Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 341/2015-T
Data da decisão: 2016-02-04  IVA  
Valor do pedido: € 202.994.697,00
Tema: IVA - Renúncia à isenção; integração no Sistema Nacional de Saúde
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Decisão Arbitral

 

Os árbitros Conselheiro José Baeta de Queiroz (árbitro-presidente), Professora Doutora Clotilde Celorico Palma e Dr. Marcolino Pisão Pedreiro, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 11.08.2015, acordam no seguinte:

 

1. No dia 29.05.2015, a Requerente, A..., Lda., portador do número de identificação de pessoa colectiva..., com sede na Rua ... n.º..., requereu ao CAAD a constituição de tribunal arbitral, nos termos do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, com vista à anulação das liquidações adicionais n.º..., no montante de € 390.751,10, correspondente ao IVA, e n.º..., no montante de € 59.522,63, correspondente a juros compensatórios, ambas relativas ao período 2010.12; n.º 2015 ..., no montante de € 516.686,23, correspondente ao IVA, e n.º 2015..., no montante de € 58.038,70, correspondente a juros compensatórios, ambas relativas ao período de 2011.12; n.º 2015..., no montante de € 506.274,98, correspondente ao IVA, e n.º 2015..., no montante de € 36.506,99, correspondente a juros compensatórios, ambas relativas ao período 2012.12; n.º 2015..., no montante de € 447.740,68, correspondente ao IVA, e n.º 2015..., no montante de € 14.425,83, correspondente a juros compensatórios, ambas relativas ao período 2013.12, e das demonstrações de acerto de contas n.ºs 2015..., 2015..., 2015..., 2015..., 2015... e 2015...;

 

A Requerente peticiona, também, a título subsidiário, caso se considere que deve ser enquadrada no regime de isenção de IVA durante os anos de 2010 a 2013, a devolução por parte da AT do IVA indevidamente liquidado e pago ao Estado, no valor de € 2.449.805,41;

Peticiona, ainda, caso se considere que lhe assiste razão, a fixação de indemnização por garantia indevidamente prestada, nos termos do artigo 53.º da LGT, e artigo 171.º do CPPT.

 

2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (AT).

Nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1, do artigo 6.º, do RJAT, por decisão do Senhor Presidente do Conselho Deontológico, devidamente comunicada às partes, nos prazos legalmente aplicáveis, foram designados árbitros os signatários, que comunicaram ao Conselho Deontológico e ao Centro de Arbitragem Administrativa a aceitação do encargo no prazo regularmente aplicável.

 

 

I. Relatório

 

1. Os fundamentos apresentados pela Requerente em apoio da sua pretensão foram, sinteticamente, os seguintes:

 

a.    Entregou a sua declaração de início de actividade no dia 11.03.1999, indicando que iria praticar operações isentas que não conferiam o direito à dedução de IVA;

b.    Em 10.05.2000, apresentou uma declaração de alterações de actividade, na qual optou por exercer o direito a renunciar a esta isenção, conferido pelo artigo 12.º, n.º 1, alínea b), do Código do IVA (CIVA);

c.    O argumento fulcral da AT para proceder às liquidações objecto do presente processo é o de que a Peticionante passou, a partir de uma data não determinada (mas que terá sido, segundo aquela, seguramente antes do ano de 2010), a estar integrada no Sistema Nacional de Saúde, perdendo o direito de renúncia à isenção, pela mera existência de convenções com “vários subsistemas de saúde públicos, com a Administração Regional de Saúde do Norte (ARS (norte) e com hospitais públicos”, para efeitos do artigo 12.º, n.º 1, alínea b), do Código do IVA, mas tal entendimento carece de base legal;

d.   Configura interpretação errónea violadora dos princípios da legalidade e tipicidade tributária considerar que o Sistema Nacional de Saúde mencionado na alínea b) do n.º 1 do artigo 12.º do Código do IVA é enquadrável no conceito de “Sistema de Saúde” vertido na Lei de Bases da Saúde (lei esta posterior ao Código do IVA), o qual abrange todas as entidades privadas que celebrem acordos com o Serviço Nacional de Saúde;

e.    A referência explícita da Lei do Orçamento do Estado para 1999 (Lei n.º 87-B/98, de 31 de Dezembro) à renúncia à isenção prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 12.º do Código do IVA indicando que, em relação a esta, estão em causa as “instituições privadas integradas no Serviço Nacional de Saúde”, constitui um elemento decisivo no sentido de que não é aqui aplicável o conceito de Sistema de Saúde, mas sim o de Serviço Nacional de Saúde;

f.     Para além do exposto, cabe referir que, pelo menos até 2007, era perfeitamente pacífico, para a própria AT, que a renúncia à isenção aqui em causa podia ser exercida por entidades privadas, com fins lucrativos, ainda que tivessem celebrado acordos com o Ministério da Saúde e demais entidades e órgãos do SNS;

g.    Existem até diversas respostas da DGCI a pedidos de esclarecimento de sujeitos passivos nessas condições em que se afirma, sem reservas, o direito à renúncia à isenção por parte de estabelecimentos de sociedades com protocolos ou acordos com o Estado;

h.    Ao contrário do que resulta do Relatório da AT, a jurisprudência comunitária não conclui que um determinado estabelecimento hospitalar privado prossegue uma actividade em condições sociais análogas a um estabelecimento hospitalar público pelo mero facto de os serviços prosseguidos por aquele estabelecimento serem “em grande parte” assumidos por organismos da segurança social ou outras caixas de doença, i.e., por organismos públicos;

i.      É necessário que sejam tomados em consideração “vários elementos”, sendo o facto de os custos das prestações serem parcialmente assumidos por organismos público apenas um desses elementos a ter em atenção;

j.      Acresce que cabe a quem invoca um direito o ónus da prova dos seus factos constitutivos, mas não logrou a AT apresentar no seu Relatório quaisquer outros elementos que comprovassem que a Peticionante exerce(ria) a sua actividade em condições sociais análogas às dos estabelecimentos hospitalares ou similares públicos;

k.    No que tange à concreta situação da Peticionante, é uma evidência que os protocolos e convenções celebrados com entidades ligadas ao sector público não definem os preços aplicáveis a todos os seus utentes, mas apenas a uma parte;

l.      Segundo a visão da AT, mais de 45% da facturação da Peticionante será devida e cobrada a entes públicos nos anos de 2010 a 2013, mas os dados constantes do Relatório não permitem uma tal interpretação sendo que, em relação ao período compreendido entre 2010 e 2013, a facturação alocada a entes públicos correspondeu, em média, a 36,46% do volume total de negócios;

m.  É ainda de rejeitar qualquer tese que afirme que a actividade exercida pela Peticionante representa(ria) qualquer espécie de pressão concorrencial sobre estabelecimentos similares públicos;

n.    Os preços actualmente praticados são tabelados por Portaria sendo o IVA devido pelos mesmos incluído pelo Peticionante por dentro do preço, pelo que não é por passar a isentar-se de IVA as operações da Peticionante que os utentes passam a optar pelos hospitais públicos em seu detrimento da Peticionante;

o.    Ainda que a Peticionante passasse a estar integrada no “Sistema Nacional de Saúde” a partir de uma determinada data (que a AT não soube determinar) – o que só por mera hipótese de raciocínio se concebe, sem conceder – não existe mecanismo legal que determine a “perda do direito à renúncia à isenção” por esse facto, após ter validamente exercido o direito de renúncia à isenção;

p.    Por outro lado, não se diga contra o acima exposto que a AT terá revogado com efeitos ex tunc o acto administrativo que a enquadrou no regime geral de IVA pois que, tal como acima referido, exerceu o seu direito à renúncia nos termos do n.º 2, do artigo 12.º, do Código do IVA, mediante a entrega da respectiva declaração tendo a AT, na sequência da entrega desta declaração, alterado o registo mediante um acto administrativo, o qual enquadrou a Peticionante no regime geral de IVA e conferiu a esta o direito à renúncia;

q.    Mesmos que se defendesse que a AT teria poderes para revogar este acto administrativo, nos termos gerais previstos no CPA, a verdade é que a AT nunca revogou este acto administrativo, tendo apenas “decretado” a perda do direito à renúncia na fundamentação do Relatório e efectuado as liquidações, sendo que um hipotético acto de revogação sempre seria inválido, por violação dos artigos 136.º e 141.º, do CPA;

r.     Das liquidações efectuadas, o apuramento do valor de € 258.356,98 (€ 226.211,56 + € 32.145,42) tem por base regularizações a favor do Estado nos termos do artigo 24.º do CIVA, mas a o certo é que não existe qualquer norma prevista no Código do IVA ou em legislação avulsa que obrigue a Peticionante a regularizar as deduções de IVA anteriormente realizadas em resultado das mudanças de enquadramento em IVA determinadas oficiosamente pela AT sendo que a aplicação do artigo 24.º do Código do IVA, no caso concreto, leva assim a que a liquidação de imposto, na parte relativa à regularização, no valor de € 258.356,98, seja materialmente inconstitucional, por violação do artigo 103.º, n.º 3, da CRP, na parte em que este dita que ninguém pode pagar impostos cuja liquidação se não faça nos termos da lei;

s.     A título subsidiário, caso prevalecesse o regime de isenção, o IVA liquidado, de €2.449.805,41, não seria devido ao abrigo do artigo 2.º, n.º 1, alínea c), do Código do IVA, pois este é um mecanismo de prevenção da fraude e constitui mera presunção iuris tantum, sendo que no caso em apreço não está em causa qualquer acto de fraude ou de dedução de IVA, pois o IVA cobrado nos serviços médicos não é dedutível pelos utentes. A arrecadação deste IVA face ao regime de isenção aplicado pela Requerida consubstanciaria venire contra factum proprium;

t.     Pelo contrário, a única forma de garantir a neutralidade fiscal e aplicar justiça, caso se verificasse o cenário acima descrito, seria (em contraponto a reconhecer a dedução do IVA realizada em excesso pelo Peticionante) reconhecer que o valor do IVA liquidado e pago a mais pela Peticionante ao Estado deveria ser regularizado pelo Estado a seu favor e restituído por esta aos utentes;

u.    Por fim, os actos de liquidação impugnados consubstanciam desigualdade de tratamento entre contribuintes, pois num caso semelhante foi determinado, que os efeitos da nova posição da DGCI deveriam só valer para o futuro pelo que, será inconstitucional a interpretação e aplicação do artigo 12.º do Código do IVA por parte da AT em moldes tais que conduza a que a Peticionante seja mais gravosamente tratada (com aplicação retroactiva da perda do direito à renúncia à isenção com obrigatoriedade de regularizações de IVA e entrega ao Estado do IVA liquidado) havendo, por esta via, mais um motivo para considerar ilegais e inconstitucionais as liquidações efectuadas pela AT.

 

A fundamentar o pedido, a Requerente junta um Parecer, sobre o tema da renúncia à isenção de IVA, da autoria do Senhor Professor R….

 

2. A Administração Tributária e Aduaneira, chamada a pronunciar-se, apresentou Resposta suscitando a excepção de incompetência da Jurisdição Arbitral em razão da matéria, quer no tocante à legalidade das demonstrações de acertos de contas, quer no que respeita ao pedido de “reconhecimento do direito à renúncia à isenção do IVA”, por, em ambos os casos, não envolverem a aferição da legalidade das liquidações adicionais efectuadas.

 

Defendeu-se, ainda, por impugnação, alegando que:

 

a.    A partir do ano de 2004, a Requerente celebrou convenções e/ou protocolos com várias seguradoras, que dispõem de seguros de saúde, com diversas associações, com sindicatos, com centros hospitalares, com subsistemas de saúde públicos e com a Administração Regional de Saúde, beneficiando os utentes abrangidos pelas convenções ou protocolos dos respectivos regimes, efectuando apenas o pagamento parcial do serviço (co-pagamento ou taxa moderadora) conforme é convencionado;

b.    Resulta evidente que a questão decidenda é, desde logo, saber se, por força das convenções celebradas com a Administração Regional de Saúde do Norte, I.P., e com hospitais públicos, a ora Requerente deve considerar-se como uma instituição privada integrada no “Sistema Nacional de Saúde”, nos termos e para os efeitos do artigo 12.º, n.º 1, alínea b), do CIVA;

c.    Porém, e não obstante a pertinente classificação do conceito das expressões “serviço nacional de saúde”, “sistema de saúde” e “sistema nacional de saúde”, facto é que, na realidade, o que aqui está também em causa, se tivermos em conta o seu “direito” ou “não direito” de renúncia à isenção prevista na alínea b) do artigo 9.º do Código do IVA, é saber se tal subverte integralmente as regras da neutralidade que presidem a todo e qualquer sistema de Imposto sobre o Valor Acrescentado, em vigor na União Europeia, no caso concreto, entre serviços de saúde prestados por entidades públicas ou por entidades privadas que prestem serviços em “condições sociais análogas”;

d.   Na medida em que, ao entender-se que sim, a Requerente, a partir do momento da sua celebração, não poderia continuar a usufruir do regime de renúncia à isenção de IVA;

e.    Mesmo antes da Lei de Bases da Saúde (de 1990) acolher a locução “sistema de saúde”, consagrando-a legalmente, já o destinatário normal do artigo 12.º, n.º 1, alínea b), do CIVA, norma vigente desde 01/01/1986, mas aprovado por um Decreto-Lei de 26 de Dezembro 1984, compreendia o seu alcance: as entidades privadas que convencionam com o Estado Português a prestação de serviços médicos e sanitários elencados no n.º 2 do artigo 9.º do CIVA passam a integrar o “sistema nacional de saúde”, o que obsta à opção por aquela renúncia;

f.     A circunstância de a Lei de Bases de Saúde, aprovada pela Lei n.º 48/90, de 24 de Agosto, vir definir o conceito de "sistema de saúde", como abrangendo o Serviço Nacional de Saúde e todas as entidades públicas que desenvolvem actividade de promoção, prevenção e tratamento na área da saúde, bem como por todas as entidades privadas e por todos os profissionais livres que acordem com a primeira a prestação de todas ou de algumas daquelas actividades (Base XII), só demonstra o acerto da terminologia utilizada em 1984 pelo legislador do Código do IVA;

g.    Em contrapartida, pensa-se que a menção a "Serviço Nacional de Saúde" antes constante da verba 2.7 da Lista I anexa ao Código do IVA, reflectia uma imprecisão terminológica, que devia ser interpretada, atendendo ao conteúdo da alínea b) do n.° 1 do artigo 12.º do Código do IVA e ao quadro legal que regula o sistema de saúde, como referindo-se ao "sistema nacional de saúde", porquanto, como vimos, e a Requerente refere, não existem instituições privadas integradas no Serviço Nacional de Saúde;

h.    Permitir-se o direito à renúncia no caso da ora Requerente traduz a subversão de todas as regras, nomeadamente a da tão apregoada neutralidade, que se pretende preservar, já que o consumidor final, neste caso o doente, em tese o mais débil em termos económicos e sociais, que recorra a um hospital público para a prestação do mesmo serviço, terá que suportar um custo mais elevado, já que este incorpora o montante de imposto que aquele não pode deduzir, por lhe estar vedado o direito à renúncia;

i.      O valor de 36,46%, alegado pela Requerente como correspondente ao valor médio entre 2010 e 2013, da facturação da Peticionante, alocada a entes públicos apenas se refere aos valores facturados àqueles organismos públicos, não estando incluídos as taxas moderadoras e os pagamentos efectuados pelos beneficiários daqueles sistemas sendo de salientar que os beneficiários da ADSE suportam, em média, 18%1 do custo dos serviços de saúde quando recorrem aos serviços com regime convencionado com entidades privadas, pelo que os valores facturados à ADSE correspondem aos restantes 82%;

j.      Pelo que, uma vez considerada a parte suportada pelos beneficiários daqueles regimes, o peso relativo apresentado nos quadros supra, passa a ascender a mais de 45% em todos os anos;

k.    No âmbito do procedimento inspectivo, os Serviços de Inspecção Tributária, atento o conjunto normativo aplicável, maxime, face aos conceitos de “condições sociais análogas” e “sistema nacional de saúde”, escalpelizados a fls. 7 a 9 do RIT, concluem que «quer à luz do direito comunitário, quer à luz do direito interno, o HPVC enquadra-se na alínea b) do n.º 1 do artigo 132.º da Directiva IVA e por conseguinte na isenção do n.º 2 do artigo 9.º do Código do IVA, sem possibilidade de efectuar a renúncia à isenção nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 12.º do Código do IVA»;A Requerente defende ainda que a AT parte de um pressuposto errado ao inferir que o IVA liquidado e pago ao Estado pela Requerente é devido aos cofres do Estado porquanto, no caso dos autos, não se está perante uma circunstância de fraude, pelo que a sua situação nunca seria enquadrável no escopo da alínea c) do n.º 1 do artigo 2.º e do n.º 2 do artigo 27.º, ambos do Código do IVA mas, também neste ponto, há que referir que o entendimento pugnado pela Requerente não tem fundamento pois o IVA não onera sujeitos passivos, antes os consumidores finais, que suportam o imposto que lhes é repercutido;

l.      Tal decorre dos princípios básicos do funcionamento do imposto e das suas características, nomeadamente, a repercutabilidade e a neutralidade não podendo, pois, concordar-se com o entendimento da Requerente da não aplicação na situação sub judice, do artigo 2.º, n.º 1, alínea c), do Código do IVA;

m.  Alega ainda a Requerida a necessidade de ser ordenado o reenvio do processo ao TJUE, ao abrigo do disposto no artigo 267.º do TFUE, para efeitos de definir o recorte da renúncia ao regime de isenção nos termos do artigo 12.º, n.º1, alínea b), do Código do IVA, concretamente sobre o conteúdo da expressão “condições sociais análogas”.

 

3. Em 19.10.2015 teve lugar a reunião do Tribunal Arbitral prevista no artigo 18.º do RJAT, na qual a Requerente respondeu às excepções suscitadas pela Requerida, pugnando pela sua improcedência.

 

4. As partes apresentaram alegações nas quais, no essencial, mantiveram as posições já expostas nos articulados.

 

5. Cumpre solucionar as seguintes questões:

 

a)    Se o Tribunal Arbitral deve ser declarado incompetente em razão da matéria, quer no tocante à questão da legalidade das demonstrações de acertos de contas, quer no que respeita ao alegado pedido de “reconhecimento do direito à renúncia à isenção do IVA”;

b)   Se as liquidações objecto do presente processo enfermam do vício de violação de lei;

c)    Se deve ser ordenado o reenvio do processo ao TJUE, ao abrigo do disposto no artigo 267.º do TFUE, para efeitos de definir o recorte da renúncia ao regime de isenção nos termos do artigo 12.º, n.º1, alínea b), do Código do IVA;

d)   Caso se considere que a Requerente deve ser enquadrada no regime de isenção de IVA durante os anos de 2010 a 2013, não se decretando a anulação das liquidações, se deve ser devolvido pela Requerida à Peticionante o IVA liquidado e pago por esta ao Estado, no valor de € 2.449.805,41;

e)    Em caso de anulação das liquidações objeto do presente processo se deve ser atribuída à Requerente indemnização por garantia indevidamente prestada, nos termos do artigo 53.º da LGT, e artigo 171.º do CPPT.

 

 

II. Saneamento

 

1.    Excepção de incompetência da Jurisdição Arbitral em razão da matéria no que respeita à questão da legalidade das demonstrações de acertos de contas.

 

Sustenta a Requerida que no n.º 1 do artigo 2.º do RJAT se fixam com rigor quais as matérias sobre as quais se pode pronunciar o tribunal arbitral, nelas não constando referência às demonstrações de acertos de contas identificadas pela Requerente na parte final do intróito da sua petição. Assim, entende a Requerida que “não pode o pedido arbitral, nesta parte, ser conhecido pelo presente Tribunal, face à verificação de excepção dilatória que se traduz na incompetência do tribunal”.

 

Vejamos.

 

Antes de mais, há que observar que a denominada “demonstração e acerto de contas” constitui uma realidade instrumental relativamente à liquidação, não produzindo efeitos jurídicos próprios, mas limitando-se a reflectir o que decorre da própria liquidação. Anulada esta, deixar de ter razão de ser a respectiva “demonstração de acerto de contas”, que a tem como pressuposto.

Por outro lado, decorre do artigo 24.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária que a Administração Tributária deve “nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo”, “Restabelecer a situação que existiria de o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessária para o efeito”. Assim sendo, dúvidas inexistem de que, anuladas as liquidações, anuladas terão que ser as respectivas demonstrações de acerto de contas.

E, ainda que, em rigor, não seja necessária a formulação de tal pedido pelo sujeito passivo, como entende Jorge Lopes de Sousa, está ainda no âmbito das competências dos tribunais arbitrais a fixação dos efeitos das suas decisões.[1]

Assim sendo, relativamente a esta questão é manifesto não se verificar a incompetência do Tribunal em razão da matéria, improcedendo, assim, a suscitada excepção.

 

2.    Excepção de incompetência em razão da matéria do pedido principal

 

Vem ainda a Requerida alegar que “a presente instância arbitral é materialmente incompetente para conhecer de um dos vários pedidos formulados nos presentes autos, a saber, se a ora Requerente tem ou não o direito de renúncia à isenção prevista nos termos da alínea 2) do artigo 9.º, conforme disposto no artigo 12.º, n.º 1” porquanto “à luz do artigo 2.º do Decreto-lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT), a competência dos tribunais arbitrais compreende, entre outras, a apreciação de pretensões relativas à “declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta” – cf. n.º 1, alínea a).”

Para a AT “pedindo a Requerente a anulação das liquidações adicionais em apreço, por violação do disposto no artigo 12.º, n.º 1, alínea b), do Código IVA, está, assim, a solicitar a condenação da Administração Tributária ao reconhecimento do direito de renúncia à isenção do IVA de que beneficia nos termos da alínea 2) do artigo 9.º do Código do IVA.”

 

No entender da Requerida, estamos perante um pedido de reconhecimento de direitos em matéria tributária não previsto no RJAT.

 

No entanto, a pretensão deduzida pela Requerente não é a de reconhecimento de um direito, mas sim, no que aqui releva, a de anulação dos actos tributários de liquidação.

 

Tendo por objecto matéria neste ponto idêntica à dos presentes autos, pode ler-se na decisão arbitral proferida por este Tribunal no Processo 278/2013-T:

A Requerente deduz um pedido típico de acção constitutiva como é a acção impugnatória no âmbito do processo arbitral tributário e não um pedido de uma acção de simples apreciação (positiva) característico da acção para o reconhecimento de um direito (cf.artigo 10.º do Código de Processo Civil (“CPC”) ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT).

Naturalmente que a decisão de anular os actos tributários visada pela Requerente implica a apreciação da relação jurídico-tributária subjacente. Assim, para se concluir pela ilegalidade dos actos tributários impugnados e respectivo desvalor invalidante será necessário avaliar se a Requerente mantém o direito à renúncia à isenção do IVA e se deve estar enquadrada no regime normal do IVA com direito à dedução. Esta é a causa de pedir (fundamento) e não o pedido (pretensão) deduzido no litígio.

O reconhecimento de direitos e interesses legítimos em matéria tributária está sempre implícito na declaração de ilegalidade dos actos tributários e só quando esteja desligada desta (referimo-nos à declaração de ilegalidade e seu efeito anulatório) pode ser configurada no âmbito de uma acção de reconhecimento de um direito, o que não é o caso.

Neste sentido, refere Jorge Lopes de Sousa in “Comentário ao Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, Guia da Arbitragem Tributária”, Coord. Nuno Villa-Lobos e Mónica Brito Vieira, Coimbra, Almedina, 2013, p.105: “o reconhecimento de direitos e interesses legítimos em matéria tributária, fora dos casos em que possa estar subjacente à declaração de legalidade de actos ou apreciação das questões indicadas no n.º 1 do artigo 2.º do RJAT, está fora da competência dos tribunais arbitrais” (realçado nosso).

É para nós manifesto que o objecto principal do processo se reporta a liquidações adicionais de IVA, cuja legalidade é questionada, razão pela qual se verifica a competência deste tribunal arbitral, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT e se julga improcedente a excepção de incompetência do presente tribunal colectivo referente ao pedido principal.”

Sufragando este entendimento, também consideramos, pelas razões indicadas, que não ocorre incompetência material, pelo que se julga improcedente a excepção de incompetência do Tribunal, no que se refere ao pedido principal.

 

3. O tribunal é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído nos termos do RJAT.

 

4. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

 

5. O processo não enferma de nulidades.

 

6. Não se verificam quaisquer outras circunstâncias que obstem ao conhecimento do mérito da causa. 

 

 

III. Mérito

 

A. Matéria de facto

 

1. Factos provados

 

 

Com base nos elementos que constam do processo e do processo administrativo junto aos autos, consideram-se provados os seguintes factos:

 

a.    A Requerente é uma sociedade por quotas de capitais privados, com fins lucrativos, que presta diversos serviços médicos;

b.    Está enquadrada, de acordo com a Classificação Portuguesa de Actividades Económicas - CAE Rev 3, no Código de Actividade 86 100 - “actividades dos estabelecimentos de saúde com internamento”, que compreende “as actividades de hospitais (gerais e especializados), clínicas (inclui clínicas dentárias), casas de saúde e outros estabelecimentos de saúde com instalações para internamento dos doentes de curta e longa duração. Estas actividades são dirigidas principalmente para os doentes internados, sob a supervisão directa de médicos, englobando uma grande variedade de serviços de cuidados de saúde (medicina, cirurgia, análises, radiologia, urgências, etc.). Inclui os hospitais oficiais (públicos, militares, paramilitares e prisionais) e privados”;

c.    A Requerente exerce a sua actividade económica numa unidade hospitalar própria vocacionada e equipada para a prestação de cuidados de saúde, por parte de profissionais em diversas especialidades médicas e cirúrgicas;

d.   Após a conclusão da construção da unidade hospitalar, ocorrida no início do ano de 2004, a Requerente celebrou convenções, protocolos e acordos de assistência a sinistrados com as seguintes entidades:

 

Convenções

Protocolos

Acordos de assistência a sinistrados

B...

R...

AA…

C...

S…

D…

D…

T...

AXA

E…

U...

BB…

F...

V…

CC…

G…

W...

DD…

H…

X...

EE…

I...

Y…

FF…

J…

Z…

GG…

K...

 

HH…

L…

 

 

M…

 

 

N…

 

 

O

 

 

Serviço Nacional de Saúde (para análises e ecocardiograma)

 

 

P…

 

 

Q…

 

 

 

 

e.    Durante os anos de 2010 a 2013, e por força do exercício das actividades afectas ao seu objecto social, a Requerente apresentou o seguinte volume de negócios:

 

2010

2011

2012

2013

€ 8.361.892,13

€ 9.354.927,05

€ 11.024.227,43

€ 9.608.743,21

 

f.     Uma parte desse volume de negócios da Requerente ficou a dever-se aos valores facturados às entidades ligadas ao sector público, no âmbito dos acordos celebrados conforme discriminado infra:

 

Entidade

2010

2011

2012

2013

C...

  2.227.991,79€        

    2.652.144,98€              

2.685.297,14€     

2.754.804,34€

II...

     519.734,96€               

  274,018,10€                            

452.226,30€

 

111.241,16€

I...

     309.895,15€             

   362.938,13€                              

349.557,71€

380.505,97€

B...

       61.695,87€               

  134.777,68€                                    

159.761,38€

166.355,70€

JJ...

       50.747,91€       

    26.250,30€

42.487,58€

 

22.297,61€

KK...

       15.736.93€

       3.137,98€

         0,00€

0,00€

LL...

       14.624,97€

     19.649,08€

         0,00€

4.683,09€

MM...

      13.887,75€

     12.237,95€

 40.261,01€

 

4.353,07€

NN...

       2.996,77€

               0,00€

          0,00€

0,00€

OO...

                             0,00€

    26.888,23€

     4.378,98€                                

0,00€

PP...

0,00€

0,00€

     58.795,66€

 

  17.432,80€

Total                                 3.217.312,10€                    3.512.042,43€         3.792.765,76€              3.461.673,74

 

 

g.    Em relação ao período compreendido entre 2010 e 2013, a facturação da Requerente alocada a entes públicos correspondeu, em média, a 36,46% do volume total de negócios:

 

h.    Estes valores reflectem os valores líquidos facturados àqueles organismos públicos, não estando incluídos as taxas moderadoras e os copagamentos que, por força dos contratos celebrados pela Requerente com as entidade ligadas aos sector público, os beneficiários dos cuidados de saúde pagaram à Requerente, em valor não concretamente apurado, mas que, no caso da C... é, em média, de 18% do custos dos serviços, suportando a C... os restantes 82%;

i.      Durante os anos de 2010 a 2013, nas transmissões de bens e prestações de serviços que realizou, a Requerente liquidou IVA no montante total de € 2.449.805,41, assim discriminados:

 

j.      Em igual período, a Requerente deduziu IVA no montante total de € 1.748.036,91, assim discriminados:

 

k.    A Requerente entregou a sua declaração de início de actividade no dia 11.03.1999, indicando que iria praticar operações isentas que não conferiam o direito à dedução de IVA;

l.      Em 10.05.2000, a Requerente apresentou uma declaração de alterações de actividade, na qual optou por exercer o direito a renunciar à isenção, conferido pelo artigo 12.º, n.º 1, alínea b), do Código do IVA;

m.  A partir dessa data, a Requerente ficou enquadrada no regime normal de tributação, com periodicidade mensal;

n.    A Autoridade Tributária emitiu as Ordens de Serviço n.º OI2014... e n.º OI2014..., ambas de 31.01.2014, destinadas a dar início a uma acção inspectiva externa de âmbito parcial – IVA – aos exercícios de 2010 a 2013;

o.    Estas ordens de inspecção foram emitidas em resultado do facto de a Requerente constar da informação, de 30.01.2014, do Gabinete do Director da Direcção de Finanças de..., na qual se propunha a emissão de credenciais para os sujeitos passivos que tivessem renunciado indevidamente à isenção do IVA;

p.    Em 05.11.2014, foi a Requerente notificada do Projecto de conclusões do relatório;

q.    Este Projecto propunha, em consequência do acima exposto, correcções de IVA no valor de € 1.861.481,59, relativas a: (i) imposto deduzido em excesso e (ii) regularizações de bens do activo imobilizado;

r.     A Requerente não exerceu o direito de audição;

s.     A Requerente veio, através do ofício n.º..., de 04.12.2014, a ser notificada do Relatório Final de Inspecção Tributária, que reproduz a matéria anteriormente apresentada no projecto;

t.     No dia 22.12.2014 foram recebidas pela Requerente as seguintes liquidações adicionais de IVA e respectivos juros compensatórios:

Liquidação

N.º

Período

Montante

IVA

2010.12

€ 390.751,10

Juros compensatórios

2010.12

€ 59.522,63

Total

€ 450.273,73

 

u.    A 26.01.2015, foi a Requerente notificada das seguintes liquidações de juros compensatórios:

Liquidação

N.º

Período

Montante

Juros compensatórios

2015 ...

2011.12

€ 58.038,70

Juros compensatórios

2015 ...

2012.12

€ 36.506,99

Juros compensatórios

2015 …

2013.12

€ 14.425,83

Total

€ 108.971,52

v.    Posteriormente a Requerente foi notificada das seguintes demonstrações de liquidação de IVA e de acerto de contas:

 

Liquidação

N.º

Período

Montante

IVA

2015 ...

2011.12

€ 516.686,23

IVA

2015...

2012.12

€ 506.274,98

IVA

2015 ...

2013.12

€ 447.740,68

Total

€ 1.470.701,89

 

Liquidação

N.º

Período

Montante

Acerto de contas

2015…

2011.12

€ 516.686,06

Acerto de contas

2015…

2011.12

€ 58.038,70

Acerto de contas

2015…

2012.12

€ 506.274,98

Acerto de contas

2015…

2012.12

€ 36.506,99

Acerto de contas

2015…

2013.12

€ 447.740,68

Acerto de contas

2015…

2013.12

€ 14.425,83

Total

€ 1.579.673,24

 

x.    Em termos globais, a Requerente foi notificada de demonstrações de liquidação de IVA e juros compensatórios que totalizam o montante de € 2.029.946,97;

y.     No relatório final de inspecção elaborado na sequência da inspecção, que consta do processo administrativo e cujo teor se dá por reproduzido consta, além do mais, o seguinte:

-“15)A hospitalização e a assistência médica (…) prestadas por organismos de direito público e, em condições sociais análogas a estes, por estabelecimentos hospitalares, centros de assistência médica e de diagnóstico e outros estabelecimentos da mesma natureza devidamente reconhecidos, é isenta de IVA nos termos do n.º 2 do artigo 9º do Código do IVA, sem possibilidade de renúncia à isenção, por se enquadrarem na alínea b) do n.º 1 do artigo 132º da Diretiva IVA”.

- “18)O sistema nacional de saúde (sistema de saúde) abrange as entidades públicas integradas no Serviço Nacional de Saúde (SNS), bem como as entidades privadas que, nos termos da lei vigente, tenham celebrado acordos ou convénios com o SNS ou com um dos subsistemas de saúde pública para prestação de cuidados de saúde”.

(…)

 -“20)O A... tem celebrado acordos com subsistemas de saúde públicos, com a Administração Regional de Saúde do Norte (ARS norte) e com hospitais públicos”.

- “21) (…) salienta-se que os beneficiários da C.. suportam em média 18% do custo dos serviços de saúde  quando recorrem  aos serviços em regime convencionado com entidades privadas, pelo que, os valores faturados à C... correspondem aos restantes  82%.”

- “22) Assim, se considerarmos a parte suportada pelos beneficiários daquele regime, o peso relativo apresentado (…), passa a ascender a mais de 45% em todos os anos. Pelo que se conclui que a percentagem de operações realizadas pelo A... aos abrigo das convenções e acordos com subsistemas de saúde públicos, com a ARA e com hospitais públicos, é representativa de uma grande parte do valor faturado, logos os custos dos serviços são assumidos também em grande parte por entidades públicas.

-“23) “(…) O A... enquadra-se na alínea b) do n.º 1 do artigo 132º da Diretiva IVA e por conseguinte na isenção do n.º 2 do artigo 9º do Código do IVA, sem possibilidade de efetuar a renúncia à isenção nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 12º do Código do IVA”

“24)Contudo não se deve desconsiderar que quando, em 2000, o A... renúncia à isenção podia fazê-lo e teria, nos termos do nº 3 do artigo 12º do Código do IVA, de permanecer no regime por um período de, pelo menos, 5 anos, no entanto logo que as condições verificadas para exercer o direito à renúncia à isenção são alteradas, tornando a atividade obrigatoriamente abrangida pela isenção, considera-se que são cessados os efeitos da renúncia.”.

25) No caso concreto não podemos, e face à análise efectuada, precisar quando cessam para o A... os efeitos da renúncia, certo é que, nos anos em questão, e como já foi referido, tem de isentar a atividade de hospitalização e a assistência médica, bem como as prestações de serviços com elas estreitamente relacionadas, ficando sujeitos a IVA outras atividades exercidas pelo A... que não se enquadrem na isenção do nº 2 do artigo 9º do Código do IVA”;

z.    Consta da Informação n.º..., de 16.06.1992, averbada do despacho concordante de 1.07.1992 do Subsecretário de Estado Adjunto da Secretária de Estado Adjunta e do Orçamento, o seguinte:

“ (…) a alínea b) do nº 1 do artº 12º do CIVA permite, a quem explora os estabelecimentos hospitalares, clínicas, dispensários e similares, que não seja pessoa coletiva de direito público ou uma instituição privada integrada no sistema nacional de saúde, renunciar à isenção em relação a prestações de serviços médicos e sanitários e operações com elas estritamente conexas.

(…).

Assim, na questão concreta colocada pelo exponente, estará obrigado, caso opte pela sujeição a imposto, a repercutir o imposto liquidado correspondente aos serviços prestados, quer estes sejam prestados aos beneficiários da Administração Regional de Saúde, quer aos de outras entidades similares. Daí que, sendo o imposto adicionado ao preço liquido dos serviços prestados, os adquirentes, incluindo a ARS, assumirão a obrigação de pagar o total assim obtido.

(…)

Há ainda que referir, a propósito desta questão, que nos casos de opção pela tributação, uma vez que o prestador passará a ter direito ao imposto suportado nas aquisições de bens e serviço, nomeadamente equipamentos, matérias primas incorporadas nos serviços e outras despesas, consequentemente, verá reduzidos os seus custos de exploração”.

 

aa.     Em 14.12.2007, foi proferido pelo Senhor Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais o despacho n.º .../2007, donde consta, além do mais, o seguinte:

 

 

 

 

bb.    Nas convenções celebradas com a ARS ou a ADSE e os estabelecimentos hospitalares privados o preço dos serviços objecto de convenção é idêntico para todos os estabelecimentos aderentes às convenções;

cc.     O preço de cada tratamento e exame é facturado pelos estabelecimentos hospitalares privados à ARS ou à C... individualmente, por cada operação realizada, de acordo com a sua natureza;

dd.   A Requerente foi citada no âmbito do processo de execução fiscal n.º ...2015... e apensos, em resultado do não pagamento das liquidações ora contestadas, no prazo estabelecido para o respectivo pagamento voluntário;

ee.     Para suster o desenrolar desse processo, a Requerente constituiu, a favor dos serviços da AT, uma hipoteca voluntária incidente sobre o prédio urbano, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ... e inscrito na respectiva matriz predial sob o n.º..., cujo valor patrimonial ascende a € 4.698.495,13;

 

2. Factos não provados

 

Com interesse para a decisão da causa, inexistem factos não provados.

 

3. Fundamentação da decisão sobre a matéria de facto

 

Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos pelas partes e constantes do processo administrativo, bem como das posições das partes, sendo de referir não emergir das posições assumidas por Requerente e Requerida efectiva discordância relativa à matéria de facto, confinando-se o dissídio à matéria de direito.

 

B. Matéria de direito

 

1.    Nota prévia

 

Neste processo, tal como nos Processos n.ºs 278/2013-T e 227/2015-T deste Tribunal, o cerne do problema, tal como vem sendo apresentado pela Administração Fiscal em relatórios de visitas de inspecção a vários sujeitos passivos implicados, reside em aferir se os estabelecimentos hospitalares, clínicas, dispensários e similares, que optaram pela tributação por se considerarem não integrados no sistema nacional de saúde, entendendo preencher as condições previstas no artigo 12.º do CIVA para a renúncia à isenção, devem ou não continuar a ser considerados para tanto elegíveis quando celebram protocolos ou acordos com entidades públicas pertencentes ao serviço nacional de saúde, a fim de prestarem aos beneficiários desses subsistemas prestações de cuidados de saúde abrangidas pela norma de isenção do n.º 2 do artigo 9.º do mesmo Código.

 

Vejamos, pois, o que se nos oferece dizer quanto à matéria de direito em causa. Para o efeito, iremos seguir de perto o entendimento deste Tribunal no aludido Processo n.º 227/2015-T.

 

2.    Enquadramento em IVA da actividade da saúde

 

2.1 Modalidades de isenções

 

Foi com a Sexta Directiva[2] que se procurou uniformizar as isenções nas transacções internas que os Estados membros poderiam conceder, dado que na Segunda Directiva esta matéria foi deixada ao critério exclusivo do legislador nacional.

A principal preocupação subjacente ao regime das isenções previsto na Sexta Directiva foi a de estabelecer uma lista comum de isenções de forma a tornar possível, tal como resulta do seu preâmbulo, que os recursos próprios sejam cobrados de modo uniforme em todos os Estados membros.

As isenções, todavia, com excepção das que se relacionam com o comércio exterior, constituem um entrave significativo ao funcionamento neutro do imposto, como é amplamente reconhecido. Com efeito, embora, por motivos de natureza económica e social, ou por motivos de ordem técnica, o sistema tenha de prever exonerações de imposto, é desejável limitar estritamente os casos de isenção e proceder aos aligeiramentos necessários através da aplicação de taxas reduzidas, de forma a permitir, por regra, o exercício do direito à dedução do imposto suportado.

Como é sabido, em IVA, existem duas modalidades de isenções atendendo à possibilidade do exercício do direito à dedução[3]. Por um lado, temos as isenções completas, totais, plenas, ou que conferem o exercício do direito à dedução do IVA suportado.

Nestas isenções, tal como a própria designação o indica, o sujeito passivo beneficiário não liquida imposto nas suas operações activas (transmissões de bens ou prestações de serviços efectuadas) e tem o direito a deduzir o IVA suportado para a respectiva realização. Caso estas isenções sejam estabelecidas em estádios intermédios, não há interrupção da cadeia de deduções, não há efeitos cumulativos e as consequências sobre a receita são nulas, uma vez que as taxas intermédias são “imateriais”. A taxa final (não nula) se encarregará de recuperar a receita — é o conhecido efeito de recuperação positivo. Se forem estabelecidas no estádio final, assistir-se-á à desoneração completa do conteúdo fiscal e o vendedor deduz o IVA que onerou os respectivos inputs, desaparecendo do valor do bem qualquer conteúdo fiscal, ostensivo ou oculto. Contrariamente às isenções simples, estas isenções não alteram as qualidades de neutralidade do IVA e têm o efeito de proteger totalmente do imposto o consumo do bem ou serviço a que essa isenção completa se aplica, pelo que se afiguram como a solução indicada para prosseguir objectivos de equidade na tributação do consumo, quando tais objectivos exijam uma completa exoneração dos encargos fiscais relativamente a certos bens e serviços[4].

Nas denominadas isenções incompletas, simples, parciais, ou que não conferem o exercício do direito à dedução do IVA suportado, como é o caso das isenções relativas à saúde que aqui nos ocupam, o sujeito passivo beneficiário não liquida imposto nas suas operações activas, mas não tem o direito a deduzir o IVA suportado para a respectiva realização[5].

Nas isenções incompletas, o operador encontra-se, assim, fora do mecanismo do imposto, sendo tratado como um consumidor final, ao passo que nas isenções completas, ou nas situações de tributação à taxa zero, o operador faz parte integrante do mecanismo do imposto, podendo deduzi-lo nos termos gerais. Assim sendo, facilmente se conclui que a isenção simples pode ser desvantajosa para os operadores produtivos e até prejudicar a sua capacidade de concorrência. A não liquidação de IVA nas vendas ou prestações de serviços por eles efectuadas pode não compensar a impossibilidade de obter crédito do imposto suportado, sobretudo daquele que incide sobre investimento em bens duradouros.

Isto é, as isenções simples adulteram as propriedades de neutralidade do tributo. Se atribuídas a operadores "intermediários" no circuito económico de bens e de serviços, originam tributação em cascata, deixando o encargo fiscal de proporcionar-se exactamente ao valor do consumo. É por isso que, idealmente, tais isenções devem ser previstas com parcimónia, estão harmonizadas no sistema comum europeu do IVA e as regras que as prevêem são interpretadas restritivamente.

Por este motivo, o legislador comunitário veio permitir, em casos excepcionais, que os Estados membros concedessem o direito à renúncia de certas isenções, passando os sujeitos passivos a aplicar o imposto nos termos gerais, i.e., a liquidar e deduzir o IVA suportado, de forma a não encarecer o preço das suas operações. Entre estes casos encontra-se, precisamente, a isenção prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 132.º da Directiva IVA, entre nós transposta no n.º 2 do artigo 9.º do CIVA.

Na selecção das operações isentas do imposto sobre o valor acrescentado, o legislador comunitário inspirou-se, aquando da adopção da Sexta Directiva, por um lado, nas isenções já existentes nos Estados membros, por outro lado, tentou limitar o número de isenções, dado as mesmas consubstanciarem uma excepção ao princípio geral de que todas as prestações de serviços e transmissões de bens efectuadas a título oneroso por um sujeito passivo estão sujeitas a IVA e porem em causa o princípio da proporcionalidade[6].

Assim, essencialmente por motivos de ordem social, cultural e política, a Directiva IVA, na senda da Sexta Directiva, prevê uma série de isenções, que, todavia, se aplicam a um conjunto restrito de serviços, dada a base de incidência alargada do IVA.

 

2.2 As isenções da saúde na Directiva IVA

 

Na Directiva IVA a regulamentação das isenções encontra-se sistematizada distinguindo “isenções em benefício de certas actividades de interesse geral”, “isenções em benefício de outras actividades” (isenções internas), “isenções relacionadas com as operações intracomunitárias e isenções na importação”, “isenções na exportação”, “isenções aplicáveis aos transportes internacionais”, “isenções aplicáveis a determinadas operações assimiladas a exportações”, “isenções aplicáveis a prestações de serviços efectuadas por intermediários” e “isenções aplicáveis a operações relacionadas com o tráfego internacional de bens”.

As prestações de serviços no domínio da saúde, quer as prestadas directamente pelos profissionais de saúde (médicos, enfermeiros, paramédicos) quer as referentes a hospitalização e cuidados médicos prestados por organismos de direito público ou entidades privadas trabalhando em condições sociais análogas, são, em princípio, isentas de imposto. É o que se conclui das alíneas b) e c) do artigo 132.º da Directiva IVA. 

A solução de isentar estas prestações de serviços tem origem na Sexta Directiva IVA, antecessora da actualmente vigente Directiva IVA[7].

O sistema comum permite, em regime transitório ou derrogatório, que os Estados membros isentem os estabelecimentos hospitalares, centros de assistência médica e de diagnóstico e outros estabelecimentos da mesma natureza, mesmo que não sejam reconhecidos como praticando condições sociais análogas às dos organismos de direito público. É o que actualmente consta do ponto 7 da parte B do Anexo X à Directiva IVA ("Operações que os Estados-membros podem continuar a isentar") - Anexo que corresponde ao Anexo F da Sexta Directiva, onde a isenção que nos ocupa estava prevista no respectivo n.º 10.

As disposições da Directiva IVA são, no essencial, idênticas às disposições correspondentes da Sexta Directiva.

As isenções de interesse geral na área da saúde estão contempladas nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 132.º da Directiva IVA. Para além da sua frase introdutória, as isenções previstas no artigo 132.°, n.° 1, alíneas b) e c), da Directiva IVA estão redigidas de forma idêntica às do artigo 13.°, A, n.° 1, alíneas b) e c), da Sexta Directiva.

 

O objectivo subjacente à concessão destas isenções é o de não onerar as prestações de serviços de saúde, assegurando que o benefício da assistência médica não se torna inacessível em razão do acréscimo de custos que resulta da tributação em IVA, i.e, em reduzir os custos médicos para os utentes e promover os cuidados de saúde[8]. Com efeito, estão em causa isenções em benefício de certas actividades de interesse geral, actividades específicas destinadas a prosseguir fins socialmente úteis, como a assistência médica. É ponto assente que o objectivo comum quer às isenções previstas na alínea b) quer às previstas na alínea c), é reduzir o custo dos cuidados de saúde e tornar esses cuidados mais acessíveis aos particulares [9].

A Directiva IVA estabelece o regime de isenção (incompleta, sem direito à dedução) como regime-regra da prestação de serviços de hospitalização e de assistência médica quando esses serviços sejam prestados por organismos de direito público. Adicionalmente, a Directiva isenta tais serviços quando efectuados por estabelecimentos hospitalares e centros de assistência médica e de diagnóstico em condições sociais análogas às que vigoram para os organismos públicos.

Assim o artigo 132.º, n.º 1, da Directiva IVA, determina o seguinte:

“1. Os Estados-Membros isentam as seguintes operações:

a) (…)

b) A hospitalização e a assistência médica, e bem assim as operações com elas estreitamente relacionadas, asseguradas por organismos de direito público ou, em condições sociais análogas às que vigoram para estes últimos, por estabelecimentos hospitalares, centros de assistência médica e de diagnóstico e outros estabelecimentos da mesma natureza devidamente reconhecidos;

(…)”

Qual o alcance desta isenção? Para a respectiva aplicação importa verificar do preenchimento simultâneo de requisitos objectivos relativos à natureza das operações e de requisitos subjectivos relativos à qualidade da entidade que as pratica. Quanto aos primeiros, as prestações fornecidas são: (i) a hospitalização ou a assistência médica, ou (ii) operações estreitamente conexas com a hospitalização ou com a assistência médica. Relativamente aos segundos: (iii) o prestador de serviços deve ser um organismo de direito público, ou (iv) deve fornecer as prestações em condições sociais análogas às que vigoram para os organismos de direito público e, (v) deve tratar-se de um estabelecimento hospitalar ou um centro de assistência médica e de diagnóstico ou outros estabelecimentos da mesma natureza devidamente reconhecidos.

À face da alínea b) supra, fora das situações em que os prestadores sejam organismos públicos ou que, não o sendo, prestem serviços médicos em condições análogas às destes organismos, a disciplina geral que resulta em primeira linha da Directiva IVA é a da tributação em IVA, à taxa normal, ou à taxa reduzida se os Estados membros exercerem a prerrogativa consagrada no artigo 98.º da Directiva IVA (em conjugação com o Anexo III).

Note-se ainda que, como iremos de seguida analisar, o legislador comunitário permitiu que os Estados membros previssem a faculdade de renúncia à isenção.

A fim de determinar quais as prestações susceptíveis de beneficiarem destas isenções, é necessário atender não só ao teor literal dos preceitos, como também à razão de ser dos regimes de isenção de IVA aqui previstos. O problema foi objecto de vários arestos do TJUE, que são assim decisivos para estabelecer os contornos exactos das isenções matéria de prestações de saúde.

 

2.3 As isenções de IVA nas regras nacionais

 

As isenções de IVA em matéria de prestações de serviços na área da saúde constam dos n.ºs 1,2,3, 4 e 5 do artigo 9.º do CIVA, os quais, por seu turno, reflectem as disposições correspondentes da Directiva IVA que são as alíneas b), c), d), e) e p) do n.º 1 do artigo 132º.

O n.º1 do artigo 9.º manda exonerar de IVA “as prestações de serviços efectuadas no exercício das profissões de médico, odontologista, parteiro, enfermeiro e outras profissões paramédicas” e o nº 2 “as prestações de serviços médicos e sanitários e as operações com elas estreitamente conexas efectuadas por estabelecimentos hospitalares, clínicas, dispensários e similares”.

O alcance de algumas dessas isenções, e em especial, no caso que aqui nos ocupa, as previstas nos n.ºs 1 e 2 do referido artigo 9.º, tem suscitado dúvidas, não só entre nós, como em outras jurisdições, e algumas dessas questões têm sido levadas ao Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), quer em processos de reenvio prejudicial, quer em acções por incumprimento de Estado.

Entre nós, o problema da interpretação dessas normas tem sido sobretudo levantado para determinar a legitimidade da renúncia à isenção por parte de entidades privadas com actividade na área da saúde.

No Tratado de Adesão de Portugal e Espanha às Comunidades Europeias, pode ler-se que a República Portuguesa foi autorizada a isentar de IVA as operações do aludido n.º 10 do Anexo F da Sexta Directiva.

Decorre da Sexta Directiva, no seu artigo 28.º, n.º3, alínea b), que os Estados-membros podem conceder, em regime transitório, aos sujeitos passivos a faculdade de optarem pela tributação nas condições fixadas no Anexo G, faculdade que a Directiva IVA manteve no respectivo artigo 373.º[10].

O legislador português usou de ambas as faculdades. Assim, no artigo 9.º, n.º2, do CIVA, acolheu a isenção das "prestações de serviços médicos e sanitários e as operações com elas estreitamente conexas efectuadas por estabelecimentos hospitalares, clínicas, dispensários e similares"; e, no artigo 12.º, concedeu aos "estabelecimentos hospitalares, clínicas, dispensários e similares, não pertencentes a pessoas colectivas de direito público ou a instituições privadas integradas no sistema nacional de saúde, que efectuem prestações de serviços médicos e sanitários e operações com elas estreitamente conexas" a faculdade de "renunciar à isenção, optando pela aplicação do imposto às suas operações".

Portugal, ao abrigo de um regime de excepção constante do artigo 377.º da Directiva IVA, usou da faculdade de isentar também estes estabelecimentos hospitalares privados, ou seja, aqueles que não prosseguem a sua actividade em condições sociais análogas aos estabelecimentos hospitalares públicos (cf. artigo 377.º da Directiva IVA).

Atento o que ficou exposto, e fazendo uso da terminologia da Directiva IVA, para efeitos deste artigo 12.º, n.º 1, alínea b), do Código do IVA, apenas podem ser consideradas como “instituições privadas não integradas no sistema nacional de saúde” com direito à renúncia, os estabelecimentos hospitalares privados que não prossigam a sua actividade em condições sociais análogas às que vigoram para os estabelecimentos hospitalares públicos. Isto é, a Requerente é abrangida pela referida opção de renúncia à isenção se não prosseguir a sua actividade em condições sociais análogas aos mencionados estabelecimentos públicos.

Ora, sucede precisamente que surgiram, ultimamente, dúvidas quanto ao âmbito subjectivo desta renúncia à isenção. Quais são afinal os estabelecimentos hospitalares, clínicas, dispensários e similares que podem renunciar à isenção? Que significa a fórmula da lei "não pertencentes a pessoas colectivas de direito público ou a instituições privadas integradas no sistema nacional de saúde"?

 

2.4  Interpretação das normas de isenção

 

2.4.1 Aspectos gerais

O TJUE tem vindo a desenvolver, ao longo destes anos, jurisprudência relevante sobre a matéria das isenções em geral, nomeadamente sobre as respectivas características e objectivos, e, em especial, no tocante às situações concretas acolhidas na Directiva IVA. A jurisprudência do Tribunal sobre as isenções tem-se fundamentado, essencialmente, nos princípios gerais de interpretação que tem desenvolvido, em especial, o princípio da interpretação estrita, o princípio da interpretação sistemática e o princípio da interpretação uniforme, salientando igualmente, em especial, a necessidade de respeitar o princípio da neutralidade.

Mas importa desde logo sublinhar que estamos perante normas de Direito da União Europeia e que, enquanto tal, como nota o TJUE, “Para efeitos de interpretação de uma disposição de direito comunitário, há que ter em conta os seus termos, bem como o seu contexto e os objectivos prosseguidos pela regulamentação em que está integrada”.[11]

O princípio da interpretação estrita das isenções é aquele que mais frequentemente tem vindo a ser invocado pelo TJUE. É jurisprudência constante que, com alguns matizes, as isenções devem ser objecto de interpretação estrita, quer no que toca aos prestadores de serviços, quer relativamente ao tipo de actividades que devem ser isentas[12].

Segundo o TJUE, dado que a Sexta Directiva desenhou uma base de incidência do IVA muito alargada, abrangendo todas as actividades económicas de produção, comercialização ou de prestação de serviços, é possível enunciar o princípio geral de acordo com o qual o imposto sobre o volume de negócios é cobrado sobre todo e qualquer fornecimento de bens ou qualquer prestação de serviços efectuados a título oneroso por um sujeito passivo[13]. Neste contexto, atendendo a que as isenções consubstanciam derrogações a este princípio, os termos utilizados para designar as isenções visadas pelo artigo 13.º da Sexta Directiva devem ser interpretadas de forma estrita[14]. Para este efeito, dado as disposições daquele preceito terem um carácter exaustivo[15], e deverem ser expressas e precisas[16], na sua interpretação deve atender-se sobretudo ao critério de interpretação literal[17]. Como consequência, deverá evitar-se o recurso a interpretações extensivas que alarguem o alcance daquelas disposições cuja redacção é suficientemente precisa, pois tal é incompatível com o seu objectivo que é o de isentar apenas e tão só as actividades nele enumeradas e descritas[18].

Todavia, a interpretação desses termos deve ser feita em conformidade com os objectivos prosseguidos pelas referidas isenções e respeitar as exigências do princípio da neutralidade fiscal inerente ao sistema comum do IVA. Assim, esta regra da interpretação estrita não significa que os termos utilizados para definir as isenções previstas no referido artigo 132º devam ser interpretados de maneira a privá‑las dos seus efeitos[19].

No mesmo sentido, o Advogado‑geral F. G. Jacobs, distinguindo as noções de interpretação “estrita” e de interpretação “restritiva”, referiu que “as isenções de IVA devem ser estritamente interpretadas, mas não devem ser minimizadas por via interpretativa. […] Como corolário, as limitações das isenções não devem ser interpretadas restritivamente, mas também não devem ser analisadas de forma a irem além dos seus termos. Quer as isenções, quer as suas limitações, devem ser interpretadas de tal forma que a isenção se aplique ao que se pretendia aplicar e não mais.”[20]

Posteriormente ao Acórdão Stichting[21], o TJUE afirmou repetidamente, de modo geral, que “os termos utilizados para designar as isenções visadas no artigo 13. da Sexta Directiva devem ser interpretados restritivamente dado que constituem derrogações ao princípio geral de acordo com o qual o imposto sobre o volume de negócios é cobrado sobre qualquer prestação de serviços efectuada a título oneroso por um sujeito passivo”. Por outro lado, esclareceu que não pode ser dado um alcance extensivo às isenções na falta de “elementos interpretativos” que permitam ir para além da letra das disposições que os prevêem[22].

Em síntese, poderá afirmar-se que o TJUE entende que na interpretação das normas de isenção se deve atender sobretudo ao elemento literal, mas que uma interpretação estrita não poderá nunca privar de efeito útil as regras da Directiva IVA.

No que se reporta à interpretação sistemática das isenções, o TJUE tem vindo a afirmar que os conceitos utilizados nas normas das isenções são conceitos independentes de direito comunitário que devem ser situados no contexto geral do sistema comum do IVA[23]. Nestes termos, tem vindo a salientar que o conteúdo das isenções não pode ser livremente alterado pelos Estados membros, dado que estão em causa conceitos autónomos de direito comunitário, excepcionando-se o caso de o Conselho o permitir[24]. Assim, é jurisprudência assente que as isenções previstas no artigo 13.° da Sexta Directiva constituem conceitos autónomos do Direito da União que têm por objectivo evitar divergências na aplicação do regime do IVA de um Estado membro para outro[25].

É habitual ainda, neste contexto, afirmar-se que as isenções em sede de IVA assumem uma natureza objectiva, ou seja, para efeitos da sua concessão releva essencialmente a natureza da actividade prosseguida e não a natureza jurídica da entidade que prossegue a actividade, embora, na realidade, tal não se verifique exactamente nestes termos quanto às isenções que nos interessam para efeitos da nossa análise.

 

2.4.2 O âmbito subjectivo da renúncia à isenção na área da saúde

 

Como vimos, o objectivo do regime de isenção aplicável aos cuidados de saúde consiste em assegurar que o benefício da assistência médica não se torna inacessível em razão do acréscimo de custos que resulta da tributação em IVA e, por conseguinte, em reduzir os custos médicos para os utentes e nessa medida promover os cuidados de saúde.

Assim sendo, a concessão da faculdade de renúncia à isenção é uma forma de restaurar o direito a deduzir o imposto que constitui a pedra angular de todo o sistema do IVA, eliminando imposto “oculto” (o IVA não deduzido), que penaliza os sujeitos passivos, mesmo que estes se situem no último estádio da cadeia de produção, em particular em fases de investimento significativo, caracterizadas por aquisições vultuosas, permitindo-lhes serem tributados pelo regime normal (na presente situação à taxa reduzida, constante da verba 2.7, da Lista I anexa ao Código do IVA) e assim recuperarem o IVA incorrido.

A alínea b) do n.º 1 do artigo 12.º do CIVA determina que:

"Podem renunciar à isenção, optando pela aplicação do imposto às suas operações:

a) ........

b) Os estabelecimentos hospitalares, clínicas, dispensários e similares, não pertencentes a pessoas colectivas de direito público ou a instituições privadas integradas no sistema nacional de saúde, que efectuem prestações de serviços médicos e sanitários e operações com elas estreitamente conexa."

Para renunciar à isenção, os estabelecimentos em causa não poderão pertencer a pessoas colectivas de direito público nem a instituições privadas integradas no sistema nacional de saúde.

Assim, não podem renunciar à isenção os hospitais públicos, pertencentes ao Estado ou a quaisquer pessoas colectivas públicas.

O que se entende por estabelecimentos não pertencentes a instituições privadas integradas no Sistema Nacional de Saúde é precisamente o que está em causa no presente processo.

No tocante aos estabelecimentos pertencentes a sociedades comerciais, com escopo lucrativo, entendia a AT até há pouco que não estariam integrados no sistema nacional de saúde, podendo, portanto, renunciar à isenção de IVA, aplicando o imposto às suas operações. E isto sem distinção entre os estabelecimentos de sociedades que celebraram acordos com o Ministério da Saúde ou com Administrações Regionais de Saúde ou outros subsistemas públicos de saúde e os que não tivessem celebrado semelhantes acordos.

A mudança de entendimento por parte da AT baseia-se no conceito de Sistema Nacional de Saúde, constante o texto legal, que determina o âmbito subjectivo do direito à isenção.

Segundo o entendimento da administração fiscal, para a correcta interpretação do artigo 12.º o conceito de sistema nacional de saúde deve ir buscar-se à Lei de Bases da Saúde (Lei n.º 48/90, de 24 de Agosto, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 27/2002, de 8 de Novembro). E, de acordo com tal entendimento, o conceito a adaptar na interpretação do artigo 12.º, seria o reflectido no n.º 1 da Base XII da citada Lei de Bases:

"O sistema de saúde é constituído pelo Serviço Nacional de Saúde e por todas as entidades públicas que desenvolvam actividades de promoção, prevenção e tratamento na área da saúde, bem como por todas as entidades privadas e por todos os profissionais livres que acordem com a primeira a prestação de todas ou de algumas daquelas actividades. "

Em conformidade com o aludido entendimento, as entidades privadas que acordem com o Estado a prestação de actividades de promoção, prevenção e tratamento na área da saúde ficam a pertencer ao Sistema Nacional de Saúde, o que, em termos de IVA, se traduz no facto de não poderem renunciar à isenção em causa.

Pretende ainda a Administração Tributária que este entendimento decorre da jurisprudência comunitária, especialmente dos Acórdãos proferidos nos Processos 141/00 e 45/01, em que se discutiu o que deve entender-se para os efeitos da isenção prevista na então Sexta Directiva, por "organismos devidamente reconhecido pelos Estados-membros".

Ora, não se nos afigura que a correcta definição do âmbito subjectivo da renúncia à isenção possa ser determinada por um alegado conceito de Sistema Nacional de Saúde constante da Lei de Bases da Saúde e que a jurisprudência comunitária tenha esse significado que a AT pretende agora vir atribuir.

Desde logo, a Lei de Bases da Saúde não define Sistema Nacional de Saúde. A Base XII, cuida do "sistema de saúde" e não do Sistema Nacional de Saúde.

O âmbito subjectivo da isenção em apreço não pode ser determinado por simples remissão para a Lei de Bases. Não existe um conceito legal de sistema nacional de saúde, ínsito na referida Lei de Bases. Ao disciplinar, no seu Capítulo II, as "entidades prestadoras dos cuidados de saúde em geral", a Lei define, pelo menos, três conjuntos: o sistema de saúde (n.º 1 da Base XXII), o Serviço Nacional de Saúde (n.º 2) e a "rede nacional de prestação de cuidados de saúde" (n.º 4).

O Serviço Nacional de Saúde tem uma definição unívoca, na Base XII, nº 2: é constituído pelos organismos do Estado que operam na área da saúde. As suas características estão elencadas na Base XXIV:

"O Serviço Nacional de Saúde caracteriza-se por:

a)     Ser universal quanto à população abrangida;

b)     Prestar integradamente cuidados globais ou garantir a sua prestação;

c)     Ser tendencialmente gratuito para os utentes, tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos;

d)     Garantir a equidade no acesso dos utentes, com o objectivo de atenuar os efeitos das desigualdades económicas, geográficas e quaisquer outras no acesso aos cuidados;

e)     Ter organização regionalizada e gestão descentralizada e participada."

É sabido que a Lei Geral Tributária, no seu artigo 11.º, n.º 2, determina que "sempre que, nas normas fiscais, se empreguem termos próprios de outros ramos de direito, devem os mesmos ser interpretados no mesmo sentido daquele que aí têm, salvo se outro decorrer directamente da lei." Todavia, são diversos os elementos que demonstram, neste caso, que a lei fiscal não empregou serviço nacional de saúde em sentido técnico, mesmo ignorando que a expressão "serviço nacional de saúde" não tem correspondência exacta na Lei de Bases da Saúde.

Desde logo, o CIVA é muito anterior à Lei de Bases da Saúde, e o artigo 12.º não sofreu qualquer modificação no que se reporta à utilização daquela expressão.

Como refere o Professor Xavier de Basto no seu Parecer em anexo [26],“O legislador do CIVA – posso afirmá-lo com segurança – não tomou como paradigma qualquer conceito do direito nacional ao delinear o conjunto de estabelecimentos hospitalares, clínicas, dispensários e similares a que queria atribuir o direito a renunciar à isenção do imposto. Não existia à época legislação que delimitasse o conceito de sistema nacional de saúde. No CIVA, usou-se pois a noção de sistema nacional de saúde com um sentido paralelo àquele em que, na regra de isenção de IVA para os serviços de educação, se usou a noção de Sistema Nacional de Educação (nº 9 do artigo 9º). Aí como aqui, o direito de referência não foi o direito nacional, mas antes o direito comunitário.

Se alguma referência a direito nacional pudesse ter havido, seria para a norma constitucional sobre o direito à saúde, que é o artigo 64º da Constituição da República Saúde. Aí se faz referência (na alínea a) do nº 2) a um “serviço nacional de saúde universal e geral e, tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito”, o que exclui claramente as entidades com fins lucrativos6.

Tratava-se, porém, acima de tudo, de legislar respeitando a directiva comunitária. No caso da saúde, a norma de referência, a verter para o direito fiscal nacional, era a disposição da então 6ª Directiva do IVA (hoje Directiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de Novembro de 2006) que delimita o alcance da isenção de IVA para os estabelecimentos não pertencentes a organismos de direito público e, reflexamente, como vimos, determina também o âmbito subjectivo da isenção.

 (…)

O legislador nacional usou a expressão “instituições privadas não integradas no sistema nacional de saúde” para abranger, como resulta do direito comunitário, entidades privadas, que trabalham na área dos serviços médicos e sanitários e outros com estes conexos em condições sociais diferentes das que são praticadas nos estabelecimentos públicos. Esta é a boa interpretação, a nosso ver, do artigo 12º do CIVA quanto ao alcance subjectivo do direito à renúncia.

E se queremos ainda melhor segurança de que é assim - e que a expressão "não integradas no sistema nacional de saúde" não tem de entender-se no sentido aproximado que resulta da Lei de Bases da Saúde - basta que atentemos que o próprio legislador do CIVA não foi unívoco na definição do que sejam as entidades privadas que podem renunciar à isenção. Na verdade, quando se tratou, na "verba" 2.7 da Lista I anexa ao CIVA, de estabelecer a taxa reduzida aplicável às prestações de serviços médicos e operações conexas efectuadas por estabelecimentos hospitalares, clínicas, dispensários e similares que, nos termos do artigo 12º do CIVA, podem renunciar à isenção, o legislador usou a expressão "Serviço Nacional de Saúde" (com letras maiúsculas), e não a alternativa sistema nacional de saúde (com letras minúsculas), que usara no artigo 12º, nº 1. E a norma constante daquela "verba" até foi introduzida posteriormente à publicação do CIVA, que inicialmente não previa taxa reduzida para aquelas prestações de serviço.

Assim sendo, concluímos que a lei fiscal não utilizou estas expressões em sentido técnico no sentido que elas têm no ramo de direito a que pertencem.

Não existindo um reconhecimento expresso e casuístico dos estabelecimentos que praticam as tais "condições sociais análogas" de que fala a directiva, a correcta delimitação deve atender ao escopo das pessoas jurídicas implicadas, e à forma como os serviços são prestados. O legislador nacional, tomando como paradigma a norma relevante da 6ª directiva, só excluiu da renúncia à isenção os hospitais, clínicas, dispensários e similares pertencentes a pessoas colectivas públicas e a instituições privadas que se integrem na chamada "economia social". Nestes termos, as normas do CIVA (n.º 1do artigo 12.º e verba 2.7 da Lista 1) não excluem do direito à renúncia sociedades comerciais que tenham celebrado com o Serviço Nacional de Saúde acordos de prestação de serviços médicos. Não é a existência desses acordos que integra, sem mais, essas entidades no sistema nacional de saúde, para efeitos do CIVA, transformando-as em operadores do sector social da economia.

Acresce que tal entendimento, ao contrário do invocado pela AT, não é posto em causa pela jurisprudência do TJUE sobre a matéria, antes pelo contrário.”

Não obstante não existirem decisões jurisprudenciais do TJUE que tratem especificamente sobre a questão de saber quando é que um estabelecimento hospitalar privado efectua prestações em condições sociais análogas às que vigoram para os “organismos de direito público”, o Tribunal tem-se pronunciado em diversas ocasiões sobre os requisitos que se devem verificar para que uma entidade privada possa ser considerada como “outro estabelecimento da mesma natureza [a estabelecimentos hospitalares, centros de assistência médica e de diagnóstico] devidamente reconhecido” praticando condições análogas às impostas às pessoas colectivas de direito público, para efeitos do artigo 132.º, n.º 1, alínea b), da Directiva IVA, e consequente aplicação do regime de isenção.

Neste contexto vejam-se os Acórdãos Dornier[27], o Acórdão L.u.p[28], e mais recentemente, o Acórdão Copy Gene[29]. Nos três casos, estava em causa o conceito de "organismo devidamente reconhecido" pelo Estado membro como praticando condições análogas às impostas pelos organismos similares de pessoas colectivas de direito público. Mesmo não havendo reconhecimento expresso, o Tribunal forneceu critérios para a determinar em que condições deve uma entidade privada ser considerada "outro estabelecimento da mesma natureza devidamente reconhecido", para efeitos do artigo 132.º n.º 1, alínea b), da Directiva IVA. No Caso Copy Gene o Tribunal, recordando o que já havia afirmado em processos anteriores, veio estabelecer os seguintes critérios para aquele efeito:

"A este respeito, para determinar os estabelecimentos que devem ser «reconhecidos» na acepção da referida disposição, cabe às autoridades nacionais, em conformidade com o direito da União e sob a fiscalização dos órgãos jurisdicionais nacionais, tomar em consideração vários elementos, entre os quais figuram o carácter de interesse geral das actividades do sujeito passivo em causa, o facto de outros sujeitos passivos que têm as mesmas actividades beneficiarem já de um reconhecimento semelhante, bem como o facto de os custos das prestações em questão serem eventualmente assumidos em grande parte por caixas de seguro de doença ou por outros organismos de segurança social (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, Kügler,  n.ºs  57 e 58; Dornier, n.º   72 e 73; e L.u.P., n.º 53). "[30]

Um dos critérios apontados é o de quem suporta os custos das prestações. O Tribunal admite que a contratação com caixas de seguro ou organismos de segurança social - supostamente organismos públicos - seja um indício a ter em conta para que prestador tenha a qualificação de organismo reconhecido como praticando condições análogas às dos organismos públicos - portanto isento de IVA para os efeitos da Directiva (e, consequentemente, impossibilitado de renunciar à isenção). Mas é claro que só o admite se os custos das prestações forem "assumidos em grande parte por caixas de seguro de doença ou por outros organismos de segurança social", pois só assim as condições sociais análogas poderão estar verificadas.

O Acórdão Ines Zimmermann vai ainda mais longe, ao confirmar que uma actividade que é em cerca de dois terços assumida por organismos de segurança social constitui “um elemento que pode ser tomado em consideração para determinar os organismos cujo «carácter social», na acepção do artigo 13.°, A, n.° 1, alínea g), da Sexta Directiva [actual 132.º, n.º 1, b) da Directiva IVA], deve ser reconhecido para efeitos desta disposição” [31].

 

Note-se que já antes este Tribunal igualmente se pronunciou no mesmo sentido numa situação idêntica no Processo 278/2013-T, que cumpre chamar à colação, e cujas principais conclusões passamos igualmente a reproduzir:

O legislador português optou pela formulação de um requisito negativo aplicável às “instituições privadas integradas no sistema nacional de saúde” (aquelas que não podem renunciar à isenção). O sentido desta expressão não pode deixar de corresponder ao de entidades que prestem serviços em condições sociais análogas às dos organismos públicos, pois esse é o conceito definidor da Directiva IVA subjacente à norma interna de transposição como acima explicitado.

(…)

Este paralelismo ou colagem à Lei de Bases da Saúde não se justifica por múltiplas razões.

Desde logo, a locução “sistema nacional de saúde” não consta de nenhum dos conceitos da Lei de Bases da Saúde.

Na verdade, não existe uma definição legal de “sistema nacional de saúde” na legislação portuguesa e do ponto de vista linguístico a expressão contém duas palavras comuns, quer ao “sistema de saúde”, quer ao “Serviço Nacional de Saúde”, sendo que este último conceito exclui os estabelecimentos privados.

Por outro lado, a Lei de Bases da Saúde, que introduz o conceito de sistema de saúde, é posterior à redacção do Código do IVA (surgiu em 1990 e o Código remonta a 1984), pelo que cronologicamente este não lhe poderia fazer referência e, no que toca ao uso da expressão empregue no artigo 12.º, n.º 1, alínea b) do citado Código, até hoje não sofreu qualquer modificação.

Já o conceito de Serviço Nacional de Saúde existia à data da publicação do Código do IVA, e estava em vigor desde 1979, através da Lei n.º 56/79, de 15 de Setembro, que criou o Serviço Nacional de Saúde, que, refira-se, apenas abrange os órgãos e serviços públicos na dependência do Ministério da Saúde, excluindo, portanto, os estabelecimentos privados.

Assim, atendendo aos elementos histórico e sistemático, o único conceito existente na lei portuguesa e para o qual o Código do IVA poderia remeter à data da sua publicação era o conceito de “Serviço Nacional de Saúde” (e não o conceito de sistema de saúde cujo recorte surge seis anos após a publicação do Código do IVA).

Acresce que a Lei do Orçamento do Estado para 1999 (Lei n.º 87-B/98, de 31 de Dezembro), que foi promulgada quando já estão legalmente definidos e assentes ambos os conceitos de “Serviço Nacional de Saúde” e “sistema de saúde”, faz uma referência explícita à renúncia à isenção prevista no artigo 12.º, n.º 1, alínea b) aqui em análise, indicando que, em relação a esta, estão em causa as instituições privadas integradas no Serviço Nacional de Saúde.

Esta indicação consta da nova redacção da verba 2.7 da Lista I anexa ao Código do IVA, que vem clarificar a aplicação da taxa reduzida de imposto às prestações de serviços médicos realizadas por sujeitos passivos que optaram pela renúncia à isenção, e estabelece uma conexão expressa entre a renúncia à isenção e o Serviço Nacional de Saúde (e não com o “sistema de saúde”) como se ilustra infra:

(…)

Afigura-se, porém, que em rigor o Código do IVA não pretende fazer qualquer remissão ou reenvio para um conceito jurídico de direito interno.

É certo que a questão decidenda versa sobre o exercício de um poder discricionário atribuído ao legislador nacional: o de isentar (ou não) determinadas operações (de cuidados de saúde) e o de conceder (ou não) a possibilidade de opção pela tributação relativamente às mesmas.

No entanto, essa margem de liberdade do legislador refere-se a um regime de isenção delimitado por conceitos autónomos de direito comunitário, de entre os quais se destaca o de “condições sociais análogas” às dos organismos públicos.

(…)

Porém, a partir do momento em que o legislador decidiu conceder-lhes (àquelas entidades) essa faculdade (de tributação), o âmbito subjectivo da renúncia não pode ser distinto daquele que está subtraído ao regime obrigatório de isenção, sob pena de violação do parâmetro da neutralidade. Existe uma liberdade de escolha de regime (isenção com ou sem eventual renúncia à isenção), mas não existe a liberdade de conformação do âmbito subjectivo dessa escolha.

Com isto queremos dizer que todas as entidades que não prestem os seus serviços em condições sociais análogas às dos organismos públicos, e que o legislador português optou por isentar, (pelo regime-regra da Directiva IVA seriam tributadas) devem poder beneficiar da faculdade de tributarem as suas operações, se o legislador em simultâneo decidir instituir a faculdade de renúncia à isenção (como sucedeu no caso português).

Segundo o TJUE “no quadro da isenção prevista no artigo 13.°, A, n.° 1, alínea g), da Sexta Directiva, tal como decorre dos n.ºs 43 e 52 do presente acórdão, não é em relação aos organismos de direito público que o princípio da neutralidade fiscal exige a igualdade de tratamento em matéria de reconhecimento do carácter social, mas em relação a todos os outros organismos [leia-se, que não sejam de direito público] entre si” – cf. Acórdão de 15 de Novembro de 2012, C-174/11, Ines Zimmermann, n. 53.

Importa, por conseguinte, determinar o sentido e alcance da expressão “condições sociais análogas” às aplicáveis no sector público, por forma a da mesma retirar “pela negativa” o campo de aplicação da renúncia à isenção do IVA contemplada no artigo 12.º, n.º 1, alínea b) do respectivo Código, que deverá abranger todas as entidades que aí se enquadrem.

(…)

Um dos critérios principais reside, pois, em saber quem suporta o custo das prestações. Para este efeito não basta que os custos das prestações sejam assumidos “em parte” por caixas de seguro de doença ou por outros organismos de segurança social. O TJUE exige que para ser um indício atendível (da equiparação ao sector público) os custos das prestações de serviços sejam assumidos em grande parte pelo sector público, só assim se dando as condições análogas por verificadas. Acompanhamos neste âmbito o parecer do Prof. Xavier de Basto. Os Acórdãos “provam justamente o contrário do que a administração pretende deles retirar.”

Em sentido contrário ao deste Acórdão se pronunciou o CAAD no Proc. n.º 629/2014-T,  no contexto do qual se conclui que teria que efectuar-se uma interpretação actualista das citadas disposições e não isolá-las e  fixá-las no tempo em que entraram em vigor, sob pena de se subverter a sua interpretação e aplicação. Neste contexto, após uma incursão à legislação que regulamenta o sector, conclui-se que, “… mesmo antes da Lei de Bases da Saúde (de 1990) acolher a locução “sistema de saúde”, consagrando-a legalmente, já o destinatário normal do artigo 12.º, n.º 1, alínea b), do CIVA, norma vigente desde 01/01/1986, mas aprovada por um Decreto-Lei de 26 de dezembro 1984, compreendia o seu alcance: as entidades privadas que convencionam com o Estado Português a prestação de serviços médicos e sanitários elencados no 2) do art. 9.º do CIVA passam a integrar o “sistema nacional de saúde”, o que obsta à opção por aquela renúncia.” Concluindo que “…atualmente, não pode deixar de concretizar-se o conceito de “sistema nacional de saúde”, constante do Código do IVA, face ao disposto na Lei de Bases a propósito do conceito de “sistema de saúde”.

Sobre esta problemática em particular, veja-se ainda a posição assumida por Rita de La Feria, concluindo que vários factores militam contra uma interpretação puramente literal da alínea b) do n.º1 do artigo 12.º do CIVA[32]. Como defende, devem apenas excluir-se do âmbito da renúncia à isenção as actividades isentas pelo legislador europeu nos termos do artigo 132.º, n.º 1, alínea b), da Directiva do IVA, - i.e. que não sejam prestadas por organismos de direito público ou organismos em condições sociais análogas às que vigoram nos organismos de direito público.

Com fundamento no aludido Acórdão L.u.p., a autora conclui que, no caso de a maioria das actividades dos estabelecimentos hospitalares serem subcontratadas pelo Estado, como tal limitando a sua independência económica e a medida em que exercem a prestação de serviços de assistência médica em condições de mercado, a prossecução dos fins lucrativos e em concorrência directa com outras instituições privadas, haverá certamente argumento para concluir que essas mesmas actividades são praticadas em condições sociais análogas às que vigoram para organismos de direito público.

Nestes termos, conclui que, “Assim sendo, o facto de uma parte minoritária das atividades de estabelecimenos hospitalares privados serem efectuadas nos termos de acordos estabelecidos com organismos de direito público não obsta à conclusão acima apresentada. Id est, quando consideradas na sua totalidade, as actividades dos mesmos não podem ser consideradas como sendo praticadas em “condições sociais análogas” às que vigoram para organismos de direito público, à luz da alínea b) do n.º 1 do artigo 132.º da Diretiva do IVA.[33]

Assim, conclui que, para efeitos da alínea b) do n.º 1 do artigo 12.º do Código do IVA, o termo “sistema nacional de saúde” não deverá incluir estabelecimentos hospitalares privados, que operam primordialmente em condições de mercado, visando a obtenção do lucro e em concorrência directa com outras empresas comerciais.

Como nota Pedro Nuno Monteiro em comentário ao Acórdão do CAAD proferido no referido Proc. n.º 278/2013- T[34], o Tribunal Arbitral entendeu neste caso que, dada a circunstância de a entidade em causa ter prestado serviços subcontratados, no âmbito de acordos celebrados com a C... e com a ARS, por um valor inferior a dois terços do montante total das respectivas prestações de serviços, deveria ser-lhe reconhecido o direito à renúncia à isenção do IVA.

Não obstante, o autor conclui que, “…não se nos afigura possível aderirmos a este fundamento/justificativo invocado pelo tribunal para o reconhecimento do direito à renúncia à isenção (i.e., montante de serviços protocolados inferior a dois terços do valor global das prestações de serviços realizadas) já que, para além de ser promotor de distorções de concorrência, revela-se, por si só, manifestamente, redutor/insuficiente. E isto, porque a aferição da legitimidade do direito à renúncia deve efetuar-se – a nosso ver - com recurso, não apenas a um único critério/requisito, mas, ao invés, tendo por base uma pluralidade de indícios que atestem, de forma inequívoca, que o ente privado em causa não exerce, de facto, a respetiva atividade hospitalar em condições sociais análogas às dos organismos públicos.

Existe um conjunto de condições (não cumulativas/não exclusivas) que, se não forem cumpridas pelos entes privados, possibilitam, aos EM, a não concessão, caso a caso, da isenção de imposto, prevista na alínea b) do n.º 1 do art.º 132.º da Diretiva IVA. São elas:[35]

  • As entidades hospitalares privadas não devem ter como objetivo a obtenção sistemática de lucro; devendo ser geridas, tendencialmente, a título gratuito; e praticar preços homologados;
  • A isenção não deve ser passível de provocar distorções de concorrência.

Contudo, cumpre realçar que:

  • Estes critérios devem ser unicamente atendidos enquanto elementos do “feixe de indícios”;
  • Os EM não se encontram legalmente constrangidos a adotar estes – e apenas estes - critérios no momento do reconhecimento do caráter social dos entes privados.

O autor acaba por concluir, por fim, que se lhe afigura difícil a adesão ao entendimento perfilhado pelo Tribunal Arbitral, quando este afasta a possibilidade de recurso ao conceito de entidade integrada no Sistema Nacional de Saúde, com base: (i) na circunstância de a aferição do âmbito subjectivo da faculdade de renúncia à isenção se dever conformar com os parâmetros da Directiva IVA, e não com base em pressupostos normativos reportados a um conceito de direito interno; (ii) na impossibilidade de se atender à LBS, por esta não fazer alusão expressa ao conceito de “sistema nacional de saúde”, mas apenas a “sistema de saúde” e a “Serviço Nacional de Saúde”; e (iii) na LBS ser um diploma normativo posterior à aprovação do CIVA (surgiu em 1990, e o CIVA remonta a 1984), pelo que, cronologicamente, este não lhe poderia fazer referência. E isto, porque, como invoca:

·         O conceito de entidades “integradas no sistema nacional de saúde” deve ser considerado em tudo idêntico ao conceito de “condições sociais análogas”;

·         A possibilidade de se recorrer a “itens” normativos internos, para a densificação/concretização do conceito de “condições sociais análogas” é, como vimos, perfilhada pelo TJUE (vide §31 do Caso Ines Zimmermann);

·         As autoridades tributárias devem recorrer, na progressiva/contínua densificação do conceito de “sistema nacional de saúde” (i.e. ”condições sociais análogas”) a um “feixe de indícios” que não têm de ser cronologicamente condicionados (i.e., os EM podem e devem recorrer a novos indícios de reconhecimento que, entretanto, venham a instituir-se, sob o ponto de vista normativo e/ou outro);

·         O conceito de “sistema de saúde”, e o restante conteúdo prescritivo da Base XII da LBS da Saúde, deve perspectivar-se, apenas, como um desses indícios de aferição conceptual.

Tal como sustentado por Miguel Agrellos e Paulo Pichel, impor-se (a título exemplificativo), a um hospital privado, cuja actividade corresponde, em 65%, a serviços prestados a utentes, no âmbito de acordos com organismos da segurança social, a não possibilidade de renúncia à isenção de imposto, e permitir-se, a um outro hospital concorrente, com uma percentagem de apenas 18% deste tipo de serviços, a renúncia à isenção, acabará, inevitavelmente, por criar “óbvios entorses na concorrência, sem qualquer justificação[36]. Tanto mais que, no âmbito dessas convenções, celebradas com o Estado ou com organismos da segurança social, os hospitais, em causa, não podem, sequer, limitar o atendimento aos utentes convencionados, a uma certa/concreta percentagem.

 

3.    Reenvio prejudicial

 

Antes de passarmos à análise do caso controvertido, interessa antes decidir quanto à necessidade de reenvio prejudicial ao TJUE alegada pela AT, concretamente sobre o conteúdo da expressão “condições socias análogas”.

A eventual necessidade de reenvio para o TJUE foi igualmente já antes analisada nos aludidos Acórdãos do CAAD que se pronunciaram sobre a matéria, tendo sido objecto de pronúncia negativa.

Analisadas as matérias em causa e considerando as questões a decidir, entendeu o Tribunal não ser necessário promover o reenvio prejudicial ao TJUE, nos termos e fundamentos a seguir enunciados.

Nos termos do previsto no artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), na parte que mais directamente interessa para o presente caso:

O Tribunal de Justiça da União Europeia é competente para decidir, a título prejudicial:

a)      Sobre a interpretação dos Tratados;

b)      Sobre a validade e a interpretação dos actos adoptados pelas instituições, órgãos ou organismos da União

Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada perante qualquer órgão jurisdicional de um dos Estados-Membros, esse órgão pode, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa, pedir ao referido Tribunal comunitário que sobre ela se pronuncie.

Como também resulta do ponto 12 das Recomendações do TJUE aos órgãos jurisdicionais nacionais, relativas à apresentação de processos prejudiciais (2012/C 338/01), o reenvio prejudicial para o referido Tribunal, não deverá ser efectuado quando:

i.                    já exista jurisprudência na matéria (e quando o quadro eventualmente novo não suscite nenhuma dúvida real quanto à possibilidade de aplicar essa jurisprudência ao caso concreto); ou

ii.                  quando o modo correcto de interpretar a regra jurídica em causa seja inequívoco.

Em conformidade com a mencionada Recomendação, prevê-se igualmente, no ponto 13, que “um órgão jurisdicional nacional pode, designadamente quando se considere suficientemente esclarecido pela jurisprudência do Tribunal, decidir ele próprio da interpretação correcta do direito da União e da sua aplicação à situação factual de que conhece” e, no ponto 18, que o “órgão jurisdicional nacional pode apresentar ao Tribunal um pedido de decisão prejudicial, a partir do momento em que considere que uma decisão sobre a interpretação ou a validade é necessária para proferir a sua decisão”.

O primeiro requisito para que possa haver reenvio respeita, assim, à natureza do objecto de decisão a título prejudicial: norma ou acto do Direito da UE, encontra-se preenchido neste caso.

Por outro lado, é ponto assente que, em caso de dúvida sobre a interpretação de normas jurídicas de Direito Europeu, o Tribunal Arbitral pode recorrer ao mecanismo de reenvio prejudicial.

Os tribunais nacionais são considerados como tribunais comuns da ordem jurídica da União Europeia, dado o número considerável de normas e de actos comunitários, constituídos por disposições directamente aplicáveis ou com efeito directo, cabendo aos tribunais nacionais dos Estados membros aplicá-las nos litígios que lhes sejam submetidos para apreciação. Cabe, pois, aos tribunais nacionais o dever de aplicar o Direito da UE, mesmo contra disposições de direito interno em sentido contrário.

Como vimos, para se recorrer ao processo de reenvio de uma ou mais questões a título prejudicial, para interpretação de uma ou mais normas jurídicas de Direito da UE, originário ou derivado, é necessário que subsistam dúvidas sobre a interpretação do texto em causa. Pelo contrário, se o texto é perfeitamente claro, não se trata já de interpretar, mas sim de o aplicar, o que é competência do Tribunal / juiz incumbido da competência de julgar o caso concreto aplicando a lei, a nacional e/ ou a comunitária, se for esse o caso (“teoria do acto claro”).

Ora, não subsistem dúvidas de interpretação sobre qualquer uma das normas em presença, pelo que se impõe a este Tribunal decidir em conformidade com a lei aplicável, nacional e comunitária, dando plena aplicação a ambas, bem assim como aos princípios enformadores em presença, tendo em linha de conta a jurisprudência do TJUE relevante no tratamento das matérias em questão.

 

 

IV. Enquadramento do caso controvertido

 

Do que vimos de expor retiram-se as conclusões que se passam a enunciar.

 

1.      Legalidade dos actos de liquidação

 

No tocante aos actos de liquidação em apreço são as seguintes as nossas principais conclusões:

 

a.    O âmbito subjectivo do direito a renunciar à isenção por parte dos estabelecimentos hospitalares, clínicas, dispensários e similares, determina-se por referência a critérios do Direito da União Europeia, não podendo ser correctamente definido por referência à Lei de Bases da Saúde;

b.    O termo "sistema nacional de saúde", constante do artigo 12.º, n.º 1, do CIVA, tem de interpretar-se de acordo com o critério imposto pelas normas aplicáveis da Directiva IVA;

c.    Os termos "serviço nacional de saúde", utilizado na verba 2.7 da Lista I anexa ao CIVA e no artigo 12.º do CIVA, também não deve ser interpretado no sentido técnico;

d.   De facto, a noção de Sistema Nacional de Saúde para os efeitos constantes do artigo 12.º do CIVA é uma noção de Direito Fiscal e deve interpretada de acordo com a Directiva IVA, abrangendo os hospitais, clínicas, dispensários e similares pertencentes a pessoas colectivas públicas e a instituições privadas que se integrem na chamada "economia social", como sejam as Instituições Privadas de Solidariedade Social (IPSS), as Misericórdias e outras entidades de escopo não lucrativo;

e.    Esta noção não abrange sociedades comerciais, mesmo que estas tenham celebrado acordos com o Estado para a prestação de alguns cuidados de saúde;

f.     Assim sendo, mesmo após a celebração desses acordos, as sociedades em causa continuam a poder exercer a renúncia à isenção, se antes o não tiverem feito, ou a manter-se no regime de tributação, se tiverem para o efeito exercido previamente o direito à renúncia;

g.    A Requerente configura-se como uma entidade de direito privado e tem finalidade lucrativa;

h.    Nestes termos, conclui-se que a Requerente não integra o Sistema Nacional de Saúde;

i.      Devem apenas excluir-se do âmbito da renúncia à isenção em apreço, as actividades que não sejam prestadas por organismos de direito público ou organismos em condições sociais análogas às que vigoram nos organismos de direito público;

j.       Em nosso entendimento, para efeitos de se determinar o que são estabelecimentos hospitalares que exercem a sua actividade em condições sociais análogas às de um organismo público, é necessário que sejam tomados em consideração “vários elementos”, sendo o facto de os custos das prestações serem parcialmente assumidos por organismos públicos apenas um dos elementos a ter em consideração para o efeito;

k.    O conceito de condições sociais análogas implica necessariamente o apelo às condições sociais, ou seja, ao facto de os fins prosseguidos serem eminentemente sociais (como é o caso dos organismos públicos), o que igualmente não é o caso da Requerente;

l.      Por outro lado, será de rejeitar que a actividade exercida pela Requerente consubstancie qualquer espécie de pressão concorrencial sobre estabelecimentos similares públicos, uma vez que, como se nota, os preços actualmente praticados são tabelados por Portaria, sendo o IVA devido pelos mesmos incluído por dentro do preço, pelo que não é por passar a isentar de IVA as operações que os utentes passam a optar pelos hospitais públicos em seu detrimento;

 

Termos em que se conclui pela procedência do pedido de declaração de ilegalidade das liquidações de IVA e dos juros compensatórios.

 

2.    Demais vícios

 

Relativamente aos restantes vícios alegados e pedidos subsidiários, o conhecimento dos mesmos encontra-se prejudicado pela declaração de ilegalidade das liquidações de IVA, assente em vício substantivo que impede a respectiva reedição ou renovação.

Nestes termos, face à interpretação material preconizada fica prejudicado o conhecimento e a apreciação dos demais vícios imputados aos actos de liquidação.

 

 

3.      Indemnização por garantia indevidamente prestada

 

A Requerente formula ainda, como vimos, pedido de indemnização por garantia indevidamente prestada, nos termos do artigo 53.º da LGT, e artigo 171.º do CPPT.

O processo arbitral é meio adequado para o reconhecimento do direito a indemnização por garantia indevidamente prestada, pois é aplicável subsidiariamente o artigo 171.º do CPPT, por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT.

O regime do direito a indemnização por garantia indevida consta do artigo 53.º da LGT, que estabelece o seguinte:

 

Artigo 53.º

Garantia em caso de prestação indevida

 

   1. O devedor que, para suspender a execução, ofereça garantia bancária ou equivalente será indemnizado total ou parcialmente pelos prejuízos resultantes da sua prestação, caso a tenha mantido por período superior a três anos em proporção do vencimento em recurso administrativo, impugnação ou oposição à execução que tenham como objecto a dívida garantida.

   2. O prazo referido no número anterior não se aplica quando se verifique, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços na liquidação do tributo.

3. A indemnização referida no número 1 tem como limite máximo o montante resultante da aplicação ao valor garantido da taxa de juros indemnizatórios prevista na presente lei e pode ser requerida no próprio processo de reclamação ou impugnação judicial, ou autonomamente.

4. A indemnização por prestação de garantia indevida será paga por abate à receita do tributo do ano em que o pagamento se efectuou.

 

A Requerente prestou garantia para suspender uma execução fiscal instaurada para cobrança das quantias liquidadas pelos actos que são objecto do presente processo, tendo constituído uma hipoteca para garantia da quantia de dois milhões quinhentos e noventa e seis mil e trezentos euros.

No caso em apreço, os erros que afectam as liquidações são imputáveis à Autoridade Tributária e Aduaneira, pois as correcções que efectuou foram da sua iniciativa e a Requerente não contribuiu para que esses erros fossem praticados.

Nestes termos, a Requerente têm direito a ser indemnizada pelos prejuízos derivados da garantia prestada para suspender a execução fiscal instaurada para cobrança da quantia liquidada. Contudo, não tendo sido alegados e provados os encargos que suportou para prestar a garantia, é inviável fixar aqui a indemnização a que aquela tem direito, o que só poderá ser efectuado em execução deste Acórdão.

 

 

V. Dispositivo

 

Nestes termos, acorda este colectivo de árbitros:

 

a)    Julgar improcedentes as excepções dilatórias de incompetência em razão da matéria, quer no tocante à questão da legalidade das demonstrações de acertos de contas, quer no que respeita ao alegado pedido de “reconhecimento do direito à renúncia à isenção do IVA”;

b)   Julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade das liquidações de IVA e de juros compensatórios objecto desta acção e, em consequência, anular, com fundamento na violação da alínea b) do n.º 1 do artigo 132.º da Directiva IVA e da alínea b) do n.º 1 do artigo 12.º do CIVA, as liquidações de IVA e de juros compensatórios indicadas no n.º1 I, no montante global peticionado de € 2.029.946,97 (dois milhões, vinte e nove mil e novecentos e quarenta e seis e noventa e sete cêntimos);

c) Condenar a Autoridade Tributária a pagar à Requerente indemnização por garantia indevida, com referência ao valor cuja anulação foi determinada no montante que se vier a liquidar em execução de sentença.

 

* * *

Fixa-se o valor do processo em € 2.029.946.97 (dois milhões, vinte e nove mil e novecentos e quarenta e seis e noventa e sete cêntimos), de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”), 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, e 306.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.

 

* * *

O montante das custas é fixado em € 26.622.00 (vinte e seis mil e seiscentos e vinte e dois euros) a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira, de acordo com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2, do RJAT e 4.º, n.º 4, do RCPAT.

 

Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 138.º, n.º 5, do Código de Processo Civil (CPC), aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do Regime de Arbitragem Tributária, com versos em branco e por nós revistos.

A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia antiga.

 

Notifique-se.

 

O Árbitro Presidente

 

 

 (José Baeta de Queiroz)

 

 

O Árbitro Vogal

 

 

(Clotilde Celorico Palma)

 

 

 

O Árbitro Vogal

(Marcolino Pisão Pedreiro)

 

 

 

Lisboa, 04 de Fevereiro de 2016



[1]Comentário ao Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, Guia da Arbitragem Tributária”, Coord. Nuno Villa-Lobos e Mónica Brito Vieira, Coimbra, Almedina, 2013, p., 116. No mesmo sentido veja-se Carla Trindade, Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, Almedina, 2016, p. 121.

[2] Directiva n.º 77/388/CEE, do Conselho, de 17 de Maio de 1977, publicada no JO n.º L 145, de 13.6.77.

[3] Para analisar a relação entre os dois tipos de isenção, vide o Acórdão de 7 de Dezembro de 2006, Caso Eurodental, Proc. C-240/05, Colect., p. I-04019, n.ºs 23 e ss., e conclusões do Advogado Geral D. Ruiz‑Jarabo Colomer nesse mesmo processo, n.ºs 24 e ss.

[4] Cfr. José Guilherme Xavier de Basto, A tributação do consumo e a sua coordenação a nível internacional, Lições sobre a harmonização fiscal na Comunidade Económica Europeia, CCTF n.º 164, Lisboa 1991, pp. 60 e 61.

[5] Artigos 132.° a 137.° da Directiva IVA. É o caso, entre nós, de todas as isenções do artigo 9.º e da isenção do artigo 53.º do Código do IVA.

[6] Veja-se, neste sentido, a Proposta da Comissão de 20 de Junho de 1973 para a Sexta Directiva, Proposition de la sixième directive du Conseil en matière d’harmonisation des législations des États membres relatives aux taxes sur le chiffre d’affaires - Système commun de taxe sur la valeur ajoutée: Assiette uniforme, présentée par la Commission au Conseil, (COM (73) 950 final de 20.6.1973, publicada no JO n.° C 80 de 5.10.1973, p. 1).

[7] Cfr. ainda José Guilherme Xavier de Basto, A tributação do consumo e a sua coordenação a nível internacional, Lições sobre a harmonização fiscal na Comunidade Económica Europeia, op. cit., especialmente pp. 52-64.

[8] A este propósito veja-se Xavier de Basto e Clotilde Celorico Palma, “A renúncia à isenção de IVA por parte de laboratórios de análises clínicas e estabelecimentos afins – a propósito de alguns Acórdãos do Tribunal de Justiça da União Europeia”, Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, n.º1, VIII, Novembro 2015.

Como salienta o Advogado-Geral Saggio, nas suas Conclusões apresentadas em 27 de Janeiro de 2000 no Caso Landesgericht St. Pölten, a isenção agora em causa faz parte das que se destinam a tornar menos onerosas certas actividades de interesse geral (Proc. C-384/98, Colect., p. 06795) e notam Stefano Chirichigno e Vittoria Segre,“Hospital and Medical Care by Commercial Hospitals under EU VAT”, in International VAT Monitor, Volume 25 – Number 2, 2014, pp. 78-81.

[9] Acórdãos de 6 de Novembro de 2003, Caso Dornier, Proc. C‑45/01, Colect., p. I‑12911, n.º 43, de 11 de Janeiro de 2001, Caso Comissão/França, Proc. C‑76/99, já cit., n.º 23, e de 10 de Setembro de 2002, Caso Kügler, Proc. C‑141/00, Colect., p. I-6833, n.º 29.

[10] De acordo com o disposto no artigo 373.º, os Estados-membros que, em 1 de Janeiro de 1978, aplicavam disposições derrogatórias do artigo 28.º e da alínea c) do primeiro parágrafo do artigo 79.º podem continuar a aplicá-las.

[11] Cfr. Acórdão de 16 de Janeiro de 2003, Caso Rudolf Maierhofer, Proc. C-315/00, n.º 27, Colect. p. I-00563 e Acórdãos de 14 de Outubro de 1999, Caso Adidas, Proc. C-223/98, n.º 23, Colect. p. I-07081 e de 14 de Junho de 2001, Caso Kvaerner, Proc. C-191/99, n.º 30, Colect. p. I-04447.

[12] A este propósito, veja-se, designadamente, os Acórdãos de 12 de Dezembro de 1995, Caso Oude Luttikhuis e o Verenigde Coöperatieve Melkindustrie Coberco BA, Proc. C-399/93, Colect., p I-4515, de 12 de Fevereiro de 1998, Caso Comissão/Espanha, Proc. C-92/96, Colect., p. I-505, e de 7 de Setembro de 1999, Caso Gregg, Proc. C-216/97, já cit.

[13] Acórdão de 15 de Junho de 1989, Caso Stichting Uirtvoering Financiële Acties, Proc. 348/87, Colect., p. 1737, n.º 10. Vide, também, o Acórdão de 26 de Junho de 1990, Caso Velker International 011 Company, Proc. C-185/89, Colect., p. I-2561, n.º 18.

[14] Acórdãos de 20 de Outubro de 2003, Caso D’Ambrumenil, Proc. C-307/01, Colect., p. I-13989, n.º 52, Caso Kingscrest e Montecello, Proc. C‑498/03, já cit., n.º 29, de 14 de Junho de 2007, Caso Haderer, Proc. C‑445/05, Colect., p. I‑4841, n.º 18, de 16 de Outubro de 2008, Caso Canterbury Hockey Club e o., Proc. C‑253/07, Colect., n.º 17, e de 15 de Junho de 1989, Caso Stichting Uitvoering Financiële Acties, Proc. 348/87, já cit., n.º 13. Vide, ainda, os Acórdãos de 11 de Agosto de 1995, Caso Bulthuis-Grzffloen, Proc. C-453/93, Colect., p. I-2341, n.º 19, de 12 de Novembro de 1998, Caso Institute of the Motor Company, Proc. C-149/97, Colect., p. I-7053, n.º 17, de 25 de Fevereiro de 1999, Caso CPP, Proc. C- 349/96, Colect., p. I-00973, n.º 22, de 7 de Setembro de 1999, Caso Gregg, Proc. C-216/97, Colect., p. I-4947, n.º 12, de 12 de Setembro de 2000, Caso Comissão/Irlanda, Proc. C-358/97, Colect., p. I-06301, n.º 52, e de 26 de Junho de 1990, Caso Velker International 011 Company, Proc. C-185/89, Colect., p. I-2561, n.ºs 19 e 20. Veja-se, ainda, o Acórdão de 18 de Janeiro de 2001, Caso Stockholm Lindöpark, Proc. C‑150/99, Colect., p. I‑493, n.º 25.

[15] Cfr. Acórdão de 21 de Fevereiro de 1989, Caso Comissão/Itália, Proc. 203/87, Colect., p. 371, n.º 9.

[16] Cfr. Acórdão de 26 de Março de 1987, Caso Comissão/Países Baixos, Proc. C-235/85, Rec., p. 1471, n.º 19, no qual o TJUE afirma que a Sexta Directiva se caracteriza pela generalidade do seu âmbito de aplicação e pelo facto de todas as isenções deverem ser expressas e precisas.

[17] Cfr. Acórdãos de l1 de Julho de 1985, Caso Comissão/Alemanha, Proc. 107/84, Rec., p. 2663, n.º 20, e de 15 de Junho de 1989, Caso Stichting Uitvoering Financiële Acties, Proc. 348/87, já cit., n.º 14.

[18] Acórdão de 15 de Junho de 1989, Caso Stichting Uitvoering Financiële Acties, Proc. 348/87, já cit., n.º 14.

[19] Veja-se, designadamente, Acórdãos de 14 de Junho de 2007, Caso Haderer, Proc. C-445/05, Colect., p. I-4841, n.º 18 e jurisprudência referida, Caso Canterbury Hockey Club e o., Proc. C-253/07, JO C 183, de 4.8.2007, n.º 17, e de 19 de Novembro de 2009, Caso Don Bosco Onroerend Goed, Proc. C‑461/08, Colect., p. I-11079, n.º 25 e jurisprudência referida.

[20] Conclusões apresentadas em 13 de Dezembro de 2001, Caso Zoological Society of London, Proc. C‑267/00, Colect., p. I‑3353, n.º 19.

[21] Acórdão de 15 de Junho de 1989, Proc. C-348/87, Colect., p. 1737, n.º 13. Veja-se igualmente o Acórdão de 5 de Junho de 1997, Caso SDC, Proc. C-2/95, Colect., p. I-3017, n.ºs 20 e 21.

[22] Acórdão de 11 de Julho de 1985, Caso Comissão/Alemanha, Proc. 107/84, já cit., n.º 20.

[23] Vide, nomeadamente, o Acórdão de 10 de Setembro de 2002, Caso Kügler, Proc. C-141/00, Colect. p. I-6833, e o Acórdão de 14 de Setembro de 2000, Caso ECR, Proc. C-384/98, Colect., p. I-6795.

[24] Veja-se, designadamente, o Acórdão de 15 de Julho de 1989, Caso Stichting Uitvoering Financiële Acties, Proc. 348/87, já cit.

[25] Veja-se, designadamente, Acórdãos de 25 de Fevereiro de 1999, Caso CPP, Proc. C‑349/96, Colect., p. I‑973, n.º 15, e de 28 de Janeiro de 2010, Caso Eulitz, Proc. C‑473/08, Colect., p. I-00907, n.º 25. O mesmo é válido para as isenções previstas no artigo 132.° da Directiva IVA.

[26] Como é sabido, o Professor Xavier de Basto integrou a Comissão do IVA que introduziu este imposto no nosso país e fez a respectiva legislação, pelo que estamos perante uma interpretação autêntica.

[27] Processo C-45/01, 6 de Novembro de 2003, Colect., p. I-12911.

[28] Processo C-106/05, de 8 de Junho de 2006, Colect., p. I-5123.

[29] Processo C- 262/08, de 10 de Junho de 2008, Colect., p. I-5053.

[30] Processo C- 262/08, de 10 de Junho de 2008, já cit., n. 65.

[31] Acórdão de 15 de Novembro de 2012, Proc. C-174/11, publicado na Colectânea Geral, n.35.

[32] “Renúncia à Isenção de IVA por Estabelecimentos Hospitalares”, Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, n.º1, VIII, Novembro 2015.

[33] Idem.

[34]“Renúncia à isenção do IVA nas actividades hospitalares”, Comentário ao Acórdão do Centro de Arbitragem Administrativa, de 3 de Junho de 2014, referente ao Processo Arbitral n.º 278/2013-T (Árbitros: Jorge Lino Ribeiro Alves de Sousa; Alexandra Coelho Martins e Luís Menezes Leitão), Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, n.º1, VIII, Novembro 2015.

[35] Vide alíneas a) a d) do artigo 133.º da Directiva IVA.

[36] Miguel Agrellos e Paulo Pichel, “O conceito de condições sociais análogas às asseguradas por organismos de direito público no âmbito das isenções de IVA na saúde - anotação à decisão arbitral emitida no processo n.º 278/2013-T, de 3 de Junho de 2014”, CAAD NEWSLETTER, n.º 1, 2015.