Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 866/2019-T
Data da decisão: 2021-01-08  IRC  
Valor do pedido: € 778.632,85
Tema: IRC – mais-valias; participation exemption; prazo de detenção; prestações acessórias; suprimentos.
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 SUMÁRIO:

I. Não ocorre violação do dever de fundamentação se, em função do contexto do qual emerge o acto de liquidação, é possível ao sujeito passivo alcançar o itinerário cognoscitivo levado a cabo pela AT na tomada de decisão, não sendo censurável a remissão implícita daquele acto para o Relatório de Inspecção Tributária do qual consta um quadro factual pormenorizado e exaustivo, bem como um enquadramento aprofundado das normas jurídicas aplicáveis;

II. Não ocorre preterição de formalidade legal essencial por falta de notificação para exercício do direito de audição antes da liquidação na medida em que o sujeito passivo tenha sido anteriormente ouvido aquando da conclusão do relatório da inspecção tributária, conforme decorre do artigo 60.º, n.º 3, da LGT;

III. A recusa pela AT da inquirição de testemunhas arroladas pelo sujeito passivo não implica a violação do direito de audição, na vertente do direito de os interessados requererem a realização de diligências complementares, se tais diligências não eram indispensáveis e necessárias à obtenção da descoberta da verdade material;

IV. A aplicabilidade do regime de participation exemption previsto no artigo 51.º-C, n.º 3, do Código do IRC, às mais e menos-valias resultantes da transmissão onerosa de partes sociais e de outros instrumentos de capital próprio no âmbito de operações de entrada de activos, está dependente do cumprimento do requisito de detenção das partes sociais transmitidas pelo período temporal mínimo constante do n.º 1 daquele artigo 51.º C, do Código do IRC.

V. A aplicabilidade do regime de participation exemption previsto no artigo 51.º-C, n.º 2, do Código do IRC, às mais e menos-valias resultantes da transmissão onerosa de outros instrumentos de capital próprio associados às partes sociais tais como as prestações acessórias e os suprimentos, está dependente do cumprimento do requisito de detenção desses instrumentos, tendo por referência o momento em que foram concedidos, pelo período temporal mínimo constante do n.º 1 daquele artigo 51.º-C, do Código do IRC.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Acordam os Árbitros Fernanda Maçãs (Árbitro Presidente), Olívio Mota Amador e Carla Castelo Trindade, designados no Centro de Arbitragem Administrativa para formarem Tribunal Arbitral:

 

I. RELATÓRIO

 

                1. A... SGPS, S.A., com sede na Rua ..., n.º..., ..., ...-... Lisboa, titular do número de identificação de pessoa colectiva ..., vem requerer a constituição de Tribunal Arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011 de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), com vista à pronúncia deste Tribunal relativamente à:

 

- Declaração de ilegalidade e consequente anulação do Despacho proferido pelo Director de Finanças Adjunto de Lisboa, que indeferiu a Reclamação Graciosa deduzida contra os actos tributários de liquidação adicional de IRC n.º 2018..., de liquidação de juros compensatórios n.º 2018... e de liquidação de juros moratórios n.º 2018..., todos referentes ao exercício de 2014;

- Declaração de ilegalidade dos actos tributários de liquidação adicional de IRC n.º 2018..., de liquidação de juros compensatórios n.º 2018... e de liquidação de juros moratórios n.º 2018..., todos referentes ao exercício de 2014, e consequente anulação do montante de imposto indevidamente liquidado no valor de € 778.632,85.

 

2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite em 19 de Dezembro de 2019 pelo Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) e automaticamente notificado à Requerida.

 

3. A Requerente não exerceu o direito à designação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do Tribunal Arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 11 de Fevereiro de 2020, as partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT, e dos artigos 6.º e 7.º, do Código Deontológico do CAAD.

 

4. Em conformidade com o disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo ficou constituído em 12 de Março de 2020.

 

5. A Requerente veio sustentar a procedência do seu pedido, sumariamente, com base nos seguintes argumentos:

 

Falta de fundamentação dos actos de liquidação e do Relatório de Inspecção Tributária

a)            Não se revela suficiente a necessária fundamentação, de facto e de direito, subjacente aos actos de liquidação em crise, verificando-se ainda que a fundamentação não se encontra contida nas notificações daqueles actos, não sendo a mesma perceptível para um destinatário normal;

b)           Ao não permitir conhecer o itinerário cognoscitivo, de facto e de direito, que lhe subjaz, a decisão corporizada nos acto de liquidação em crise, está inquinada de vício de forma nos termos do artigo 268.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa (“CRP”) e do artigo 77.º, da Lei Geral Tributária (“LGT”), pelo que deve ser anulada em conformidade, de acordo com o disposto no artigo 163.º, do Código de Procedimento Administrativo (“CPA”);

c)            Ainda que se admitisse que a notificação se pudesse fundamentar em algum documento externo à mesma, sem necessidade de cumprimento dos requisitos mínimos de fundamentação exigidos nos termos do artigo 77.º, n.º 2, da LGT, sempre seria necessário a expressa remissão, na própria notificação do acto de liquidação, para esse mesmo documento, sendo que não se verificou tal remissão;

d)           Isto de modo a que a fundamentação seja tão acessível ao contribuinte, como se constasse do próprio acto;

e)           E esta exigência resulta ainda do disposto no artigo 63.º, n.º 1, do Regime Complementar do Procedimento da Inspecção Tributária e Aduaneira (“RCPITA”), ao admitir a fundamentação dos actos tributários ou em matéria tributária por via da adesão ou concordância expressa com as conclusões do Relatório de Inspecção Tributária (“RIT”), o que não sucedeu no caso em juízo;

f)            Mesmo que se admitisse a fundamentação por adesão ou concordância, seria ainda assim necessário que o autor expressamente referisse e identificasse o relatório, parecer, informação ou proposta com que manifesta essa mesma concordância, conforme decorre dos termos conjugados dos artigos 77.º, n.º 1, da LGT e 152.º, n.º 1, do CPTA;

g)            Por outro lado, a própria fundamentação do RIT não era suficiente nem clara, tendo se a Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”) limitado a elencar meros juízos conclusivos que não permitiram à Requerente aferir da legalidade dos argumentos invocados e, assim, optar pela contestação ou acatamento do acto de liquidação em juízo;

h)           Deste modo, os Serviços de Inspecção Tributária da Direcção de Finanças de Lisboa não teriam carreado para as Conclusões do RIT, de forma clara e inequívoca, os factos concretos em que basearam as correcções propugnadas, não cumprindo com o dever legal, constitucionalmente consagrado, de fundamentação, expressa, clara e cabal, das decisões por si proferidas, devendo, consequentemente, ser anulados os actos de liquidação em crise;

i)             Não existindo qualquer referência, expressa ou implícita, a um qualquer documento concreto que, eventualmente, tivesse sido anteriormente notificado à Requerente, caberia concluir que os actos de liquidação em crise não se encontravam fundamentados de acordo com os termos legalmente adequados, impondo-se, assim, a sua anulação, por violação do disposto no artigo 268.º, n.º 3, da CRP e do artigo 77.º da LGT;

 

Preterição de formalidade legal essencial

j)             Para além de considerar que os actos de liquidação não se encontravam devidamente fundamentados, alegou a Requerente que não foi notificada para exercer o direito de audição antes da liquidação nos termos e para os efeitos do artigo 60.º, n.º 1, alínea a), da LGT, o que, por si só, determinaria a anulação dos actos de liquidação contestados, por preterição de formalidade legal essencial;

 

Violação do direito de audição, na vertente do direito dos interessados requererem a realização de diligências complementares

k)            A AT teria violado o direito de audição da Requerente ao indeferir o pedido de inquirição de testemunhas por esta deduzido, seja em sede de procedimento de inspecção tributária, seja em sede de procedimento de reclamação graciosa, não se tendo verificado a devida fundamentação para tal recusa por parte da AT, o que implica a ilegalidade das liquidações objecto do pedido de pronúncia arbitral e a sua consequente anulação;

 

Ilegalidade da correcção à mais-valia fiscal por alienação de participações sociais

l)             A transmissão de acções, representativas de 100% do capital social da B...– SGPS, S.A., no contexto da constituição em espécie do capital da C..., SGPS, S.A., constituía uma operação susceptível de ser qualificada como uma entrada de activos;

m)          E essa entrada de activos, ao não ser abrangida pelo regime especial de neutralidade fiscal previsto nos artigos 73.º e seguintes do Código do IRC, seria passível de ser compreendida pelo regime de participation exemption previsto no artigo 51.º-C, n.º 3, do Código do IRC;

n)           Tendo em conta que a transferência de elementos patrimoniais no âmbito de operações de entrada de activos realizadas pelas sociedades contribuidoras consistem em transmissões onerosas para efeitos do regime de tributação de mais valias e de menos valias nos termos do artigo 46.º, n.º 5, do Código do IRC, a transmissão das referidas acções seria susceptível de ser enquadrada no artigo 51.º C, n.º 1, do Código do IRC;

o)           A remissão prevista no artigo 51.º-C, n.º 3, do Código do IRC para “o disposto nos números anteriores” teria, assim, enquanto único efeito útil, a extensão do regime previsto no n.º 1 do mesmo preceito, por forma a permitir a sua aplicação às entradas de activos e demais operações de concentração de empresas sem necessidade de cumprimento dos demais requisitos nele previstos, designadamente a detenção das participações sociais por um período ininterrupto de 24 meses;

p)           Neste sentido, a mais-valia fiscal gerada com a transmissão das participações sociais representativas do capital da B...– SGPS, S.A., no contexto da constituição em espécie do capital da C..., SGPS, S.A., não concorreria para a formação do lucro tributável da Requerente, o que implicaria a ilegalidade do acto de liquidação adicional de IRC e determinaria, consequentemente, a sua anulação pela AT;

q)           Na eventualidade de assim não se entender, considerou a Requerente que seria necessário identificar a origem do capital social transmitido, tendo em consideração a sua natureza e o momento de subscrição;

r)            Quanto à parte de capital social inicial subscrito integralmente em dinheiro, que se reportava à data da constituição da sociedade, e que ascendia ao montante de € 44.700,00, encontravam-se cumpridos todos os requisitos exigidos para a aplicação do regime de participation exemption, pelo que as mais-valias apuradas com a sua alienação deveriam ser excluídas de tributação;

s)            Quanto às restantes participações sociais, caberia ter em consideração a data em que foram concedidos os créditos (suprimentos e prestações acessórias) cuja conversão em capital deu origem às acções que vieram a ser transmitidas para a C..., SGPS, S.A., como realização de capital em espécie;

t)            À data da transmissão das participações, parte do montante das prestações acessórias concedidas (€ 180.000,00) cumpriam o requisito temporal de detenção por um período ininterrupto de, pelo menos, 24 meses, previsto no artigo 51.º C, do Código do IRC, para aplicação do regime de participation exemption;

u)           Apesar de constituírem, em regra, uma forma de financiamento societário que é reconhecida enquanto passivo, as prestações acessórias foram efectuadas pela Requerente a título gratuito, isto é, isentas de qualquer remuneração, e registadas pela B...– SGPS, S.A., numa rubrica de capital próprio, pelo que se qualificariam enquanto “outros instrumentos de capital próprio” para efeitos de aplicação do regime de participation exemption previsto no artigo 51.º C, n.º 2, do Código do IRC;

v)            Assim, as mais-valias apuradas com a alienação das participações sociais subscritas mediante a conversão daquelas prestações acessórias deveriam ser excluídas de tributação;

w)          Com base numa ampla concepção de prevalência da substância sobre a forma, quanto à parte de capital subscrita através de suprimentos, que consistem numa forma de financiamento que apenas pode ser concedida pelos sócios à sociedade, o cerne da questão não deveria ser colocado no período de detenção das acções no momento da sua alienação, mas sim no momento em que tal investimento, de um ponto de vista económico, teve lugar;

x)            Na determinação da data de aquisição das acções resultantes da conversão de suprimentos em capital próprio, importaria ainda atender à redacção do artigo 47.º A, alínea a), do Código do IRC, que determina que a data de aquisição das partes de capital atribuídas ao sujeito passivo é a data de aquisição das partes de capital que lhes deram origem, de modo que estaria verificado o requisito temporal de detenção ininterrupta por um período de 24 meses, de acordo com o disposto no artigo 51.º C, do Código do IRC;

y)            Assim, as mais-valias apuradas com a alienação das participações sociais provenientes de suprimentos estariam sujeitas ao regime de participation exemption e, consequentemente, deveriam ser excluídas de tributação em sede de IRC;

 

Ilegalidade das liquidações de juros compensatórios

z)            A anulação, por ilegalidade, da liquidação adicional de IRC contestada, implicaria o desaparecimento de um dos fundamentos ou pressupostos legais previstos para que fossem devidos juros compensatórios: o retardamento da liquidação de imposto devido;

aa)         Em matéria de fundamentação dos actos de liquidação promovidos pela AT, esta não demonstrou o pressuposto legal, previsto no artigo 35.º, n.º 1, da LGT, quanto à imputabilidade ao contribuinte do retardamento da liquidação de imposto devido;

bb)         Os juros compensatórios não são uma mera decorrência da dívida de imposto, pelo que carecem de fundamentação expressa, acessível nos termos dos artigos 268.º, n.º 3, da CRP e 77.º, da LGT;

cc)          A AT absteve-se de indicar quais os elementos em que se baseou para promover as liquidações de juros compensatórios, não fazendo qualquer menção, nem demonstrando a existência da culpa da Requerente no suposto atraso na liquidação do imposto, impedindo-a de conhecer o porquê do encargo adicional que lhe é imposto, bem como de apreciar a sua legalidade;

dd)         Ao ter-se limitado a exigir, de forma automática, juros compensatórios, ultrapassando as formalidades legais exigidas, seria de concluir que a falta de fundamentação constituía um vício de forma que comina a ilegalidade das liquidações que, consequentemente, deverão ser anuladas.

 

6. A Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua Resposta na qual impugnou os argumentos sustentados pela Requerente, tendo concluído pela improcedência da presente acção e consequente absolvição de todos os pedidos.

A Requerida, atenta a natureza da matéria controvertida, não requereu a produção de quaisquer provas por entender que a prova dos factos é puramente documental, tendo apenas procedido à junção aos autos do respectivo processo administrativo (“PA”).

 

7. A Requerida sustentou a sua resposta, sumariamente, com base nos seguintes argumentos:

 

Alegada falta de fundamentação dos actos de liquidação e do Relatório de Inspecção Tributária

a)            O apuramento do lucro tributável do Grupo originou a emissão de um único acto de liquidação de IRC, fundamentado quer nas conclusões do procedimento inspectivo na esfera individual da Requerente, quer nas conclusões da acção inspectiva na esfera jurídica do Grupo;

b)           Os elementos que constam dos dois procedimentos inspectivos permitem identificar e conhecer, clara e documentalmente, todo o percurso percorrido pela AT para chegar ao valor total das correcções, permitindo à Requerente conhecer o itinerário cognoscitivo e valorativo seguido pelo autor da decisão, esclarecendo o que levou a decidir num determinado sentido e não em qualquer outro;

c)            A Requerente foi notificada do projecto de Relatório nos termos do artigo 60.º, da LGT, do artigo 60.º, do RCPITA e do artigo 63.º, n.ºs 4 e 5, do CPPT, para exercer o seu direito de audição, relativamente à aplicação da Cláusula Geral Anti-Abuso aos anos de 2013, 2014 e 2015, bem como quanto à correcção referente à tributação das mais-valias no exercício de 2014. A Requerente não exerceu o direito de audição prévia, tendo a AT convertido o projecto de relatório em definitivo, mantendo as correcções projectadas.

d)           O RIT indica, exaustivamente, os factos apurados pelos serviços de inspecção tributária, mediante a análise da documentação contabilística, que fundamentam a correcção efectuada;

e)           O RIT procede ao enquadramento jurídico-fiscal da operação de alienação de partes de capital que conduziu ao apuramento de mais-valias, pronunciando-se os serviços de inspecção tributária sobre o cumprimento dos requisitos previstos no artigo 51.º C, do Código do IRC;

f)            O RIT, que foi devidamente notificado à Requerente, revela o itinerário cognoscitivo que levou os serviços de inspecção tributária a proceder às correcções referentes à tributação das mais-valias, referindo-se expressamente o procedimento externo de inspecção anteriormente realizado na esfera individual da Requerente e que constitui fundamento nos termos do artigo 71.º, n.º 1, da LGT;

g)            O RIT contém ainda as disposições legais aplicáveis, bem como a indicação das operações de apuramento da matéria tributável, cumprindo igualmente com o disposto no artigo 71.º, n.º 1, da LGT;

h)           Notificada a Requerente da fundamentação do RIT, não seria exigível que os actos de liquidação que se seguiram reproduzissem novamente todos os fundamentos já invocados (e regularmente notificados em anteriores fases do processo), devendo a nota de cobrança remetida ao sujeito passivo conter apenas os elementos próprios do acto de liquidação, isto é, a demonstração do apuramento do imposto devido;

i)             Sendo que a nota de cobrança remetida à Requerente referia expressamente as disposições legais aplicáveis, a qualificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável, bem como os meios de reacção, cumprindo assim com o disposto no artigo 77.º, n.º 2, da LGT.

j)             Referiu ainda a este respeito a AT que o acto de notificação não se confunde com o acto notificado e que a notificação do acto não é condição da sua validade mas sim da sua eficácia;

k)            Assim, concluiu que a AT teria cumprido com os requisitos legais de fundamentação dos actos constantes dos artigos 77.º, da LGT e 125.º, do CPA, que determinam que a fundamentação pode ser efectuada de forma sumária, podendo consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, que constituirão parte integrante do respectivo acto, incluindo os que integram o relatório da fiscalização tributária;

l)             Sendo que a comprovação da compreensão da fundamentação pela Requerente residiria na falta de qualquer dificuldade aquando da contestação do acto praticado pela AT no âmbito da reclamação graciosa e do presente pedido de pronúncia arbitral;

 

Preterição de formalidade legal essencial

m)          As liquidações em juízo resultaram das conclusões de um procedimento de inspecção tributária que incidiu sobre a esfera individual da Requerente e da posterior acção inspectiva que reflectiu as respectivas correcções na declaração de rendimentos apresentada pela sociedade dominante do grupo que também é a Requerente;

n)           Embora a Requerente não tenha exercido o direito de audição quanto ao projecto de conclusões do RIT que resultou da acção inspectiva titulada pela Ordem de Serviço n.º OI2016..., nem quanto ao projecto de decisão da reclamação graciosa, a Requerente pronunciou-se sobre a correcção ao lucro tributável do exercício de 2014, no que em concreto respeita à mais-valia fiscal apurada com a alienação das participações sociais, no âmbito do procedimento inspectivo de âmbito interno e parcial, titulado pela Ordem de Serviço n.º OI2018... que teve apenas como objectivo reflectir as correcções anteriormente determinadas no resultado fiscal Grupo;

o)           Deste modo, não existiria preterição de nenhuma obrigação formal relativamente às liquidações em crise, nos termos do artigo 60.º, n.º 1, alínea a), da LGT, em virtude do disposto no n.º 3 daquele mesmo preceito;

 

Alegada violação do direito de audição, na vertente do direito dos interessados requererem a realização de diligências complementares

p)           Nos termos dos artigos 71.º e 72.º, da LGT, incumbe ao órgão competente para a decisão a direcção da instrução, cabendo-lhe decidir quais os meios de prova a utilizar para o correcto apuramento dos factos e respectiva subsunção às normas, tendo sempre em consideração o fim último de descoberta da verdade material;

q)           Ainda que vigore no procedimento tributário o princípio da plenitude probatória, consagrado no artigo 72.º, da LGT, e 50.º, do CPPT, segundo o qual são admissíveis na fase de instrução todos os meios gerais de prova, o instrutor do procedimento goza de discricionariedade técnica na determinação dos meios de provar a utilizar, não se encontrando este vinculado a realizar todas as diligências requeridas pelo contribuinte;

r)            Em todo o caso, o princípio da plenitude probatória comporta uma excepção quanto ao procedimento da reclamação graciosa, no qual o legislador apenas considerou admissível a prova documental, conforme decorre do artigo 69.º, alínea e) do CPPT;

s)            A audição de testemunhas foi solicitada pela Requerente quer na fase do exercício do direito de audição relativo ao procedimento inspectivo dirigido ao Grupo (OI2018...), quer na petição inicial da Reclamação Graciosa, tendo sido prescindida, em ambos os casos, a referida diligência, por se considerar que a mesma não acrescentava nada à factualidade apurada pela inspecção tributária e vertida no RIT;

t)            Isto na medida em que a prova dos factos relativos ao apuramento das mais-valias fiscais ser puramente documental, sendo que no decurso dos procedimentos efectuados pela AT foram facultados todos documentos necessários e suficientes à compreensão da situação, designadamente contratos, actas com as deliberações proferidas em Assembleias Gerais, pastas da contabilidade, relatórios do Revisor Oficial de Contas (“ROC”), avaliação das participações sociais e modo de contabilização de todas estas operações, tudo isto suportado em anexos que ficaram a fazer parte dos RIT;

u)           Nestes termos, não se teria verificado qualquer violação do direito de audição da Requerente;

 

Ilegalidade da correcção à mais-valia fiscal por alienação de participações sociais

v)            O regime especial de neutralidade fiscal, previsto nos artigos 73.º e seguintes, do Código do IRC, só é aplicável às operações taxativamente descritas nos n.ºs 1 a 3 daquele preceito, sendo fundamental, no que respeita às operações de entradas de activos, que se transmita um ramo de actividade;

w)          Nos termos do artigo 73.º, n.º 4, do Código do IRC, considera-se ramo de actividade o conjunto de elementos que constituem, do ponto de vista organizacional, uma unidade económica autónoma, ou seja, um conjunto capaz de funcionar pelos seus próprios meios, o qual pode compreender as dívidas contraídas para a sua organização ou funcionamento, sendo que os efeitos da transmissão deste ramo de actividade e, consequentemente, da operação de entrada de activos, não se devem sentir no decurso normal de actividade;

x)            A transmissão pela Requerente, de acções representativas de 100% do capital social da B...– SGPS, S.A., no contexto da constituição em espécie do capital da C..., SGPS, S.A., com o recebimento em contrapartida de acções representativas de capital social da C..., SGPS, S.A., não poderia constituir uma operação susceptível de ser qualificada como uma entrada de activos nos termos do artigo 73.º, do Código do IRC, desde logo porque a Requerente apenas regista como partes de capital da C..., SGPS, S.A., o valor de € 44.700, registando numa conta de outros devedores o valor de € 4.425.300;

y)            Ainda que tal operação fosse qualificável enquanto entrada de activos não abrangida pelo regime de neutralidade fiscal, a aplicação do regime de participation exemption sempre estaria sujeita aos requisitos previstos no artigo 51.º-C, n.º 1, do Código do IRC, designadamente no que respeita à detenção das participações sociais por um período ininterrupto de 24 meses. Isto pelo facto de os n.ºs 2 e 3, do artigo 51.º C, do Código do IRC, constituírem uma extensão do n.º 1 do mesmo preceito. Caso contrário, estar-se-iam a privilegiar estas operações relativamente às realizadas ao abrigo do regime de neutralidade fiscal;

z)            Assim, haveria que ter em conta o facto de as participações sociais transmitidas respeitarem na sua origem a 3 parcelas, dada a sua natureza e momento de subscrição. Com excepção da parte correspondente ao capital social inicialmente subscrito, caberia analisar se as participações sociais detidas pela Requerente à data da transmissão onerosa cumpriam ou não o requisito de 24 meses estabelecido no artigo 51.º C, n.º 1, do Código do IRC;

aa)         Quanto às prestações acessórias, caberia analisar se as mesmas poderiam ou não ser qualificadas como outros instrumentos de capital próprio para efeitos de aplicação do artigo 51.º C, n.º 2, do Código do IRC. Atendendo à sua substância e realidade financeira, verificou-se que aquelas foram prestadas à B...– SGPS, S.A., de forma gratuita, sendo registadas na esfera desta última enquanto capital próprio;

bb)         Tendo em conta que estas prestações acessórias estavam associadas às partes sociais, deveriam as mesmas seguir o regime das prestações suplementares e, assim, ser-lhes-ia aplicável o artigo 51.º C, n.º 2, do Código do IRC. Atendendo ao requisito temporal de detenção, deveria ser tido em conta o momento em que as prestações acessórias foram concedidas pela Requerente e não o momento da sua conversão aquando da concretização do aumento de capital, pelo que seria aplicável o regime de participation exemption às prestações acessórias concedidas em 2012 no montante de € 180.000,00;

cc)          Quanto às mais-valias apuradas com a alienação das participações subscritas mediante a conversão dos suprimentos em capital, não poderiam os suprimentos beneficiar do regime de participation exemption na medida em que consistem em empréstimos dos sócios à sociedade que fazem parte do seu passivo, ficando a sociedade obrigada à sua restituição;

dd)         Ainda que com a conversão dos créditos de suprimentos em capital passem a assumir a qualificação de partes de capital, na sua origem constituem passivos financeiros e não capitais próprios na esfera da B...– SGPS, S.A., pelo que às mais-valias realizadas pela Requerente decorrentes da transmissão das participações subscritas mediante a conversão dos suprimentos em capital não se lhes aplica o regime previsto no artigo 51.º-C, n.º 2, do Código do IRC, não fazendo sequer sentido analisar o respectivo período de detenção;

 

8. Por despacho proferido em 21 de Julho de 2020, foram as partes notificadas de que o Tribunal agendou a reunião a que alude o artigo 18.º, do RJAT, assim como a inquirição de testemunhas a apresentar pelas partes, para o dia 28 de Setembro de 2020.

 

9. Por despacho proferido em 9 de Setembro de 2020, foram as partes notificadas da prorrogação do prazo de arbitragem por dois meses nos termos do artigo 21.º, n.º 2, do RJAT, indicando-se como data limite para ser proferida a decisão o dia 12 de Novembro de 2020.

 

10. Em 10 de Setembro de 2020, a Requerente apresentou requerimento no qual solicitou a ampliação do objecto do processo, tendo sido proferido despacho em 11 de Setembro de 2020 no qual se ordenou a notificação da requerida para, querendo, exercer o contraditório ao solicitado pela Requerente, tendo a Requerida exercido esse direito em 9 de Outubro de 2020, por requerimento, no qual manifestou a sua oposição àquele pedido.

 

11. Em 28 de Setembro de 2020, deu-se a reunião prevista no artigo 18.º, do RJAT, assim como a inquirição de testemunhas indicadas, tudo conforme a acta junta aos autos, tendo as partes sido notificadas para, querendo, apresentarem alegações. Determinou-se ainda naquela reunião a prorrogação por dois meses do prazo referido no artigo 21.º, n.º 1, do RJAT, a contar do término daquele, bem como a designação do dia 12 de Janeiro de 2021 para o efeito de prolação da decisão arbitral.

 

12. Em 29 de Outubro a Requerente apresentou alegações escritas, tendo ainda junto aos autos parecer sobre “a correcção jurídica, legal e constitucional, da interpretação e aplicação pela Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) da tributação em sede de IRC, relativa a mais-valias decorrentes de operações de organização empresarial levada a cabo dentro do grupo, que A..., constitui”. Em 2 de Novembro de 2020 a Requerida apresentou requerimento no qual peticionou a não valoração da nova argumentação de direito sustentada nas alegações finais e no parecer junto aos autos. Requereu ainda a Requerida com base no princípio da igualdade das partes que, no caso de não ser dado provimento ao seu pedido, fosse concedido um prazo de vista e pronúncia, a acrescer ao prazo para apresentação de contra alegações, quanto aos novos argumentos aduzidos nas alegações escritas e no parecer juntos pela Requerente.

 

13. Em 4 de Novembro de 2020 foi proferido despacho no qual se indeferiu o pedido da Requerida quanto à não valoração da argumentação da Requerente em sede de alegações finais escritas tendo-se, em todo o caso, conferido direito ao contraditório à Requerida para se pronunciar quanto àquela argumentação, no prazo de 10 dias, a acrescer, a partir da notificação daquele despacho, ao prazo de apresentação das contra-alegações.

A Requerida apresentou alegações em 10 de Dezembro de 2020.

 

II. SANEAMENTO

 

14. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 4.º, e 5.º, todos do RJAT.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e estão regularmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e dos artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

O processo não enferma de nulidades.

 

III. DO MÉRITO

 

III.1. MATÉRIA DE FACTO

III.1.1. Factos provados

 

                15. Com relevo para a decisão da causa consideram-se provados os seguintes factos:

a)            A Requerente é uma sociedade comercial anónima, constituída em 30 de Dezembro de 2009, residente em território português, cujo objecto social é a gestão de participações sociais noutras sociedades como forma indirecta do exercício dessa actividade económica e prestação de serviços na área de gestão às empresas participadas;

b)           A Requerente é sujeito passivo de imposto, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do Código do IRC, com um período de tributação coincidente com o ano civil, encontrando-se enquadrada para efeitos de tributação, desde 1 de Janeiro de 2014, no Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades, na qualidade de sociedade dominante;

c)            A 31 de Dezembro de 2014 a Requerente detinha, entre outras, por via directa e indirecta, participações na sociedade C..., SGPS, S.A., titular do NIPC ..., com sede em Lisboa, e na sociedade B...– SGPS, S.A., titular do NIPC ..., também como sede em Lisboa;

d)           A sociedade B...– SGPS, S.A., foi constituída em 14 de Junho de 2011, com o capital social de € 50.000,00, representado por 10.000 acções de € 5,00, cada, integralmente realizado em dinheiro, tendo a Requerente subscrito 8.940 acções no montante de € 44.700,00, que equivalem a uma participação de 89,40%;

e)           Os € 44.700,00 foram reconhecidos no balanço da Requerente, em 2011, na conta SNC 411 - Investimentos em subsidiárias, subconta 4111041 - Participações de capital - MEP - Aquisição -B...– SGPS, S.A.;

f)            Em 27 de Março de 2014 foi deliberado o aumento de capital da B...– SGPS, S.A., em € 1.960.000,00, correspondente a 392.000 novas acções nominativas, sem direitos especiais, com o valor nominal de € 5,00, cada uma. O capital social desta sociedade passou a ser de € 2.010.000,00, tendo a Requerente subscrito em espécie o montante de € 1.764.000,00, a que correspondem 352.800 novas acções de cinco euros cada, que equivalem a uma participação de 89,985%;

g)            A referida subscrição em espécie foi operada por via da conversão em capital social dos créditos que a Requerente tinha sobre a B... SGPS, S.A., no montante total de € 1.764.000,00, correspondentes a € 1.021.500,00, relativos a créditos de suprimentos e € 742.500,00 relativos a créditos de prestações acessórias;

h)           As prestações acessórias foram efectuadas em diversas tranches entre 2012 e 2014, conforme se ilustra no seguinte quadro:

 

i)             Em 27 de Março de 2014, na mesma data em que foi deliberado o aumento de capital social da B...– SGPS, S.A., foi celebrado um contrato de constituição da sociedade C..., SGPS, S.A., com um capital social de € 50.000,00, representado por 10.000 acções de € 5,00, cada, tendo a Requerente subscrito em espécie o montante de € 44.700,00, a que correspondem 8.940 acções, que equivalem a uma participação de 89,40%;

j)             A referida subscrição em espécie foi operada por via da entrega das 402.000 acções representativas de 100% do capital social da B...  SGPS, S.A., avaliado em € 5.000.000,00, por ROC independente, tendo o montante excedente de € 4.950.000,00 sido registado pela C..., SGPS, S.A., como dívida aos accionistas, dos quais € 4.425.300,00 à Requerente;

k)            No âmbito desta operação a Requerente apurou uma mais-valia contabilística no valor de € 2.706.000,00, que deduziu na linha 767 do quadro 7 da Declaração Modelo 22 de IRC submetida quanto ao exercício de 2014, expurgando-a do seu lucro tributável. Contudo, a Requerente não precedeu ao correlativo acréscimo da mais-valia fiscal na linha 739 do quadro 7 da mesma Declaração Modelo 22 de IRC, por entender que a mesma não concorria para a formação do lucro tributável em virtude do regime de isenção previsto no artigo 51.º-C do Código do IRC;

l)             Em 29 de Dezembro de 2016 a B...– SGPS, S.A., foi incorporada por fusão na C..., SGPS, S.A., cessando a sua actividade nessa mesma data;

m)          A Direcção de Finanças de Lisboa procedeu à realização de procedimentos inspectivos externos de âmbito parcial, incidentes sobre os resultados individuais das sociedades dominadas nos anos de 2013, 2014 e 2015, credenciados pelas ordens de serviço n.ºs OI2016..., OI2016... e OI2016... (cfr. Documento 3 junto pela Requerente);

n)           No âmbito do procedimento inspectivo titulado pela ordem de serviço n.º OI2016..., os serviços de inspecção tributária efectuaram uma correcção na esfera individual da Requerente, quanto ao lucro tributável do exercício de 2014, no que em concreto respeita à mais-valia fiscal, no montante de € 2.661.300,00, obtida na alienação onerosa de partes sociais, relativa a um aumento de capital da sociedade B..., SGPS, S.A., em virtude do não cumprimento da condição temporal de detenção por um período ininterrupto não inferior a 24 meses exigido pelo artigo 51.º-C, do Código do IRC (cfr. Anexo 32 do RIT junto pela Requerida);

o)           Nesse procedimento inspectivo a Requerente foi notificada, mediante o ofício n.º ..., datado de 28 de Agosto de 2017, para exercer o direito de audição prévia sobre o projecto de conclusões do relatório, em concreto sobre a aplicação da CGAA aos exercícios de 2013, 2014 e 2015, e sobre a correcção respeitante à tributação das mais-valias fiscais no exercício de 2014 (cfr. Anexo 33 do RIT junto pela Requerida);

p)           Os serviços de inspecção tributária notificaram ainda os accionistas da Requerente, mediante os ofícios n.ºs ..., ..., ... e ..., datados de 28 de Agosto de 2017, para exercerem o direito de audição relativamente ao conteúdo do projecto de relatório (cfr. Anexo 33 do RIT junto pela Requerida);

q)           A Requerente não exerceu o direito de audição prévia, convertendo-se em definitivo o projecto de relatório de inspecção tributária;

r)            A Requerente foi notificada desse mesmo relatório, correspondente às ordens de serviço n.ºs OI2016..., OI2016... e OI2016..., relativas aos exercícios de 2013, 2014 e 2015, na pessoa seu administrador D..., mediante o ofício n.º ..., datado de 31 de Outubro de 2017;

s)            No seguimento daquele procedimento foi instaurado, pelos serviços de inspecção tributária da direcção de finanças de Lisboa, ao abrigo da ordem de serviço n.º OI20180..., um novo procedimento inspectivo interno de âmbito parcial na esfera da Requerente, enquanto sociedade dominante, por forma a reflectir no resultado do grupo as correcções apuradas ao exercício de 2014 na esfera individual da Requerente;

t)            A Requerente foi posteriormente notificada, mediante o ofício n.º..., datado de 25 de Julho de 2018, para exercer o direito de audição sobre o projecto de correcções do relatório de inspecção tributária, nele se indicando que a pronúncia deveria incidir “sobre correções específicas à declaração do grupo, dado que, relativamente às correções efectuadas nos resultados individuais, em devido tempo já foi notificado, tendo igualmente sido notificado do resultado daquela acção de inspecção” (cfr. RIT junto pela Requerida e Documento 4 junto pela Requerente);

u)           A Requerente exerceu, por escrito, o direito de audição prévia sobre o teor daquele projecto de correcções do relatório da inspecção tributária, mediante requerimento datado de 13 de Agosto de 2018;

v)            A AT considerou que a Requerente se pronunciou sobre o procedimento inspectivo titulado pela ordem de serviço n.º OI2016... e não sobre a ordem de serviço n.º OI2018..., isto é, que se pronunciou sobre as correcções aos exercício de 2014 operadas na sua esfera individual e não sobre as correcções ao lucro tributável do exercício de 2014 do grupo, razão pela qual não alterou o projecto de decisão, convertendo-se este em definitivo. A Requerente foi notificada pelos serviços de inspecção tributária da direcção de finanças de Lisboa, mediante o ofício n.º..., datado de 15 de Outubro de 2018, do relatório de inspecção tributária;

w)          Posteriormente, em 24 de Outubro de 2018, foi emitida a liquidação adicional de IRC n.º 2018..., que incorpora a correcção ao lucro tributável do exercício de 2014, no que concerne à mais valia fiscal obtida com a alienação onerosa de participações sociais às quais não era aplicável o regime de isenção do artigo 51.º-C, do Código do IRC; bem como os correspondentes actos de liquidação de juros compensatórios n.º 2018... e de juros moratórios n.º 2018 ..., que perfazem um montante total a pagar de € 778.632,85 (cfr. Documento 2 junto pela Requerente);

x)            A requerente deduziu, em 8 de Fevereiro de 2019, reclamação graciosa contra os actos de liquidação adicional de IRC, de liquidação de juros e de liquidação de juros moratórios (cfr. Documento 7 junto pela Requerente);

y)            Através de despacho datado de 12 de Agosto de 2019 a Requerente foi notificada para, querendo, exercer o direito de audição prévia relativamente ao projecto de decisão de indeferimento do pedido de reclamação graciosa, não tendo esse direito sido exercido (cfr. Documento 8 junto pela Requerente);

z)            Em 19 de Setembro de 2019, foi a Requerente notificada do despacho do director de finanças adjunto, datado de 16 de Setembro de 2019, que decidiu convolar em definitivo o projecto de decisão e, consequentemente, indeferir a reclamação graciosa instaurada sob o procedimento n.º ...2019... (cfr. Documento 1 junto pela Requerente);

aa)         Em 18 de Dezembro de 2019, a Requerente apresentou pedido de pronúncia arbitral tendo em vista a declaração de ilegalidade e consequente anulação do Despacho proferido pelo director de finanças adjunto de Lisboa, que indeferiu a reclamação graciosa, bem como a declaração de ilegalidade dos actos tributários de liquidação adicional de IRC, de liquidação de juros compensatórios e de liquidação de juros moratórios que são alvo daquele pedido, com a consequente anulação do montante de imposto indevidamente liquidado;

bb)         O pedido de pronúncia arbitral foi apreciado para efeitos do disposto no artigo 13.º, do RJAT, tendo sido proferido despacho pela subdirectora-geral da área de gestão tributária do IR, datado de 2 de Junho de 2020, no qual se determinou a revogação parcial do acto contestado, no que em concreto respeita à mais-valia derivada da alienação das participações sociais provenientes das entradas em espécie efectuadas por via da conversão de prestações acessórias realizadas em Fevereiro de 2012, com a fundamentação expendida na Informação da DSIRC n.º 483/2020;

cc)          Em 28 de Setembro de 2020, foi realizada a reunião a que alude o artigo 18.º, do RJAT, tendo sido efectuadas declarações de parte por via da inquirição do administrador da Requerente, D...; tendo ainda sido inquirida a testemunha arrolada pela Requerente, na qualidade de directora financeira, E...;

dd)         As testemunhas arroladas não foram ouvidas no decurso dos procedimentos de inspecção tributária de que a Requerente foi alvo relativamente às correcções operadas às mais-valias realizadas no exercício fiscal de 2014, nem no decurso do procedimento de reclamação graciosa por esta apresentado relativamente aos actos de liquidação que materializaram aquelas correcções (cfr. prova testemunhal produzida e expressa no ponto 20 das alegações finais escritas da Requerente);

ee)         Em 29 de Outubro de 2020, a Requerente apresentou alegações escritas nas quais juntou um parecer aos autos.

 

III.1.2. Factos não provados

 

16. Com relevo para a decisão da causa, não existem factos que devam considerar-se como não provados.

 

III.1.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

17. Ao Tribunal incumbe o dever de seleccionar os factos que interessam à decisão e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada, não tendo de se pronunciar sobre todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre da aplicação conjugada do artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e do artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa foram seleccionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é determinada tendo em conta as várias soluções plausíveis das questões de direito para o objecto do litígio, conforme decorre da aplicação conjugada dos artigos 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

Assim, atendendo às posições assumidas pelas partes, à luz do disposto no artigo 110.º, n.º 7, do CPPT; à prova documental por estas apresentada; bem como à prova testemunhal produzida que versou essencialmente, por um lado, sobre a falta de inquirição das testemunhas arroladas pela Requerente no âmbito do procedimento de inspecção tributária e no âmbito do procedimento de reclamação graciosa e, por outro, sobre as diversas operações realizadas no âmbito do grupo que culminaram nas mais-valias com a alienação de participações sociais subjacentes aos actos de liquidação emitidos pela AT ora impugnadas pela Requerente; consideram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

 

III.2. MATÉRIA DE DIREITO

III.2.1. Considerações prévias sobre a ordem de conhecimento dos vícios alegados

 

                18. Sobre a ordem do conhecimento dos vícios, determina o artigo 124.º do CPPT, subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e c) do RJAT, que o Tribunal apreciará prioritariamente os vícios que conduzam à declaração de inexistência ou nulidade do acto impugnado e, depois, os vícios arguidos que conduzam à sua anulação.

Não tendo sido alegado nenhum vício conducente à nulidade, a apreciação dos vícios é feita pela ordem indicada pela Requerente, desde que se estabeleça entre eles uma relação de subsidiariedade e não sejam arguidos outros vícios pelo Ministério Público.

                Assim sendo, começar-se-á pela apreciação dos efeitos da revogação parcial do acto de liquidação impugnado, apreciando-se de seguida os vícios atinentes à falta de fundamentação dos actos de liquidação adicional de IRC e do Relatório de Inspecção Tributária. Posteriormente aferir-se-á a alegada preterição de formalidade legal essencial e, bem assim, a violação do direito de audição, na vertente do direito de os interessados requererem a realização de diligências complementares. Por último, será apreciada a legalidade do acto de liquidação adicional de IRC por referência às correcções operadas quanto às mais-valias realizadas com a alienação de participações sociais.

 

III.2.2. Questão prévia: efeitos da revogação parcial do acto de liquidação

 

19. O acto de liquidação ora impugnado pela Requerente foi alvo de apreciação para efeitos do disposto no artigo 13.º, do RJAT, tendo sido proferido despacho pela subdirectora geral da área de gestão tributária do IR, datado de 2 de Junho de 2020, no qual se determinou a sua revogação parcial, no que em concreto respeita à mais-valia derivada da alienação das participações socias provenientes das entradas em espécie efectuadas por via da conversão de prestações acessórias realizadas em Fevereiro de 2012, com a fundamentação expendida na Informação da DSIRC n.º 483/2020. No seguimento desse despacho, veio a Requerente comunicar que nada tinha a opor ao mesmo, pronunciando-se pela manutenção da instância arbitral para efeitos de apreciação das restantes correcções efectuadas ao lucro tributável do exercício de 2014. Posteriormente, emitiu a AT o acto de liquidação de IRC n.º 2020..., que visou conferir execução à revogação parcial que havia sido determinada quanto ao acto de liquidação adicional de IRC n.º 2018... que constitui objecto do presente processo, tendo a AT procedido ao reembolso do montante de € 102.957,50 indevidamente liquidado.

Após a emissão daquele acto, veio a Requerente apresentar pedido de ampliação do objecto dos presentes autos, ao abrigo do disposto no artigo 265.º, n.º 2, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, “de forma a incluir, também, o acto de liquidação adicional de IRC n.º 2020..., com vista ao conhecimento da sua (i)legalidade, nos termos e com os mesmos fundamentos invocados no Pedido de Pronúncia Arbitral”. Mais dispôs a Requerente que “a Administração tributária não procedeu à emissão da referida nota de crédito até ao 30.º dia posterior à decisão, por si tomada, de anulação parcial do acto tributário aqui em crise”, requerendo assim que “a Administração tributária seja condenada ao pagamento dos juros indemnizatórios devidos, no mais se concluindo como no Pedido de Pronúncia Arbitral”.

Quanto a este requerimento de ampliação do objecto, retorquiu a Requerida que “o ato de liquidação de IRC n.º 2020... é meramente executório da decisão de revogação parcial proferida” pelo que “[n]ão te[rá] sido efetuada, como erroneamente refere a Requerente (…) qualquer liquidação adicional respeitante a IRC do exercício de 2014”.

                Prosseguiu a Requerida arguindo que os tribunais arbitrais que funcionam no CAAD têm a sua competência e os seus poderes de cognição delimitados por via do RJAT, o que implica que a sua competência se encontre limitada às condenações declaratórias com fundamento em ilegalidade, sendo que a Requerente não teria imputado à liquidação de IRC n.º 2020... vícios próprios de um acto de liquidação. Assim, no seu entender, ao estar em causa uma questão relacionada com a execução de julgados, seriam competentes para a apreciação do pedido os tribunais tributários, no âmbito do processo previsto no artigo 146.º, do CPPT e nos artigos 173.º e seguintes, do CPTA.

                Em suma, o Tribunal Arbitral não teria competência para “a apreciação autónoma do pedido de reconhecimento do direito ao pagamento de juros indemnizatórios”.

                Quanto a esta questão, e conforme se deixou assente no rol de factos provados, a Requerida procedeu efectivamente à revogação parcial do acto de liquidação adicional de IRC n.º 2018 ...  tendo, consequentemente, efectuado o reembolso do montante de imposto que havia sido indevidamente liquidado no valor de € 102.957,50. Nestes termos, o acto liquidação de IRC n.º 2020 ... apenas visou dar cumprimento ao despacho proferido pela subdirectora-geral da área de gestão tributária do IR, datado de 2 de Junho de 2020.

Ora, a revogação daquele acto de liquidação implica que os efeitos por ele produzidos tenham sido parcialmente eliminados da ordem jurídica, sendo reestabelecida a situação anteriormente existente, de tal modo que se verifica uma inutilidade superveniente da lide apenas quanto à parte da liquidação que foi revogada, pelo que dela não se tomará conhecimento, com fundamento no artigo 130.º, do CPC, subsidiariamente aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT. Neste sentido, ao constituir a pretensão de ampliação do objecto deduzida pela Requerente, no que em concreto respeita à condenação da AT ao pagamento de juros indemnizatórios, uma pretensão condenatória de natureza acessória ou consequencial relativamente à parte do acto de liquidação que foi revogado, também esse conhecimento por este Tribunal fica afectado em virtude de impossibilidade superveniente da lide por falta de objecto processual.

A manutenção parcial do acto de liquidação na ordem jurídica implica que a Requerente não obteve total satisfação da sua pretensão pela via administrativa, daí ter expressado a sua intenção quanto ao prosseguimento do processo arbitral para apreciação das demais correcções efectuadas ao lucro tributável do exercício de 2014, termos em que deve o processo prosseguir para apreciação dos restantes pedidos que conformam o objecto deste processo.

 

III.2.3. Falta de fundamentação dos actos de liquidação e do Relatório de Inspecção Tributária

 

20. A Requerente veio suscitar a apreciação da ilegalidade do acto de liquidação adicional de IRC e do Relatório de Inspecção Tributária por entender que a necessária fundamentação de facto e de direito não se encontrava contida nas notificações daqueles actos, não sendo a mesma perceptível para um destinatário normal, não permitindo assim à Requerente conhecer o itinerário cognoscitivo que subjaz às decisões neles vertidas, de tal modo que aqueles actos estariam inquinados de vício de forma nos termos dos artigos 268.º, n.º 3, da CRP, e 77.º, da LGT, o que seria fundamento da sua anulabilidade de acordo com o artigo 163.º, do CPA.

Referiu ainda a Requerente que o cumprimento dos requisitos mínimos de fundamentação exigidos nos termos do artigo 77.º, n.º 2, da LGT, não se poderia bastar com a remissão, sem mais, no acto de notificação da liquidação, para um documento externo à mesma. A este respeito, seria não só necessária uma remissão expressa na notificação daquele acto, como também seria necessário que a AT referisse expressamente e identificasse o relatório, parecer, informação ou proposta com que manifestava a sua adesão ou concordância e que permitia fundamentar devidamente aquele acto. Por outro lado, a própria fundamentação do relatório de inspecção tributária também não seria suficiente nem clara, visto que a AT se teria baseado em meros juízos conclusivos que não teriam permitido à Requerente aferir da legalidade dos argumentos invocados e, assim, optar pela contestação ou acatamento do acto de liquidação em juízo.

 

21. Cumpre decidir tendo em consideração, em primeiro lugar, o enquadramento do direito à fundamentação para, de seguida, verificar se o mesmo foi ou não cumprido pela AT.

O direito à fundamentação consiste num direito dos administrados com consagração constitucional dispondo-se, ao que importa, no artigo 268.º, da CRP, que:

1. Os cidadãos têm o direito de ser informados pela Administração, sempre que o requeiram, sobre o andamento dos processos em que sejam directamente interessados, bem como o de conhecer as resoluções definitivas que sobre eles forem tomadas.

(…)

3. Os actos administrativos estão sujeitos a notificação aos interessados, na forma prevista na lei, e carecem de fundamentação expressa e acessível quando afectem direitos ou interesses legalmente protegidos.

4. É garantido aos administrados tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, incluindo, nomeadamente, o reconhecimento desses direitos ou interesses, a impugnação de quaisquer actos administrativos que os lesem, independentemente da sua forma, a determinação da prática de actos administrativos legalmente devidos e a adopção de medidas cautelares adequadas. (…)”.

 

Este direito dos administrados que consiste, simultaneamente, num dever que impende sobre a administração é concretizado, ao que interessa, no domínio do procedimento tributário, no artigo 77.º, da LGT, nos seguintes termos:

“Artigo 77.º

Fundamentação e eficácia

1 - A decisão de procedimento é sempre fundamentada por meio de sucinta exposição das razões de facto e de direito que a motivaram, podendo a fundamentação consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, incluindo os que integrem o relatório da fiscalização tributária.

2 - A fundamentação dos actos tributários pode ser efectuada de forma sumária, devendo sempre conter as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo. (…)”.

 

No seio da Doutrina, salientam DIOGO LEITE DE CAMPOS, BENJAMIM SILVA RODRIGUES E JORGE LOPES DE SOUSA, em Lei Geral Tributária - Anotada e Comentada, 2012, Encontro da Escrita, pp. 675 e ss, que o cumprimento daquele dever de fundamentação – no qual se inclui o preenchimento dos requisitos mínimos de fundamentação exigidos nos termos do artigo 77.º, n.º 2, da LGT – visa conferir aos sujeitos passivos a possibilidade de atestarem a legalidade do acto, tomando a opção consciente entre a sua aceitação ou a sua impugnação pela via administrativa ou judicial.

Em idêntico sentido dispôs o Supremo Tribunal Administrativo no acórdão de 12 de Março de 2014, proferido no âmbito do processo n.º 01674/13, ao que referir que “o acto estará suficientemente fundamentado quando o administrado, colocado na posição de destinatário normal - o bonus pater familiae de que fala o art. 487º nº 2 do C.Civil – possa ficar a conhecer as razões factuais e jurídicas que estão na sua génese, de modo a permitir-lhe optar, de forma esclarecida, entre a aceitação do acto ou o accionamento dos meios legais de impugnação, e de molde a que, nesta última circunstância, o tribunal possa também exercer o efectivo controle da legalidade do acto, aferindo do seu acerto jurídico em face da sua fundamentação contextual. Significa isto que a fundamentação, ainda que feita por remissão ou de forma sucinta, não pode deixar de ser clara, congruente e encerrar os aspectos de facto e de direito que permitam conhecer o itinerário cognoscitivo e valorativo prosseguido pela Administração na determinação do acto”.

                A respeito da possibilidade de fundamentação por via da remissão, adesão, ou concordância com outros actos – possibilitada, desde logo, pelos artigos 77.º, n.º 1, da LGT, e 63.º, n.º 1, do RCPITA – esclareceu aquele Tribunal, no acórdão de 19 de Maio de 2004, proferido no âmbito do processo n.º 0228/03, que “ Não vale como fundamentação a motivação apresentada posteriormente à prática do acto, nem a constante de peças instrutórias anteriores para as quais não tenha sido feita remissão, expressa ou implícita”, pelo que a remissão, se não for expressa, terá de decorrer do contexto do acto tributário em si ou do qual este emerge, conquanto se mantenha possível ao sujeito passivo, colocado na posição de um destinatário normal, alcançar o itinerário cognoscitivo levado a cabo pela AT na tomada de decisão.

               

                22. Transpondo estas considerações para o caso em juízo, entende o Tribunal que não assiste razão à Requerente quando afirma no seu pedido de pronúncia arbitral que “os fundamentos, de facto e de direito, que subjazem aos actos de liquidação ora em crise, não se encontram plasmados nas notificações dos mesmos, não sendo perceptíveis, quer para um destinatário normal, quer também, principalmente, para a ora REQUERENTE” e que “não há qualquer referência, expressa ou implícita, a um qualquer documento concreto, que eventualmente, tenha sido anteriormente notificado à REQUERENTE”, embora afirme constantemente que “esta adesão ou concordância tem, necessariamente, que ser expressa, o que não sucedeu no caso vertente”.

                Conforme decorre da prova documental carreada pelas partes para o processo, constata se que na demonstração de liquidação notificada à Requerente está em causa uma liquidação de IRC efectuada por referência ao período de 2014, na qual se refere a “fundamentação já remetida” (cfr. Documento 2). É certo que não se refere expressamente o documento, parecer, informação ou proposta do qual consta a fundamentação do acto, contudo, essa remissão é possível de ser inferida em função do contexto no qual o acto foi praticado.

                O acto de liquidação adicional de IRC ora impugnado pela Requerente foi emitido, em 24 de Outubro de 2018, na sequência de dois procedimentos inspectivos que versaram, ao que importa, sobre o período de tributação de 2014. Um primeiro, titulado pela ordem de serviço n.º OI2016..., por referência à esfera individual da Requerente. Um segundo, titulado pela ordem de serviço n.º OI2018..., por referência à sua esfera enquanto sociedade dominante de um grupo abrangido pelo Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades, no qual se visou concretizar as correcções no perímetro do grupo que haviam sido apuradas previamente na sua esfera individual.

Quanto a este último procedimento inspectivo verificou-se que a Requerente exerceu, por escrito, mediante requerimento datado de 13 de Agosto de 2018, o direito de audição prévia sobre o teor do projecto de correcções do relatório de inspecção tributária que veio a converter se em definitivo. Relatório esse que foi notificado à Requerente mediante ofício datado de 15 de Outubro de 2018, nele se referindo expressamente que “A breve prazo, os serviços da AT procederão à notificação da liquidação respectiva, a qual conterá os meios de defesa, bem como o prazo de pagamento, se a ele houver lugar”. Sendo certo que o relatório da acção inspectiva titulada pela ordem de serviço n.º OI2016..., que havia sido elaborado por referência à esfera individual da Requerente, consiste no anexo I do relatório da acção inspecção titulada pela ordem de serviço n.º OI2018..., que projectou no resultado do grupo as correcções anteriormente efectuadas.

Em função do período temporal decorrido entre os vários actos e tendo em conta o contexto em que o acto tributário emerge, é compreensível para um destinatário normal – que inclusive foi notificado, participou e, portanto, conhece os procedimentos antecedentes – que a referência para a “fundamentação já remetida” que consta da demonstração de liquidação adicional de IRC foi efectuada, ainda que implicitamente, para o relatório de inspecção tributária. Tendo a liquidação sido baseada nas considerações elaboradas no Relatório de Inspecção Tributária, cumpre salientar que desse mesmo relatório consta um quadro factual pormenorizado e exaustivo, bem como um enquadramento aprofundado das normas jurídicas aplicáveis e nas quais se baseiam as correcções efectuadas. Assim sendo, tal como referiu o Supremo Tribunal Administrativo no acórdão de 9 de Maio de 2001, proferido no âmbito do processo n.º 025832, é possível afirmar que estava em causa um acto de liquidação “baseado em relatório dos serviços de fiscalização tributária, que, ainda que lhe não faça referência expressa, se situa, indubitavelmente, no respectivo quadro legal e fáctico, perfeitamente claro, esclarecedor e devidamente notificado”.

Ora, cumpre ainda salientar a este respeito que a falta de remissão expressa do acto de liquidação para o relatório de inspecção tributária não constituiu um entrave para a Requerente apreender devidamente a respectiva fundamentação, já que no exercício da tutela impugnatória administrativa e jurisdicional que lhe assiste, foi possível à Requerente imputar à liquidação adicional de IRC referente ao exercício de 2014 um conjunto de vícios que demonstram um perfeito conhecimento do quadro fáctico e legal no qual se baseou a actuação da AT.

Em face do exposto, será forçoso concluir se que os requisitos legais mínimos de fundamentação, exigidos nos termos dos artigos 268.º, n.º 3, da CRP, e 77.º, da LGT, foram devidamente cumpridos, sendo perceptível para um destinatário normal que os fundamentos do acto de liquidação notificado à Requerente são os fundamentos constantes do relatório de inspecção tributária que lhe foi igualmente notificado. Tendo-se ainda concluído que a Requerente compreendeu devidamente o itinerário cognoscitivo levado a cabo pela AT na tomada de decisão, julga-se improcedente o vício de falta de fundamentação imputado pela requerente aos actos de liquidação e ao relatório de inspecção tributária.

 

III.2.4. Preterição de formalidade legal essencial

 

                23. A este respeito a Requerente veio alegar que não havia sido notificada para exercer o direito de audição antes da liquidação nos termos e para os efeitos do artigo 60.º, n.º 1, alínea a), da LGT, o que, por si só, determinaria a anulação dos actos de liquidação contestados, por preterição de formalidade legal essencial.

                Por seu turno, sustenta a Requerida que não estaria obrigada a notificar a Requerente para efeitos de exercício do direito de audição antes de liquidação em virtude da aplicabilidade do artigo 60.º, n.º 3, da LGT, que dispensa expressamente aquela mesma audição.

 

                24. Estabelece aquele preceito legal que:

“Artigo 60.º

Princípio da participação

1 - A participação dos contribuintes na formação das decisões que lhes digam respeito pode efectuar-se, sempre que a lei não prescrever em sentido diverso, por qualquer das seguintes formas:

a) Direito de audição antes da liquidação;

b) Direito de audição antes do indeferimento total ou parcial dos pedidos, reclamações, recursos ou petições;

c) Direito de audição antes da revogação de qualquer benefício ou acto administrativo em matéria fiscal;

d) Direito de audição antes da decisão de aplicação de métodos indirectos, quando não haja lugar a relatório de inspecção;

e) Direito de audição antes da conclusão do relatório da inspecção tributária.

(…)

3 - Tendo o contribuinte sido anteriormente ouvido em qualquer das fases do procedimento a que se referem as alíneas b) a e) do n.º 1, é dispensada a sua audição antes da liquidação, salvo em caso de invocação de factos novos sobre os quais ainda se não tenha pronunciado. (…)”.

 

                Conforme decorre da matéria de facto carreada pelas partes para o processo e dada como provada, verifica-se que a Requerente foi devidamente notificada para exercer o seu direito de audição quanto ao projecto de conclusões do RIT que resultou da acção inspectiva externa de âmbito parcial, titulada pela Ordem de Serviço n.º OI2016..., tendo optado por não exercer aquele direito.

Posteriormente, foi notificada para exercer o seu direito de audição quanto ao projecto de conclusões do RIT que resultou da acção inspectiva interna de âmbito parcial, titulada pela Ordem de Serviço n.º OI2018..., tendo exercido aquele direito, por escrito, mediante requerimento datado de 13 de Agosto de 2018, no qual se pronunciou sobre o teor das correcções que nele constavam.

Após a apresentação de reclamação graciosa quanto ao acto de liquidação em crise, foi a Requerente notificada para exercer o seu direito de audição quanto ao projecto de decisão da reclamação graciosa, tendo optado por não se pronunciar.

                Ora, conforme se vislumbra, a Requerente foi devidamente notificada, nos termos do artigo 60.º, n.º 1, da LGT, para exercer o direito de audição nas diversas fases do procedimento ocorridas no caso em juízo, tendo exercido aquele direito numa dessas fases, enquanto que noutras optou por não o exercer por sua exclusiva vontade.

Nestes termos, assiste razão à AT quando refere que ao abrigo do artigo 60.º, n.º 3, da LGT, estava dispensada a audição da Requerente antes da liquidação adicional de IRC referente ao exercício fiscal de 2014, pelo que se deve dar por não verificada a preterição de formalidade legal essencial sendo, em consequência, improcedente, esta parte do pedido arbitral.

 

III.2.5. Violação do direito de audição, na vertente do direito dos interessados requererem a realização de diligências complementares

               

                25. Advogou a este respeito a Requerente que a AT violou o seu direito de audição na medida em que indeferiu o pedido de inquirição da sua Directora Geral e do seu Administrador, quer no seio do procedimento inspectivo titulado pela ordem de serviço n.º OI2018..., quer no seio do procedimento de reclamação graciosa. Para sustentar a sua posição a Requerente, através de uma análise jurisprudencial, defendeu que a AT não teria fundamentado suficientemente o indeferimento daqueles pedidos, para além de que teria efectuado uma errónea aplicação do artigo 69.º, alínea e), do CPPT, ao limitar à forma documental os meios probatórios passíveis de serem utilizados em sede de procedimento de reclamação graciosa. Assim, a violação do direito de audição, na vertente do direito de requerer a realização de diligências complementares, consistiria num vício procedimental que inquinaria de ilegalidade as liquidações objecto do presente pedido de pronúncia arbitral que, em consequência, deveriam ser anuladas com base naquele vício.

                Por seu turno referiu a Requerida que, ao abrigo do princípio da plenitude probatória, o órgão competente para a decisão da instrução pode utilizar, em regra, todos os meios de prova admitidos em Direito tendo em conta o fim último de descoberta da verdade material, conforme dispõem os artigos 71.º e 72.º, ambos da LGT, bem como o artigo 50.º, do CPPT. Em todo o caso, recaía na discricionariedade técnica do instrutor do procedimento a determinação e selecção dos meios a adoptar, não se encontrando aquele obrigado a realizar todas as diligências requeridas pelo contribuinte sendo certo que, nos termos do artigo 69.º, alínea e), do CPPT, o legislador havia expressamente limitado à prova documental os meios de prova admissíveis em sede de procedimento de reclamação graciosa.

                Entendeu assim a AT que no decurso dos procedimentos efectuados pela AT foram facultados todos documentos necessários e suficientes à compreensão da situação, designadamente contratos, actas com as deliberações proferidas em Assembleias Gerais, pastas da contabilidade, relatórios do ROC, avaliação das participações sociais e modo de contabilização de todas estas operações, tudo isto suportado em anexos que ficaram a fazer parte dos RIT, pelo que a prova testemunhal não poderia trazer algo de mais significativo ou relevante que contribuísse para uma clarificação da situação e influenciasse a decisão a adoptar.

 

                26. A título prévio, cumpre efectuar um singelo enquadramento dos princípios em questão.

                Por um lado, verifica-se que aos contribuintes assiste o direito constitucionalmente consagrado, no artigo 267.º, n.º 5, da CRP, de participação na formação das decisões que lhes digam respeito, sendo este um direito que é concretizado no procedimento tributário, em regra, por via do exercício do direito de audição. Deste direito, constante do artigo 60.º, da LGT, decorre o princípio do contraditório, previsto no artigo 45.º, do CPPT, conferindo-se assim aos contribuintes a possibilidade de trazerem ao processo elementos de facto e de direito que lhes permitam efectuar uma reapreciação da matéria em questão e, por essa forma, obter uma decisão favorável às suas pretensões. No âmbito destes direitos inclui-se a possibilidade de requerer à AT a realização de diligências complementares, designadamente a inquirição de testemunhas.

                Por outro lado, constata-se que a AT se encontra vinculada à prossecução do interesse público, tendo a obrigação de realizar as diligências que se afigurem necessárias ao apuramento da verdade material dos factos na qual deve assentar a sua decisão, dando assim cumprimento ao princípio do inquisitório que deve pautar a sua actuação. Contudo, deste princípio não resulta a obrigatoriedade para a AT de realizar todas as diligências requeridas pelos contribuintes, nem a admissibilidade absoluta de todos os meios de prova, pelo que recairá sobre o órgão instrutor do procedimento um prudente juízo de adequação dessas diligências e dos meios de prova com vista à realização do interesse público, isto é, que sejam necessários para a alcançar a verdade material.

                Por esta razão, e conforme esclarece JORGE LOPES DE SOUSA, em Código de Procedimento e de Processo Tributário - Anotado e Comentado, Volume I, 2011, Áreas, pp. 440-441, a violação do princípio do inquisitório e do direito de audição na vertente de os interessados requererem a realização de diligências complementares apenas ocorrerá se a AT recusar a realização de diligências ou meios de prova que, por se afigurarem necessários para a obtenção da verdade material quanto aos factos em que irá assentar a decisão do procedimento, deveriam ter sido realizadas. Sendo certo que essa “recusa dever[á ser] justificada, nomeadamente por se entender que a lei não permitia tal depoimento ou porque a diligência não se justificava em face dos elementos probatórios já existentes no processo, conforme referiu o Supremo Tribunal Administrativo no acórdão datado de 12 de Outubro de 2011, proferido no âmbito do processo n.º 0463/11 ou, mais recentemente, em idêntico sentido, no acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, datado de 18 de Abril de 2018, proferido no âmbito do processo n.º 06559/13, no qual se aludiu à necessidade de justificação sumária de uma eventual recusa. Caso não se cumpra com esse dever de fundamentação sumário, o acto final do procedimento incorrerá num vício de violação de lei susceptível de determinar a sua anulabilidade.

               

27. Atendendo agora ao caso em juízo, alegou a Requerente que no artigo 69.º, alínea e), do CPPT, o legislador não limitou expressamente à prova documental os meios de prova admissíveis em sede de procedimento de reclamação graciosa, ao contrário do que havia propugnado a AT naquele procedimento e posteriormente reafirmado na resposta ao pedido de pronúncia arbitral.

Ora, da letra do referido preceito, resulta que a limitação dos meios probatórios à forma documental no procedimento de reclamação graciosa é efectuada “sem prejuízo do direito de o órgão instrutor ordenar outras diligências complementares manifestamente indispensáveis à descoberta da verdade material”. (sublinhado nosso)

Assim sendo, a admissibilidade da produção de prova testemunhal não pode ser afastada de forma absoluta, tal como se referiu no acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, datado de 30 de Março de 2017, proferido no âmbito do processo n.º 00768/10.6BEPNF, que foi citado por ambas as partes, no qual se refere a este respeito que “a restrição aí consignada não pode obstar à utilização de outros meios de prova, além dos aí referidos, e que a administração tributária está obrigada a diligenciar se forem indispensáveis e necessárias ao apuramento da verdade material, sob pena de violação do princípio do inquisitório”, posição que é igualmente perfilhada na decisão arbitral, datada de 11 de Março de 2019, proferida no âmbito do processo n.º 154/2018-T, citada pela AT na sua resposta ao presente pedido de pronúncia arbitral.

                Deste modo, a determinação da violação do direito de audição no sentido ora invocado pela Requerente terá de ser aferida em função da justificação dada pela AT para a não audição das testemunhas arroladas no decurso do procedimento inspectivo e do procedimento de reclamação graciosa.

                No âmbito do procedimento de inspecção tributária, titulado pela ordem de serviço n.º OI2018..., a Requerente requereu “para comprovação dos factos alegados, incluindo o funcionamento do portal das finanças” a inquirição da sua Directora Geral e do seu Administrador (cfr. Documento 5 junto pela Requerente). Por seu turno, a AT negou a realização das diligências complementares requeridas pela Requerente sustentando que “Quanto ao pedido final de inquirição de testemunhas na questão do «(…) erro de funcionamento do portal das finanças», nada nos apraz informar considerando que, para além de nada ser referido ao longo da petição, nem sequer colide com os factos objecto de correcção, não possibilitando a alteração da AT” (cfr. Documento 6 junto pela Requerente).

                A este respeito cumpre ainda salientar que no ponto 21 do exercício do direito de audição no âmbito daquele procedimento de inspecção tributária a Requerente afirmou que “Conforme se pode compreender, nomeadamente por via das remissões incluídas pela EXPONENTE nos pontos acima, os factos aqui considerados, e que vão ser tomados como pressuposto para a determinação da mais-valia fiscal efectivamente sujeita a tributação, são os mesmos que foram considerados pela Administração tributária no Relatório de Inspeção” (cfr. Documento 5 junto pela Requerente).

                Ora, uma vez que é a própria Requerente que afirma no decurso do direito de audição que a reapreciação da questão de direito por si suscitada tem por base os factos apurados pela AT no relatório de inspecção tributária, não pode considerar-se injustificada a decisão tomada pela AT, ao abrigo do seu juízo de adequação e no exercício da livre condução do procedimento, de que as diligências complementares requeridas não se afiguravam necessárias ao abrigo do princípio do inquisitório.

                Já no que respeita à recusa da inquirição das testemunhas no âmbito do procedimento de reclamação graciosa – que, como já se referiu, não pode ser liminarmente rejeitada com fundamento no artigo 69.º, alínea e), do CPPT –, referiu a AT que:

                “Ora da leitura do RIT, parece-nos que os serviços de inspeção tributária procederam às correções em apreço, em face dos documentos disponibilizados e das informações prestadas pela Reclamante.

Ao contribuinte competirá o ónus de provar a realidade daquelas operações, não lhe bastando criar dúvida da sua veracidade.

Ora, constatamos que, agora em sede de reclamação graciosa, a Reclamante não logrou carrear com a sua petição os documentos probatórios das suas alegações, que possam contrariar os factos subjacentes às correções promovidas pelos serviços de inspeção tributária, que permitam à Administração Tributária uma nova abordagem da situação em apreço

A reclamação graciosa feita pelo contribuinte, destina-se a obter uma reanálise de uma certa situação pela Administração Tributária; é a via normal de resolução de um litígio entre o sujeito passivo e a Administração Tributária.

Estabelece o nº 1 do artº 74º da L.G.T a regra de “quem alega deve provar” fazendo recair sobre os interessados o ónus de prova dos factos que interessam à sustentação da sua posição, o que equivale a dizer que havendo aqui um ónus de prova dos factos, ele recai sobre o interessado a quem aproveita.

Consequentemente, os factos também só devem ser considerados provados quando forem determinados com uma certeza absoluta, razão pela qual a não prestação de prova ou a sua prestação insuficiente não poderá deixar de influenciar o mérito da pretensão.

De acordo com o disposto na al. e) do art.º 69º do CPPT, no procedimento de reclamação graciosa os meios probatórios limitam-se à forma documental, pelo que aqui, nesta sede, não se afigura pertinente a inquirição de quaisquer testemunhas, como é requerido pela reclamante.

E mesmo que fosse permitido, e atentos à matéria que se encontra em apreciação, parece-nos que, a prova testemunhal por si só, desacompanhada de outros elementos de prova, designadamente documentais, dificilmente convenceria a Administração Tributária da realidade das operações e/ou da sua dimensão.

Parece-nos, assim, que não nos merecem quaisquer reparos as correções promovidas pelos serviços de inspeção truibutária.”

                Conforme se depreende, e ainda que faça uma leitura errada do artigo 69.º, alínea e), do CPPT, parece que a AT acaba por justificar a recusa de inquirição das testemunhas arroladas com base na matéria que a Requerente pretende ver reapreciada e com base na prova já produzida pelos serviços de inspecção aquando da elaboração do relatório de inspecção tributária.

                Situação que é confirmada pela AT quando na resposta ao pedido de pronúncia arbitral em juízo refere que “(…) no decurso dos procedimentos efectuados pela AT foram facultados todos documentos necessários e suficientes à compreensão da situação, designadamente contractos, actas com as deliberações proferidas em Assembleias Gerais, pastas da contabilidade, relatórios do ROC, avaliação das participações sociais e modo de contabilização de todas estas operações, tudo isto suportado em anexos que ficaram a fazer parte dos RIT (…) Ou seja, foi facultado um conjunto documental plenamente esclarecedor da verdade dos factos que permitia e permite o respetivo enquadramento jurídico-fiscal”, pelo que “não se vislumbra de que modo as testemunhas poderiam trazer algo de mais significativo ou relevante que contribuísse para uma clarificação da situação e influenciasse a decisão a tomar no sentido de conduzir a outra formulação do enquadramento e modo de tributação.”.

                Em face do exposto, tendo em conta a natureza da matéria controvertida; os elementos de prova carreados pelas partes e a sua relação com as questões a decidir; a liberdade de condução do procedimento pela administração; o cumprimento da justificação sumária de recusa de realização das diligências complementares; não pode considerar-se que a AT não tenha ponderado devidamente a adequação e utilidade da inquirição das testemunhas arroladas pela Requerente, isto é, não pode considerar-se que a AT, dentro do campo de discricionariedade de que goza na condução do procedimento, tenha negado a realização de diligências que se afiguravam indispensáveis e necessárias à obtenção da descoberta da verdade material.

                Deste modo, improcede o pedido da Requerente na parte em que alega a violação do direito de audição, na vertente do direito dos interessados requererem a realização de diligências complementares, por se considerar devidamente acutelado pela AT o cumprimento do princípio do inquisitório na prossecução do interesse público.

 

III.2.5. Ilegalidade da correcção à mais-valia fiscal por alienação de participações sociais

 

                28. A respeito das correcções efectuadas ao exercício fiscal de 2014, no que em concreto respeita aos valores apurados a título de mais-valias pela transmissão onerosa das participações sociais detidas na sociedade B...– SGPS, S.A., concluiu a Requerente no pedido de pronúncia arbitral pela:

a)            “inaplicabilidade do prazo mínimo de detenção das partes sociais por um período ininterrupto de 24 meses, exigido no n.º 1 do artigo 51º - C do CIRC à transmissão das 402.000 ações, representativas de 100% do capital social da B..., no contexto da constituição do capital da “C..., SGPS, SA”, ou, no limite;”

b)           “necessidade de tomar em consideração a data em que foram concedidos os créditos, cuja conversão em capital (no contexto do aumento de capital da B...) deu origem às ações que vieram, no mesmo dia, a ser transmitidas para a esfera da “C..., SGPS, SA”, como entrada de capital.”.

 

                Deste modo, dividir-se-á a apreciação do peticionado pela Requerente de acordo com a ordem dos argumentos invocados.

 

III.2.5.1. Inaplicabilidade do prazo mínimo de detenção das partes sociais por um período ininterrupto de 24 meses, exigido nos termos do artigo 51.º-C, n.º 1, do Código do IRC

 

                29. Quanto a este aspecto, as partes fundamentaram a sua posição no seguinte:

A Requerente começou por afirmar que a “transmissão das participações sociais representativas do capital social da B...– SGPS, S.A., para a esfera da C..., SGPS, S.A., foi operada no contexto da constituição daquela sociedade e realização do seu capital social em espécie (…) tendo a REQUERENTE recebido, em contrapartida dessa transferência, 8.940 acções (participação de 89,40%) representativas do capital da C..., SGPS, S.A.”.

Sendo que esta operação de transmissão de participações sociais era susceptível de ser qualificada como uma entrada de activos para efeitos de aplicação do regime de neutralidade fiscal constante do artigo 73.º, do Código do IRC, fundamentando a sua posição com a ficha doutrinária publicada pela AT no âmbito do processo n.º 330/2007, de 30 de Janeiro de 2008.

Apesar de ser susceptível de aplicação daquele regime, referiu a Requerente que apenas não o tinha accionado “porque optou por registar na sua contabilidade as 8.940 acções (…) representativas do capital da C..., SGPS, recebidas em contrapartida da realização do capital daquela sociedade, por valor diferente (€ 44.700,00) daquele que as acções transmitidas (i.e. as acções representativas do capital da B...) tinham na sua contabilidade (€ 1.808.700,00), o que se apresenta incompatível com o accionamento do referido regime de neutralidade por não verificação do requisito previsto nos nºs 3 e 5 do artigo 74º do CIRC”.

                Contudo, ao não ser aplicável aquele regime da neutralidade fiscal, e tendo em conta que estava em causa uma operação de entrada de activos realizada pela Requerente, enquanto sociedade contribuidora, com sede ou direcção efectiva em território português, estariam reunidos os requisitos de que depende a aplicação da extensão prevista no artigo 51.º C, n.º 3, do Código do IRC.

                Isto na medida em que, ao estabelecer o artigo 46.º, n.º 5, alínea c), do Código do IRC, que à operação de entrada de activos aqui em causa é aplicável o regime de tributação de mais e menos-valias e, consequentemente, o regime do artigo 51.º C, n.º 1, do Código do IRC, “o único efeito útil do n.º 3 do artigo 51.º C do CIRC passará (…) pela extensão do regime previsto no n.º 1 do mesmo preceito, por forma a permitir a aplicação, sem mais requisitos (designadamente os de cumprimento do prazo mínimo de detenção das partes sociais por um período ininterrupto de 24 meses), às entradas de activos e demais operações de concentração de empresas”.

                Esta interpretação seria reforçada pelo facto de numa operação de concentração ou reestruturação de empresas, como é o caso das operações de entrada de activos, ocorrer um investimento da sociedade beneficiária na sociedade participada como uma verdadeira forma de exercício indirecto de uma actividade económica e não como uma mera aplicação financeira, pelo que as preocupações temporais subjacentes à aplicação do regime de participation exemption estariam afastadas.

                Por seu turno, veio a AT sustentar que a operação agora em juízo “não pode ser qualificada como uma entrada de ativos, como considera o sujeito passivo, nem se enquadra nas operações expressamente enumeradas no artigo 73.º do CIRC”. Isto na medida em que, para a realização daquela operação, seria fundamental que se efectuasse a transmissão de um ramo de actividade.

Com base na ficha doutrinária publicada pela AT no âmbito do processo n.º 2016 003474, de 27 de Junho de 2017, entendeu a Requerida que “a noção de ramo de atividade radica na possibilidade de um conjunto de elementos, materiais e humanos, poder funcionar pelos seus próprios meios, com total autonomia face a outros ramos de atividade da empresa, sendo que essa autonomia não pode surgir como consequência da própria operação, uma vez que a exploração daquela unidade económica autónoma tem de continuar a ser feita como o vinha sendo na sociedade contribuidora sem qualquer ajuste de recursos, de tal forma que os efeitos da transferência não se devem sentir no decurso normal da atividade”.

No caso em apreço, são transmitidas pela Requerente a totalidade das acções representativas do capital social da B...– SGPS, S.A., para a realização em espécie do capital da C..., SGPS, S.A., recebendo a Requerente como contrapartida acções representativas desta última. No entanto, a Requerente apenas registou como partes de capital da C..., SGPS, S.A., o valor de € 44.700, tendo registado os remanescentes € 4.425.300 numa conta de outros devedores. Nestes termos, concluiu a AT que a operação em causa não poderia constituir uma entrada de activos.

Em todo o caso, ainda que se considerasse estar em causa uma operação de entrada de activos, para que fosse aplicável o regime do artigo 51.º-C, do Código do IRC, sempre seria necessário o cumprimento dos requisitos estabelecidos no n.º 1 daquele artigo, no qual se inclui o requisito temporal de detenção das partes sociais por um período ininterrupto de 24 meses, sendo que esse requisito não se encontrava verificado.

Cumpre decidir.

 

                30. Conforme referiu a Requerente, a susceptibilidade de uma transmissão de participações sociais configurar uma transmissão de um ou mais ramos de actividade para efeitos de uma operação de entrada de activos encontra-se hoje ultrapassada sendo, aliás, admitida pela própria AT.

                Na ficha doutrinária publicada pela AT no âmbito do processo n.º 330/2007, de 30 de Janeiro de 2008, invocada pela Requerente para sustentar a sua posição, esclarece a AT que “O simples destaque de participações sociais não se reconduz a uma operação fiscalmente relevante de cisão simples para efeitos do regime da neutralidade fiscal, dado não consubstanciar, por si só, um ramo de atividade. Todavia, se conjuntamente com as participações se verifica a transmissão de outros elementos patrimoniais que configuram, no seu conjunto, uma infra-estrutura associada à gestão dessas participações, numa interação funcional com os títulos, estaremos perante um verdadeiro ramo de atividade, que pode constituir, pois, objecto de destaque enquanto tal no âmbito de cisão parcial fiscalmente relevante para efeitos do regime dos artigos 67 .º e seguintes do CIRC”. Ainda que a referida ficha doutrinária diga respeito a uma operação de cisão simples, as considerações nela expressas são passíveis de transposição para uma operação de entrada de activos, uma vez que a substância do entendimento ali referido se refere à configuração que a transmissão de participações sociais deve acarretar para que possa ser considerada enquanto um ramo de actividade.

                A exigência da “transmissão de outros elementos patrimoniais que configuram, no seu conjunto, uma infra-estrutura associada à gestão dessas participações, numa interação funcional com os títulos” parece ser corporizada pela AT na exigência de “um conjunto de elementos, materiais e humanos, poder funcionar pelos seus próprios meios, com total autonomia face a outros ramos de atividade da empresa”, tal como referido na ficha doutrinária publicada no âmbito do processo n.º 2016 003474, de 27 de Junho de 2017. Posição essa que é igualmente sufragada no âmbito de outras fichas doutrinárias que, apesar de não respeitarem a transmissões de participações sociais, respeitam a operações de entrada de activos, tais como a ficha doutrinária publicada no âmbito do processo n.º 2016 003474, de 27 de Junho de 2017, a ficha doutrinária publicada no âmbito do processo n.º 2018 004230/PIV 14643, de 10 de Janeiro de 2019, ou ainda a ficha doutrinária publicada no âmbito do processo n.º 2018 003943, PIV 14459, de 27 de Novembro de 2018.

                Ainda assim, e tal como se aprofundou no acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, datado de 14 de Junho de 2017, proferido no âmbito do processo n.º 01234/10.5BEAVR, “Admitindo que um conjunto de participações sociais pode constituir um ramo de actividade (facto que a AT não questiona) só casuisticamente podemos saber se a sua exploração reveste ou não, caráter autónomo, ou seja, se é um conjunto capaz de funcionar pelos seus próprios meios”, referindo-se ainda que cabe à AT efectuar essa averiguação concreta, não pudendo sem mais considerar que não está em causa um ramo de actividade autónomo.

                Dito isto, a verdade é que a resposta à questão de saber se está em causa, ou não, uma operação de entrada de activos no presente caso, não se revela de natureza nuclear mas, pelo contrário, de uma importância residual. Isto, na medida em que, conforme sustentou a AT, para que o regime de participation exemption previsto no artigo 51.º-C, n.º 3, do Código do IRC fosse aplicável, sempre seria necessário o cumprimento de todos os requisitos exigidos nos termos do n.º 1 daquele preceito.

                Senão vejamos.

                Em regra, os montantes apurados com a realização de mais-valias consistem num ganho passível de tributação, nos termos do artigo 20.º, n.º 1, alínea h), do Código do IRC, sendo aplicável na determinação dessas mais-valias o disposto nos artigos 46.º e seguintes, todos daquele diploma legal.

Porém, este ganho pode ficar isento de tributação, caso se aplique o regime de participation exemption, previsto no artigo 51.º-C, do Código do IRC, que visa isentar esses ganhos de tributação e, por essa forma, eliminar a dupla tributação económica.

                No artigo 51.º-C, n.º 1, do Código do IRC, estabelecem-se os requisitos que os sujeitos passivos devem observar para que aquele regime lhes seja aplicável.

À data dos factos, exigia se nos termos daquele artigo que: (1) estivesse em causa sujeito passivo de IRC com sede ou direcção efectiva em território português; (2) as partes sociais transmitidas tivessem sido detidas ininterruptamente por um período não inferior a 24 meses.

Pela remissão operada naquele preceito para o artigo 51.º, n.º 1, daquele mesmo código, exigia se ainda: (3) que o sujeito passivo detivesse directa ou directa e indirectamente uma participação não inferior a 5 % do capital social ou dos direitos de voto; (4) que o sujeito passivo não fosse abrangido pelo regime de transparência fiscal; (5) que a entidade que distribui os lucros ou reservas não tivesse residência ou domicílio em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável constante de lista aprovada por Portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças e, por último, (6) que a entidade participada fosse sujeita a IRC ou outro imposto sobre o rendimento não inferior a 60% da taxa de IRC.

                Por seu turno, nos n.ºs 2 e 3 daquele artigo 51.º-C, do Código do IRC, efectuam-se extensões daquele regime, designadamente no que respeita às mais e menos-valias realizadas com “a transmissão de outros instrumentos de capital próprio associados às partes sociais aí referidas, designadamente prestações suplementares” no caso do n.º 2, e às mais e menos-valias “resultantes da transmissão onerosa de partes sociais e de outros instrumentos de capital próprio no âmbito de operações de fusão, cisão, entrada de activos ou permuta de partes sociais não abrangidas pelo regime especial previsto nos artigos 73.º e seguintes”.

                Efectua-se em qualquer um daqueles regimes de extensão uma remissão expressa para o disposto nos números anteriores. Atendendo a que, nos termos do artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil, “Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”, não parece verosímil, tal como sustenta a Requerente, que aquela remissão operada em ambos os números de extensão do regime, visasse apenas esclarecer a não concorrência das mais e menos-valias realizadas quanto aos casos neles expressos.

                Dito de outro modo, a inserção do n.º 3 no artigo 51.º-C, do Código do IRC, terá visado dissipar quaisquer dúvidas que pudessem existir quanto à aplicabilidade do regime de isenção de tributação de mais e menos-valias realizadas às operações nele referidas, sem deixar contudo de estabelecer que essa isenção se opera nos termos do n.º 1, isto é, com o devido cumprimento dos requisitos nele exigidos. Caso contrário, estar-se-ia a introduzir no regime de participation exemption uma divergência de critérios, em situações idênticas, sem fundamentação plausível, o que não seria justificável ao abrigo do princípio da igualdade tributária.

                De resto, a necessidade de cumprimento dos requisitos estabelecidos no artigo 51.º-C, n.º 1, do Código do IRC, no âmbito dos n.ºs 2 e 3 daquele artigo é reconhecida pela Requerente quando, a título subsidiário, e na eventualidade deste Tribunal não dar provimento à sua pretensão, vem procurar justificar o cumprimento do requisito de detenção ininterrupta das participações sociais por um período de 24 meses por referência às prestações acessórias e aos suprimentos que, por via da conversão em capital social mediante a realização de entradas em espécie, originaram as correcções que vieram a ser efectuadas pela AT por referência à transmissão daquelas participações.

                Ora, se tanto o n.º 2 como o n.º 3 são extensões do regime do n.º 1, e se em ambos se remete para o disposto neste último, carece de justificação legal a posição sufragada pela Requerente de que o cumprimento do n.º 3 se basta sem a verificação de quaisquer outros requisitos, enquanto que o cumprimento do n.º 2 exigiria, pelo contrário, o cumprimento dos requisitos previstos no n.º 1.

                Assim sendo, resta aferir se o regime de participation exemption é aplicável não já por via da extensão no n.º 3, mas sim do n.º 2 daquele artigo 51.º-C, do Código do IRC.

 

                31. Ainda antes de se proceder a tal análise, cumpre analisar os argumentos avançados pela Requerente em sede de alegações finais escritas, nas quais juntou um parecer ao abrigo do disposto no artigo 426.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

Em termos sucintos, mencionou-se nesse parecer, relativamente à questão que agora nos ocupa, que “A pretensão de a AT tributar as mais-valias meramente contabilísticas que a A..., registou na sua contabilidade em virtude de operações integradas no desenvolvimento da sua actividade de Grupo empresarial, revela-se tanto ilegal como inconstitucional. (…) Ilegal porque, relativamente à situação aqui em consideração, afasta, sem qualquer base legal, simultaneamente a aplicação do art. 51.º-C e do art. 74.º, ambos do Código do IRC. (…) Mas a solução de tributação da A... proposta pela AT, se, por hipótese, encontrasse arrimo na interpretação e aplicação das normas legais, estaria também afectada de inconstitucionalidade por violação dos princípios jurídico-constitucionais da capacidade contributiva e da tributação das empresas pelo rendimento real, bem como da igualdade e da neutralidade fiscal”.

A ilegalidade que naquele parecer se reporta à aplicação do artigo 74.º, do Código do IRC, e que a Requerente subscreve, dever-se-ia ao facto de não terem existido mais-valias efectivas mas apenas mais-valias contabilísticas, sendo que o regime da neutralidade fiscal previsto para a operação de entrada de activos apenas poderia ser afastado na eventualidade de se verificar uma situação de abuso na sua utilização, caso em que, “poderá e deverá ser accionada a cláusula especial anti-abuso do n.º 10 do art. 74.º do Código do IRC”. Quer isto dizer que o regime da neutralidade apenas poderia ser afastado na eventualidade de a Requerente ter realizado a referida operação tendo como principal objectivo ou um dos principais objectivos a evasão fiscal, na qual se inclui a adopção de um comportamento sem razões económicas válidas, visando exclusiva ou principalmente obter resultados fiscais. Atendendo a que não seria esse o caso, a tributação da Requerente “revela uma situação em que a Administração Tributária acaba sendo o protagonista ou actor da incidência em abstracto e em concreto dos impostos, dispensando, de um lado, o legislador fiscal, por quem passa necessariamente a emissão das normas de incidência tributária, e, de outro lado, o próprio contribuinte, a quem cabe, em exclusivo, praticar o facto tributário ou facto gerador do imposto correspondente às normas de incidência”.

Ora, tal posição não pode merecer colhimento sendo, inclusive, contraditória, com a posição anteriormente sufragada pela Requerente. De facto, o regime da neutralidade previsto nos artigos 73.º e seguintes, do Código do IRC, visa conferir aos contribuintes a possibilidade de conduzirem livremente as suas actividades económicas, permitindo-lhes moldar e estruturar as suas estruturas societárias sem, com isso, sofrerem uma oneração fiscal. Para que o regime de neutralidade seja aplicável, exige-se nos termos do artigo 74.º, n.º 3, do Código do IRC, uma continuidade na mensuração do valor dos elementos patrimoniais objecto de transferência, em observação do princípio da continuidade da actividade empresarial que molda aquele regime. E a este respeito é a própria Requerente que afirma, no ponto 135.º do seu pedido de constituição de tribunal arbitral, que “não accionou o referido regime (…) porque optou por registar na contabilidade as 8.940 acções (…) representativas do capital social da C..., SGPS, recebidas em contrapartida da realização do capital daquela sociedade, por valor diferente (€ 44.700,00) daquele que as acções transmitidas (…) tinham na sua contabilidade (€ 1.808.700,00), o que se afigura incompatível com o accionamento do referido regime de neutralidade, por não verificação do requisito previsto nos n.ºs 3 e 5 do artigo 74.º do CIRC”.

Conforme se compreende, foi a própria Requerente que afastou a aplicabilidade daquele regime e sujeitou as acções transmitidas no âmbito dessa operação de reestruturação a uma eventual mais-valia, não se verificando uma actuação por parte da AT à margem da legalidade, isto é, o regime da neutralidade fiscal não foi aplicado por não cumprimento dos requisitos legais exigidos, não se percepcionando a razão de a Requerente procurar fundar uma suposta ilegalidade do acto de liquidação em virtude de a AT não ter accionado a cláusula especial anti abuso constante do artigo art. 73.º, n.º 10, do Código do IRC.

Por outro lado, a ilegalidade reportada à aplicação do artigo 51.º-C, do Código do IRC, deve-se, segundo aquele parecer, ao facto de “a AT considera[r] não observado o prazo de 24 meses aí estabelecido, porquanto se ateve exclusivamente à expressão formal – rectius contabilística – das diversas operações de organização empresarial levadas a cabo pela A... . (…) Pois, se em vez de esta ter realizado um aumento de capital da B... e entregado as acções (velhas e novas) como capital social para a constituição da C..., tivesse apenas revalorizado as acções velhas da B... para o valor atribuído pelo ROC de € 5 milhões, teria cumprido o requisito dos 24 meses, beneficiando do regime da participation exemption. (…) Assim, a tributação exigida à A..., na presente situação, não integra a tributação do rendimento, revelando-se uma tributação sobre o capital ou o património que não tem suporte no art. 51.º C do Código do IRC”. (sic)

Para além de ilegal, a solução de tributação proposta pela AT seria inconstitucional na medida em que “viola o princípio da capacidade contributiva (…) porque a tributação que a AT apurou, não se reporta a qualquer manifestação ou indício da capacidade contributiva objecto de IRC”. Assim sendo, também ocorreria uma violação do princípio da igualdade fiscal uma vez que a referida solução “discrimina esta [a Requerente] negativamente face a todas as demais empresas em geral e face às empresas do mesmo sector económico em especial, sem que para tal se vislumbre qualquer fundamento racional que suporte minimamente essa discriminação”. A inconstitucionalidade do acto de liquidação adicional emanado pela AT seria ainda adveniente da violação do princípio da neutralidade fiscal “que mais não é do que a outra face da liberdade de gestão fiscal das empresas, enquanto expressão superlativa da liberdade de empresa. (…) Neutralidade que se encontra, basicamente, à guarda da União Europeia, sendo a responsabilidade dos Estados Membros, no domínio da livre concorrência económica, onde se situa a exigência da neutralidade fiscal relativa à organização e reestruturação das empresas, bastante limitada, pois restringe-se à correspondente ao desenvolvimento e execução dos regulamentos e à transposição das directivas dos competentes órgãos da União”.

Começando por este último argumento, não se poderá considerar violado o princípio da neutralidade fiscal visto que, conforme se referiu, a inaplicabilidade do regime de neutralidade no que respeita às operações de reestruturação societária apenas não foi accionado pela Requerente por ter optado, livremente, pela condução da sua actividade económica num sentido que conduziu ao não preenchimento dos requisitos subjacentes àquele regime, não se verificando na posição da AT uma qualquer limitação à margem da lei que afectasse aquela liberdade de gestão fiscal das empresas, mormente da Requerente. Deste modo, ao decidir pela não aplicação do regime da neutralidade fiscal, sabia também a Requerente que a transferência das acções detidas na B...– SGPS, S.A., no contexto da constituição em espécie do capital da C..., SGPS, S.A., seria sujeita a tributação em sede de IRC pelo ganho realizado a título de mais-valias. Isto, na eventualidade de não se encontrarem verificados os critérios que possibilitam a aplicação do regime de paticipation exemption, isto é, que possibilitam a isenção daquela tributação e evitam, dessa forma, a eliminação da dupla tributação económica.

A aplicação desses critérios é igual “face a todas as demais empresas em geral e face às empresas do mesmo sector económico”, não se vislumbrando o fundamento de violação do princípio da igualdade, nem do princípio da capacidade contributiva, já que a transmissão daquelas participações gerou um ganho para a Requerente que não era susceptível de gozar do regime de paticipation exemption, pelo menos na sua totalidade e nos termos pretendidos pela Requerente, isto é, sem o devido cumprimento do prazo de 24 meses de detenção ininterrupta que é exigido nos termos da lei.

                Cumpre então analisar a verificação do regime previsto no artigo 51.º-C, do Código do IRC, por referência às prestações acessórias e aos suprimentos efectuados pela Requerente.

 

III.2.5.2. Necessidade de tomar em consideração a data em que foram concedidos os créditos, cuja conversão em capital deu origem às participações sociais que vieram a ser transmitidas pela Requerente

 

                32. Na eventualidade de não ser concedido provimento ao seu pedido por via da aplicação do artigo 51.º-C, n.º 2, do Código do IRC, peticionou a Requerente que fosse tomada em consideração a data em que foram concedidos os créditos, cuja conversão em capital, no contexto do aumento de capital da B...– SGPS, S.A., deu origem às acções que vieram, no mesmo dia, a ser transmitidas para a esfera da C..., SGPS, S.A., como entrada de capital.

                A este respeito, e a título prévio, cumpre recordar que o pedido formulado pela Requerente versa sobre uma acto de liquidação que foi parcialmente revogado pela Requerida para efeitos do artigo 13.º, do RJAT, tendo sido efectuada a devida correcção ao exercício fiscal de 2014 e reembolsado o respectivo montante à Requerente. Neste sentido, e tal como melhor se expôs supra, por inutilidade superveniente da lide não se tomará conhecimento daquela parte da liquidação que foi revogada e que respeita à aplicação do regime de participation exemption às mais valias-realizadas por via da conversão em capital das prestações acessórias concedidas em Fevereiro de 2012.

               

                33. Alegou a Requerente no pedido de pronúncia arbitral que as participações sociais da B...– SGPS, S.A., detidas à data da transmissão onerosa deveriam ser decompostas em função da sua natureza e do momento de subscrição. Assim, do valor total de € 1.808.700:

             € 44.700 respeitavam à parcela do capital social inicial subscrito em dinheiro, em 14 de Junho de 2011, aquando da constituição da sociedade;

             € 742.500 reportavam-se à subscrição em espécie de capital social, mediante a conversão de prestações acessórias em 27 de Março de 2014;

             € 1.021.500 correspondiam à subscrição em espécie de capital social, mediante a conversão de suprimentos em 27 de Março de 2014.

                Quanto às prestações acessórias, cabia ainda concretizar a sua divisão em função das tranches em que foram efectuadas:

 

                No que concerne às prestações acessórias considerou a Requerente, nos artigos 143.º a 190.º do pedido de pronúncia arbitral, que deveriam ser tidos em consideração os concretos moldes em que mesmas foram efectuadas. Isto porque, apesar de se assemelharem a um financiamento, com a natureza de um passivo e não de um capital próprio, o que implicaria que estivessem excluídas da aplicação do regime de participation exemption, a verdade é que também poderiam assumir características que se assemelham a instrumentos de capital próprio, susceptíveis de aplicação daquele regime.

Em concreto, deveria atender-se ao facto de as prestações acessórias terem sido concedidas de forma gratuita e reconhecidas na esfera da B...– SGPS, S.A., numa conta de capital próprio. E se “do ponto de vista contabilístico (…) as mesmas se qualificam como outros instrumentos de capital próprio, deverão as mesmas ser tratadas, para efeitos fiscais, enquanto tal, ao abrigo dos princípios consagrados pelo Código do IRC, mormente no artigo 17.º daquele diploma”.

                Por outro lado, “[d]ada a natureza da entrada em espécie, a qual efetivamente correspondeu a uma mera reclassificação entre rubricas de capital próprio (…) o requisito da detenção temporal deverá ser aferido por referência à data da atribuição pela ora REQUERENTE das referidas prestações acessórias, concluindo-se que parte das mesmas (180.000 Euros), qualificam para o regime de isenção previsto no artigo 51.º-C do CIRC, dada a extensão da aplicação do regime do n.º 2 do mesmo artigo”.

                A seu título, entendeu a Requerida que se “as prestações acessórias forem gratuitas, a doutrina tem sustentado que seguem o regime das prestações suplementares e assumem a natureza de capitais próprios e não de passivos financeiros. Como se conclui são elementos do capital próprio da entidade que as recebe”. Contudo, para a aplicação daquele artigo “não basta que o sócio ou acionista esteja a transmitir um determinado ativo que se identifique como instrumento de capital próprio, é também necessário que o mesmo esteja associado às partes sociais”. Tendo em conta que com a transmissão das participações para a C..., SGPS, S.A., foram entregues a totalidade das participações detidas pela Requerente na B...– SGPS, S.A., considerou a AT igualmente verificado aquele requisito.

                Por último, no que concerne à verificação do requisito temporal entendeu a AT que “importa averiguar se a concretização do aumento de capital implicará um "recomeço" da contagem do período de 24 meses de detenção das participações, ou, se releva o momento em que as prestações acessórias foram concedidas à B...”. Para o efeito, entendeu que “embora não esteja em causa, diretamente, a transmissão onerosa das prestações acessórias, mas sim das partes de capital atribuídas em substituição daquelas, tendo em conta que ambas as situações estão abrangidas pelo regime de participation exemption, não repugna admitir, acompanhando a posição da Direção de Finanças de Lisboa, que, para efeitos da contagem do período de detenção das partes de capital alienadas se atenda à data da realização das prestações acessórias. Caso contrário estar-se-ia a penalizar injustificadamente o contribuinte retirando-lhe a aplicação do regime previsto no artigo 51.º - C do CIRC quando o mesmo já reunia as condições dessa aplicação”.

                Foi com base nestes pressupostos, partilhados por ambas as partes, que a AT procedeu à revogação parcial das participações subscritas mediante a conversão das prestações acessórias concedidas em 2012, dado que todos os requisitos exigidos nos termos do artigo 51.º-C, n.º 2, do Código do IRC se encontravam preenchidos.

                Já no âmbito das alegações escritas, veio a Requerente invocar que “Se o legislador quis premiar a estabilidade temporal das fontes de financiamento, não se pode deixar de concluir que a totalidade das prestações acessórias efectuadas pela Requerente deve beneficiar do consagrado no artigo 51.º-C, n.º 2, do CIRC, quanto à isenção da parte da mais-valia que lhe cabe, beneficiando também do disposto no artigo 47.º-A do CIRC”. Para reforçar esta nova posição, referiu a Requerente que a mencionada interpretação era, desde logo, imputada à AT ao referir, no despacho de revogação parcial do acto de liquidação que “No que toca aos suprimentos, consideram que não constituindo nem reservas, nem outros instrumentos de capital próprio, nem resultados, não se lhes aproveita o disposto no artigo 47.º-A do CIRC. Carece, assim, a pretensão de retroação do aporte dos suprimentos à data das participações iniciais”.

                Deste modo haveria uma expressa admissão, por parte da AT, de que a data de aquisição de outros instrumentos de capital próprio, que seguem ou se associam às partes sociais, deve retroagir à data de aquisição destas últimas nos termos do artigo 47.º-A do Código do IRC, de tal modo que o requisito temporal haveria de se considerar preenchido quanto à totalidade das prestações acessórias.

                Cumpre referir a este ponto que a posição a que a Requerente alude consiste na posição sufragada pelos serviços da direcção de finanças de Lisboa após a apresentação do pedido arbitral, verificando-se que o parecer da direcção de serviços do imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas que propôs a revogação parcial do acto de liquidação adicional de IRC não faz menção ao artigo 47.º-A do Código do IRC. Quanto às prestações acessórias, entendeu se naquele parecer que “para efeitos da contagem do período de detenção das partes de capital alienadas se atenda à data da realização”. Já quanto aos suprimentos, entendeu-se que “para os suprimentos não faz sentido sequer analisar-se o período de detenção”, uma vez que se concluiu pela sua não qualificação enquanto “outros instrumentos de capital próprio”.

                Cumpre decidir.

               

34. Partindo do pressuposto de que as prestações acessórias e os suprimentos se encontravam associados às participações sociais que vieram a ser alienadas, a aplicabilidade do regime de participation exemption àqueles instrumentos de financiamento estaria dependente da sua qualificação enquanto instrumentos de capital próprio e da verificação, ou não, da sua detenção por um período ininterrupto não inferior a 24 meses.

                É neste mesmo sentido que GUSTAVO LOPES COURINHA, em Manual do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, 2019, Almedina, p. 132, refere “a abrangência das mais e menos-valias com outros instrumentos de capital próprio, atenta a natureza sucedânea e equivalência funcional destes face às partes de capital social. Trata-se de uma alteração exigida por questões de coerência entre figuras muito próximas (e potencialmente substitutivas) na formação de rendimento, donde prestações suplementares ou prestações acessórias sujeitas ao regime jurídico das prestações suplementares concorrem para o conceito de instrumentos de capital próprio, não devendo produzir efeitos fiscais os ganhos ou perdas registados com a respectiva alienação”. Evidencia o autor um outro aspecto do regime previsto no artigo 51.º-C, do Código do IRC, ao referir que uma “especialidade do regime de isenção das mais-valias respeita à consideração deste período de tempo por referência às participações a alienar e não à participação qualificada”, salientando-se que, à data dos factos no caso agora em análise, exigia se a detenção das participações a alienar por um período ininterrupto não inferior a 24 meses.

Apesar de a Requerente sindicar a aplicabilidade do regime de participation exemption por referência ao artigo 51.º-C, n.º 2, do Código do IRC, não pode considerar-se, em bom rigor, que aquele preceito respeite à transmissão de participações sociais tout court. Pelo contrário, encontra-se abrangida por aquela norma a “transmissão de outros instrumentos de capital próprio associados às partes sociais” referidas no n.º 1 daquele mesmo artigo. Nestes termos, a consideração do período de detenção terá de ser feita por referência a esses instrumentos e não às participações sociais a que elas se encontram associadas. Quanto a essas, e para o que agora importa, exigia-se apenas à data dos factos, nos termos do artigo 51.º, n.º 1, do Código do IRC, aplicável ex vi artigo 51.º C, n.º 1, daquele mesmo código, que o sujeito passivo detivesse directa ou directa e indirectamente uma participação não inferior a 5% do capital social ou dos direitos de voto da entidade que distribui os lucros ou reservas.

Em todo o caso, considerou a AT que “embora não esteja em causa, diretamente, a transmissão onerosa das prestações acessórias, mas sim das partes de capital atribuídas em substituição daquelas, tendo em conta que ambas as situações estão abrangidas pelo regime de participation exemption, não repugna admitir (…) que, para efeitos da contagem do período de detenção das partes de capital alienadas se atenda à data da realização das prestações acessórias. Caso contrário estar-se-ia a penalizar injustificadamente o contribuinte retirando-lhe a aplicação do regime previsto no artigo 51.º - C do CIRC quando o mesmo já reunia as condições dessa aplicação”. Significa isto que, apesar de estar em causa a transmissão das participações sociais em si, relativamente às quais o requisito temporal não se encontrava cumprido, entendeu a AT, por forma a não penalizar o contribuinte, e tendo em conta que ambas as situações se encontram sujeitas ao regime de participation exemption, que a aferição do período de detenção se deveria efectuar por referência ao momento em que foram efectuadas as prestações acessórias – onde, consequentemente, também terão de se incluir os suprimentos na eventualidade de serem qualificados enquanto outros instrumentos de capital próprio – e não ao momento da sua conversão em acções.

Conforme se depreende, a interpretação que a AT efectua do regime de isenção previsto no artigo 51.º-C, do Código do IRC, já pretende enquadrar a situação jurídica da Requerente atendendo à substância económica das operações em questão visto que, no fundo, estaria em causa uma “mera” requalificação de rúbricas de capital próprio, pelo que seria injustificada a penalização da Requerente por tal facto.

Assim sendo, não pode proceder a tese defendida pela Requerente de que o artigo 47.º A, do Código do IRC, permitiria justificar a verificação daquele período de detenção quanto a todas as prestações acessórias e quanto aos suprimentos efectuados, já que aquela norma se reporta à determinação da data de aquisição das participações sociais e não da data em que as prestações acessórias e os suprimentos foram concedidos. No fundo, a ser assim, a consideração do período de detenção já não se faria por referência a esses instrumentos, mas sim por referência às partes de capital em que estes vieram a ser convertidos. E quanto a essas partes de capital, nem a Requerente nem a AT contestam que o requisito temporal de detenção ininterrupta por um período de 24 meses não se encontrava cumprido.

Veja-se que é a própria Requerente que defende no seu pedido de pronúncia arbitral que a verificação daquele requisito temporal quanto às prestações acessórias se faça por referência ao momento em que foram concedidas. E quanto aos suprimentos sustenta “numa ampla concepção de prevalência da substância (económica) sobre a forma [que], o cerne da questão não é (ou não deverá ser) a qualidade de accionista e o período de detenção de cada uma das acções no momento da sua alienação, mas antes o momento em que tal investimento, de um ponto de vista económico, teve lugar”, procurando com isso justificar a aplicabilidade do artigo 47.º-A, do Código do IRC. Sendo certo que o investimento económico, quanto a estes últimos, foi realizado em virtude do aumento de capital da B...– SGPS, S.A., tendo sido os suprimentos convertidos em participações sociais naquele mesmo dia. Assim sendo, não se compreende a justificação apresentada pela Requerente de que esta, “apenas pela sua qualidade de sócia (…) teve a capacidade para converter os suprimentos em capital próprio”, o que justificaria que “a data de aquisição das partes de capital que lhe foram atribuídas deverá retroagir à data de aquisição das partes de capital inicial”, dado que, atendendo à sua argumentação, o investimento económico subjacente a esse meio de financiamento societário não ocorreu na data de aquisição das partes de capital inicial.

Deste modo, tendo em conta que o período de detenção ininterrupto por um prazo não inferior a 24 meses só se verificava quanto às prestações acessórias efectuadas em Fevereiro de 2012 (que foram alvo de correcção por parte da AT por via da revogação parcial do acto de liquidação adicional de IRC), não procede o peticionado pela Requerente em sede de alegações escritas quanto à ilegalidade da não aplicação do regime de isenção previsto no artigo 51.º-C, do Código do IRC, quanto à totalidade das mais-valias realizadas em virtude da alienação das participações sociais provenientes da conversão em capital social mediante a realização de entradas em espécie, em concreto, mediante a conversão das prestações acessórias e dos suprimentos. Neste sentido, não se apraz indagar sobre a natureza dos suprimentos e sobre a sua inclusão, ou não, enquanto “outros instrumentos de capital próprio” nos termos do artigo 51.º-C, n.º 2, do Código do IRC, uma vez que, à semelhança das prestações acessórias, não cumprem o requisito temporal de detenção ininterrupta por um período não inferior a 24 meses.

 

III.2.6. Fundamentos do despacho de indeferimento da reclamação graciosa

 

                35. Tendo em conta que os fundamentos da ilegalidade do despacho de indeferimento da reclamação graciosa invocados pela Requerente se resumem aos fundamentos já apreciados no que concerne à falta de fundamentação dos actos de liquidação; à falta de notificação para exercício de audição prévia antes de emissão dos actos de liquidação; bem como aos argumentos invocados pela para justificar a ilegalidade das correcções às mais-valias fiscais efectuadas pela AT; e tendo em conta que se julgaram improcedentes aqueles vícios, não se concede igualmente provimento à ilegalidade imputada pela Requerente ao despacho de indeferimento da reclamação graciosa que esta havia apresentado.

Nestes termos, julga-se improcedente este pedido com os fundamentos já concretizados e que, por razões de economia processual, e com fundamento no artigo 130.º, do CPC, subsidiariamente aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, não apraz agora repetir.

 

III.3. JUROS INDEMNIZATÓRIOS

36. A requerente pediu ainda a condenação da Autoridade Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, à taxa legal, calculados sobre o imposto, até ao reembolso integral da quantia devida.

 Em conformidade com o disposto no artigo 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e do artigo 100.º da LGT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, ao não caber recurso ou impugnação da decisão arbitral sobre o mérito da causa, a Administração Tributária fica vinculada nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, incumbindo-lhe o restabelecimento da situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando esta os actos e operações necessários para o efeito.

Neste sentido, segundo o disposto no artigo 24.º, n.º 5, do RJAT, “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”. Por seu turno, dispõe o artigo 43.º, n.º 1 da LGT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT que “São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.

Ora, no caso em juízo, tendo-se decidido pela improcedência dos diversos vícios imputados pela Requerente à actuação da AT e aos actos de liquidação adicional de IRC por esta efectuados, não pode considerar-se verificado um erro imputável aos serviços que tivesse originado o pagamento indevido de imposto em montante superior ao legalmente exigido.

Improcede, assim, o pedido de condenação da AT ao pagamento de juros indemnizatórios calculados à taxa legal sobre as quantias que houvessem sido indevidamente pagas pela Requerente.

 

III.4. JUROS COMPENSATÓRIOS

 

                37. Na sequência da emissão do acto de liquidação adicional de IRC referente ao exercício de 2014, foi ainda emitida a nota de liquidação n.º 2018... referente à liquidação de juros compensatórios no montante de € 91.027,34.

                No âmbito do pedido de pronúncia arbitral, veio a Requerente peticionar a declaração de ilegalidade da liquidação de juros compensatórios. Para tal, alegou que a declaração de ilegalidade da liquidação adicional de IRC implicaria a consequente ilegalidade da liquidação de juros compensatórios que a integra “na sequência do desaparecimento de um dos seus fundamentos ou pressupostos legais essenciais: retardamento da liquidação de imposto devido”. Além disso, sustentou que a AT não teria demonstrado “o pressuposto previsto na lei, de que o retardamento da liquidação do imposto se deve a facto imputável ao contribuinte (cfr. artigo 35.º, n.º 1, da LGT)”. Quanto a este último pressuposto, e com base em jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, referiu a Requerente que a AT não havia feito “qualquer referência à existência de culpa imputável, pressuposto fundamental da pretensão de liquidação de juros compensatórios”, reforçando que “os Juros Compensatórios não são uma mera decorrência da dívida de imposto (…) e carecem de fundamentação expressa, acessível e contextual”, sendo tal exigência decorrente dos artigos 268.º, n.º 3, da CRP e do artigo 77.º, da LGT.

                No caso concreto, entendeu também que a AT “não fa[z] qualquer menção à culpa da REQUERENTE no suposto atraso na liquidação de imposto, e muito menos procedendo à demonstração dessa culpa”, sendo que “a ausência de fundamentação constitui vício de forma que determina a anulabilidade do respectivo acto de liquidação”. Pelo contrário, a AT ter se ia limitado “a exigir, de forma automática, Juros Compensatórios, ultrapassando as formalidades legais estabelecidas para a respectiva liquidação” e “[s]e, porventura (…) não viesse a ser dada razão à REQUERENTE no que respeita ao imposto liquidado, sempre se deveria reconhecer que o seu comportamento não foi censurável, por se basear numa interpretação mais do que razoável e de boa-fé das leis aplicáveis”, estando dessa forma “mais que comprovada a boa fé subjectiva ética, que obsta a qualquer juízo de culpa”.

                Por seu turno, a Requerida não teceu qualquer consideração na sua resposta a respeito dos argumentos invocados pela Requerente nesta sede.

                No âmbito do relatório de inspecção tributária referente ao procedimento inspectivo titulado pela Ordem de Serviço n.º OI2016... pode ler-se que “Sobre as correções ora propostas serão igualmente liquidado os juros compensatórios que se mostrarem devidos, nos termos do disposto no artigo 35.º da Lei Geral Tributária e no artigo 102.º do Código do IRC, bem como do artigo 91.º do Código do IRS, por remissão do artigo 94.º, n.º 6 do Código do IRC”. Já no âmbito do despacho de indeferimento da reclamação graciosa refere a AT que “como acima ficou provado, houve, por culpa imputável ao sujeito passivo, falta de entrega, nos cofres do Estado, do imposto que deveria ter sido retido aos pagamentos efetuados aos acionistas da Reclamante a título de dividendos” (cfr. PA junto pela Requerida e Documentos 1 e 8 juntos pela Requerente).

Ora, ainda que a AT afirme no despacho de indeferimento da Reclamação Graciosa que comprovou a culpa imputável à Requerente quanto à falta de entrega do montante de imposto alvo da liquidação adicional de IRC por referência ao exercício de 2014, a verdade é que a AT apenas se limitou a demonstrar a legalidade daquele acto de liquidação, daí extrapolando os fundamentos para a liquidação de juros compensatórios.

Tal como se referiu na decisão arbitral, datada de 29 de Abril de 2019, proferida no âmbito do processo n.º 405/2018-T “os juros compensatórios devidos nos termos da referida disposição [o artigo 35.º, n.º 1, da LGT] constituem uma reparação de natureza civil que se destina a indemnizar a Administração Tributária pela perda de disponibilidade de uma quantia que não foi liquidada atempadamente. Tratando-se de uma indemnização de natureza civil, ela só é exigível se se verificar um nexo de causalidade entre a actuação do sujeito passivo e o atraso na liquidação e essa actuação possa ser censurável a título de dolo ou negligência”.

Deste modo, não pode considerar-se que a AT tenha logrado demonstrar e provar os factos constitutivos do direito à liquidação de juros compensatórios, dado que a fundamentação por esta apresentada não permite concluir pela existência de um nexo de causalidade entre a actuação do sujeito passivo e o atraso na liquidação, sendo que a AT não aprecia nem demonstra o dolo ou a negligência naquela actuação.

Em suma, e conforme alega a Requerente, ao não ter a AT demonstrado a existência de “uma acção voluntária, dirigida a um aproveitamento indevido e conhecido, ou cognoscível, por parte do sujeito passivo, relativamente às legítimas receitas do Estado”, considera-se ilegal a liquidação de juros compensatórios nº 2018... por vício de forma, por falta da fundamentação exigida nos termos dos artigos 35.º, n.º 1, e 77.º, n.ºs 1 e 2, ambos da LGT, e do artigo 268.º, n.º 3, da CRP.

 

III.5.       RESPONSABILIDADE QUANTO A CUSTAS

 

Como vimos, de acordo com o Despacho, de 2 de Junho de 2020, da Subdirectora -Geral, foi decidido revogar parcialmente o acto de liquidação de IRC n.º 2018..., relativamente ao exercício de 2014, reduzindo a correcção efectuada ao lucro tributável, no montante de €329.280,00, considerando-se, assim, que os resultados que a Requerente visava com o presente pedido se encontram parcialmente atingidos.

Nos termos do disposto no artigo 536.º, n.º 3, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, nos casos de extinção da instância por impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide (excetuados os previstos nos números anteriores), a responsabilidade pelas custas fica a cargo do autor ou requerente, salvo se tal impossibilidade ou inutilidade for imputável ao réu ou requerido, caso em que é este o responsável pela totalidade das custas; o n.º 4 do mesmo artigo estatui, no que aqui importa atentar, que se considera, designadamente, que é imputável ao réu ou requerido a inutilidade superveniente da lide quando esta decorra da satisfação voluntária, por parte deste, da pretensão do autor ou requerente.

No caso em apreço, como ficou demonstrado, a pretensão da Requerente foi parcialmente satisfeita voluntariamente pela AT, por esta ter revogado parcialmente o acto tributário impugnado, mas a prática do acto impugnado e que deu origem ao presente pedido arbitral não deixa de ser da responsabilidade da Requerida.

Termos em que a Requerida e a Requerente devem ser condenadas a pagar as custas, em conformidade com o respectivo decaimento.

 

IV. DECISÃO

 

Termos em que se decide:

a)            Não tomar conhecimento, por inutilidade superveniente da lide da questão da liquidação parcialmente revogada, por via administrativa;

b)           Julgar parcialmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral formulado pela         Requerente;

c)            Condenar a Autoridade Tributária a restituir à Requerente juros condenatórios indevidamente liquidados, no montante de € 91.027,34;

d)           Condenar as partes nas custas do processo, em conformidade com o respectivo decaimento.

 

V. VALOR DO PROCESSO

 

Para determinar o valor da causa é necessário que se tenha em consideração que, para efeitos do disposto no artigo 13.º, do RJAT, o acto de liquidação impugnado pela Requerente foi alvo de revogação parcial por despacho proferido pela subdirectora-geral da área de gestão tributária do IR, datado de 2 de Junho de 2020. Cumpre assim determinar se aquela revogação parcial se reflecte, ou não, no valor fixado pela Requerente.

Na falta de legislação directamente aplicável, deverá recorrer-se ao artigo 299.º, n.º 1, do CPC, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, ao abrigo do qual se fixa o momento da propositura da acção enquanto momento relevante para a determinação do valor da causa.

Nos termos do artigo 259.º, n.º 1, do CPC, também ele aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, com as devidas adaptações às especificidades do processo arbitral, deve considerar-se que a acção se considera proposta, intentada ou pendente, a partir do momento em que seja recebida na secretaria do CAAD o pedido de constituição do Tribunal Arbitral.

Por esta razão, e conforme explica JORGE LOPES DE SOUSA, em Guia da Arbitragem Tributária, 3.ª edição, Almedina, p. 155, “são irrelevantes as modificações de valor que possam advir da revogação, ratificação, reforma ou conversão do ato tributário cuja ilegalidade foi suscitada ou de desistência ou redução de pedidos” pelo que “(…) não implicarão alteração ao valor da causa, eventuais ampliações do pedido primitivo que se considerem admissível, por serem, desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo (artigo 265.º, n.º 2, do CPC), como, por exemplo, aumento derivado de juros indemnizatórios ou de indemnização por garantia indevida”.

Assim sendo, deverá atender-se ao disposto no artigo 32.º, do CPTA, e no artigo 97.º A, do CPPT, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixando-se ao processo o valor de € 778.632,85.  

 

VI. CUSTAS

 

Nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, as custas são no valor de € 11.322,00, a cargo das Partes na proporção do  respectivo decaimento, fixando-se em € 8.491,5 a parte a cargo da Requerente e em € 2.830,5 a parte a cargo Requerida, conforme ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.

 

Notifique-se.

Lisboa, 8 de Janeiro de 2021.

 

Os Árbitros,

 

Fernanda Maçãs (árbitro presidente)

Olívio Mota Amador (árbitro vogal)

Carla Castelo Trindade (árbitro vogal e relatora)