Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 97/2020-T
Data da decisão: 2021-10-12  IRC  
Valor do pedido: € 79.497,79
Tema: IRC – Inutilidade superveniente da lide; Direito de audição; Dever de fundamentação; Dedutibilidade dos gastos; Ónus da prova; Juros.
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Sumário:

I.             A obrigatoriedade de a AT considerar os elementos novos aduzidos em sede de direito de audição, na fundamentação da decisão, que decorre do n.º 7 do artigo 60.º da LGT, traduz-se em eles deverem ser mencionados e apreciados, não implicando, portanto, que a AT tenha, obrigatoriamente, de com eles concordar.

II.            A fundamentação vertida pela AT mostra-se suficiente desde que sujeito passivo mostre compreender os concretos fundamentos usados pela AT.

III.          Não beneficiando a dedutibilidade dos gastos da presunção legal de veracidade que decorre do artigo 75.º, n.º 1 da LGT, sempre serão de aplicar as regras gerais do ónus da prova.

IV.          No caso dos juros compensatórios, a factualidade em que há-de radicar o juízo de culpa, não pode ser outra que não aquela que subjaz ao apuramento de imposto entendido em falta, na exacta medida em que se integram neste, nos termos do n.° 8, do art.º 35.º da LGT.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I – RELATÓRIO

 

1.            No dia 17 de Fevereiro de 2020, A..., SGPS, S.A., NIPC..., com sede na Rua ..., n.º..., ..., sala..., ...-... Porto, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade do acto de liquidação adicional de IRC n.º 2018... e da demonstração de acerto de contas n.º 2018..., referente ao ano de 2014, no valor de €107.658,62, assim como da decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2019... que teve o referido acto de liquidação como objecto.

 

2.            Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, o seguinte:

i.             violação do princípio constitucional da participação pelo facto da AT não ter considerado os argumentos invocados pela Requerente, em sede de direito de audição, antes de ser emitido o relatório final de inspecção tributária;

ii.            violação do dever de fundamentação por a AT não ter fundamentado algum dos aspectos essenciais para que ocorresse a tributação nos termos expostos;

iii.           erro na aplicação do direito;

iv.           ilegalidade da liquidação dos juros compensatórios.

 

3.            No dia 18-02-2020, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.

 

4.            A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

5.            Em 06-07-2020, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.

 

6.            Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 05-08-2020.

 

7.            No dia 30-09-2020, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por impugnação.

 

8.            Ao abrigo do disposto nas als. c) e e) do art.º 16.º, e n.º 2 do art.º 29.º, ambos do RJAT, foi dispensada a realização da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT.

 

9.            Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, abstiveram-se as partes de o fazer.

 

10.          Foi indicado que a decisão final seria notificada até ao termo do prazo previsto no art.º 21.º/1 do RJAT.

 

11.          O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

O processo não enferma de nulidades.

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.

 

Tudo visto, cumpre proferir:

 

II. DECISÃO

A. MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

 

1-            A Requerente é a sociedade dominante de um grupo de sociedades, constituído no exercício de 1998, tendo optado, nos termos do disposto nos art.ºs 69.º e seguintes do CIRC, pela aplicação do Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades.

2-            No período de tributação de 2014, o grupo sujeito a tributação pelo Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades, era composto pelas seguintes sociedades:

 

3-            A B... SGPS, SA é uma sociedade gestora de participações sociais, cuja actividade é especialmente regulada pelo regime instituído pelo Decreto-Lei n.º 495/88, de 30 de Dezembro e que por definição tem “(…) por único objecto contratual a gestão de participações sociais de outras sociedades, como forma indirecta de exercício de actividade económica”, obtendo rendimentos pelo exercício dessa actividade a título de dividendos e mais-valias.

4-            Em 01-01-2014, a conta SNC “27219 – Devedores por Acréscimos de Rendimentos/Outros acréscimos de rendimentos” apresentava um saldo devedor no montante de €48.476,00.

5-            Este saldo foi anulado por contrapartida da conta SNC “688089 – Outros Gastos e Perdas-Outros”, através de cinco registos a débito: quatro no montante de €5.180,00, nos meses de Setembro a Dezembro de 2014 e um no mês de Dezembro de €27.756,00.

6-            A B..., SGPS, SA considerou o montante de €48.476,00 como componente negativa do lucro tributável, no período de tributação de 2014.

7-            A Requerente na qualidade de sociedade dominante de um grupo de sociedades tributado pelo RETGS, do qual faz parte a sociedade B..., SGPS, S.A., foi objecto de um procedimento de inspecção ao abrigo da Ordem de Serviço n.º OI2018..., com o objectivo de repercutir as correcções efectuadas aos lucros tributáveis individuais das sociedades dominadas, no lucro tributável do grupo.

8-            Nesse âmbito, foram concretizadas as correcções efectuadas nas seguintes sociedades do grupo:

•             E..., S.A (-11.589,79€);

•             B..., SGPS, S.A. (353.205,73€);

•             Q..., Lda (64.465,62€).

9-            As correcções efectuadas na E..., S.A, B..., SGPS, S.A. (353.205,73€) e Q..., Lda, traduziram-se nas seguintes correcções à matéria tributável do grupo:

 

10-         Na sequência disso, a Requerente foi notificada da liquidação adicional de IRC n.º 2018... e da demonstração de acerto de contas n.º 2018..., relativas ao ano de 2014, e respetivos juros compensatórios no valor global de €107.658,62.

11-         A Requerente aceitou as correcções efectuadas na parte referente à E..., S.A e Q..., Lda, motivo pelo qual procedeu ao pagamento voluntário do imposto relativo a essas correcções.

12-         A Requerente não procedeu ao pagamento do imposto relativo às correcções efectuadas na esfera da sociedade B..., SGPS, S.A., pelo que foi instaurado o processo de execução fiscal.

13-         Em sede de inspecção tributária à sociedade B..., SGPS, S.A., efectuada a coberto da Ordem de Serviço n.º OI 2016... foram efectuadas as seguintes correcções em sede de IRC:

 

14-         A sociedade B..., SGPS, S.A. foi notificada para, querendo, exercer direito de audição prévia sobre o projecto de relatório de inspeção.

15-         Em 15-06-2018, via correio eletrónico, através do seu mandatário, a Requerente remeteu um documento onde concretiza o exercício do direito de audição prévia, não tendo remetido quaisquer outros documentos que menciona juntar no requerimento.

16-         Posteriormente, a Requerente foi notificada do relatório de inspecção, onde consta, quanto às correcções efectuadas em sede de IRC, além do mais, o seguinte:

17-         A Requerente apresentou reclamação graciosa da liquidação adicional de IRC n.º 2018... , relativa ao ano de 2014, na parte relativa às correcções efectuadas no âmbito da sociedade B..., SGPS, SA.

18-         A Requerente foi notificada para, querendo, exercer direito de audição sobre o projecto de decisão de indeferimento da reclamação graciosa.

19-         A Requerente foi notificada da decisão de indeferimento da reclamação graciosa.

20-         Da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, a Requerente apresentou o presente pedido de pronúncia arbitral.

21-         Por despacho da Exma. Sra. Subdiretora-Geral com competências delegadas na área do IRC, proferido a 08-04-2020, foi parcialmente revogado o acto de liquidação adicional de IRC n.º 2018..., tendo a AT anulado as correcções relativas a gastos financeiros não aceites fiscalmente, no valor de €260.815,19 e a correcção relativa a gastos com depreciações e amortizações no valor de €43.914,54, bem como os correspondentes juros.

 

A.2. Factos dados como não provados

Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Ac. do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo 07148/13 , o “relatório da inspecção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

 

B. DO DIREITO

 

Questão prévia: da inutilidade superveniente da lide

Conforme resulta dos factos dados como provados, por despacho da Sra. Subdiretora-Geral com competências delegadas na área do IRC, proferido a 08-04-2020, a liquidação sindicada nos presentes autos foi parcialmente anulada, na parte relativa à correcção referente a gastos financeiros não aceites fiscalmente, no valor de €260.815,19, e a gastos com depreciações e amortizações no valor de €43.914,54, bem como aos respectivos juros.

                Face ao ocorrido, torna-se inútil, nessa parte, o prosseguimento da presente lide, quanto às correcções já objecto de anulação por parte da Requerida, na medida em que, do prosseguimento daquela, não resultará qualquer efeito sobre a relação jurídica material controvertida, no que as partes estão, de resto, de acordo.

Como se sabe, verifica-se a inutilidade superveniente da lide quando, por facto ocorrido na pendência da causa, a solução do litígio deixe de ter interesse e utilidade, o que justifica a extinção da instância (cfr. artigo 277.º, al. e), do Código de Processo Civil). Como referem LEBRE DE FREITAS, JOÃO REDINHA, RUI PINTO, a inutilidade ou impossibilidade superveniente da lide “dá-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, ou se encontra satisfação fora do esquema da providência pretendida. Num e noutro caso, a solução do litígio deixa de interessar – além, por impossibilidade de atingir o resultado visado; aqui, por ele já ter sido atingido por outro meio”.

Assim, se, por virtude de factos novos ocorridos na pendência do processo, parte do escopo visado com a pretensão deduzida em juízo já foi atingido por outro meio, pelo que a decisão a proferir não envolve efeito útil, ocorre, nesse âmbito, inutilidade superveniente da lide.

Decorre da actuação administrativa dada como provada que a pretensão formulada pela Requerente, que tinha como finalidade a declaração de ilegalidade e anulação por este Tribunal do acto sindicado, ficou, em parte, prejudicada porquanto a anulação das correcções e dos seus efeitos foi conseguida por outra via, depois de iniciada a instância. Na verdade, a revogação parcial da liquidação impugnada, implica que a instância atinente à apreciação da legalidade dessa liquidação na parte respeitante às correcções relativas aos gastos financeiros não aceites fiscalmente e gastos com depreciações e amortizações, se extinga por inutilidade superveniente parcial da lide, dado que, por terem sido eliminados os seus efeitos, perde utilidade a apreciação, em relação a tais liquidações, dos vícios alegados em ordem à sua invalidade, ficando sem objecto a pretensão impugnatória contra elas deduzida.

Permanecendo, porém, parcialmente na ordem jurídica o acto de liquidação, não tendo a Requerente encontrado totalmente na via administrativa a satisfação da sua pretensão, sempre se deverá manter a instância para apreciação da liquidação na parte relativa à correcção da anulação de acréscimos de rendimentos não documentada, no valor de €48.476,00.

Nestes termos, este Tribunal julga verificar-se a inutilidade superveniente parcial da lide no que concerne ao pedido de anulação do acto tributário relativamente à correcção de €260.815,19, referente a gastos financeiros não aceites fiscalmente e à correcção de €43.914,54 relativa a gastos com depreciações e amortizações, objecto do presente processo, o que implica a extinção parcial da correspondente instância nos termos do disposto no artigo 277.º, al. e) do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, al. e) do RJAT.

 

*

Das questões de fundo

 

a.            Da violação do princípio constitucional da participação

Começa a Requerente por invocar a violação do princípio da participação já que, em seu entender, “a AT não considerou os argumentos e as justificações dadas pela A... no exercício do direito de audição, ainda em procedimento de inspeção” e que “em sede de projecto de decisão relativamente à reclamação graciosa aqui deduzida pela Requerente, a AT limitou-se a reproduzir, sem mais, os fundamentos, que já constavam do Relatório de Inspecção Tributária, sem ter tido o cuidado de responder aos argumentos suscitados ex novo pela Requerente”.

                De facto, o direito à participação é um direito constitucional que decorre do artigo 267.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, que consagra o direito de os cidadãos participarem na formação das decisões que lhes disserem respeito e encontra expressão no artigo 60.º da LGT, que prescreve o seguinte:

“A participação dos contribuintes na formação das decisões que lhes digam respeito pode efectuar-se, sempre que a lei não prescrever em sentido diverso, por qualquer das seguintes formas:

a) Direito de audição antes da liquidação;

b) Direito de audição antes do indeferimento total ou parcial dos pedidos, reclamações, recursos ou petições;

c) Direito de audição antes da revogação de qualquer benefício ou acto administrativo em matéria fiscal;

d) Direito de audição antes da decisão de aplicação de métodos indirectos, quando não haja lugar a relatório de inspecção;

e) Direito de audição antes da conclusão do relatório da inspecção tributária”

                Por outro lado, de harmonia com o preceituado no artigo 60.º, n.º 7 da LGT, se o titular do direito de audiência, no exercício deste direito, suscitar elementos novos, eles deverão ser considerados na fundamentação da decisão.

A Requerente não contesta que foi notificada para o exercício de audição prévia sobre o projecto de relatório de inspeção tributária, o que argui é que a AT não considerou os argumentos e as justificações apresentadas na elaboração do relatório final de inspecção. Desde já se adianta que não assiste razão à Requerente.

Senão vejamos:

Assim, conforme resulta do relatório final de inspecção tributária – e a Requerente não contesta, nem faz prova em contrário -, embora até à data da elaboração do relatório final não tivesse sido recepcionado pela AT o original da petição do exercício de direito de audição, remetida via e-mail em 15-06-2018 e os respectivos documentos (que a Requerente mencionou juntar na petição, mas que não foram remetidos à AT), a AT apreciou os argumentos expostos na petição de direito de audição, nos seguintes termos:

“Nos pontos 5.º e 7.º da petição, o sujeito passivo contesta as correções propostas, não tecendo considerações de facto e de direito sobre as mesmas, remetendo a sua posição para a fase do contencioso, contudo considera que não pode, nesta sede, deixar de evidenciar e de salientar as correções enunciadas no ponto III.6 – “Anulação de acréscimos de rendimentos não documentados” do presente relatório, uma vez que expôs e esclareceu a AT, de forma devidamente pormenorizada e documentada, a evidencia de que os aludidos proveitos foram considerados nas respetivas sociedades do grupo a que diziam efetivamente respeito, motivo pelo qual foram desconsiderados na sua contabilidade.

Saliente-se que relativamente a este ponto, o primeiro esclarecimento foi dado no decurso do procedimento inspetivo, em 2018/04/11, no qual foi dito “O grupo T... conseguiu negociar com o fornecedor U... um desconto adicional nas suas chamadas/equipamentos móveis no valor aproximado de 48.000€, a ser creditado nas faturas de comunicações. Inicialmente o proveito foi apenas reconhecido na R... (empresa fusionada na B...). No entanto, esse proveito não respeitava apenas à B..., mas a outras empresas do grupo. Assim o proveito foi anulado na B..., e reconhecido nas empresas beneficiárias”, posteriormente foram apresentados (via e-mail, em 2018/05/16), alguns documentos, faturas da ... e extratos contabilísticos das participadas da B..., já em data posterior à notificação do Projeto de Relatório de Inspeção Tributária, contudo os referidos documentos apenas evidenciam que a operadora de telecomunicações U... concedeu descontos às entidades K... LDA e S..., S.A. e as entidades K..., E... e Q... reconheceram contabilisticamente, em 2014, acréscimos de rendimentos nos montantes de €3.850,00, €14.000,00 e €7.890,00. No entanto, não foi comprovado documentalmente existir um nexo causal entre os descontos concedidos pela  U..., o reconhecimento de acréscimos de rendimentos por estas entidades e o reconhecimento contabilístico pela R... do respetivo acréscimo de rendimento em período de tributação não identificado razão pela qual a anulação não pode ser aceite fiscalmente, uma vez que os esclarecimentos apresentados não especificam qual o período de tributação em que o correspondente rendimento foi reconhecido na R..., nem comprova documentalmente, qual a natureza, origem e valor do gasto em questão, pelo que o mesmo não é dedutível nos termos dos artigos 23.º e 18.º, na B... .”

                A obrigatoriedade de a AT considerar os elementos novos aduzidos em sede de direito de audição, na fundamentação da decisão, que decorre do n.º 7 do artigo 60.º da LGT, traduz-se em eles deverem ser mencionados e apreciados, não implicando, portanto, que a AT tenha, obrigatoriamente, de com eles concordar.

                A AT tomou, conforme se transcreveu, posição expressa sobre os argumentos expendidos pela Requerente. Foi neste preciso contexto que a inspecção tributária decidiu que “não foi comprovado documentalmente existir um nexo causal entre os descontos concedidos pela U..., o reconhecimento de acréscimos de rendimentos por estas entidades e o reconhecimento contabilístico pela R... do respetivo acréscimo de rendimento em período de tributação não identificado” .

                De facto, na fundamentação do relatório de inspecção a AT pronunciou-se sobre os concretos elementos trazidos pela Requerente, em sede de direito de audição ao projecto de relatório de inspeção, quanto à correcção relativa a anulação de acréscimos de rendimentos não documentados, pelo que, com estes pressupostos, não se vislumbra qualquer violação do direito da participação/audição prévia constante do artigo 60.º da LGT, improcedendo o alegado vício.               

 

b.            Do vício de falta de fundamentação

Alega a Requerente que o acto de liquidação objecto da presente acção arbitral padece de vício de falta de fundamentação, uma vez que, em seu entender, “não foram carreados para o procedimento quaisquer elementos ou factos clara e inequivocamente demonstrativos da inexistência das operações tituladas nas facturas” e que “a AT não observou o dever de fundamentação a que estava adstrita, mormente por não fundamentar devidamente as razões pelas quais não assistia razão à Requerente relativamente aos fundamentos de facto e de direito aduzidos em sede de audição aquando da notificação do Projecto de Relatório”.

Como é sabido, a fundamentação é uma exigência dos actos tributários em geral, sendo uma imposição constitucional (268.º da CRP) e legal (art.º 77º da LGT).

Resumidamente, pode dizer-se que é hoje pacífico na doutrina e na jurisprudência nacionais que a fundamentação exigível tem de reunir as seguintes características:

1.            Oficiosidade: deve partir sempre da iniciativa da administração, não sendo admissíveis fundamentações a pedido;

2.            Contemporaneidade: deve ser coeva da prática do ato, não podendo haver fundamentações diferidas;

3.            Clareza: deve ser compreensível por um destinatário médio, evitando conceitos polissémicos ou profundamente técnicos;

4.            Plenitude: deve conter todos os elementos essenciais e que foram determinantes da decisão tomada. Esta característica desdobra-se em duas exigências, a saber: o dever de justificação (normas legais e factualidade – domínio da legalidade) e de motivação (domínio da discricionariedade ou oportunidade, quando é preciso uma valoração).

Ora, se a fundamentação é, nos termos referidos, necessária e obrigatória, tal não pode nem deve ser entendido de uma forma abstracta e/ou absoluta, ou seja, a fundamentação exigível a um acto tributário, deve ser aquela que funcionalmente é em concreto necessária para que aquele não se apresente perante o contribuinte como uma pura demonstração de arbítrio. Esta será – julga-se – a pedra de toque do cumprimento do dever de fundamentação: quanto, perante um destinatário médio colocado na posição do destinatário real, o acto tributário se apresente, sob um ponto de vista de razoabilidade, como um produto do puro arbítrio da Administração, por não serem discerníveis os motivos de facto e/ou de direito em que assenta, o acto padecerá de falta de fundamentação.

Neste mesmo sentido, se orienta a jurisprudência do STA que considera que “Apesar da não indicação expressa do preceito legal aplicável, a exigível fundamentação de direito do acto tributário será suficiente com a referência aos princípios jurídicos pertinentes, ao regime legal aplicável ou a um quadro normativo determinado, desde que, em qualquer caso, se possa concluir que aqueles eram conhecidos ou cognoscíveis por um destinatário normal colocado na posição em concreto do real destinatário.” , e que “A exigência legal e constitucional de fundamentação do acto tributário, decorrente dos arts. 268º da CRP, 77º da LGT e 125º do CPA, visa, primacialmente, permitir aos interessados o conhecimento das razões que levaram a Administração a agir, por forma a possibilitar-lhes uma opção consciente entre a aceitação da legalidade do acto e a sua impugnação contenciosa.” .

O artigo 77.º/1 da LGT refere, assim, que: “A decisão de procedimento é sempre fundamentada por meio de sucinta exposição das razões de facto e de direito que a motivaram, podendo a fundamentação consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, incluindo os que integrem o relatório da fiscalização tributária.”.

Descendo ao caso concreto, e conforme já se apontou atrás, está em causa uma correcção à matéria tributável da Requerente, assente na anulação de acréscimos de rendimentos não documentados, no valor de €48.746,00.

Como igualmente resulta do ponto 14 dos factos provados, a AT fundamentou a correcção efectuada do seguinte modo:

“A conta SNC “27219 – Devedores por Acréscimos de Rendimentos/Outros acréscimos de rendimentos” apresentava em 2014/01/01 um saldo devedor no montante de €48.476,00.

Este saldo (€48.476,00) foi anulado por contrapartida da conta SNC “688089 – Outros Gastos e Perdas – Outros”, através de cinco registos a débito, quatro no montante de €5.180,00, nos meses de setembro a dezembro de 2014 e um no mês de dezembro de €27.756,00.

Os registos contabilísticos estão suportados por documentos internos que através da sua análise não é possível identificar a origem e as características do encargo subjacente.

Solicitou-se a apresentação de documentos de suporte e justificação os registos efetuados, tendo sido dada a seguinte resposta:

O grupo T... conseguiu negociar com o fornecedor U... um desconto adicional nas suas chamadas/equipamentos móveis no valor aproximado de 48.000€, a ser creditado nas faturas de comunicações. Inicialmente o proveito foi apenas reconhecido na empresa R... (empresa fusionada na B...).

No entanto, esse proveito não respeitava apenas à B..., mas a outras empresas do grupo. Assim o proveito foi anulado na B..., e reconhecido nas empresas beneficiárias.

O esclarecimento apresentado não comprova o redébito do gasto às outras empresas invocadas na resposta dada, não especifica qual o período de tributação em que o correspondente rendimento foi reconhecido na B..., nem comprova documentalmente, qual a natureza, origem e valor do gasto em questão, pelo que o mesmo não é dedutível nos termos dos artigos 23.º e 18.º do CIRC.

Face ao pressuposto contabilístico do regime do acréscimo, também previsto fiscalmente no n.º 1 do artigo 18.º do CIRC, estamos na presença de um gasto eventualmente referente a um contrato celebrado com a entidade U..., num período anterior a 2013, uma vez que no período de tributação de 2012, a  B... incorporou em processo de fusão a R... .”

Conforme se expôs, no ponto III.6 do relatório de inspecção, a AT explicou os motivos pelos quais procedeu à anulação de acréscimos de rendimentos não documentados, expondo que não foi apresentada prova, em seu entender suficiente, do redébito do gasto às outras empresas do grupo.

A fundamentação vertida pela AT mostra-se suficiente já que a Requerente mostrou compreender, quer em sede de reclamação graciosa, quer no âmbito do presente pedido de pronúncia arbitral, os concretos fundamentos usados pela AT tendo colocado em crise, especificamente, essa correcção. 

Deste modo, entende-se que, considerado o contexto concreto em que foram produzidos os actos de liquidação em questão nos presentes autos, será perceptível, para um destinatário médio colocado na posição do destinatário real, que os fundamentos daqueles são os constantes do relatório de inspecção que os precedeu, sendo certo que mais se afigura evidente que a Requerente compreendeu isso mesmo.

Face ao exposto, nada haverá a censurar, na perspectiva do dever de fundamentação, aos actos tributários objecto do presente processo, não se mostrando violados qualquer dos normativos indicados pela Requerente, motivo pelo qual improcede o alegado vício de falta de fundamentação.

 

c.            Do erro na aplicação do direito

                Coloca a Requerente em crise, a correcção no valor de €48.476,00 relativa a anulação de acréscimos de rendimentos não documentados.

                Sustenta a Requerente que “o afastamento da dedutibilidade dos gastos efetivamente incorridos pela Requerente e pela R... apenas poderia materializar-se perante indícios muitíssimo contundentes e amplamente circunstanciados pela AT; algo que esta claramente não logrou alcançar, uma vez que se limita a sustentar que aqueles [gastos] não observam o disposto no artigo 23.º do CIRC”.

                Por sua vez, a Requerida procedeu à anulação de acréscimos de rendimentos não documentados, no montante de €48.476,00 por entender que “os registos contabilísticos estão suportados por documentos internos que através da sua análise não é possível identificar a origem e as características do encargo subjacente” e que “não foi comprovado documentalmente existir um nexo causal entre os descontos concedidos pela U..., o reconhecimento de acréscimos de rendimentos por estas entidades e o reconhecimento contabilístico pela R... do respetivo acréscimo de rendimento em período de tributação não identificado razão pela qual a anulação não pode ser aceite fiscalmente”.

                No que concerne ao ónus da prova dos requisitos da dedutibilidade dos gastos para efeitos fiscais, determina o artigo 75.º, n.º 1 da LGT aplicável, o seguinte:

“Presumem-se verdadeiras e de boa fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal, sem prejuízos dos demais requisitos de que depende a dedutibilidade dos gastos.”

Os requisitos de dedutibilidade dos gastos não beneficiam, portanto, da presunção de veracidade que decorre do artigo 75.º, n.º 1 da LGT, tal como resulta expressamente do teor do referido normativo. Atente-se, neste aspecto, à ressalva feita pelo legislador – “sem prejuízo dos demais requisitos de que depende a dedutibilidade dos gastos”.

Esta conclusão tem vindo, inclusive, a ser defendida pelos tribunais superiores, como decorre da jurisprudência que se extrai do Acórdão do TCA-Sul de 28 de Março de 2019, proferida no processo n.º 69/17.9BCLSB , nos termos da qual se refere que, “A questão do ónus da prova da indispensabilidade do custo passa ao lado da presunção de veracidade da escrita correctamente organizada (cfr.artº.75, nº.1, da L.G.T.) pois não se questiona a veracidade (existência e montante) da despesa contabilizada mas a sua relevância, face à lei, para efeitos fiscais, no caso, da sua qualificação como custo dedutível, em sede do citado artº.23, do C.I.R.C”. Conclui aquele aresto que “no que respeita à qualificação das verbas contabilizadas como custos dedutíveis, cabe ao contribuinte o ónus da prova da sua indispensabilidade para a obtenção dos proveitos ou para a manutenção da força produtora, se a Fazenda Pública questionar essa indispensabilidade (cfr.artºs.74, nº.1, e 75, nº.1, da L.G.T.)”.

Com efeito, não beneficiando a questão em análise – dedutibilidade dos gastos – da presunção legal de veracidade que decorre do artigo 75.º, n.º 1 da LGT, sempre serão de aplicar as regras gerais do ónus da prova.

A este respeito, refere o n.º 1 do artigo 74.º da LGT que “O ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque”, cabendo, pois, à Requerente, que pretende fazer valer o seu direito à dedutibilidade dos gastos, o ónus de demonstrar e comprovar o redébito do gasto às outras empresas beneficiárias.

No caso, não foi apresentada documentação que comprovasse que o proveito anulado foi reconhecido nas empresas beneficiárias e que foram, efectivamente, as outras empresas as beneficiárias do desconto adicional. Não se encontram juntos aos autos documentos que permitam demonstrar, para lá de qualquer dúvida razoável, o nexo causal entre os descontos concedidos pela U..., o reconhecimento de acréscimo de rendimentos pelas empresas beneficiárias e o reconhecimento contabilístico pela R... do respectivo acréscimo de rendimento em período de tributação não identificado. 

Face ao exposto, cabendo à Requerente o ónus da prova da demonstração do redébito do gasto às outras empresas do grupo, e não tendo esta logrado demonstrar que o proveito se consolidou e foi reconhecido nas outras empresas de grupo, sempre será de improceder esta parte do pedido, mantendo-se a correcção relativa a anulação de acréscimos de rendimentos não documentados, no valor de €48.476,00.

 

d.            Da ilegalidade da liquidação dos juros compensatórios

Sustenta, por fim, a Requerente a ilegalidade da liquidação dos juros compensatórios, alegando que “a existência de facto imputável ao sujeito passivo é um elemento essencial para a constituição da obrigação da obrigação ao pagamento dos aludidos juros”, concluindo que “neste caso, tal pressuposto não está verificado”.

Na matéria em questão entendeu já o TCA-Sul  que “Os juros compensatórios funcionam como uma cláusula penal pelo retardamento da liquidação do imposto, imputável ao contribuinte, integrando-se na liquidação deste, onde vão buscar parte da sua fundamentação, para além de também exigirem um segmento de fundamentação própria, mas sobre a sua liquidação, não exige a lei que a AT proceda à audição prévia do contribuinte de forma autónoma e distinta da audição relativamente ao imposto donde provém.”

No que concretamente diz respeito à fundamentação da liquidação de juros compensatórios, tem entendido de forma unânime o STA que “A fundamentação de uma liquidação de juros compensatórios deve dar a conhecer, no plano factual, o montante do imposto sobre o qual incidem os juros, a taxa ou taxas aplicáveis e o período da sua contagem.” / .

No que respeita ao apuramento da culpa no retardamento da liquidação, entendeu o TCA-Sul, (Ac. do TCA-Sul de 11-11-2008, proferido no processo 02020/07),  “no caso dos juros compensatórios e na sequência do acima referido, a factualidade em que há-de radicar o juízo de culpa, não pode ser outra que não aquela que subjaz ao apuramento de imposto entendido em falta, na exacta medida em que se integram neste, nos termos do n.° 8, do art.° 35.° da LGT.”

Compreendidas as coisas desta forma, facilmente se conclui que, conjugadas com as correcções efectuadas pela AT que conduziram à liquidação adicional de imposto, as liquidações de juros compensatórios notificadas à Requerente contêm todos os elementos obrigatórios por lei, incluindo a respectiva fundamentação, devendo, por isso, improceder a arguida falta de fundamentação.

 

*

                A Requerente formula, ainda, o pedido acessório de restituição das quantias indevidamente pagas por si.

                Não obstante, a própria Requerente confessa, no artigo 5.º do requerimento inicial, que não procedeu ao pagamento voluntário do montante associado à correcção que contesta.

                Deste modo, não pode proceder o pedido em causa.

 

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C. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

a)            Declararar a inutilidade superveniente da lide, relativamente ao pedido de anulação do acto tributário respeitante à correcção de €260.815,19, referente a gastos financeiros não aceites fiscalmente e à correcção de €43.914,54 relativa a gastos com depreciações e amortizações, e, consequentemente, a extinção parcial da correspondente instância nos termos do disposto no artigo 277.º, al. e) do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, al. e) do RJAT

b)           Julgar improcedente a restante parte do pedido arbitral e, consequentemente, absolver a Requerida do correspondente pedido;

c)            Condenar as partes nas custas do processo, na proporção do respectivo decaimento, fixando-se o montante de € 420,00, a cargo da Requerente, e de € 2.640,00, a cargo da Requerida.

 

D. Valor do processo

Tendo sido peticionado pela Requerente a anulação total da liquidação impugnada, corrige-se, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, o valor do processo para €107.658,62, por ser este o valor da liquidação sindicada. 

 

E. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 3.060,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pelas partes, na proporção do respectivo decaimento, acima fixado, uma vez que o pedido foi parcialmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 12 de Outubro de 2021

 

O Árbitro Presidente

(José Pedro Carvalho)

 

O Árbitro Vogal

(Maria do Rosário Anjos)

 

O Árbitro Vogal

(Nina Aguiar)