Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 83/2014-T
Data da decisão: 2014-10-06  IRC IVA  
Valor do pedido: € 53.664,24
Tema: IRC e IVA – Métodos indiretos
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Processo n.º 83/2014-T

Requerente: A…, Lda.

Requerida: Autoridade Tributária e Aduaneira  

 

I.                   Relatório

1.      Constituição e funcionamento do Tribunal Arbitral

Em 03/02/2014, A..., LDA., titular do NIPC …, com sede na Rua …, …, requereu a constituição de tribunal arbitral e um pedido de pronúncia arbitral, nos termos dos n.ºs 1, al. a), e 2 do art.º 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada por AT).

O pedido de pronúncia arbitral visa a obtenção de decisão de declaração de ilegalidade dos actos de liquidação de IRC e de IVA relativos aos exercícios de 2008 e 2009.

A Requerente é representada pela Senhora Dra. B…, com domicílio profissional na Rua …, ….

A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 1 do RJAT, a signatária foi designada árbitro único pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD.

O Tribunal foi constituído em 04/04/2014.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas (art.º 4.º, art. 10.º, n.º 2 do RJAT e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

 

2.      Objecto do litígio

A Requerente fundamenta o seu pedido, em síntese, no seguinte:

a)      Na sequência da realização de uma acção de inspecção tributária levada a cabo pela Direcção de Finanças do …, foi a Requerente confrontada com a decisão de aplicação de métodos indirectos, nos termos do disposto nos artigos 87.º a 90.º da Lei Geral Tributária (LGT).

b)      Subsequentemente, a Requerente foi confrontada com a emissão das seguintes liquidações adicionais:

                                                                                                           Valores em €

Origem

Período

Valor

IRC

2008

16.726,68

IVA

2008

16.329,00

IRC

2009

10.662,20

IVA

2009

9.946,36

 

 

53.664,24

 

 

c)      A Requerente apresentou pedido de revisão da matéria colectável, no qual questionava quer a decisão de aplicação de métodos indirectos, quer os coeficientes aplicados.

d)     Não tendo sido possível chegar a acordo, foram então emitidas as liquidações adicionais acima referidas.

e)      A Requerente considera que a decisão do procedimento de revisão se encontra ferida de ilegalidade, desde logo por não se encontrarem reunidos os pressupostos de que a lei faz depender a possibilidade de aplicação de métodos indirectos, e também na medida em que inova para além dos factos e conclusões anteriormente aduzidos, fundamentando sucessivamente uma decisão anteriormente tomada.

f)       Entende ainda a Requerente que se verificou a errónea quantificação da matéria tributável e do imposto desta decorrente.

g)      Mantendo a sua discordância quanto às liquidações adicionais, a Requerente apresentou reclamação graciosa contra as mesmas.

h)      As reclamações graciosas foram objecto de decisão de indeferimento, razão pela qual a Requerente solicitou a constituição de tribunal arbitral.

i)        Considera a Requerente que as decisões das reclamações graciosas apresentadas se encontram feridas de ilegalidade, mais especificamente falta de fundamentação, na medida em que não se pronunciaram sobre a argumentação e os factos aduzidos em sede de reclamação graciosa.

j)        A Requerida apresentou resposta, na qual deduziu defesa por excepção e por impugnação.

k)      Desde logo, a Requerida deduziu as seguintes excepções: (i) incompetência material do Tribunal Arbitral, por falta de vinculação da Autoridade Tributária e Aduaneira, (ii) intempestividade do pedido de pronúncia arbitral relativamente aos actos de liquidação em causa e (iii) cumulação ilegal de pedidos.

l)        A Requerida defendeu-se ainda por impugnação, reafirmando que se encontram reunidos os pressupostos para aplicação de métodos indirectos e reforçando as conclusões a que se chegou no âmbito da acção de inspecção tributária.

m)    No dia 9 de Setembro de 2014 realizou-se a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, no âmbito da qual a Requerente declarou pretender responder por escrito às excepções invocadas pela Requerida na sua resposta.

n)      Foi, assim, concedido prazo para a Requerente apresentar a resposta, bem como à Requerida para, querendo, o fazer sucessivamente.

o)      A Requerente apresentou resposta às excepções, alegando, em suma, (i) que, ainda que se entenda que o Tribunal Arbitral é incompetente para decidir das liquidações de tributos decorrentes da aplicação de métodos indirectos, será competente para decidir da ilegalidade das decisões das reclamações graciosas por falta de fundamentação, (ii) que o pedido de pronúncia arbitral foi apresentado dentro do prazo legalmente previsto para o efeito e que (iii) não existe qualquer cumulação ilegal de pedidos.

p)      A Requerida respondeu, mantendo o entendimento de que o Tribunal Arbitral é materialmente incompetente para decidir do presente litígio.

 

II.                Excepção de incompetência material

Nos presentes autos, visa-se a obtenção de decisão que declare a ilegalidade dos actos de liquidação de IRC e de IVA relativos aos exercícios de 2008 e 2009. As liquidações adicionais em causa foram emitidas na sequência da determinação da matéria colectável da Requerente por métodos indirectos. Assim, muito embora o pedido de pronúncia arbitral tenha sido apresentado na sequência do indeferimento das reclamações graciosas apresentadas (actos de segundo grau), o que verdadeiramente está em causa são as liquidações adicionais de imposto, que são actos de primeiro grau.

Face ao pedido apresentado, e às excepções deduzidas, o Tribunal entende dever conhecer, em primeiro lugar, da sua própria competência. Com efeito, a competência dos tribunais é a medida da sua jurisdição – e, não lhes tendo sido atribuída jurisdição sobre determinada matéria, ficam impedidos de apreciar as causas que lhes venham a ser submetidas.

Cumpre ainda referir que a incompetência absoluta pode ser arguida pelas partes e deve ser suscitada oficiosamente pelo tribunal em qualquer estado do processo, enquanto não houver sentença com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da causa. Com efeito, a infracção das regras de competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do tribunal, a qual é de ordem pública, e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria, pelo que importa, antes de mais, proceder à sua apreciação.

O artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril (Orçamento do Estado para 2010), autorizou o Governo a legislar no sentido de instituir a arbitragem como forma alternativa de resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária, de modo a que o processo arbitral tributário constituísse um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária.

A autorização legislativa consagrada no artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010,de 28 de Abril veio a ser concretizada através da aprovação do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT).

Assim, na redacção actualmente em vigor do n.º 1 do art.º 2.º do RJAT (cuja epígrafe é “Competência dos tribunais arbitrais e direito aplicável”) resulta que:

“1 - A competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões:

a)      A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;

b)      A declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais; (…)”

Dado o carácter voluntário da sujeição à jurisdição arbitral, o n.º 1 do artigo 4.º do RJAT determina que:

“1 — A vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que estabelece, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos.”

Tal vinculação concretizou-se com a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, cujo artigo 2.º (cuja epígrafe é ”Objecto de Vinculação”), dispõe como segue:

“Os serviços e organismos referidos no artigo anterior vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com excepção das seguintes:

(…)

c)      Pretensões relativas a actos de determinação da matéria colectável e actos de determinação da matéria tributária, ambos por métodos indirectos, incluindo a decisão do procedimento de revisão.

(…)”.

Importa, assim, aferir se a matéria em litígio se encontra abrangida por esta exclusão, sendo de relembrar que a Requerente pretende, em última análise, a apreciação dos actos de liquidação de IRC e de IVA decorrentes da aplicação de métodos indirectos de determinação da matéria tributável.

Entende a Requerente que não se verifica esta excepção pois, de facto, “não pretende ver discutida a quantificação da matéria colectável feita com recurso aos métodos indirectos, mas tão só os vícios do procedimento de revisão, desenvolvido ao abrigo do artigo 91.º da LGT, de que resultaram as liquidações efectuadas. De facto, e conforme resulta dos arts. 18.º a 24.º da sua P.I., a decisão do procedimento de revisão incorreu em ilegalidade ao inovar para além dos factos e conclusões que constavam do RIT e do pedido de revisão efectuado pelo contribuinte, já que alterou a taxa de desperdício de 10% para 3% sem qualquer fundamento ou justificação.”.

A Requerente vem ainda defender que o Tribunal Arbitral deverá, assim, pronunciar-se sobre os vícios do procedimento de revisão que levaram à emissão das liquidações adicionais, sendo que a limitação da competência se refere apenas aos aspectos subjectivos, ou seja, à avaliação dos pressupostos legais para recurso aos métodos indirectos e à discussão da qualificação grosso modo.

Não acompanhamos este entendimento. Com efeito, aquando da apresentação do pedido de constituição do Tribunal Arbitral, foram aduzidos diversos fundamentos, descritos supra. A Requerente pretende a anulação das liquidações adicionais de imposto, com fundamento na ilegalidade da decisão das reclamações graciosas (por falta de fundamentação) e em ilegalidade várias do procedimento de revisão (incluindo a falta de pressupostos para a aplicação de métodos indirectos e a errónea quantificação da matéria tributável e do imposto), bem como em vícios do procedimento de revisão (fundamentação sucessiva).

Ora, não é possível, parece-nos, isolar cada um destes actos e dissociar as várias realidades. O procedimento de inspecção tributária realizado determinou a aplicação de métodos indirectos de tributação, tendo posteriormente sido apresentado pedido de revisão (o qual foi indeferido) e duas reclamações graciosas contra o indeferimento do mesmo, as quais foram indeferidas. Todos os actos tributários em causa, e os procedimentos que lhes deram origem, são indissociáveis, e têm um denominador comum, o facto de estar em causa a aplicação de métodos indirectos. Quer a decisão de aplicação de métodos indirectos, quer o procedimento de aplicação destes métodos (e eventuais vícios), quer ainda o quantum da matéria colectável assim determinada, bem como as decisões proferidas em sede de reclamação graciosa, têm de ser considerados como actos de determinação da matéria colectável por métodos indirectos (ou decorrentes destes).

A verificar-se a excepção de incompetência material, o Tribunal Arbitral não poderá pronunciar-se sobre qualquer dos actos, nem sobre os alegados vícios do procedimento de revisão, pois todos estes actos têm na sua génese a aplicação de métodos indirectos decidida em sede de inspecção tributária.

Neste sentido se pronunciou já o Tribunal Arbitral, no Acórdão proferido no Processo n.º 17/2012-T, no qual pode ler-se:

“Os actos de liquidação de impostos definem de forma unilateral e autoritária a prestação tributária dos contribuintes, consubstanciando actos administrativos impositivos com efeitos externos.

Enquanto acto administrativo, a liquidação tributária partilha das características dos actos administrativos em geral.

A liquidação, em sentido estrito, é a última fase do procedimento administrativo de liquidação tributária, regulado nos artigos 59.º a 64.º do CPPT, constituído por uma série de actos destinados a obter um resultado jurídico final, o montante de imposto a entregar nos cofres do Estado.

Portanto, a liquidação hoc sensu é a fase que se traduz na aplicação da taxa de imposto à matéria colectável já determinada, não sendo os actos preparatórios autonomamente impugnáveis, podendo sim ser postos em causa quando da impugnação do acto definitivo, final, em obediência ao princípio da impugnação unitária expresso no artigo 54.º do CPPT.

No caso da determinação da matéria tributável por métodos indirectos a lei prevê um procedimento próprio, efectuando-se a liquidação de acordo com a decisão do referido procedimento – cfr. n.º 1 do artigo 62.º do CPPT.

Ademais, constitui condição de procedibilidade da acção impugnatória do acto (final) de liquidação de imposto por aplicação de métodos indirectos a prévia submissão de um pedido de revisão da matéria tributável, que tem efeitos suspensivos da liquidação, cujo procedimento está contido nos artigos 91.º a 94.º do CPPT.

Nestas circunstâncias, constitui condição essencial de impugnação do acto de liquidação que tenha previamente lugar o procedimento de revisão da matéria tributável, despoletado pelo contribuinte, que culminará numa decisão, sendo o acto de liquidação daí decorrente uma mera consequência do mesmo, desempenhando apenas uma função concretizadora. Aliás, a epígrafe do artigo 62.º do CPPT refere-se-lhe como “acto de liquidação consequente”.”

Sobre a vinculação da Administração Tributária à arbitragem tributária, refere o Ilustre Conselheiro Jorge Lopes de Sousa no Guia da Arbitragem Tributária, Almedina, 2013, a páginas138 e 139:

“Embora a alínea b) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT inclua nas competências dos tribunais arbitrais a declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável e determinação da matéria colectável em que foram utilizados métodos indirectos, a Administração Tributária afastou essa possibilidade ao excluir expressamente da sua vinculação aqueles tribunais as «pretensões relativas a actos de determinação da matéria colectável e actos de determinação da matéria tributária, ambos por métodos indirectos, incluindo a decisão do procedimento de revisão» – alínea b) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

Se, eventualmente, esta restrição à vinculação vier a ser eliminada, é de notar que no n.º 5 do artigo 86.º da LGT se impõe, como condição da impugnação judicial da impugnação (…).”

Ora, conforme vimos de expor, numa situação como a que nos ocupa não é possível analisar separadamente as liquidações de imposto, o processo de revisão e sua decisão e as reclamações graciosas apresentadas, bem como as decisões de indeferimento. Os vários actos decorrem de um acto inicial, o de determinação da matéria colectável por métodos indirectos.

E, se a Administração Tributária não se encontra vinculada à arbitragem tributária nesta matéria – como entendemos ser o caso, o Tribunal não pode pronunciar-se sobre os actos decorrentes da aplicação de métodos indirectos, nem mesmo quando estes incidam sobre “a decisão do procedimento de revisão”.

Neste sentido se pronunciou o Tribunal Arbitral, no Acórdão proferido no Processo n.º 17/2012-T, no qual pode ler-se:

“A quantificação da matéria tributável por métodos indirectos constitui o objecto da decisão do procedimento de revisão que está excluída da jurisdição arbitral tributária, nos termos da alínea b) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-B/2011, de 22 de Março.

O acto de liquidação de imposto corporiza tal decisão, concretizando-a, e não pode ser objecto de apreciação individualizada, pois não reveste autonomia relativamente àquela.

Aliás tal apreciação, a ser admitida (o que, reitera-se, não é o caso), teria de ficar restrita a vícios formais relativos à liquidação, pois quanto à matéria substantiva e à sua fundamentação, na medida em que está vertida integralmente na decisão do procedimento de revisão, cujo conhecimento é subtraído à jurisdição arbitral, estaria a mesma necessariamente fora do âmbito desta jurisdição.”

Também no Acórdão proferido no âmbito do Processo n.º 17/2012-T se sê:

“Na verdade, a falta de vinculação da Autoridade Tributária e Aduaneira ao tribunal arbitral traduz-se na imediata impossibilidade da eficácia subjectiva de um julgado que, se fosse proferido por este tribunal nas matérias excluídas, não produziria quaisquer efeitos sobre a parte que haveria de o executar, consubstanciando, portanto, falta de jurisdição, a qual é delimitada em função da matéria e, portanto, consubstancia a incompetência material deste tribunal.

É, pois, para nós inequívoco, que a falta de jurisdição do tribunal para dirimir o litígio configura efectivamente a excepção dilatória de incompetência e não qualquer outra, fazendo-se, atenta a natureza arbitral do tribunal, uma leitura integrada do nº1 do artigo 2º do RJAT, com o nº 1 do seu artigo 4º e, ainda, com o mencionado artigo 2º da Portaria de Vinculação acima transcritos”.

Face ao exposto, conclui-se pela procedência da excepção de incompetência material suscitada pela Requerida, a qual obsta ao conhecimento do mérito do pedido e conduz à absolvição da Requerida da instância.

 

III - Decisão

Neste contexto, decide o Tribunal Arbitral julgar procedente a excepção de incompetência absoluta do foro arbitral, em razão da matéria e, consequentemente, rejeitar o pedido de pronúncia arbitral, absolvendo-se a Requerida da instância.

Custas a cargo da Requerente, atribuindo-se à causa o valor de €53.664,24.

Notifique-se.

Lisboa, 6 de Outubro de 2014

***

Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 138.º, número 5 do Código de Processo Civil (CPC), aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do Regime de Arbitragem Tributária.

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A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia antiga.

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O árbitro

Marta Gaudêncio