito passivo.

 

O que se deixa acima não prejudica um postulado óbvio e inegável, o de que não pode admitir-se que os sujeitos passivos passem a poder dispor das suas relações tributárias, escolhendo em razão dos seus interesses, o momento em que registam contabilisticamente ganhos ou perdas. Como se disse, é vedado aos contribuintes definirem como bem entenderem, segundo critérios de oportunidade ou, ainda, em conformidade com a sua estratégia comercial ou de gestão, o timing para declararem os proveitos e os custos ou perdas decorrentes da sua actividade comercial ou industrial, porquanto lhes são legalmente impostos limites e regras para esse efeito, designadamente no sentido de os obrigar a imputar proveitos e custos ao exercício a que digam respeito.

 

Importa, pois, dilucidar se com o registo da perda associada à dissolução e liquidação da D..., S.A. no exercício seguinte àquele em que ela deveria ter ocorrido a Requerente pretendeu capciosamente auferir alguma vantagem ilegítima. No relatório da inspecção tributária isso não é em momento algum alegado. Contudo, na resposta, deixa a Requerida sugerida essa intenção. Porém, compulsando os elementos constantes dos autos e os elementos trazidos pelas Partes ao conhecimento deste tribunal, não se vislumbra essa eventual vantagem, uma vez que o hoje revogado art.º 45.º do CIRC não se mostra aplicável às perdas apuradas na sequência de partilhas decorrentes de liquidações de sociedades, ao contrário do que é dito pela Requerida . Ora, para estes efeitos, e em termos práticos, o regime tributário aplicável em 2014 é o mesmo que seria aplicado em 2013, devendo concluir-se, portanto, que nenhuma vantagem a Requerente retirou de ter postecipado o registo da perda a que vimos fazendo referência. Aliás, que não houve qualquer vantagem é dito pela Requerente, tanto no pedido de pronúncia arbitral como nas alegações apresentadas. E a Requerida não demonstrou o contrário.

 

Assim, conclui este tribunal arbitral o mesmo que havia sido concluído na decisão arbitral a que pertence o excerto supra transcrito:

 

Destarte, pese embora do artigo 18.º, n.º 1, do Código do IRC resultar uma vinculação para a AT no sentido de, em regra, dever aplicar o princípio da especialização dos exercícios na sua atividade de controle das declarações apresentadas pelas empresas, não podemos escamotear o facto de que o exercício daquele poder de controle por parte da AT, predominantemente vinculado, pode conduzir a uma situação flagrantemente injusta e, nessas situações, é de fazer operar o princípio da justiça, consignado no artigo 266.º, n.º 2, da CRP e no artigo 55.º da LGT, para obstar a que se concretize essa situação de injustiça.

 

Como evidenciado pelas posições doutrinais e jurisprudenciais acima citadas, na ponderação dos valores em causa – por um lado, o princípio da periodização económica e, por outro lado, o princípio da justiça – é manifesto que, em caso de incompatibilidade, deve ser dada prevalência a este último princípio nos casos em que não tenha resultado prejuízo para o erário público e se constate que não estamos perante comportamentos voluntários e intencionais, com o objetivo de obter vantagens fiscais.

 

Assim, procede o vício de violação de lei alegado pela Requerente, em concreto do n.º 2 do art.º 104.º e do n.º 2 do art.º 266.º da Lei Fundamental da Lei Fundamental, dos artigos 8.º e 10.º do Código do Procedimento Administrativo e, bem assim, do art.º 55.º da LGT, pelo que deve ser declarado ilegal e consequentemente anulado o acto de liquidação ora posto em crise.

 

3.3.                        Dos juros indemnizatórios

 

A alínea b) do n.º 1 do art.º 24.º do RJAT dispõe que “a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito”, o que está de harmonia com o previsto no art.º 100.º da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do art.º 29.º do RJAT.

 

Não se ignora que a autorização legislativa concedida ao Governo pelo art.º 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, na base da qual foi aprovado o RJAT, determina que o processo arbitral tributário constitua um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária. Ainda que as alíneas a) e b) do n.º 1 do art.º 2.º do RJAT fundem a competência dos tribunais arbitrais em “declarações de ilegalidade”, parece razoável o entendimento segundo o qual se compreendem nas suas competências os poderes que em processo de impugnação judicial são atribuídos aos tribunais tributários, sendo certo que nos processos de impugnação judicial, para além da anulação de actos tributários, podem ser apreciados pedidos de indemnização, desde logo relativos a juros indemnizatórios.

 

Com efeito, o princípio da cognoscibilidade dos pedidos de indemnização, em reclamação graciosa ou em processo judicial, justifica-se sempre que o dano que se pretende ver ressarcido resulte de facto imputável à Administração Tributária e Aduaneira. Aliás, nos termos do n.º 5 do art.º 24.º do RJAT “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário” (CPPT), o que remete para as manifestações desse princípio que encontramos no n.º 1 do art.º 43.º da LGT e no art.º 61.º do CPPT.

 

Assim, justifica-se a apreciação do pedido de pagamento de juros indemnizatórios feito pela Requerente.

 

São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, ter havido erro imputável aos serviços do qual resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

 

Considera-se erro imputável aos serviços aquele que não for imputável ao contribuinte e assentar em errados pressupostos de facto que não sejam da responsabilidade do contribuinte. Ora, aquando da prática do acto de liquidação controvertido, a administração tributária e aduaneira conhecia ou não podia ignorar que a correcção feita ao resultado tributável do exercício de 2014, não sendo já possível operar a correcção simétrica no período de 2013, violaria de forma intolerável o princípio de justiça que deve presidir à actuação da administração. Portanto, não há dúvida ter havido, para estes efeitos, erro imputável aos serviços. 

 

Provando-se, o que o tribunal arbitral ignora, que a Requerente pagou prestação tributária que pela liquidação reclamada e ora anulada lhe foi, por erro imputável aos serviços, exigido, tem ela direito não apenas ao reembolso do que pagou indevidamente, mas ainda a perceber juros indemnizatórios contados desde a data do pagamento até ao seu integral reembolso.   

 

4.            Decisão

 

Nos termos e com os fundamentos expostos, o tribunal arbitral decide:

a)            Julgar totalmente procedente o pedido de declaração de ilegalidade e consequente anulação do acto de liquidação de IIRC e de juros compensatórios n.º 2018..., no montante de € 58.271,71 (cinquenta e oito mil duzentos e setenta e um euros e setenta e um cêntimos);

b)           Condenar a Requerida a reembolsar a Requerente do que esta tenha pago em excesso e, bem assim, a pagar-lhe juros indemnizatórios nos termos legais, desde a data do pagamento da quantia indevidamente exigida, até à data de integral reembolso; e

c)            Condenar a Requerida nas custas.

 

5.            Valor do processo

 

De harmonia com o disposto no n.º 2 do art.º 306.º do CPC, no art.º 97.º-A do CPPT e ainda do n.º 2 do art.º 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 58.271,71 (cinquenta e oito mil duzentos e setenta e um euros e setenta e um cêntimos).

 

6.            Custas

 

Para os efeitos do disposto no n.º 2 do art.º 12 e no n.º 4 do art.º 22.º do RJAT e do n.º 4 do art.º 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em € 2.142,00 (dois mil cento e quarenta e dois euros), nos termos da Tabela I anexa ao dito Regulamento, a suportar integralmente pela Requerida.

 

Lisboa, 14 de Janeiro de 2020

 

O Árbitro

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(Nuno Pombo)

 

 

Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do art.º 131.º do CPC, aplicável por remissão da al. e) do n.º 1 do art.º 29.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro e com a grafia anterior ao dito Acordo Ortográfico de 1990.