Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 34/2014-T
Data da decisão: 2014-06-21  IUC  
Valor do pedido: € 2.000,00
Tema: Incidência subjetiva
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Decisão Arbitral

 

A presente decisão vai proferida de acordo com a ortografia antiga.

 

I – Relatório.

 

1. A..., contribuinte n.º …, residente em …, B..., requereu a constituição do tribunal arbitral em matéria tributária com vista à anulação dos actos de liquidação de Imposto Único de Circulação (IUC) e respectivos juros compensatórios relativos aos anos de 2008, 2009, 2010 e 2011 e ao veículo com a matrícula XXX, na importância total de € 134,29.

 

2. Como fundamento do pedido, alega a Requerente, em síntese:

 

a) Não se qualificar como sujeito passivo da obrigação tributária por não ser proprietária do veículo automóvel acima identificado nos anos a que respeita o tributo a que se reportam aquelas liquidações porquanto, em 1998, foi o mesmo por ela doado à Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de B... para exercícios de desencarceramento e posterior desmantelamento;

 

      e, mesmo que assim se não entenda,

 

b) O veículo em causa, que já não circula desde o referido ano de 1998, não tem sido submetido à inspecção periódica obrigatória a que se refere o art. 116.º do Código da Estrada, pelo que, ao abrigo do disposto nos art. 119.º do mesmo Código e 5.º do Decreto-Lei n.º 78/2008, de 6 de Maio, deve a respectiva matrícula ser oficiosamente cancelada pelos serviços administrativos.

 

Às referidas liquidações a Requerente imputa ainda outros vícios, designadamente, a errónea qualificação e quantificação do facto tributário, a ausência da fundamentação legalmente exigida, bem como a preterição de outras formalidades legais que, no seu entender, impedem a sua subsistência na ordem jurídica.

 

3. A Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), entidade Requerida, respondeu suscitando questões prévias, quer relativamente ao valor da causa indicado pela Requerente, quer à sua própria ilegitimidade passiva.

 

4. Porém, e sem conceder, a Requerida pronuncia-se sobre a incidência subjectiva do tributo em causa, concluindo pela improcedência do requerido e, consequentemente, pela manutenção dos questionados actos de liquidação.

 

5. O tribunal arbitral foi regularmente constituído em 27-03-2014 e é materialmente competente à face do preceituado no art. 2.º, n.º 1, al. a), do RJAT.

 

6. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT, e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22/03).

 

7. As partes prescindiram da reunião do tribunal arbitral prevista no art. 18.º do RJAT.

 

8. O processo não enferma de nulidades.

 

II - Matéria de facto.

 

9. Com relevância para a apreciação das questões suscitadas destacam-se os seguintes elementos factuais:

 

9.1. A Requerente foi regularmente notificada de liquidações oficiosas de Imposto Único de Circulação (IUC) relativas ao veículo automóvel com a matrícula XXX e aos anos de 2008, 2009, 2010 e 2011, conforme documentos de cobrança e valores constantes do seguinte quadro:

 

Ano

Doc.cobrança

Imposto

Juros

Total

2008

€ 28,00

€ 5,33

€  33,33

2009

€ 29,00

€ 5,44

€  34,44

2010

€ 29,00

€ 4,28

€  33,28

2011

€ 30,00

€ 3,24

€  33,24

 

 

 

 

€ 134,29

 

9.2 Não se conformando com as liquidações acima identificadas, a Requerente apresentou reclamação graciosa relativamente à respeitante ao ano de 2008, de cujo indeferimento interpôs recurso hierárquico, também este objecto de indeferimento por despacho de 14-11-2013 da Subdirectora Geral da área do Património, no uso de competência subdelegada.

 

9.3. Relativamente às liquidações respeitantes aos anos de 2009, 2010 e 2011, foi igualmente apresentada reclamação graciosa, indeferida por despacho de 31-12-2013 do Chefe de Finanças Adjunto do Serviço de Finanças de B..., no uso de competência delegada.

 

9.4. Como fundamento das aludidas reclamações e recurso hierárquico, a Requerente alegou, em resumo, não ser proprietária do veículo nos períodos de tributação a que respeitam as liquidações, em virtude de o mesmo ter sido por si doado em 1998 à Associação de Bombeiros Voluntários de B.... Alegou ainda que não tendo o veículo em causa sido submetido a inspecção periódica obrigatória desde, pelo menos, aquele referido ano, deveria a respectiva matrícula ter sido oficiosamente cancelada ao abrigo das disposições dos arts. 119.º do Código da Estrada e 5.º do Decreto-Lei n.º 78/2008, de 06/05.

 

9.5. As decisões de indeferimento das reclamações e do recurso hierárquico supra referidas fundamentam-se, em síntese, na consideração de que o sujeito passivo deste tributo é aferido em função do registo do veículo, cuja competência se encontra repartida entre o IMTT e o IRN, pelo que "encontrando-se a propriedade do veículo em causa registada, à data do facto tributário, em nome da ora recorrente, era sobre esta que incidia o IUC."

 

9.6. Com base no referido fundamento a Requerida (AT) manteve as questionadas liquidações, que constituem o objecto mediato do presente pedido de pronúncia arbitral.

 

9.7. Em suporte do seu pedido de pronúncia arbitral, a Requerente reproduz, no essencial, os mesmos factos e argumentação já desenvolvida naquelas reclamações e recurso hierárquico, ou seja:

 

a) Que não era proprietária do veículo em causa nos períodos a que a respeitam as liquidações por ter o mesmo sido doado, em 1998, aos Bombeiros Voluntários de B..., não sendo, assim, qualificada como sujeito passivo da obrigação de imposto; e, caso assim se não entenda,

 

b) Deve ser oficiosamente cancelada a matrícula do veículo acima identificado, a partir do ano de 1998, ao abrigo do disposto nos arts. 119.º do Código da Estrada e 5.º do Decreto-Lei n.º 78/2008, de 06/05, porquanto o mesmo já não circula desde aquela data nem foi, desde então, submetido à inspecção periódica obrigatória.

 

9.8. Devidamente notificada para o efeito, a Requerida apresentou a sua resposta, suscitando, desde logo, questões prévias relativas ao valor da causa e à incompetência material do tribunal arbitral, sustentando, em resumo:

a) O valor da causa indicado pela Requerente como valor económico do processo - € 2.000 - deve ser reduzido ao montante das liquidações impugnadas - € 134,29 - por ser este o valor impugnado;

 

b) A Requerente fundamenta o seu pedido de pronúncia arbitral de condenação da AT na anulação das liquidações de IUC relativas aos anos de 2008 a 2011, no facto de a viatura a que as mesmas respeitam se encontrar abrangida pelo regime transitório e excepcional previsto no Decreto-Lei n.º 78/2008, de 06/05, circunstância que, implicando o cancelamento oficioso da respectiva matrícula, teria como consequência a inexigibilidade do tributo em causa. Trata-se, porém, de matéria que, sendo da competência do Instituto da Mobilidade e Transportes - IMTT,IP., implica a ilegitimidade da AT para estar em juízo. Não estando aquela entidade vinculada à jurisdição da Arbitragem Tributária, tal circunstância acarreta necessariamente a incompetência material do tribunal arbitral para, sobre a matéria questionada, proferir decisão de mérito.

 

9.9. Porém, e sem conceder, a Requerida pronuncia-se sobre a substância do pedido alegando, em síntese, que as liquidações do IUC se operam em face dos elementos constantes das bases de dados do Instituto da Mobilidade e dos Transportes Terrestres (IMTT) e do Instituto de Registo e Notariado (IRN), determinando-se o sujeito passivo em função das pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados junto desta última entidade.

 

III - Questões prévias.

 

Sintetizados os elementos factuais relevantes e a posição das Partes, importa, antes de mais, analisar e decidir as questões prévias suscitadas pela Requerida que, como atrás se referiu, se prendem com o valor da causa e com a incompetência material deste tribunal arbitral.

 

Da incompetência do tribunal arbitral.

 

10. Das disposições conjugadas dos arts. 16.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) e 96.º do Código de Processo Civil (CPC), subsidiariamente aplicáveis por remissão do art. 29.º, n.º 1, do RJAT, decorre que a determinação da competência material dos tribunais é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria.

 

11. Considerando o quadro legal assim definido, importa, desde logo, proceder à análise da questão suscitada pela Requerida relativa à ilegitimidade passiva, com a consequente incompetência material do tribunal arbitral, e determinar se a sua procedência, a verificar-se, obsta ao conhecimento das demais questões em conflito.

 

12. Relativamente a esta questão, a Requerida invoca a sua ilegitimidade passiva no que concerne ao pedido de pronúncia arbitral na medida em que este se fundamenta "no facto da viatura em causa se encontrar abrangida pelo regime transitório e excepcional previsto no Decreto-Lei n.º 78/2008, de 06/05, não havendo obrigatoriedade por parte da Requerente em cancelar a viatura, bastando não a levar à inspecção periódica, pelo que deveria ter sido cancelada pelos serviços administrativos oficiosamente."

 

13. Com efeito, o referido diploma prevê no seu art. 5.º, n.º 3, o cancelamento oficioso de matrículas de veículos matriculados entre 01-01-1980 e 31-12-2000 que não tenham sido submetidos à inspecção obrigatória após 01-01-2003.

 

14. A competência para promover o cancelamento oficiosa de matrículas, ao abrigo do citado diploma legal, é atribuída ao IMTT, I.P., pelo que, sendo a Administração Tributária estranha a esse procedimento não poderá ser-lhe imputável a sua eventual omissão, a qual será sempre atribuível ao proprietário ou ao IMTT.

 

15. Daí extrai a Requerida "que o interesse em agir determina a legitimidade passiva necessária do IMTT para intervir na presente demanda, decorrendo, assim, necessariamente, a ilegitimidade passiva da Autoridade Tributária e Aduaneira."

 

16. Segundo a Requerida "Acresce que a apreciação de mérito da pretensão da Requerente no presente litígio acarretará necessariamente, dado que a decisão arbitral está limitada ao objecto do pedido formulado pelas partes em juízo, não podendo condenar em objecto diverso do pedido (cf. artigo 609.º, n.º 1, do CPA), a pronúncia sobre actos praticados pelo IMTT, pelo que seria essencial a intervenção principal provocada daquela entidade no presente processo arbitral, à luz dos artigos 316.º e ss. do CPC, o que se afiguraria suscitar, a título de incidente processual."

 

Porém, não só o IMTT não se encontra representado pelo aqui Respondente, sendo que este é o dirigente máximo da Autoridade Tributária e Aduaneira, como nem o Regime Jurídico da Arbitragem em matéria tributária, nem a Portaria de vinculação (Portaria n.º 112-A/2011, de 22/03, que deu execução ao artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20/01) conferem ao dirigente máximo da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) o papel de representante de outra entidade que não a AT."

 

17. Concluindo, considera a Requerida verificar-se a existência de:

 

- ilegitimidade passiva da Autoridade Tributária e Aduaneira, representada pelo seu dirigente máximo, para estar em juízo;

 

- interesse em agir (contradizer) do IMTT, porquanto tem um interesse pessoal e directo no resultado deste litígio;

 

- impossibilidade de sanação da invocada ilegitimidade passiva através de um incidente de intervenção principal provocada, face à não vinculação do IMTT à jurisdição do CAAD.

 

18. Pelo que conclui a Requerida " deve considerar-se procedente à excepção invocada e absolver-se a entidade pública demandada da instância, ao abrigo dos artigos 89.º, n.º 1, alínea d) do CPTA e do artigo 576.º, n.º 2 do CPC."

 

19. A decisão sobre a excepção suscitada pela Requerida que, a verificar-se, acarretaria a incompetência material do tribunal, implica necessariamente a análise e avaliação do pedido e da causa de pedir, tal como formulados pela Requerente.

20. Da simples leitura do pedido de pronúncia arbitral dirigido contra a Administração Tributária e Aduaneira extrai-se que a Requerente pugna pela anulação de liquidações tributárias relativas ao Imposto Único de Circulação (IUC) dos anos de 2008 a 2011 e ao veículo automóvel com a matrícula XXX.

 

21. A Requerente fundamenta o pedido alegando não ser proprietária do veículo em causa nos anos a que respeita o referido tributo, porquanto foi o mesmo por ela doado à Associação de Bombeiros Voluntários de B... em 1998.

 

22. Daí que não lhe deva ser imputável a qualidade de sujeito passivo da relação tributária em causa, sendo essa qualidade, quanto às situações tributárias constituídas a partir daquele ano, imputável à referida instituição.

 

23. Porém, na sua argumentação, alega ainda a Requerente que, "mesmo que assim se não entenda", deveria ter sido oficiosamente cancelada a matrícula daquele veículo - não submetido à inspecção periódica obrigatória pelo menos desde aquela data - ao abrigo das disposições pertinentes do Decreto-Lei n.º 78/2008, de 06/05.

 

24. De acordo com o disposto no art. 554.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, podem formular-se pedidos subsidiários, considerando-se como tal os que são apresentados ao tribunal para serem tomados em consideração somente no caso de não proceder um pedido anterior.

 

25. No pedido de pronúncia formulado pela Requerente evidenciam-se, com toda a clareza, um pedido principal ou primário e um pedido subsidiário que, nos termos legais, apenas deverá ser conhecido pelo tribunal em caso de improcedência daquele.

 

26. É, pois, em relação a este pedido subsidiário que a AT suscita a questão da ilegitimidade passiva e consequente incompetência material do tribunal.

 

27. Considerando as disposições legais invocadas pela Requerida, nomeadamente as disposições dos arts. 2.º e 4.º, do RJAT, e Portaria n.º 112-A/2011, de 22/03, este tribunal arbitral julga procedente a excepção por ela suscitada.

 

28. Porém, não com a consequência pedida pela Requerida, mas tão-somente não conhecendo do pedido subsidiário formulado pela Requerente, independentemente da decisão de mérito que venha a proferir quanto ao pedido principal.

 

Do valor da causa.

 

29. A Requerida suscita ainda outra questão prévia relativa ao valor económico de € 2 000 atribuído ao processo pela Requerente, no entendimento de que deve este ser reduzido ao montante das liquidações impugnadas de € 134,29.

 

30. Considerando o disposto no art. 97.º-A do CPPT, aplicável ao processo arbitral por força do disposto no art. 29.º, n.º 1, al. a), do RJAT, o tribunal fixa o valor do processo em € 134,29, como, de resto, não deixaria de o fazer nos termos e para os efeitos previstos no art. 12.º, n.º 2, do aludido diploma legal.

 

IV - Cumulação de pedidos.

 

31. Considerando a existência de uma relação directa entre as liquidações tributárias cuja ilegalidade questiona, a Requerente optou por pedir a apreciação conjunta dos actos tributários em causa.

 

32. Considerada a identidade dos factos tributários, do tribunal competente para a decisão e dos fundamentos de facto e de direito invocados, nada obsta, face ao disposto nos arts. 104.º do CPPT e 3-º do RJAT, à pretendida cumulação de pedidos.

 

 

 

 

V - Matéria de direito.

 

33. No pedido de pronúncia arbitral a Requerente, para além de outros vícios que imputa às liquidações de IUC, invoca a circunstância de à data a que se reportam os factos tributários que as originaram não ser a proprietária do veículo e, consequentemente, não assumir a qualidade do sujeito passivo do imposto que lhe foi liquidado.

 

34. Os restantes vícios invocados no tocante às questionadas liquidações - errónea qualificação e quantificação dos factos tributários, caducidade do direito à liquidação, violação do dever de fundamentação e preterição de outras formalidades legais não especificadas - encontram-se prejudicados face à questão da incidência subjectiva do referido tributo, que se considera de primordial relevância já que da resposta que à mesma for dada derivará a utilidade, ou não, de se apreciar os restantes vícios invocados.

 

35. Sobre a definição da incidência subjectiva do IUC, evidenciam-se, desde logo, posições diametralmente opostas entre a Requerida e a Requerente: para aquela (AT), o sujeito passivo deste imposto é a pessoa em nome da qual o veículo se encontre registado; enquanto que para esta (s.p.), a norma de incidência estabelece uma presunção, derivada do registo, ilidível por força do disposto no art. 73.º da LGT.

 

36. Assim, sobre a qualidade de sujeito passivo da obrigação de imposto que lhe é imputada, alega a Requerente que à data da ocorrência dos factos tributários não era proprietária do veículo a que se reportam as questionadas liquidações, pois que já anteriormente - em 1998 - o tinha doado à Associação dos Bombeiros Voluntários de B... para exercícios de desencarceramento e posterior desmantelamento.

 

37. Todavia, o identificado veículo manteve a respectiva matrícula - que só viria a ser cancelada em 11-02-2011 - e não tendo oportunamente sido efectuado o respectivo registo a favor da entidade donatária, nele continuou a constar como proprietária a Requerente.

38. Segundo entendimento da AT, proferido em sede de reclamações graciosas e do recurso hierárquico interpostos pela Requerente, basta que se verifique a inscrição no registo do veículo em nome de uma determinada pessoa para que esta se qualifique como sujeito passivo da obrigação tributária do IUC.

 

39. Com efeito, decorre do art. 3.º, n.º 1, do CIUC, que são sujeitos passivos os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas em nome das quais aqueles se encontrem registados.

 

40. Com relevância para a decisão a proferir no presente processo, a questão a analisar centra-se, primeiramente, na interpretação da norma do n.º 1 daquele art. 3.º do CIUC, no sentido de determinar-se a norma de incidência subjectiva nela inscrita admite, ou não, que a pessoa em nome da qual o veículo se encontre registado na Conservatória do Registo Automóvel possa demonstrar, através dos meios de prova admitidos em direito, que não obstante tal facto, não é proprietário do veículo no período a que o tributo respeita e afastar assim a obrigação de imposto que sobre ela impende.

 

41. Em suma, trata-se de saber se tal norma consagra uma presunção legal de incidência tributária, susceptível de elisão, nos termos gerais, como pretende a Requerente ou se, diversamente, como entende a AT "o legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que se consideram como tais (como proprietários ou nas situações previstas no n.º 2 as pessoas aí enunciadas) as pessoas em nome das quais os mesmos (os veículos) se encontrem registados, porquanto é esta a interpretação que preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal."

 

Sendo esta a questão central a decidir no presente pedido de pronúncia arbitral, importa analisar mais detalhadamente as posições em confronto.

 

 

 

 

Posição da Requerente.

 

42. Sobre esta matéria e como fundamento do pedido de pronúncia arbitral alega a Requerente, em síntese, que:

 

a) Às datas a que se reportam os factos tributários do IUC que originaram as questionadas liquidações não era proprietária do veículo e, consequentemente, não assume a qualidade de sujeito passivo do imposto que lhe foi liquidado;

 

b) O art. 73.º da LGT prevê que as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário;

 

c) Não basta que se verifique a inscrição no registo do veículo em nome de uma determinada pessoa para que esta se qualifique como sujeito passivo da obrigação tributária;

 

d) A norma do n.º 1 do art. 3.º do CIUC admite que a pessoa em nome da qual o veículo se encontre registado na Conservatória do Registo Automóvel possa demonstrar através dos meios de prova admitidos em direito que não é proprietária do veículo no período a que o imposto respeita e afaste assim a obrigação de imposto que sobre ela recai;

 

d) As presunções de incidência tributária podem ser ilididas através de procedimento contraditório previsto no art. 64.º do CPPT ou, em alternativa, pela via da reclamação graciosa ou de impugnação judicial dos actos tributários que nelas se baseiam;

 

e) Assim, dúvidas não existem que não só a Requerente utilizou os meios correctos, como também, através dos documentos apresentados, conseguiu ilidir a presunção legal de propriedade.

 

 

Posição da Requerida (AT).

 

43. Ao alegado pela Requerente, respondeu a Requerida (AT) no sentido de que tais alegações não podem de todo proceder, sendo que estabelece o n.º 1 do art. 3.º do CIUC que "São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.”

 

44. Desenvolvendo a sua posição, diz a Requerida, em síntese, que "O legislador tributário ao estabelecer no artigo 3.º, nº1, quem são os sujeitos passivos do IUC, estabeleceu expressa e intencionalmente que estes são os proprietários (...) considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os mesmos se encontrem registados."

 

45. Em defesa deste ponto de vista acentua a Requerida que "o legislador não usou a expressão "presumem-se" como poderia ter feito". Assinala, ainda, a circunstância de " o normativo fiscal estar repleto de previsões análogas à consagrada na parte final do n.º 1 do art. 3.º, em que o legislador dentro da sua liberdade de conformação legislativa, expressa e intencionalmente, consagra o que deve considerar-se legalmente para efeitos de incidência, de rendimento, de isenção, de determinação e de periodização do lucro tributável, para efeitos de residência, de localização, entre muitos outros. "

 

46. Como exemplo, entre outros, refere a norma da alínea a) do n.º 2 do art. 2.º do CIMT, em que o legislador tributário não presume que "há lugar a transmissão onerosa para efeitos do n.º 1 do artigo 2.º do CIMT, na outorga de contrato-promessa de aquisição e alienação de bens imóveis em que seja clausulado no contrato ou posteriormente que o promitente adquirente pode ceder a sua posição contratual a terceiro." Neste caso, " o legislador expressa e intencionalmente assimila este contrato a uma transmissão onerosa de bens para efeitos de IMT". Do mesmo modo, no caso do art. 17.º do CIRC, o legislador também não estabelece que os excedentes líquidos das cooperativas se presumem como resultado líquido do período mas que estes se consideram como tal. Depois de referir que grande parte das normas de incidência do IRC têm como ratio subjacente determinar o que deve ser considerado rendimento para efeitos deste imposto ter-se-ia de concluir que ao usar a expressão "considera-se" o legislador fiscal teria consagrado uma presunção em praticamente todas as normas de incidência do IRC que seria afastada precisamente porque a contabilidade prescreve soluções diferentes das do CIRC, sendo exactamente o fim do legislador afastar as regras contabilísticas.

 

47. Na sequência deste raciocínio, conclui a Requerida que "é imperativo concluir que, no caso dos presentes autos de pronúncia arbitral, o legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que se consideram como tais (como proprietários...) as pessoas em nome das quais os mesmos (os veículos) se encontrem registados, porquanto é esta a interpretação que preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal. Pelo que, "entender que o legislador consagrou aqui uma presunção seria inequivocamente efectuar uma interpretação contra legem.”

 

48. Por outro lado, apelando ao elemento sistemático, entende a Requerida que "a solução propugnada pela Requerente é intolerável não encontrando o entendimento por esta sufragado qualquer apoio na lei." Isto porque, no mesmo sentido do que dispõe o n.º 1 do art. 3.º do CIUC, " estabelece o artigo 6.º do CIUC, sob a epígrafe "Facto Gerador e Exigibilidade", no seu n.º 1, que "O facto gerador do imposto é constituído pela propriedade do veículo, tal como atestada pela matrícula ou registo em território nacional. Ou seja, "o momento a partir do qual se constitui a obrigação de imposto apresenta uma relação directa com a emissão do certificado de matrícula, no qual devem constar os factos sujeitos a registo.... No mesmo sentido, milita a solução legislativa adoptada pelo legislador fiscal no n.º 2 do artigo 3.° do CIUC, ao fazer coincidir as equiparações ai consagradas com as situações em que o registo automóvel obriga ao respectivo registo".

 

49. Sustenta ainda a Requerida que " Tal posição está ainda patente na circunstância de o Registo Automóvel, a que a Administração Tributária tem ou pode ter acesso, e o certificado no qual devem constar os actos sujeitos a registo, cuja exibição poderá ser exigida pela mesma Administração ao interessado, conterem todos os elementos destinados à determinação do Sujeito Passivo, sem necessidade de acesso aos contractos de natureza particular que conferem tais Direitos, enunciados pelo CIUC como constitutivos da Situação Jurídica de Sujeito Passivo deste imposto. Na falta de tal registo, naturalmente, será o Proprietário notificado para cumprir a correspondente obrigação fiscal, pois, a Administração Tributária, tendo em conta a actual configuração do Sistema Jurídico, não terá que proceder à liquidação do Imposto com base em elementos que não constem de registos e documentos públicos e, como tal, autênticos. Nestes termos, a não actualização do registo, nos termos do disposto no artigo 42.º do Regulamento do Registo de Automóveis, será imputável na esfera jurídica do Sujeito Passivo do IUC e não na do Estado, enquanto sujeito activo deste Imposto."

 

50. Para além da fundamentação exposta, considera a Requerida ser ainda de referir que "a interpretação veiculada pela Requerente se mostra contrária à Constituição."

 

51. Defendendo ainda que "O sempre propalado princípio da capacidade contributiva não é o único nem o principal princípio fundamental que enforma o sistema fiscal" e que "Ao lado deste princípio encontramos outros com a mesma dignidade constitucional, como sejam o princípio da confiança e segurança jurídica, o princípio da eficiência do sistema tributário e o princípio da proporcionalidade", considera a Requerida que se impõe, "por isso que na tarefa interpretativa do artigo 3.º do CIUC o princípio da capacidade contributiva seja articulado, ou se se preferir temperado, com aqueloutros princípios."

Daí concluindo que " a interpretação proposta pela Requerente, uma interpretação que no fundo desvaloriza a realidade registral em detrimento de uma "realidade informal" e insusceptível de um controlo mínimo por parte da Requerida, e ofensiva do basilar princípio da confiança e segurança jurídica que deve enformar qualquer relação jurídica, aqui se incluindo a relação tributária."

 

52. Expostas, em síntese e com parcial transcrição, as posições da Requerente e da Requerida, estarão claramente definidas:

 

- para a Requerente, a incidência subjectiva do IUC assenta numa presunção de propriedade, derivada do registo automóvel, susceptível de elisão nos termos legais; e

 

- para a Requerida, a norma do art. 3.º, 1, do CIUC não estabelece qualquer presunção, expressando  entendimento no sentido de que o legislador definiu como sujeito passivo deste tributo, expressa e intencionalmente, o proprietário do veículo identificado no respectivo registo.

 

Incidência subjectiva do IUC.

 

53. Com ressalva do disposto no n.º 2, relativamente a situações de venda com reserva de propriedade e locações que assumam natureza de financiamento, estabelece o art. 3.º do CIUC, que são sujeitos passivos deste imposto os proprietários dos veículos, sendo como tal consideradas as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados.

 

54. O recurso ao registo automóvel como elemento estruturante do sistema de liquidação deste tributo evidencia-se ao longo de todo o Código. Refira-se, designadamente, o seu art. 6.º relativo à definição do facto gerador da obrigação de imposto, cujo n.º 1 prevê ser constituído pela propriedade do veículo, tal como atestada pela matrícula ou registo em território nacional. Deste preceito decorre que os veículos automóveis que não estejam, nem devam estar, registados em território português, apenas ficam abrangidos pela incidência objectiva deste tributo se no mesmo permanecerem por período superior a 183 dias, conforme dispõe o n.º 2 do mesmo artigo. É, pois, uma norma que, recorrendo ao elemento registral, estabelece, simultaneamente, o facto gerador do imposto e a respectiva conexão fiscal. É, também, dos elementos do registo automóvel que se extrai o momento do início do período de tributação e constituição da obrigação tributária e, de uma maneira geral, todos os elementos necessários à liquidação do imposto em causa, como, de resto, bem acentuado vem na resposta elaborada pela AT.

 

55. Todavia, da dependência do regime de tributação do IUC em relação ao registo automóvel não se pode extrair, como imediata conclusão, que a norma de incidência subjectiva, no segmento em que considera como proprietário a pessoa em nome da qual o veículo se encontre registado, não constitua um presunção de incidência. Haverá, pois, que recorrer a outros elementos interpretativos, com especial relevância da noção legal de presunção.

 

Noção de presunção.

 

56. Segundo a noção vertida no art. 349.º do C. Civil, presunções são as ilações que a lei, ou o julgador, tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido. As presunções constituem meios de prova, tendo esta por função a demonstração da realidade dos factos (art. 341.º do C. Civil). Assim, quem tem a seu favor a presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz (art. 350.º, n.º1, do C. Civil). Todavia, as presunções, salvo nos casos em que a lei o proibir, podem ser ilididas, mediante prova em contrário (art. 350.º, n.º 2, do C. Civil). Tratando-se de presunções de incidência tributária, estas são sempre ilidíveis, conforme expressamente dispõe o art. 73.º da LGT.

 

Presunção e ficção.

 

57. A par de presunções, utilizadas no direito tributário principalmente como meio de afastar a possibilidade de fraude e evasão ou por razões de simplificação e de praticabilidade das leis fiscais, o legislador recorre, também com alguma frequência, a ficções. Diversamente da presunção, que parte de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido, a ficção, por seu lado, "traduz-se num processo jurídico que considera uma situação ou um facto como distinto da realidade para lhe atribuir consequências jurídicas" [1] Há, pois, uma assinalável diferença entre uma e outra desta figuras, utilizadas com alguma frequência nas normas dos códigos e leis tributárias. Essa diferença, que não se encontra assinalada na fundamentação da posição da AT, será particularmente relevante na apreciação do presente caso.

58. Tomando como referência a exemplificação apresentada pela Requerida em abono da sua tese, poderemos considerar o caso do n.º 2 art. 17.º do CIRC, que, para efeitos deste imposto, determina que "os excedentes líquidos das cooperativas consideram-se como resultado líquido do exercício.". Não ignorando o legislador do CIRC que as cooperativas, por força dos respectivos princípios e regime legal que lhes é aplicável, não podem ter como escopo a realização do lucro, imputa àqueles excedentes uma natureza distinta da realidade, para lhes atribuir uma consequência jurídica, qual seja a de resultado líquido do exercício para efeitos de aplicação das regras de determinação do lucro tributável das empresas.

 

59. Por outro lado, a existência, em paralelo, de presunções e ficções nas normas legais de incidência tributária é ainda mais notória, por exemplo, no art. 2.º do CIMT, referido na resposta da AT. Segundo o corpo do n.º 3 deste artigo "Considera-se que há também lugar a transmissão onerosa para efeitos do n.º 1 (norma que define a regra geral de incidência deste tributo, consistente na transmissão onerosa do direito de propriedade sobre imóveis) na outorga dos seguintes actos ou contractos:

a) Celebração de contrato-promessa de aquisição e alienação de bens imóveis em que seja clausulado no contrato ou posteriormente que o promitente-adquirente pode ceder a sua posição contratual a terceiro."

e

e) Cedência de posição contratual ou ajuste de revenda, por parte do promitente adquirente num contrato-promessa de aquisição e alienação, vindo o contrato definitivo a ser celebrado entre o primitivo promitente alienante e o terceiro."

 

60. No primeiro dos referidos casos, está-se perante uma ficção, pois que o legislador não ignora que a possibilidade de cedência de posição contratual num contrato de promessa não implica a transmissão do direito de propriedade, objecto da incidência geral do referido imposto municipal. Mas, para efeitos tributários, atribui-lhe as correspondentes consequências. Já no segundo caso - ajuste de revenda, a que se refere a alínea e) do mesmo número - tem-se uma situação algo mais complexa, mas que segundo a jurisprudência constante dos tribunais superiores traduz uma presunção.

 

61. Como se chega a esta conclusão se ambas as normas têm por finalidade e efeitos tributar como transmissões de propriedade de imóveis realidades que o não são ?

A resposta está, precisamente, no recurso ao conceito legal de presunção. A norma da al. e) do n.º 3 do art. 2.º do CIMT, no que respeita ao "ajuste de revenda" encontrava-se já prevista, em idênticos termos, no parágrafo 2.º do art. 2.º do anterior Código da Sisa: o promitente-comprador que ajustasse, com um terceiro, a venda do imóvel que havia prometido adquirir ficaria sujeito ao imposto, com base na presunção de que lhe havia sido entregue o bem objecto do contrato de promessa e que sobre ele havia agido como um proprietário, por via da cedência da sua posição contratual naquele contrato, mas apenas se o contrato translativo se viesse a realizar entre o primitivo promitente vendedor e aquele terceiro. Neste caso, o legislador criou a presunção de transmissão económica (tradição), abrangida pela incidência do imposto, sempre que o promitente adquirente agisse, perante terceiro e com anuência do primitivo promitente vendedor, como um verdadeiro proprietário, ajustando a revenda do bem em causa. É a existência da "tradição jurídica" - entrega do bem objecto do contrato de promessa - que a norma presume, para a tributar. E aqui também, o legislador parte de factos conhecidos - a posição contratual e a transmissão jurídica do bem para um terceiro - para firmar um facto desconhecido, o ajuste de revenda. Presunção esta ilidível, por força do disposto no art. 73.º da LGT. [2]

 

Presunções explícitas e implícitas.

 

62. Sustenta a Requerida que o legislador fiscal, "dentro da sua liberdade de conformação legislativa" expressa e intencionalmente determina que se considerem como proprietários as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados, não utilizando a expressão "presumem-se" como tal, como poderia ter feito.

 

63. Com efeito, na definição da incidência subjectiva do ICI, do ICA e do IMV, impostos que o actual IUC veio substituir, foi essa a expressão utilizada pelo legislador. No âmbito dos impostos abolidos, estabelece-se que "o imposto é devido pelos proprietários dos veículos, presumindo-se como tais, até prova em contrário, as pessoas em nome de quem os mesmos se encontrem matriculados ou registados" [3]

 

64. No mesmo sentido, estabelece o art. 3.º, n.º 1, do Regulamento dos Impostos de Circulação e Camionagem, aprovado pelo DL n.º 116/94, de 03/05, que são sujeitos passivos destes tributos "os proprietários dos veículos presumindo-se como tais, até prova em contrário, as pessoas singulares ou colectivas em nome das quais os mesmos se encontrem registados."

 

65. No que ao IUC diz respeito, o legislador optou por utilizar uma formulação diversa da norma de incidência subjectiva. Tal como nos impostos abolidos, continua a atribuir aos proprietários dos veículos a qualidade de sujeitos passivos. Porém, abandona a expressão "presumindo-se como tais, até prova em contrário, as pessoas em nome quem os mesmos se encontrem registados" em favor de "considerando-se como tais as pessoas (...) em nome das quais os mesmos se encontrem registados".

 

66. Diversamente da posição expressa pela AT, entendemos que se está perante uma mera questão semântica, que não altera minimamente o conteúdo da norma em questão e por duas ordens de razões: Para que se esteja perante uma presunção legal, é necessário que a norma que a estabelece se amolde ao respectivo conceito legal, vertido no art. 349.º do C. Civil, sendo para tal irrelevante que a mesma seja explícita, revelada pela utilização da expressão "presumem-se" ou apenas implícita.[4][i]; por outro lado, a liberdade de conformação do legislador está limitada por princípios fundamentais consagrados na Constituição da República, de que, com relevância para o presente caso, avulta o princípio da igualdade. No plano tributário, este princípio traduz-se na generalidade e abstracção da norma que cria os elementos essenciais do tributo, de acordo com a capacidade contributiva de cada um. Segundo se extrai do acórdão do TC n.º 343/97, de 29-04-97 " A tributação conforme com o princípio da capacidade contributiva implicará a existência e a manutenção de uma efectiva conexão entre a prestação tributária e o pressuposto económico seleccionado para objecto do imposto, exigindo-se, por isso, um mínimo de coerência lógica das diversas hipóteses concretas de imposto previstas na lei com o correspondente objecto do mesmo".

 

67. É no sentido do conceito legal de presunção e no respeito dos princípios constitucionais da igualdade e da capacidade contributiva que o legislador atribui plena eficácia à presunção derivada do registo automóvel acolhendo-a, como tal, na definição da incidência subjectiva deste tributo estabelecida no n.º 1 do art. 3.º do CIUC.

 

68. Acresce que o Decreto-Lei n.º 54/75, de 12/02, que disciplina o registo de veículos automóveis, não prevendo qualquer norma acerca do carácter constitutivo do registo da propriedade automóvel, estabelece, no n.º 1 do seu art. 1.º que o registo automóvel visa apenas dar publicidade à situação jurídica dos bens. De acordo com o art. 7.º do Código do Registo Predial, supletivamente aplicável ao registo automóvel, por remissão do art. 29.º daquele diploma legal, determina que o registo apenas "(...) constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define."

 

69. Pronunciando-se sobre esta matéria, o STJ, em acórdão de 19-02-2004, proferido no processo n.º 3B4369, conclui que "(...) o registo não surte eficácia constitutiva, pois que se destina a dar publicidade ao acto registado, funcionando (apenas) como mera presunção, ilidível (presunção "juris tantum") da existência do direito (arts- 1.º, n.º 1, e 7.º, do CRP84 e 350.º, n.º2, do C-Civil) bem como da respectiva titularidade, nos termos dele constantes (...)".

 

70. Assim, acompanhando-se a reiterada jurisprudência arbitral [5] relativa a situações idênticas, não pode deixar de se entender que a expressão "considerando-se como tais" constante da referida norma, configura uma presunção legal, e que esta é ilidível, nos termos gerais, e, em especial, por força do disposto no art. 73.º da LGT que determina que as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário.

 

Elisão de presunções.

 

71. As presunções de incidência tributária podem ser ilididas através do procedimento contraditório próprio previsto no art. 64.º do CPPT ou, em alternativa, pela via de reclamação graciosa ou de impugnação judicial dos actos tributários que nelas se baseiem.

 

72. No presente caso, a Requerente não utilizou aquele procedimento próprio, tendo antes optado pela apresentação de reclamações graciosas, que vieram a ser objecto de indeferimento. Consequentemente, o presente pedido de decisão arbitral é meio próprio para ilidir a presunção de incidência subjectiva do IUC em que se suportam as liquidações tributárias cuja anulação constitui objecto do pedido, pois que se trata de matéria que se situa no âmbito da competência material deste tribunal arbitral (arts. 2.º e 4.º do DL 10/2011).

 

73. Para ilidir a presunção derivada da inscrição do registo automóvel, a Requerente oferece, como prova, uma declaração emitida pela Associação dos Bombeiros Voluntários de B... que confirma a doação de que foi beneficiária da viatura a que respeitam as liquidações questionadas e que a mesma ocorreu no ano de 1998.

 

74. Embora sem expor a fundamentação de direito em que se suporta, considera a Requerida que "uma declaração passada pelo Comandante dos Bombeiros Voluntários de B... em 2011, com efeitos a 1998, não pode ter uma validade superior ao registo", expressando entendimento que tal declaração, "sem qualquer outro documento de apoio, sem qualquer registo de entrada no património dos Bombeiro Voluntários de B..., não constitui documento idóneo para comprovar a doação do veículo em causa."

 

75. Sobre o alegado pela Requerida, há que a referir que os actos que importem a transmissão jurídica do direito de propriedade sobre veículos automóveis, designadamente a doação, não estão sujeitos a qualquer formalismo especial, bastando-se com o simples acordo de vontades que, no caso desta figura, se traduz, por um lado, na transferência de uma coisa ou direito que integra o património de uma pessoa (doador) para o de outra, sem correspectivo, considerando-se o contrato concluído com a aceitação, expressa ou tácita, do beneficiário (donatário) (arts. 940.º e 945.º do C. Civil).

 

76. Para efeitos registrais, também não é exigível qualquer formalismo especial, bastando a apresentação à entidade competente de qualquer documento comprovativo do facto jurídico que importe a aquisição do direito de propriedade (art. 25.º, n,º 2, al. a), do Regulamento do Registo Automóvel).

 

77. Alegando a Requerente que doou o veículo em causa à referida entidade e declarando esta a aceitação da doação, estará comprovada a transferência do respectivo direito de propriedade.

 

78. Quanto à alegada necessidade de outros documentos de suporte, designadamente registos e outras obrigações que, eventualmente, recaíssem sobre a donatária, é matéria subtraída à competência deste tribunal, havendo apenas que avaliar a força probatória do documento apresentado pela Requerente.

 

79. Configura-se este como documento particular devidamente assinado pelo seu autor. O requisito legal dos documentos particulares, relevante para os efeitos de lhes atribuir força probatória formal, basta-se com a assinatura do seu autor, considerando-se esta verdadeira quando reconhecida ou não impugnada pela parte contra quem o documento é apresentado (arts. 373.º e 374.º, n.º 1, do C. Civil).

 

80. No presente caso, não tendo sido impugnada a assinatura do documento apresentado, nem tendo o mesmo sido objecto de arguição e prova de falsidade por parte da Requerida, faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor (art. 376.º, n.º 1, do C. Civil).

 

81. Provada, documentalmente, a transmissão do direito de propriedade do veículo em causa e que esta ocorreu em 1998, considera-se ilidida a presunção de propriedade derivada do registo automóvel, acolhida no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC, relativamente aos anos a que respeitam as liquidações questionadas.

 

82. Estando o facto plenamente provado por documento fica afastada a prova testemunhal solicitada pela Requerente (art. 393.º, n.º 3, do C. Civil).

 

VI - Questões prejudicadas.

 

83. Ilidida a presunção de incidência subjectiva em que se fundam as liquidações cuja anulação constitui objecto do presente pedido, considera-se prejudicado, por inutilidade, o conhecimento dos demais vícios às mesmas imputados pela Requerente.

 

VII - Decisão.

 

Nestes termos, e com os fundamentos expostos, o Tribunal Arbitral decide:

 

a) Não conhecer do pedido subsidiário suscitado pela Requerente, por se reportar a matéria excluída do âmbito da competência material do tribunal;

 

b) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, no que concerne à elisão da presunção de incidência subjectiva do IUC, determinando a anulação das liquidações de IUC e de juros compensatórios a que se referem os documentos de cobrança referidos no ponto 9.1, da presente decisão.

 

c) Custas pela Requerida.

 

Valor do processo: € 133,29.

Custas: Ao abrigo do art. 22.º, n.º 4, do RJAT, e nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixo o montante das custas em € 306,00, a cargo da Requerida (AT).

 

Lisboa, 21 de Junho de 2014,

O árbitro, Álvaro Caneira.

 


 [1] Vd. Francisco Rodrigues Pardal, "O Uso de Presunções no Direito Tributário", in Ciência e Técnica Fiscal n.º 325-327. pags. 20.

[2] Neste sentido, vd., entre outros, STA, acórdãos de 21-04-2010, de 03-11-2010, de 02-05-2012 e de 06-06-2012, procs. 924/09, 499/10, 895/11 e 903/11, respectivamente.

[3] Vd. artigo 3.º, n.º1 do Regulamento do Imposto Municipal sobre Veículos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 143/78, de 12 de Junho.

[4] Vd. Jorge Lopes de Sousa, CPPT, 6.ª Edição, Áreas Editora. Lisboa, 2011, pags. 586 e STA, acórdãos de 29-02-2012 e de 02-05-2012, procs. 441/11 e 381/12.

[5] Vd. decisões arbitrais de 19-07-2013, 10-09-2013, 15-10-2013, 05-12-2013 e 14-02-2014, proferidas, respectivamente, nos processos 26/2013-T, 27/2013-T, 14/2013-T, 73/2013-T e 170/2013-T.