Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 336/2022-T
Data da decisão: 2022-10-27  IRS  
Valor do pedido: € 6.897,84
Tema: IRS - Transparência fiscal - Dedução à colecta de crédito fiscal decorrente do CFEI II
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DECISÃO ARBITRAL

 

 

SUMÁRIO: I – O crédito fiscal gerado ao abrigo do CFEI II por uma sociedade profissional abrangida pelo regime de transparência fiscal, é dedutível, em sede de IRS, à colecta do sujeito passivo sócio dessa sociedade. II - A dedução não está sujeita aos limites consagrados no n.º 7 do artigo 78.º do Código do IRS, na medida em que uma tal restrição comprometeria a neutralidade ínsita ao regime de transparência fiscal e que constitui o seu edifício teleológico.

 

I - Objecto do pedido e tramitação processual

A…, com número de identificação fiscal … e domicílio fiscal na Rua …., ..., apresentou pedido de pronúncia arbitral, requerendo:

  1. A anulação do indeferimento expresso da reclamação graciosa, notificada em 24 de Fevereiro de 2022, do acto de liquidação do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) n.º 2021 … referente ao ano fiscal de 2020; e
  2. Consequente restituição de imposto no valor de € 6.897,84.

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante também identificada por “Requerida” ou por “AT”).

Por decisão do Conselho Deontológico foi designado como árbitro único o signatário.

O tribunal arbitral singular foi constituído em 2 de Agosto de 2022.

 

Em 21 de Setembro de 2022, a Requerida, após ter sido notificada para o efeito, remeteu o processo administrativo e apresentou a sua resposta, defendendo-se por impugnação.

Por despacho do tribunal arbitral, de 3 de Outubro, foi dispensada tanto a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, como a apresentação de alegações finais. O mesmo despacho afastou a inquirição da testemunha arrolada pela Requerente, na medida em que os factos apresentados e documentados por ambas as Partes são os necessários e bastantes para dirimir a matéria de direito submetida a decisão arbitral.

 

As partes gozam de capacidade e legitimidade jurídicas. O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas excepções.

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente.

 

II - MATÉRIA DE FACTO   

Factos considerados provados em face da documentação

Com base nos documentos juntos pela Requerente e os que constam do processo administrativo, consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

  1. A Requerente é sócia única e gerente da sociedade comercial «B…, Lda», com número de identificação de pessoa colectiva … e sede social na Travessa … ...;
  2. A referida sociedade tem por objecto social as “actividades de medicina dentária e odontologia” (CAE 86320);
  3. A Requerente exerce a actividade de médica-dentista (código 7015 da tabela de actividades a que se reporta o artigo 151.º do Código do IRS). A  a sociedade comercial em apreço está enquadrada no regime de transparência fiscal consagrado no Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC);
  4. Na declaração periódica de rendimentos reportada ao exercício fiscal de 2020, a sociedade inscreveu a importância de € 6.897,84 no quadro 076 do respectivo Anexo D, a título de benefício fiscal por Crédito Fiscal Extraordinário ao Investimento (CFEI) II;
  5. No campo G79 da IES, a sociedade inscreveu € 151.241,03 € em conceito de matéria colectável apurada no exercício de 2020;
  6. Em 22 de Dezembro de 2021 a sociedade procedeu à substituição do Anexo G da Informação Empresarial Simplificada (IES), passando a constar do quadro 032 a seguinte informação:

- Campo G01: o valor de € 30.766,92, correspondente à colecta de IRC que seria apurada em caso de não ser aplicável o regime de transparência fiscal;

- Campo G05: o valor de € 6.897,84, referente ao benefício fiscal decorrente do CFEI II.

  1. Em 28 de Junho de 2021 a Requerente apresentou a sua declaração de IRS para o ano fiscal de 2020, tendo inscrito, no campo 902 do Anexo D, o valor do mencionado benefício fiscal;
  2. A Requerente foi notificada da liquidação de IRS n.º 2021 …, tendo verificado que esse benefício fiscal não foi considerado a título de dedução à colecta;
  3. Em 20 de Julho de 2021, a Requerente apresentou, através do e-balcão, um pedido de esclarecimento quanto à não consideração desse benefício fiscal;
  4. No dia seguinte, a AT, pelo mesmo canal de comunicação, notificou a Requerente que “o presente pedido dará início ao procedimento de reclamação graciosa com a subsequente decisão e notificação da mesma”. À reclamação graciosa foi atribuído o número …;
  5. A Requerente foi notificada, em 17 de Dezembro de 2021, do projecto de decisão de indeferimento da reclamação graciosa, tendo exercido o direito de audição prévia;
  6. Em 24 de Fevereiro de 2022, a AT notificou a Requerente da decisão final de indeferimento total da reclamação graciosa;
  7. O pedido de pronúncia arbitral foi submetido em 26 de Maio de 2022;
  8. Os investimentos realizados pela Requerente e considerados para efeitos de CFEI II encontram-se suportados em duas facturas de € 2.921,25 e € 31.567,95 (estes valores incluem IVA que, por não ser dedutível em virtude da isenção de IVA aplicável aos serviços prestados pela sociedade, é considerado no valor de aquisição do activo fixo tangível). A aplicação dos 20% previstos na legislação por que se rege o CFEI II conduz ao apuramento do crédito fiscal de € 6.897,84;
  9. Na apreciação da reclamação graciosa a AT não apreciou o (in)cumprimento das regras de cálculo e elegibilidade dos investimentos considerados para efeitos do CFEI II.

 

Factos não provados

Com relevo para a apreciação do mérito, inexistem factos não provados.

 

 

III - Síntese dos fundamentos de direito invocados pelas Partes

O entendimento da Requerente

  1. A questão essencial contende com o ilegal afastamento de benefício fiscal que opera em sede de IRC e que deve ser aplicável à Requerente, dado que a sociedade de que é sócia única está sujeita ao regime da transparência fiscal;
  2. O n.º 7 do artigo 78.º do Código do IRS não é aplicável às deduções à coleta geradas na esfera das sociedades transparentes e imputadas aos sócios;
  3. Não obstante reconhecer que a sociedade «B…, Lda» é “(…) uma sociedade de profissionais, tal como definida na alínea a) do n.º 4 do artigo 6.º do CIRC e, consequentemente, sujeita ao regime de transparência fiscal previsto no n.º 1 do mesmo artigo” e que, nos termos previstos no n.º 5 do artigo 90.º do CIRC, as deduções à coleta respeitantes a entidades sujeitas ao regime de transparência fiscal são imputadas aos respetivos sócios de harmonia com o estabelecido no n.º 3 desse artigo, a Direção de Finanças de Braga rejeitou a possibilidade de ser reconhecida à Requerente, em sede de IRS, o CFEI II aprovado pelo artigo 16.º da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de Julho;
  4. O não reconhecimento do benefício fiscal assentou no entendimento de que o valor declarado no campo 902 do anexo D não podia ultrapassar o limite de € 1.0000,00, conforme previsto no n.º 7 do artigo 78.º do CIRS, o qual determina que:

A soma das deduções à coleta previstas nas alíneas c) a h) e k) do n.º 1 não pode exceder, por agregado familiar, e, no caso de tributação conjunta, após aplicação do divisor previsto no artigo 69.º, os limites constantes das seguintes alíneas:

  1. Para contribuintes que tenham um rendimento coletável igual ou inferior ao valor do 1.º escalão do n.º 1 artigo 68.º, sem limite;
  2. Para contribuintes que tenham um rendimento coletável superior ao valor do 1.º escalão e igual ou inferior ao valor do último escalão do n.º 1 do artigo 68.º, o limite resultante da aplicação da seguinte fórmula:

€ 1.000 + [(€ 2.500 - € 1.000) x [(Valor do último escalão - Rendimento Coletável) / (Valor do último escalão - Valor do primeiro escalão]]

  1. Para contribuintes que tenham um rendimento coletável superior ao valor do último escalão do n.º 1 do artigo 68.º, o montante de € 1 000.

 

  1. Retira-se da informação que sustenta o despacho de indeferimento que nada há a apor quanto à aplicabilidade do benefício fiscal de IRC previsto no CFEI II à sociedade «B…  Lda», por se verificarem os respetivos   pressupostos, o que igualmente se conclui quanto à imputação do referido benefício fiscal à Requerente, enquanto única sócia daquela sociedade, de harmonia com o disposto no n.º 5 do art.º 90.º do Código do IRC;
  2. Já na decisão final, ora em crise, se defende, à cautela, que não foi analisada a questão sob a perspetiva da elegibilidade do investimento. Mas certo é que não é o facto de a Autoridade Tributária não ter procedido a essa análise que torna o investimento inelegível, quando o é, inegavelmente como resulta da mera análise e consideração das faturas que comprovam a realidade dos investimentos e a sua natureza, que permitem dar por verificadas as exigências previstas no anexo V a que se refere o artigo 16.º da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho;
  3. A interpretação sustentada pela AT não é aceitável. Desde logo, porque o benefício fiscal do CFEI II não é um benefício fiscal de IRS, mas sim de IRC. É atribuível às sociedades que cumpram os respectivos pressupostos de aplicação, o que é reconhecidamente o caso, sendo essa realidade assumida pela própria AT, que não a questiona;
  4. Donde, não estando em causa um benefício fiscal de IRS, é indubitável que não será aplicável a limitação prevista no n.º 7 do art.º 78.º do Código do IRS, dado que tal limitação visa apenas as deduções à colecta previstas no próprio Código do IRS, a que acrescem, apenas, os benefícios fiscais aplicáveis em sede IRS, nomeadamente os previstos no Estatuto dos Benefícios Fiscais;
  5. Os benefícios fiscais aos quais se aplica a limitação só poderão ser os que deverão constar no Anexo H da declaração modelo 3, no respetivo quadro 6B, benefícios esses que aparecem devidamente elencados nas instruções do referido Anexo, perfazendo um total de 43 benefícios fiscais aí devidamente codificados e onde não consta, obviamente, o benefício fiscal em apreço;
  6. Trata-se, uma vez mais, de um benefício fiscal de IRC, que deve constar no Anexo D da declaração modelo 22, no Anexo G da IES/DA e, de modo a permitir a imputação ao sócio da sociedade transparente, no Anexo D da declaração modelo 3, Anexos estes que se encontram corretamente preenchidos;
  7. Note-se que é o próprio normativo que regula o benefício fiscal do CFEI II (ou seja, o Anexo V a que se refere o artigo 16.º da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho) que estabelece as  respetivas limitações, destacando-se a limitação prevista no n.º 3 do artigo 3.º, segundo o qual a dedução à colecta do IRC é efectuada apenas até à concorrência de 70 % da colecta deste imposto, em função das datas relevantes dos investimentos elegíveis;
  8. In casu, sendo a colecta virtual de IRC de € 30.766,92 (conforme consta no campo Anexo G01 do Quadro 032 da IES/DA), o limite aplicável ao benefício fiscal de IRC seria de € 21.536,86 (€ 30.766,92 x 70 %), donde o valor de € 6.897,84 não sofre qualquer limitação, sendo, por isso, totalmente dedutível à coleta de IRS apurada em 2020;
  9. O facto de o benefício fiscal de IRC operar, no caso em apreço, através de dedução à colecta do IRS, não significa que se esteja perante um benefício fiscal de IRS, resultando tal dedução ao IRS, tão somente, do modo como se processa a tributação das sociedades abrangidas pelo regime da transparência fiscal, cuja matéria colectável não é tributada em IRC, ao abrigo do artigo 12.º do respetivo Código, mas sim em sede de IRS, na pessoa dos respectivos sócios, conforme disposto no n.º 1 do artigo 6.º do Código do IRC e do n.º 1 do artigo 20.º do Código do IRS;
  10. Está-se perante uma isenção de IRC que, na prática, constitui uma “falsa isenção” ou, por outras palavras, uma “isenção técnica”, na medida em que a matéria colectável das sociedades transparentes, verdadeiramente, não está isenta de tributação, “beneficiando” tais sociedades da não tributação em sede de IRC pelo simples facto de a respetiva matéria colectável ser tributada em sede de IRS na esfera dos sócios, independentemente da distribuição dos lucros;
  11. Efetivamente, com o devido respeito, não faz qualquer sentido aplicar a limitação prevista no n.º 7 do artigo 78.º do Código do IRS a um benefício fiscal vigente em sede de IRC, que apenas abrange os sujeitos passivos deste imposto (conforme dispõe o corpo do artigo 2.º do Anexo V a que se refere o artigo 16.º da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho) e que apenas se materializa em sede de IRS, no caso em apreço, devido à aplicação de uma técnica tributária sui generis, por se estar perante uma sociedade beneficiária abrangida pelo regime da transparência fiscal, que, como é evidente, não apura colecta de IRC suscetível de absorver benefícios fiscais, este e outros que operem por dedução à coleta do IRC (nomeadamente os previstos no Código Fiscal ao Investimento: RFAI, DLRR e SIFIDE);
  12. A estarmos perante um benefício fiscal que operasse por dedução ao rendimento, através de dedução no quadro 07 da declaração modelo 22 (por exemplo, a remuneração convencional do capital social ou a majoração dos donativos, das realizações de utilidade social ou das quotizações para associações empresariais, entre outros), seria tecnicamente impossível aplicar a limitação prevista no n.º 7 do art.º 78.º do Código do IRS;
  13. Estamos perante um benefício fiscal que, como o próprio nome indica, é extraordinário, sendo regulado por lei especial, a qual, como não poderia deixar de ser, estabelece os respectivos pressupostos de aplicação e as respectivas limitações, sendo que nada aí consta que impeça que o benefício fiscal possa ser usufruído em toda a sua plenitude;
  14. Termos em que se impõe concluir que a decisão de indeferimento da reclamação graciosa é ilegal, quer por efeito do vício de violação de lei que se prende com a decisão em si mesma, quer também pelo facto de a mesma manter na ordem jurídica uma liquidação que é ela própria ilegal. Pelo que deverá ser anulada a liquidação de IRS para o ano de 2020, restituindo-se à Requerente o valor de € 6.897,84.

 

O entendimento da Requerida

  1. O CFEI II é um benefício fiscal aprovado pelo artigo 16.º da Lei n.º 27.º-A/2020, de 24 de Julho, que se traduz numa dedução à colecta de IRC no montante de 20 % das despesas de investimento em activos afectos à exploração, que sejam efectuadas entre 1 de Julho de 2020 e 30 de Junho de 2021;
  2. A dedução à colecta é efectuada, nos termos do artigo 90.º do CIRC, na liquidação de IRC respeitante ao período de tributação que se inicie em 2020 ou 2021, até à concorrência de 70 por cento da colecta deste imposto, em função das datas  relevantes dos investimentos elegíveis;
  3. No caso de sujeitos passivos que adoptem um período de tributação não coincidente com o ano civil e com início após 1 de Julho de 2020, são despesas relevantes para efeitos da dedução prevista nos números anteriores as efectuadas em activos elegíveis desde o início do referido período até ao final do décimo segundo mês seguinte;
  4. No caso de uma entidade sujeita ao regime de transparência fiscal, como no caso em apreço, como não se apura colecta, essa dedução será imputada aos respetivos sócios ou membros de acordo com o disposto no n.º 5 do artigo 90.º do CIRC;
  5. Para comprovação do benefício fiscal em causa, foi apresentada em 2021.06.28 pela sociedade “B… LDA”, a declaração modelo 22 de IRC referente ao ano de 2020 (2021-…-…-11), acompanhada de anexo D -Benefícios Fiscais, onde consta, de relevante para a análise do pedido, no campo 076 do quadro 07 - CFEI II, o valor  de € 6.897,84;
  6. Assim, as despesas em causa efectuadas pela sociedade transparente, elegíveis no montante de € 6.897,84, deverão ser imputadas aos respetivos sócios de acordo com a sua participação na sociedade, conforme nº 3 do artigo 6º do CIRC, e deduzidas ao montante apurado com base na matéria colectável que tenha tido em consideração a imputação aos sócios (neste caso, 100% na esfera do sujeito passivo, ora Requerente);
  7. Conforme determinam os nºs 1 e 2 do artigo 20.º do CIRS, constitui rendimento dos sócios das entidades referidas no artigo 6º do CIRC, que sejam pessoas singulares, o resultante da imputação efectuada nos termos e condições dele constante ou, quando superior, as importâncias que, a título de adiantamento por conta de lucros, tenham sido pagas ou colocadas à disposição durante o ano em causa, sendo que as respectivas importâncias se integram como rendimento líquido de categoria B, a englobar com os restantes rendimentos do agregado familiar para determinação das taxas gerais de IRS a aplicar;
  8. Quanto às deduções à colecta, as deduções imputadas aos sócios geradas na esfera da sociedade transparente, nos termos do nº 5 do artigo 90º do CIRC, as mesmas são dedutíveis nos termos da alínea k) do n.º 1 (benefícios fiscais) e do n.º 2 (retenções na fonte) do artigo 78º do CIRS;
  9. Sucede que, no que diz respeito aos benefícios fiscais, essa dedução está limitada  pelo disposto nos nºs. 7 e 8 do citado artigo, uma vez que a ora Requerente apurou um rendimento colectável superior ao valor do último escalão do nº 1 do artigo 68.º;
  10. Assim, a soma das deduções à colecta previstas nas alíneas c) a h) e k) do nº 1, não  podem exceder os € 1.000,00, sendo este limite majorado 5% por cada dependente ou afilhado civil nos agregados com 6 ou mais dependentes;
  11. Tendo em conta o agregado familiar da ora Requerente com referência ao ano de 2020, os limites calculados são os que seguidamente se transcrevem:

- Rendimento Global: € 175.425,07

- Despesas Associadas ao Titular:

  • Despesas Gerais: € 8.431,79
  • Exigência de fatura - Outros: € 141,91
  • Despesas Saúde: € 4.356,94
  • Despesas Educação: € 1.963,75
  • PPR: € 360,00

- Deduções à coleta:

  • Despesas gerais familiares: € 335,00
  • Dependente: € 726,00
  • Despesas de saúde: € 653,54
  • Despesas de educação: € 346,46

- Total de deduções à coleta considerados na liquidação: € 2.061,00

- Limite: € 1.000,00

  1. Sendo o CFEI II um benefício fiscal, o mesmo é deduzido à colecta por força da alínea k) do n.º 1 do artigo 78.º do CIRS, ficando sujeito à limitação referida e à necessidade de respeitar a ordem estabelecida nessa norma;
  2. Efectivamente, independentemente do valor apurado do total de despesas com deduções à colecta, existem limites globais de dedução consoante o escalão de IRS em que estiver incluído o sujeito passivo, ou seja, existe um tecto global que depende do rendimento colectável e do número de filhos do agregado familiar;
  3. No que diz respeito aos benefícios fiscais, essa dedução está limitada  pelo disposto nos nºs. 7 e 8 do citado artigo, uma vez que a ora Requerente apresenta um rendimento colectável superior ao valor do último escalão do n.º 1 do artigo 68º. Pelo que a soma das deduções à colecta previstas nas alíneas c) a h) e k) do nº 1, não pode exceder os € 1.000,00;
  4. Contrariamente ao alegado pela ora Requerente, a alínea k) do n.º 1 do artigo 78.º do CIRS, não faz qualquer distinção quanto à forma de manifestação dos benefícios fiscais elegíveis para dedução à colecta, ou seja, dos benefícios fiscais previstos no Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), e demais legislação complementar, pelo que, onde a lei não distingue não pode o intérprete distinguir (conforme o artigo 9.º do Código Civil). Até, porque, se fosse essa a intenção do legislador, este tê-lo-ia manifestado em termos precisos;
  5. Assim sendo, resulta da interpretação legal do disposto na alínea k) do nº 1 e do n.º 7 do artigo 78.º do CIRS, que são admissíveis como deduções à colecta as despesas elegíveis ao abrigo do CFEI II, nos termos da alínea k) do n.º 1, mas ficam sujeitas à limitação referida no n.º 7 do artigo 78.º do Código do IRS;
  6. Razão pela qual será de julgar o pedido improcedente, mantendo-se os actos tributários na ordem jurídica.

 

 

IV -   Do direito

Ambas as Partes estão de acordo quanto à aplicabilidade e alcance do regime de transparência fiscal por que se regem as sociedades profissionais. No caso controvertido, que a matéria colectável apurada pela sociedade «B…, Lda» é imputável ao rendimento tributável da respectiva sócia única, ora Requerente, integrando-se nos procedimentos de liquidação do IRS.

A divergência situa-se, exclusivamente, no plano do regime de dedução à colecta decorrente do incentivo fiscal CFEI II, consagrado no Orçamento de Estado Suplementar para 2020 (artigo 16.º da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de Julho).

A Requerente entende que o crédito fiscal é dedutível ao abrigo de legislação especial, a qual consagra os respectivos requisitos e determina as regras de cálculo e de limitação da dedução à colecta. Tratando-se de um incentivo fiscal restringido aos sujeitos passivos de IRC, a correspondente dedução à colecta terá operar na esfera pessoal do sócio (sujeito passivo de IRS) nos mesmos termos em que o seria no âmbito da sociedade (sujeito passivo de IRC). Assim se assegurando a neutralidade fiscal ínsita ao regime da transparência fiscal.

Já a Requerida sustenta que o regime da transparência fiscal não afasta as regras próprias de liquidação do IRS, aplicáveis por via da regra de imputação do regime de transparência fiscal. As deduções à colecta decorrem da sujeição do rendimento a imposto. E sendo esse imposto o IRS, tais deduções estão adstritas ao cumprimento das regras de liquidação oficiosa do IRS. Razão pela qual as deduções à colecta do CFEI II, à semelhança do que sucede com as demais deduções à colecta a título de benefícios fiscais em sede de IRS, independentemente da respectiva natureza, obedecem a uma matriz comum que, no caso controvertido, limita o valor total a € 1.000,00.

 

Partindo para a análise e decisão da matéria de direito subjacente, importa identificar o normativo fiscal aplicável.

Podem usufruir do incentivo fiscal consagrado no regime do CFEI II os sujeitos passivos de IRC que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola.

Resumidamente, o CFEI faculta uma dedução à colecta de IRC correspondente a 20% dos investimentos realizadas, entre 1 de Julho de 2020 e 30 de Junho de 2021, em determinados activos elegíveis, com o limite absoluto de 5 milhões de Euros. A referida dedução à colecta opera até ao limite de 70% do valor apurado no exercício, sendo que o eventual excesso não utilizável por insuficiência de colecta poderá ser reportado para os 5 exercícios seguintes.

 

As sociedades sujeitas ao regime de transparência fiscal são sujeitos passivos de IRC na medida em que reúnam - como sucede no caso em apreço - os pressupostos de incidência pessoal e real. Ou seja, que a sua sede social ou direcção efectiva se situe no território nacional, no qual desenvolvem, a título principal, uma actividade comercial, industrial ou agrícola.

É inegável que este incentivo fiscal é aplicável às sociedades que, sendo sujeitos passivos de IRC, estão alcançadas pelo regime da transparência fiscal.

Tal regime consiste, genericamente, no apuramento e cálculo do lucro tributável por obediência ao normativo do IRC, imputando-se a respectiva material colectável aos sócios para efeitos de IRS (pessoas singulares) ou de IRC (pessoas colectivas).

A ser apurado um prejuízo fiscal pela sociedade (de profissionais) abrangida pelo regime da transparência fiscal, o mesmo será reportável e dedutível aos lucros tributáveis futuros dessa sociedade (conforme o n.º 7 do artigo 52.º do Código do IRC).

Estamos perante um afastamento do regime geral de tributação em IRC, usualmente denominado de “isenção técnica” e que apenas excepciona a tributação autónoma a que estão sujeitas determinadas despesas (conforme os artigos 6.º e 12.º do Código do IRC).

Ora, sabendo que o lucro tributável destes sujeitos passivos de IRC não se encontra sujeito a esse imposto, importa esclarecer se há lugar ao apuramento de uma colecta de IRC que seja susceptível de abatimento por dedução.

A resposta é oferecida pelo n.º 5 do artigo 90.º do Código do IRC, no qual se estatui que:

As deduções referidas no n.º 2 respeitantes a entidades a que seja aplicável o regime de transparência fiscal estabelecido no artigo 6.º são imputadas aos respetivos sócios ou membros nos termos estabelecidos no n.º 3 desse artigo e deduzidas ao montante apurado com base na matéria coletável que tenha tido em consideração a imputação prevista no mesmo artigo.

Sendo o CFEI II um incentivo fiscal que opera por dedução à colecta, esta haverá de efectuar-se nos termos supra estabelecidos.

Concretamente, o investimento elegível consagrado no CFEI II será dedutível à matéria colectável imputável (no caso, para efeitos de IRS) nos termos do regime da transparência fiscal, i. e. nos mesmos termos em que é imputável a matéria colectável à qual o incentivo fiscal pode ser abatido.

Nos termos da alínea c) do n.º 2 do artigo 90.º do Código do IRC, o CFEI II é deduzido à matéria colectável a título de benefício fiscal. É essa matéria colectável que, uma vez operada a dedução, é imputável aos sócios. Dito de outra forma, o n.º 5 do artigo 90.º do Código do IRC determina que a dedução que caberia à sociedade transparente é imputada aos seus sócios.

 

Em suma, e passando para a situação controvertida, o citado n.º 5 do artigo 90.º do Código do IRC pressupõe a existência de deduções à colecta na esfera da sociedade «B…, Lda». Mais estabelecendo que essa dedução é imputável à socia, ora Requerente, nos termos do n.º 3 do artigo 6.º do mesmo Código (100% no caso em apreço, dado tratar-se de sócia única).

Deste modo, à Requerente é imputável, para efeitos de apuramento de IRS, quer a matéria colectável de € 151.241,03, quer a dedução à colecta de € 6.897,84.

Na medida em que estamos perante uma dedução à colecta no plano do IRC, as eventuais limitações de que a mesma possa padecer são as que constam da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de Julho. Esta estipula que a dedução à colecta opera até ao limite de 70% da colecta de IRC apurada pela sociedade, patamar mínimo este que a sociedade cumpriu na medida em que apurou uma colecta de € 30.766,92.

 

Note-se que o facto de a dedução à colecta ser “virtual” ou “técnica”, por decorrer da “isenção técnica” de IRC e ser imputável aos sócios, não obsta à sua transferibilidade para estes. Não apenas, porque o normativo do n.º 5 do artigo 90.º assim o determina, mas fundamentalmente pelo facto de tal corresponder a todo o edifício em que se encontra estruturado o regime da transparência fiscal. Com efeito, a matéria colectável, a colecta e a dedução à colecta são produto da regra de “isenção técnica” que enforma o regime da transparência fiscal. Sendo sujeitas a uma fórmula uniforme de imputação aos sócios, pessoas singulares ou colectivas, nos mesmos termos e condições em que o seria na ausência do regime de transparência. Apenas assim se assegura a neutralidade fiscal ínsita a esse regime.

 

Chegados aqui, concluímos que a sociedade é titular de uma dedução à colecta de € 6.897,84, a qual é transferida para a Requerente para efeitos de apuramento do rendimento sujeito a IRS.

Resta, todavia, determinar se essa dedução é sujeita a uma limitação suplementar e posterior, mormente ao valor absoluto de € 1.000,00 consagrado na alínea c) do n.º 7 do artigo 78.º do Código do IRS.

Entendemos que essa limitação não é aplicável.

Desde logo, porquanto o regime de IRC se apresenta como completo, no que respeita às regras de apuramento e imputação dos rendimentos auferidos por sociedades sujeitas ao regime de transparência fiscal. Abrangendo o momento inicial de obtenção desse rendimento e a fase final de dedução à colecta previamente determinada.

Aceitar uma limitação posterior fundada nas regras próprias de apuramento e liquidação do IRS, implicaria a distorção do regime de transparência fiscal. Na medida em que removeria a neutralidade que lhe é inerente e que constitui seu edifício teleológico.

Acresce que o CFEI II consiste num incentivo fiscal disponível para sujeitos passivos de IRC, gerando deduções à colecta em sede de IRC e cujo limite anualmente dedutível é calculado em função da colecta de IRC. Aplicar uma limitação prevista no normativo de IRS, consistiria no estabelecimento de um limite adicional não previsto no normativo que, como vimos, se limita a imputar para efeitos de IRS dois valores determinados nos termos do Código do IRC (a matéria colectável e a dedução à colecta).

Em sede de IRS uma tal limitação não deixaria de se caracterizar como uma inadmissível intromissão nas regras próprias e específicas do regime de transparência fiscal, o qual é regulado num bloco normativo autónomo. Ao normativo do IRS cabe apenas a recepção dos valores (matéria colectável e dedução à colecta) imputáveis nos termos do Código do IRC.

Por fim, e conforme consta da apreciação da reclamação graciosa, a Requerida não coloca em crise quer a eligibilidade dos investimentos realizados pela sociedade, quer o valor dedutível à colecta.

Face ao exposto, o pedido de pronúncia arbitral mostra-se procedente.

 

V -    Decisão

Termos em que, o Tribunal Arbitral decide:

  1. Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, anulando-se o indeferimento expresso da reclamação graciosa;
  2. Anular a liquidação de IRS n.º 2021 …, na parte em que desconsidera a dedução à colecta na importância de € 6.897,84, restituindo-se à Requerente o valor indevidamente suportado.

 

 

Fixa-se o valor do processo em € 6.897,84.

O valor da taxa de arbitragem é fixado em € 612, sendo este encargo suportado pela Requerida.

 

Lisboa, 27 de Outubro de 2022

 

O árbitro do Tribunal Arbitral Singular

 

 

José Luís Ferreira