Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 122/2016-T
Data da decisão: 2016-11-04  IRC  
Valor do pedido: € 76.741,70
Tema: IRC - Tributações autónomas; Dedução dos PEC; Lei interpretativa; Competência do Tribunal
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Decisão arbitral

 

 

I.

RELATÓRIO

 

A…–, S.A., pessoa coletiva n.º…, com sede em Lisboa, abrangida pelos serviços periféricos locais do Serviço de Finanças de Lisboa…, veio, ao abrigo dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011 de 20 de Janeiro, e 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 de 22 Março, requerer a constituição de Tribunal Arbitral, elegendo como atos objeto do pedido de pronúncia o indeferimento do pedido de revisão dos atos de autoliquidação de IRC relativos aos exercícios de 2010 e 2011, e os atos de autoliquidação, na medida correspondente à pagamento especial por conta (PEC) efetuado em sede de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) ou, subsidiariamente, na medida em que é indevida a liquidação de tributação autónoma.

Não tendo nomeado árbitro, foram os signatários designados pelo Conselho Deontológico do CAAD e, na falta de oposição, o tribunal ficou constituído em 12 de Maio de 2016.

A Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) respondeu e, dispensada a reunião a que se refere o artigo 18º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT), ambas as partes produziram alegações, depois do que o tribunal anunciou a prolação da decisão até 11 de Novembro de 2016, após prorrogação oportunamente justificada.

 

II.

 POSIÇÃO DAS PARTES

 

Da requerente

A questão que a requerente pretende ver esclarecida é a seguinte: tem ou não a A… o direito de proceder à dedução, também à coleta de IRC produzida pela aplicação das taxas de tributação autónoma dos referidos pagamentos especiais por conta?

Tendo em conta a esmagadora jurisprudência arbitral que hoje qualifica as tributações autónomas como IRC, a requerente nada vê na lei que afaste a dedução dos pagamentos especiais por conta, também à parte da coleta de IRC produzida pelas tributações autónomas. Mas, segundo ela, no ano de apresentação das declarações Modelo 22 aqui em causa o sistema informático da AT ainda não permitia que tal dedução fosse efetuada. E em sede de pedido de revisão oficiosa, a AT optou por manter essa posição indeferindo o peticionado.

Do mesmo modo que a jurisprudência tem entendido, de modo praticamente unânime, que a colecta de IRC prevista no (em vigor até 2013) artigo 45.º, n.º 1, alínea a), do Código do Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (CIRC), compreende, sem necessidade de qualquer especificação adicional, a coleta das tributações autónomas em IRC, se há também de entender que a coleta do IRC prevista no mesmo código (artigo 90.º, n.º 1, e n.º 2, alínea c), do CIRC, na redação em vigor em 2010 e 2011) abrange também a coleta das tributações autónomas em IRC. Donde, para a requerente, a negação da dedução do PEC à coleta em IRC das tributações autónomas viola a alínea c) do n.º 2 do artigo 90.º do CIRC (anteriormente a 2010, artigo 83.º; e desde 2014 passou a ser a alínea d) do referido n.º 2 do artigo 90.º do CIRC).

A requerente recorda que, bem ou mal, tem sido sistematicamente decidido pelos tribunais tributários, no caso na modalidade de tribunais arbitrais, que as tributações autónomas são IRC, daí se retirando como consequência que se lhes aplicam normas dirigidas ao IRC como a referente à não consideração da coleta do IRC para o cômputo do lucro tributável em IRC (artigo 45.º, n.º 1, alínea a), do Código do IRC, em vigor até 2013).

A requerente relembra a identificação das (pelo menos) vinte e quatro decisões arbitrais produzidas até à data em que se concluiu pela natureza de IRC das tributações autónomas: processos n.ºs 187/2013-T, 209/2013-T, 210/2013 T, 246/2013-T, 255/2013-T, 260/2013-T, 282/2013-T, 292/2013-T, 298/13-T, 6/2014-T, 36/2014-T, 37/2014-T, 59/2014-T, 79/2014-T, 80/2014-T, 93/2014-T, 94/2014-T, 163/2014-T, 166/2014-T, 167/2014-T e 211/2014-T, 659/2014-T, 697/2014-T e 769/2014-T.

E em todos estes julgamentos tem sido decretado em consonância com o entendimento e pedidos sistemáticos da AT (de que as tributações autónomas seriam IRC). Donde a perplexidade enunciada pela requerente quando assiste à negação pela AT da dedução do PEC à coleta de IRC produzida pelas taxas de tributação autónoma (IRC, conforme entendimento, em sintonia, da AT e dos tribunais), e, designadamente nos indeferimentos expressos de que teve conhecimento, nenhuma referência vê ser feita a todas essas decisões arbitrais e respetivas conclusões, absolutamente coincidentes (para todas elas, tributações autónomas são IRC) e pelas quais se bateu, e continua a bater, a AT.

Em contradição com tudo o que vinha defendendo até à data a propósito da qualificação das tributações autónomas como IRC, designadamente para efeitos de qualificação da coleta das tributações autónomas como coleta de IRC para efeitos do artigo 45.º, n.º 1, alínea a), do Código do IRC, na redação em vigor até 2013, e em contradição com a esmagadora jurisprudência arbitral que lhe fez sistematicamente a vontade na qualificação da coleta da tributação autónomas como coleta de IRC, diz agora a AT que a mesma referência a IRC uns artigos mais à frente (90.º do CIRC) já não abrangeria a coleta das tributações autónomas.

Segundo a requerente, aponta a AT duas razões para este entendimento. Quanto à primeira razão a requerente só tem este comentário: como pode a AT no indeferimento do pedido de revisão oficiosa dizer que pelo facto de o artigo 90.º do CIRC não mencionar as tributações autónomas, a sua coleta estaria fora das deduções aí previstas se justamente não mencionando também a alínea a) do n.º 1 do artigo 45.º do CIRC as tributações autónomas, isso não impediu a mesma AT (e dezenas de decisões arbitrais) de concluir que a sua coleta estava lá incluída? E estava lá incluída precisamente por se qualificar ainda como coleta de IRC.

Com efeito, para a requerente, a AT e os tribunais não têm tido dúvidas que onde se falava de IRC no artigo 45.º do CIRC (na redação em vigor até 2013), mais concretamente na alínea a) do seu número 1, se estava também a falar de tributações autónomas (por estas serem também IRC), donde a perplexidade que a mesma expressão, no mesmo código, venha sendo entendida pela AT de maneira divergente. Se as tributações autónomas são IRC, como entendem a AT e os tribunais arbitrais, e se à coleta de IRC (que se obteria se não se deduzissem as despesas em causa nas tributações autónomas) que esta parte do IRC que são as tributações autónomas visa substituir/compensar, é dedutível o PEC, como se pode dizer que ao substituto, tido também em termos finais (pela AT e tribunais arbitrais) por IRC, não seria dedutível este mesmo PEC? Com este ser e não-ser conforme as conveniências, a impressão indelével que a AT deixa na requerente é a de alguém com a atitude parcial de querer ter sol na eira e chuva no nabal.

Quanto à segunda razão invocada pela AT, reconduz-se ela ao carácter antiabuso da tributação autónoma. Independentemente de se concordar ou não com o epíteto de “combate à evasão fiscal” que a AT tem vindo a associar indiscriminadamente às TA, tal associação em nada deve modificar a conclusão de a coleta desta parte do IRC dirigida (nesta tese) contra abusos estar disponível para efeitos de benefícios fiscais em IRC que operam, justamente, ao nível da coleta. Com efeito, no entender da requerente, em lado algum da lei resulta afastada destes benefícios fiscais a coleta ou partes da coleta do IRC resultantes de medidas legislativas antievasão fiscal. Alguns exemplos:

i) o afastamento de custos efetivamente incorridos pela empresa por lhes faltar o requisito da indispensabilidade (artigo 23.º do CIRC) visa prevenir abusos e promiscuidades com a esfera pessoal, geram aumento de coleta em IRC e nem por isso esta coleta deixa de estar disponível para efeitos dos benefícios fiscais em IRC;

ii) o mesmo sucede com a coleta de IRC adicional imputável à lista de indedutibilidades fiscais previstas no (numeração atual) artigo 23.ºA-do CIRC, onde se incluem transações com entidades residentes em paraísos fiscais;

iii) o mesmo sucede com a coleta adicional resultante de correções efetuadas em sede de preços de transferência (artigo 63.º do CIRC) ou em sede de transações de imóveis (artigo 64.º do CIRC);

iv) o mesmo sucede com o aumento da matéria coletável e eventual coleta adicional que lhe seja imputável, em resultado da imputação direta de lucros auferidos por sociedades domiciliadas em paraísos fiscais (artigo 66.º do CIRC);

Em nenhum destes casos, não obstante a medida em causa ter objetivos antievasão muito mais evidentes do que os que se poderiam associar às tributações autónomas mais vulgares ou correntes (e estatisticamente mais importantes em termos de receita), a coleta adicional de IRC imputável a estas medidas deixa de ser o que é – coleta de IRC – para efeitos, também, de interação com o PEC, ou com os benefícios fiscais em sede de IRC. Acresce que se as tributações autónomas não fossem (afinal) IRC para efeitos do artigo 90.º do CIRC, como tem vindo a pretender a AT noutros processos relativos a deduções à coleta (que já não a AT alheia a esses processos, que tem de administrar anualmente a liquidação das TA), com base então em que norma é feita e tem sido feita a liquidação das tributações autónomas?

 

Da Autoridade Tributária e Aduaneira

 

A AT começa por salientar que o pedido de pronúncia arbitral vem formulado na sequência de indeferimento de pedido de revisão oficiosa de ato de autoliquidação de IRC relativo aos anos de 2010 e 2011, formulado, em 20.05.2015, ou seja, em circunstâncias de tempo em que se mostrava já decorrido o prazo de reclamação graciosa a que alude o artigo 131º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT). Ora, atento o disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 4.º, n.º 1, ambos do RJAT, e nos artigos 1.º e 2.º, alínea a), ambos da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, verifica-se, para a requerida, a exceção de incompetência material do presente Tribunal Arbitral para apreciar e decidir o pedido supra, circunstância que impõe que se determine a absolvição da Entidade Demandada da Instância [cf. artigos 576.º, n.ºs 1 e 2 e 577.º, alínea a) do Código de Processo Civil (CPC), ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT].

Tanto a jurisprudência como a doutrina já abordaram, abundantemente, a caracterização da figura “tributações autónomas” em IRC (e em IRS) e a evolução legislativa verificada desde a sua criação, pelo art.º 4.º do Decreto-Lei n.º 192/90, de 09.06, até à atualidade.

As considerações tecidas a este respeito revelam que a figura das tributações autónomas tem sido instrumentalizada para a prossecução de objetivos diversos, que abarcam desde o originário propósito de evitar práticas de evasão e de fraude –, através de despesas confidenciais ou não documentadas, ou de pagamentos a entidades localizadas em sistemas legais com regimes fiscais privilegiados, à substituição da tributação das vantagens acessórias sob a forma de despesas de representação ou de atribuição de viaturas aos trabalhadores e membros dos órgãos sociais, na esfera dos respetivos beneficiários –, até à finalidade de prevenir o fenómeno designado por “lavagem de dividendos” (cfr. n.º 11 do art.º 88.º CIRC) ou de onerar, por via fiscal, o pagamento de rendimentos considerados excessivos (cfr. n.º 13 do mesmo preceito).

Para a AT, e na linha da caracterização das tributações autónomas efetuada na Decisão Arbitral proferida no âmbito do processo n.º 80/2014-T – e na expressão feliz aí utilizada de que «as tributações autónomas não são mais do que mecanismos coadjuvantes do eixo central do IRC, que é o de tributar lucros (…)» –, fica bem patente o reconhecimento da coexistência entre, por um lado, o regime (especial) das tributações autónomas e, por outro, o sistema-regra (pré-existente) do IRC. E conforme é ainda explicado na mesma Decisão Arbitral, «a inclusão das tributações autónomas no respetivo código (…) tem como corolário lógico a aplicação das normas gerais próprias deste imposto que não contendam com a sua especial forma de incidência».

Reconhece-se, assim, que o caracter autónomo destas tributações, decorrente da especial configuração dada aos aspetos material e temporal dos factos geradores, impõe, em determinados domínios, o afastamento ou uma adaptação das regras gerais de aplicação do IRC.  Na realidade, para a AT, a integração das tributações autónomas, no Código do IRC (e do IRS), conferiu uma natureza dualista, em determinados aspetos, ao sistema normativo deste imposto, que se corporizou, nomeadamente, no quadro da alínea a) do n.º 1 do art.º 90.º do CIRC, em apuramentos separados das respetivas coletas, por força de obedecerem a regras diferentes.

E isso, pois, num caso, trata-se da aplicação da(s) taxa(s) do art.º 87.º do CIRC à matéria coletável determinada segundo as regras contidas no capítulo III do Código e, noutro caso, trata-se da aplicação das taxas aos valores das matérias coletáveis relativas às diferentes realidades contempladas no art.º 88.º do CIRC. Na expressão utilizada pelo Ilustre Professor SALDANHA SANCHES, J. L., Manual de Direito Fiscal, pág.407. «Com esta previsão [tributações autónomas] o sistema mostra a sua natureza dual.» Ou seja, ao contrário do que é afirmado no ponto 9 da declaração de voto de vencido anexa à Decisão Arbitral proferida no processo n.º 697/2014-T, não há uma liquidação única de IRC, mas, antes dois apuramentos. Isto é, para a AT, existem dois cálculos distintos que, embora processados, nos termos da alínea a) do n.º 1 do art.º 90.º do CIRC, nas declarações a que se referem os artigos 120.º e 122.º do mesmo código, são efetuados com base em parâmetros diferentes, pois cada uma se materializa na aplicação das suas próprias taxas, previstas nos artigos 87.º ou no 88.º do CIRC, às respetivas matérias coletáveis determinadas igualmente de acordo com regras próprias.

E o percurso cognoscitivo traçado, com o propósito de descortinar os tais conflitos passou por acompanhar a evolução legislativa das tributações autónomas a sua natureza e finalidades e por estabelecer o seu confronto com a estrutura conceptual do IRC, permitindo concluir que a dita autonomia da figura das tributações autónomas em relação a este imposto sempre se afirmou com grande intensidade, desde a sua criação por legislação própria, que definiu os seus elementos estruturantes – factos geradores e taxas - naturalmente condicionados pelos especiais objetivos prosseguidos.

Afirma-se, assim, na decisão arbitral proferida no processo n.º 113/2015-T que sendo as «tributações autónomas” [são] de todo alheias à prossecução do objetivo conceptual do CIRC, é forçoso concluir que haverá situações em que as regras gerais não serão idóneas para regular a situação, por prosseguirem fim diverso. É justamente nestas situações em que as normas preexistentes do CIRC contribuam para a determinação do rendimento real, que se verificará a sua inadequação para regerem as “tributações autónomas”. Nestes casos de dissonância haverá os tais conflitos que importa dirimir.

Convém clarificar, refere a AT, que a liquidação das tributações autónomas é efetuada com base nos artigos 89.º e 90.º n.º 1 do Código do IRC mas, aplicando regras diferentes para o cálculo do imposto: (1) num caso a liquidação opera mediante a aplicação das taxas do artigo 87.º à matéria coletável apurada de acordo com as regras do capítulo III do Código e (2) no outro caso, são apuradas diversas coletas consoante a diversidade dos factos que originam a tributação autónoma.

Na realidade, e para a requerida, o traço comum a todas as realidades refletidas nas deduções referidas no n.º 2 do art.º 90.º do CIRC reside no facto de respeitarem a rendimentos ou gastos incorporados na matéria coletável determinada com base no lucro do sujeito passivo ou pagamentos antecipados do imposto, sendo, por isso, inteiramente alheios às realidades que integram os factos geradores das tributações autónomas.

Sempre se terá que chamar à colação, dissipando-se definitivamente a questão controvertida, o teor do artigo 133.º, o qual aditou o número 21 ao artigo 88.º do CIRC, com os efeitos previstos no artigo 135.º, ambos constantes da Lei do Orçamento de Estado para 2016, publicado a 30.03.2016, com entrada em vigor no dia seguinte, nos quais se preconiza, com carácter interpretativo, que «A liquidação das tributações autónomas em IRC é efetuada nos termos previstos do artigo 89.º e tem por base os valores e as taxas que resultem do disposto nos números anteriores, não sendo efetuadas quaisquer deduções ao montante global apurado.» Tal norma veio clarificar positivando, como se evidenciou supra, o entendimento e prática perfilhados pacificamente pela doutrina e pelos contribuintes em geral, os quais nunca foram postos em causa pela AT, pelo que qualquer interpretação dissonante será materialmente inconstitucional.

E se dúvidas subsistissem sobre o efeito interpretativo conferido pelo artigo 135.º constante da Lei do Orçamento de Estado para 2016, apelemos à boa jurisprudência já exarada no processo arbitral n.º 673/2015-T, constituído em tribunal coletivo, presidido pelo insigne Conselheiro Jorge Lopes de Sousa.

Neste aresto, o Coletivo pronunciou-se em concreto sobre esta norma, nos termos que infra se seguem.

 «O novo n.º 21 do artigo 88.° do CIRC aditado pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, sintoniza-se com este entendimento arbitral, pois vem estabelecer expressamente que ao montante apurado das tributações autónomas não são «efetuadas quaisquer deduções». «Por outro lado, o artigo 135.° da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, ao atribuir natureza «interpretativa» àquele novo n.º 21.° do artigo 88.°, conjugado com o artigo 13.° do Código Civil (que é a única norma que define o conceito de lei interpretativa), tem ínsita uma intenção legislativa de aplicar o novo regime às situações anteriores em que não haja efeitos já produzidos pelo cumprimento da obrigação, por sentença passada em julgado, por transação, ainda que não homologada, ou por atos de análoga natureza. (…) Em face desta posição, cuja fundamentação é ponderável, à face da legislação vigente em 2012 e 2013, pode aceitar-se a atribuição de natureza interpretativa ao n.º 21 do artigo 88.° do CIRC que se faz no artigo 135.° da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, à luz dos ensinamentos de BAPTISTA MACHADO, pois a solução nele prevista de inviabilidade de dedução do pagamento especial por conta ao montante global das tributações autónomas passa o teste enunciado por este Autor: - a solução que resultava do teor literal do artigo 93.°, n.º 1, do CIRC era controvertida, como evidencia aquela decisão arbitral e a solução definida pela nova lei situa-se dentro dos quadros da controvérsia; - o julgador ou o intérprete poderiam chegar a essa solução sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação e aplicação da lei, já que a interpretação restritiva é admissível quando há razões para concluir que o alcance do texto legal atraiçoa o pensamento legislativo ou é necessário otimizar a harmonização de interesses conflituantes que duas normas visam tutelar. (…) Para além disso, não se vê que o regime que resulta do artigo 88.°, n.° 21, do CIRC encerre qualquer contradição, ao contrário do que defende a Requerente: segundo esta nova norma, as normas do CIRC relativas à forma de liquidação de tributações autónomas devem ser interpretadas como aí se prevê e relativamente a essa parte da liquidação de IRC não são efetuadas deduções. Aliás, foi precisamente com este sentido que foi elaborado o modelo 22 de declaração de IRC e foi aplicando o regime agora explícito no n.º 21 do artigo 88.° que a Requerente preencheu as declarações que se referem nos autos, sem qualquer contradição percetível.

Assim, terá de se concluir que a interpretação autêntica que se faz no artigo 88.°, n.º 21, do CIRC, na parte em que se reconduz à não dedutibilidade dos pagamentos especiais por conta nas tributações autónomas, não ofende o princípio da não retroatividade na criação de impostos, entendido como reportando-se apenas à retroatividade autêntica, reportada a factos tributários que se completaram e produziram todos os seus efeitos no passado.

No entanto, no específico caso dos pagamentos especiais por conta, não pode concluir-se que não se esteja perante uma lei verdadeiramente interpretativa, pois não havia uma jurisprudência consolidada no sentido da sua dedutibilidade à coleta resultante das tributações autónomas e, pelo contrário, a solução perfilhada no n.º 21 do artigo 88.°, já anteriormente podia ser adotada pelos tribunais, como foi pelo Tribunal Arbitral que proferiu a decisão no processo do CAAD n.º 113/2015-T. Assim, não pode concluir-se que a interpretação autêntica que se faz naquele artigo 88.º, n.º 21, por força do artigo 135.° da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, seja violadora do princípio constitucional da segurança jurídica, no concerne à parte daquela norma que se reporta à indedutibilidade dos pagamentos especiais por conta à coleta das tributações autónomas.»

Finalmente, importa ainda evocar a decisão arbitral proferida no âmbito do Processo n.º 535/2015-T, a qual versou sobre a questão dos autos e foi decidida a favor da Requerida.

Refere a AT que à presente data já foi a questão decidenda sido alvo de vários acórdãos arbitrais, in casu, o Processo n.º 113/2015-T; Processo n.º 535/2015-T; Processo n.º 673/2015-T, e Processo n.º 781/2015-T; Processo n.º 784/2015-T todas elas corroborando a tese pugnada pela Requerida.

 

 

III.

SANEAMENTO

 

Suscitada pela AT a excepção da incompetência do tribunal, por ela importa começar.

Sustenta a AT que o artigo 2.º/a) da Portaria 112.º-A/2011, de 22 de Março, deve ser entendido na sua literalidade, proscrevendo do âmbito da jurisdição arbitral tributária as pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação que não tenham sido precedidas de reclamação nos termos das referidas normas do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

Toda a argumentação da Requerida na matéria, contudo, acaba por se reconduzir a sustentar que foi intenção do legislador restringir a competência da jurisdição arbitral tributária, no que ao conhecimento de ilegalidades de atos de autoliquidação diz respeito, unicamente às situações em que exista uma reclamação apresentada nos termos dos artigos 131.º a 133.º do CPPT.

Não se descortina, de entre as razões avançadas pela Requerida, uma razão substancial para que, atentos os condicionalismos e especificidades próprios de cada um dos meios graciosos em causa, não seja cognoscível em sede arbitral a legalidade dos atos de autoliquidação, nos mesmos termos em que os tribunais tributários estão vinculados. Aliás, mesmo uma interpretação estritamente literal, desde que devidamente contextualizada, não conduziria ao resultado propugnado pela Requerida.

Com efeito, a expressão empregue pela norma em questão é paralela à própria norma do artigo 131.º/1 do CPPT, o que deverá ser compreendido como uma concretização da pacificamente reconhecida intenção legislativa de que o processo arbitral tributário constitua um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial.    

A norma da alínea a) do artigo 2.º da Portaria 112.º-A/2011, de 22 de Março, deverá também ser entendida como explicando-se pela circunstância de, na sua ausência – e face ao teor do artigo 2.º do RJAT – se perfilar como possível a impugnação direta de atos de autoliquidação, sem precedência de pronúncia administrativa prévia.

Ou seja, tendo em conta que face ao RJAT não se configurava como necessária qualquer intervenção administrativa prévia à impugnação arbitral de uma autoliquidação, o teor da Portaria deve ser interpretado como equiparando – nesta matéria – o processo arbitral tributário ao processo de impugnação judicial e não, como decorreria da posição sustentada pela Requerida, passar do 80 para o 8, pegando numa impugnabilidade mais ampla do que a possível nos Tribunais Tributários, e transmutando-a numa mais restrita.

Assim, razão alguma se vê para que se interprete de forma diferente uma e outra norma, tanto mais que a letra da norma da Portaria 112.º-A/2011, de 22 de Março, acaba por ser menos restritiva que a do CPPT, na medida em que não integra a expressão “obrigatoriamente”, nem se refere a “reclamação graciosa” mas a “via administrativa”. Daí que seja possível uma leitura da própria letra da lei que se contenha no sentido de que apenas está afastado do âmbito da jurisdição arbitral tributária o conhecimento de pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa em termos compatíveis com os artigos 131.º a 133.º do CPPT.

E é esta a leitura que se subscreve, na sequência do Acórdão proferido no processo 48/2012-T do CAAD e jurisprudência arbitral subsequente, não se concebendo, na medida em que interpretação efetuada se contém na letra da lei, que daí possa decorrer a violação de qualquer preceito constitucional, maxime, dos indicados artigos 2.º, 3.º, n.º 2, 111.º e 266.º, n.º 2, todos da Constituição da República Portuguesa (CRP).

Assim, e face a todo o exposto, não assistindo razão à Requerida nesta matéria, julga-se improcedente a exceção da incompetência do Tribunal Arbitral.

 

As partes são legítimas e estão devidamente representadas.

Não há mais exceções a decidir, nem nulidades ou questões que constituam obstáculo à apreciação do mérito da causa.

 

 

IV.

MATÉRIA DE FACTO

 

Está provado que:

A) A requerente entregou no dia 20 de Maio de 2011 a declaração de IRC Modelo 22 referente ao exercício de 2010, e em 30 de Maio de 2012 a declaração de IRC Modelo 22 referente ao exercício de 2011, tendo apurado um montante de tributações autónomas em IRC de € 28.366,38 (2010) e € 48.375,32 (2011), respetivamente.

B) Quer na declaração referente ao exercício de 2010, quer na declaração referente ao exercício de 2011, apurou-se um montante a pagar, que a Requerente pagou.

C) A requerente apresentou pedido de revisão oficiosa contra as referidas autoliquidações respeitantes aos exercícios de 2010 e 2011, tendo sido em 2 de Dezembro de 2015 notificada do indeferimento da mesma, conforme documento junto pela Requerente sob o nº 3, que aqui e tem por integralmente reproduzido.

D) Ao imposto resultante da aplicação das taxas de tributação autónoma em IRC o sistema informático da AT assinala divergências (“erros”) que impedem a inscrição do valor relativo às taxas de tributação autónoma em IRC, deduzido, dentro das forças da coleta de IRC resultante da aplicação destas taxas, dos montantes de pagamentos especiais por conta acumulados.

E) Em sede de pagamentos especiais por conta subsiste um montante acumulado não deduzido à coleta do IRC que ascende em 2010 a € 91.515,57, e em 2011 a € 88.738,33.66,38 e € 48.375,32, respetivamente.

 

A convicção do tribunal resulta dos documentos juntos ao processo e da admissão dos factos alegados pela Requerente e não impugnados pela AT.

 

Não há factos relevantes, alegados pelas partes, que tenham ficado por provar.

 

 

V.

MATÉRIA DE DIREITO

 

A tributação autónoma tal como decorre da própria designação consiste numa forma de tributação que, não obstante se encontrar prevista nos códigos de impostos sobre o rendimento, designadamente no IRC, é materialmente distinta daqueles. Desde logo, tem um facto tributário diverso, dado que não se refere, em rigor, ou pelo menos à primeira vista, à perceção de rendimento, mas a certas despesas. Este entendimento é confirmado pela jurisprudência do tribunal constitucional[1], administrativo[2] e arbitral[3], assim como pela doutrina[4]. Depois, contrariamente ao IRC no seu regime geral, as tributações autónomas não têm uma natureza periódica e não são de formação sucessiva, mas aproximam-se mais dos impostos de prestação única, dada a circunstância de o seu facto gerador, isto é, as despesas sobre que incidem, surgirem de forma isolada no tempo.

Verifica-se, no entanto, que tal como decorre da decisão arbitral de 4/5/2016, proferida no processo do CAAD n.º 781/2015-T, que «Desde logo, é hoje pacífico, na sequência de inúmera jurisprudência arbitral e das posições assumidas pela Autoridade Tributária e Aduaneira, que o imposto cobrado com base em tributações autónomas previstas no CIRC tem a natureza de IRC».

Mesmo num contexto em que se ultrapasse a questão de saber se a tributação autónoma incide ou não sobre o rendimento, e aceitando que existiria um nexo lógico entre a perceção daquele e a verificação de certas despesas (sobre que incidiria a tributação autónoma), ainda assim, seria admissível reconhece-se que o regime da tributação autónoma seria distinto do regime geral aplicável no âmbito do IRC. Isto é, que não se extrapolasse da inclusão formal da tributação autónoma no âmbito do IRC que esta forma de tributação estaria sujeita ao regime geral da tributação dos rendimentos obtidos ao longo do exercício. Especialmente num contexto em que o sistema se caracteriza, precisamente, por um certo dualismo[5].

Como decorre do próprio epíteto autónoma aposto ao vocábulo tributação, as regras subjacentes à tributação dessas receitas são distintas, por isso é que a tributação é autónoma. Decorre das regras aplicáveis à tributação autónoma que as despesas sobre que incide, não só não são refletidas no lucro tributável, na medida em que são excluídas daquele, não tendo, assim, qualquer reflexo na coleta do IRC referente ao regime geral de tributação do lucro, como, também, para além disso, estão sujeitas a uma taxa distinta. É, portanto, legítimo que se atenda às suas especificidades.

Admitimos serem corretas as seguintes afirmações, contidas na decisão do CAAD proferida no já citado processo n.º 781/2015- T, em tudo idêntico ao que agora se decide:

«No entanto, a circunstância de uma autoliquidação de IRC, efectuada nos termos do n.º 1 do artigo 90.º, poder conter vários cálculos parciais com base em várias taxas aplicáveis a determinadas matérias colectáveis, não implica que haja mais do que uma liquidação, como resulta dos próprios termos daquela norma ao fazer referência a «liquidação», no singular, em todos os casos em que é «feita pelo sujeito passivo nas declarações a que se referem os artigos 120.º e 122.º», tendo «por base a matéria colectável que delas conste» (seja a determinada com base nas regras dos artigos 17.º e seguintes, seja a determinada com base nas várias situações previstas no artigo 88.º)»;

 

«O montante apurado na declaração a que se refere o artigo 120.º inclui as quantias relativas a tributações autónomas, não havendo qualquer outra declaração específica para este efeito, nem antes nem depois da Lei n.º 7-A/2016»;

«Na verdade, as declarações previstas no artigo 120.º do CIRC são elaboradas num único modelo oficial aprovado por despacho do Ministro das Finanças, nos termos dos artigos 117.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, do CIRC».

 

 Todavia, o facto de a tributação autónoma ser liquidada no mesmo momento em que é feita a liquidação nos termos do regime geral e de, em última análise, por ocasião da determinação do montante de imposto a pagar em sede de IRC, a liquidação referente à tributação autónoma e a relativa ao regime geral de IRC confluírem, pode ser entendido como uma expressão meramente técnica e de conveniência. Não pondo, por conseguinte, em causa a existência de dois momentos distintos de liquidação. Aliás, a liquidação, enquanto procedimento, envolve mais do que a determinação do montante de imposto a pagar, compreendendo toda uma sucessão de atos que, no caso da tributação autónoma, é totalmente distinta daquela que se verifica no âmbito das regras gerais. Nessa medida, o argumento estritamente literal de que o artigo 90.º do CIRC faria uma referência genérica à liquidação e que, por essa razão, se imporia, nos termos do 90.º, n.º 2 do CIRC, uma dedução das despesas, poderá deixar margem para que se considerem as especificidades das tributações autónomas e sobretudo a dinâmica e sistemática das várias disposições do CIRC.

No caso da dedução do PEC, como é pretendido no caso concreto, surgiria uma situação verdadeiramente inconveniente que se traduziria no facto de existirem duas normas antiabuso que se anulariam mutuamente.

Como é sabido, o PEC foi introduzido no ordenamento para fornecer à Administração Fiscal um mecanismo adicional de combate à evasão fiscal. Não se trata, portanto, de um pagamento por conta normal, dado que se calcula com base no volume de negócios, podendo até ser devido na ausência de lucros, o que evidencia o seu carácter antiabuso.

Na prática permitir-se-ia deduzir a um pagamento que tem em vista prevenir o abuso, outro que prosseguiria exatamente o mesmo fim. Maximizar-se-ia nesta situação o paradoxo que já decorreria da efetivação das deduções constantes do artigo 90.º, n.º 2 do CIRC.

Subscrevemos na íntegra, a propósito do que acabámos de aventar, o excerto da decisão do CAAD proferida no processo n.º 781/2015- T, e que passamos a transcrever.

 

«Mas também não deixa de ser certo que, em face do regime anterior de reembolso dos pagamentos especiais por conta, que revelava que o pagamento especial por conta tinha ínsita uma presunção de rendimentos não declarados, poder-se-ia aventar uma interpretação restritiva, relativamente ao pagamento especial por conta, no sentido de que não ser dedutível à colecta das tributações autónomas, como se entendeu na decisão arbitral de 30-12-2015, proferida no processo do CAAD n.º 113/2015-T, que invoca ponderáveis razões, derivadas das finalidades que se pretendeu legislativamente atingir com a criação do pagamento especial por conta, que podiam justificar uma restrição da referência que no artigo 93.º, n.º 1, do CIRC se faz ao «montante apurado na declaração a que se refere o artigo 120.º»:

 Como se viu o PEC passou a fazer parte do sistema do IRC cuja liquidação consagrada no artigo 83º foi concebida para apurar o imposto diretamente incidente sobre o rendimento declarado. Quando haja lugar a prejuízo fiscal o sujeito passivo tem ainda assim que suportar o PEC; essa foi aliás a razão da sua introdução. Se determinada empresa tiver sucessivamente prejuízos fiscais, suportará sistematicamente imposto, pois o sistema duvida da sua possibilidade de funcionamento em situação permanentemente deficitária, exigindo-lhe que satisfaça provisoriamente (por conta), determinado valor. Poderá reembolsá-lo se provar que essa situação é comum no seu setor de atividade ou se a AT verificar a regularidade das suas declarações. Este foi o equilíbrio que o CIRC exigiu para manter um sistema baseado nas declarações feitas pelos contribuintes.

Já o imposto resultante da tributação autónoma fundamenta-se tão só na perseguição à evasão fiscal por transferência de rendimento e tem o efeito dissuasor e compensatório.

Se se permitir a dedução do PEC à coleta resultante da tributação autónoma, gorar-se-ão os propósitos do sistema em que a norma do 83º-2-e CIRC se insere, pois o produto do pagamento especial por conta que deveria manter-se “estacionado” na titularidade da Fazenda Pública será afetado à extinção da dívida do sujeito passivo resultante das tributações autónomas, aligeirando assim a pretendida pressão para evitar a evasão fiscal “declarativa”. Existe efetivamente um conflito inconciliável entre a ratio do PEC – o combate à evasão ou a pressão para correção das declarações – e a afetação dos seus créditos à satisfação de outras obrigações que não sejam as que resultam do apuramento do IRC calculado sobre o resultado tributável.

 

O novo n.º 21 do artigo 88.º do CIRC aditado pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, sintoniza-se com este entendimento arbitral, pois vem estabelecer expressamente que ao montante apurado das tributações autónomas não são «efectuadas quaisquer deduções».

Por outro lado, o artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, ao atribuir natureza «interpretativa» àquele novo n.º 21.º do artigo 88.º, conjugado com o artigo 13.º do Código Civil (que é a única norma que define o conceito de lei interpretativa), tem ínsita uma intenção legislativa de aplicar o novo regime às situações anteriores em que não haja «efeitos já produzidos pelo cumprimento da obrigação, por sentença passada em julgado, por transacção, ainda que não homologada, ou por actos de análoga natureza».

BAPTISTA MACHADO ensina sobre as leis interpretativas:

Ora a razão pela qual a lei interpretativa se aplica a factos e situações anteriores reside fundamentalmente em que ela, vindo consagrar e fixar uma das interpretações possíveis da lei antiga com que os interessados podiam e deviam contar, não é susceptível de violar expectativas seguras e legitimamente fundadas. Poderemos consequentemente dizer que são de sua natureza interpretativas aquelas leis que, sobre pontos ou questões em que as regras jurídicas aplicáveis são incertas ou o seu sentido controvertido, vem consagrar uma solução que os tribunais poderiam ter adoptado. Não é preciso que a lei venha consagrar uma das correntes jurisprudenciais anteriores ou uma forte corrente jurisprudencial anterior. Tanto mais que a lei interpretativa surge muitas vezes antes que tais correntes jurisprudenciais se cheguem a formar. Mas, se é este o caso, e se entretanto se formou uma corrente jurisprudencial uniforme que tornou praticamente certo o sentido da norma antiga, então a lei nova que venha consagrar uma interpretação diferente da mesma norma já não pode ser considerada realmente interpretativa (embora o seja porventura por determinação do legislador), mas inovadora.

Para que uma lei nova possa ser realmente interpretativa são necessários, portanto, dois requisitos: que a solução do direito anterior seja controvertida ou pelo menos incerta; e que a solução definida pela nova lei se situe dentro dos quadros da controvérsia e seja tal que o julgador ou o intérprete a ela poderiam chegar sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação e aplicação da lei. Se o julgador ou o intérprete, em face de textos antigos, não podiam sentir-se autorizados a adoptar a solução que a lei nova vem consagrar, então esta é decididamente inovadora.

 

Em face desta posição, cuja fundamentação é ponderável, à face da legislação vigente em 2012 e em 2013, pode aceitar-se a atribuição de natureza interpretativa ao n.º 21 do artigo 88.º do CIRC que se faz no artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, à luz dos ensinamentos de BAPTISTA MACHADO, pois a solução nele prevista de inviabilidade de dedução do pagamento especial por conta ao montante global das tributações autónomas passa o teste enunciado por este Autor:

– a solução que resultava do teor literal do artigo 93.º, n.º 1, do CIRC era controvertida, como evidencia aquela decisão arbitral e a solução definida pela nova lei situa-se dentro dos quadros da controvérsia;

– o julgador ou o intérprete poderiam chegar a essa solução sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação e aplicação da lei, já que a interpretação restritiva é admissível quando há razões para concluir que o alcance do texto legal atraiçoa o pensamento legislativo ou é necessário optimizar a harmonização de interesses conflituantes que duas normas visam tutelar.

 

Ao contrário do que sucede com os benefícios fiscais que dependem da realização de investimentos, não há, no que concerne a dedutibilidade dos pagamentos especiais por conta, preocupação de protecção de confiança, pois, os pagamentos especiais estão conexionados com o volume de negócios, não dependendo de qualquer específico comportamento que o sujeito passivo fosse levado a adoptar por lhe ser criada a expectativa de obter como contrapartida uma vantagem fiscal.

Para além disso, não se vê que o regime que resulta do artigo 88.º, n.º 21, do CIRC encerre qualquer contradição: segundo esta nova norma, as normas do CIRC relativas à forma de liquidação de tributações autónomas devem ser interpretadas como aí se prevê e relativamente a essa parte da liquidação de IRC não são efectuadas deduções.

Aliás, foi precisamente com este sentido que foi elaborado o modelo 22 de declaração de IRC e foi aplicando o regime agora explícito no n.º 21 do artigo 88.º que a Requerente preencheu as declarações que se referem nos autos, sem qualquer contradição perceptível.

Mas, sendo assim, como defende a Requerente, o obstáculo à aplicação do regime que resulta deste n.º 21 do artigo 88.º será apenas a sua eventual inconstitucionalidade, designadamente à face da regra da proibição de impostos com natureza retroactiva que consta do n.º 3 do artigo 103.º da CRP, que estabelece que «ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição, que tenham natureza retroactiva ou cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei».

O Tribunal Constitucional tem adoptado uma interpretação restritiva do alcance desta proibição de impostos que tenham natureza retroactiva, entendendo que o «legislador da revisão constitucional de 1997, que introduziu a actual redacção do artigo 103.º, n.º 3, apenas pretendeu consagrar a proibição da retroactividade autêntica, ou própria, da lei fiscal, abrangendo apenas os casos em que o facto tributário que a lei nova pretende regular já tenha produzido todos os seus efeitos ao abrigo da lei antiga, excluindo do seu âmbito aplicativo as situações de retrospectividade ou de retroactividade imprópria, ou seja, aquelas situações em que a lei é aplicada a factos passados mas cujos efeitos ainda perduram no presente» (acórdãos n.º 18/2011, de 12-01-2011, que segue jurisprudência adoptada no acórdão n.º 399/2010).

As normas que prevêem os pagamentos especiais por conta não eram, em princípio, normas de incidência de IRC, mas sim sobre a sua liquidação e pagamento, pelo que, nessa medida, não estarão abrangidas pela proibição constitucional de retroactividade. Mas, antes da redacção dada pela Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, ao n.º 3 do artigo 93.º, na inviabilidade de dedução dos pagamentos especiais por conta no período a que se reportam e nos períodos subsequentes, aquelas normas podiam acabar por criar uma situação de incidência de IRC, autónoma em relação a qualquer outro facto tributário, se não viesse a ser permitido o reembolso nos termos do n.º 3 do artigo 93.º do CIRC, que dependia do preenchimento de condições.

No entanto, com a redacção dada ao referido n.º 3 do artigo 93.º pela Lei n.º 2/2014, deixaram de ser exigidas essas condições para o reembolso, pelo que os pagamentos especiais por conta apenas implicam, por si mesmos, o pagamento definitivo de imposto quando o sujeito passivo não diligenciar no sentido de obter o reembolso, no prazo previsto.

E, mesmo nesta hipótese, estar-se-á perante um facto tributário complexo de formação sucessiva, que é constituído pelo volume de negócios no ano a que se reportam os pagamentos especiais por conta conjugado com a inviabilidade de dedução nos períodos previstos na lei e o não reembolso nos termos previstos no artigo 93.º, n.º 3, do CIRC».

«Assim, terá de se concluir que a interpretação autêntica que se faz no artigo 88.º, n.º 21, do CIRC, na parte em que se reconduz à não dedutibilidade dos pagamentos especiais por conta nas tributações autónomas, não ofende o princípio da não retroactividade na criação de impostos, entendido como reportando-se apenas à retroactividade autêntica, reportada a factos tributários que se completaram e produziram todos os seus efeitos no passado.

Porém, aquela regra da irretroactividade das normas que criem impostos não esgota as preocupações constitucionais de segurança jurídica, impostas pelo princípio do Estado de direito democrático, como ensina CASALTA NABAIS:

«O princípio da segurança jurídica, ínsito na ideia do Estado de direito democrático, está longe, porém, de ter sido totalmente absorvido por esse novo preceito constitucional. É certo que ele deixou de servir de balança na ponderação dos bens jurídicos em presença quando estamos perante um imposto afectado de retroactividade verdadeira ou própria. Quando tal acontecer, a solução está agora ditada, urbi et orbi, na Constituição, não podendo o órgãos seus aplicadores, sem violação dela, proceder a uma ponderação casuística.

Mas o princípio em causa tem inequivocamente um lastro bem maior. É que ele também serve de critério de ponderação em situações de retroactividade imprópria, inautêntica ou falsa, bem como em situações em que, não se verificando qualquer retroactividade, própria ou imprópria, há que tutelar a confiança dos contribuintes depositada na actuação dos órgãos do Estado»

 

No entanto, no específico caso dos pagamentos especiais por conta, não pode concluir-se que não se esteja perante uma lei verdadeiramente interpretativa, pois não havia uma jurisprudência consolidada no sentido da sua dedutibilidade à colecta resultante das tributações autónomas e, pelo contrário, a solução perfilhada no n.º 21 do artigo 88.º, já anteriormente podia ser adoptada pelos tribunais, como foi pelo Tribunal Arbitral que proferiu a decisão no processo do CAAD n.º 113/2015-T.

Assim, não pode concluir-se que a interpretação autêntica que se faz naquele artigo 88.º, n.º 21, por força do artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, seja violadora do princípio constitucional da segurança jurídica, no que concerne à parte daquela norma que se reporta à indedutibilidade dos pagamentos especiais por conta à colecta das tributações autónomas».

            A propósito da questão da lei interpretativa e no sentido de reforçar a posição subscrita através da adesão ao excerto do acórdão que acabámos de transcrever, acolhemos também, o que se escreveu na decisão arbitral de 30/06/2016, proferida no processo do CAAD n.º 769/2015-T a esse mesmo respeito:

 “ Pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, o legislador introduziu o n.º 21 ao art. 88.º do CIRC, com a seguinte redacção:

A liquidação das tributações autónomas em IRC é efectuada nos termos previstos no art. 89.º e tem por base os valores e taxas que resultem do disposto nos números anteriores, não sendo efectuadas quaisquer deduções ao montante global apurado”.

No art. 135.º da referida Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, o legislador determinou que a norma em causa terá carácter interpretativo.

A verificar-se que, de facto, o novo n.º 21 do art. 88.º do CIRC tem carácter interpretativo, as disposições aí contidas integrarão a norma interpretada desde o seu início de vigência, pelo que este tribunal terá que concluir pela não dedução do PEC aos montantes devidos a título de tributações autónomas, indeferindo a pretensão da Requerente. Isso mesmo resultaria da aplicação ao caso concreto do art. 13.º do Código Civil que “A lei interpretativa integra-se na lei interpretada, ficando salvos, porém, os efeitos já produzidos pelo cumprimento da obrigação, por sentença passada em julgado, por transacção, ainda que não homologada, ou por actos de natureza análoga”.

Antes de mais, há que referir que, embora em matéria fiscal os princípios constitucionais da legalidade e da proibição da retroactividade da lei, previstos no art. 103.º da CRP, imponham algumas restrições ao legislador, entende este tribunal que não existe uma proibição constitucional genérica de leis fiscais interpretativas. 

A admissibilidade constitucional de leis interpretativas em matéria fiscal - tal como relativamente a quaisquer normas de natureza fiscal - deverá ser aferida em função das matérias sobre as quais versam e do respectivo conteúdo normativo uma vez que a proibição constitucional da retroactividade da lei fiscal se cinge às matérias de incidência (objectiva, subjectiva, temporal e territorial) do imposto.

Como defendem Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, “A constitucionalidade das normas tributárias retroactivas tem de ser aferida em termos diferentes consoante elas digam respeito aos elementos materiais que concorrem para a definição do tipo normativo tributário (incidência, isenções e taxa) ou a outras matérias (garantia dos contribuintes, procedimento de liquidação e de cobrança). A proibição constante do art. 103.º, n.º 3, da CRP; diz respeito apenas às primeiras. A conformidade constitucional das segundas tem de ser equacionada à luz dos princípios materiais da segurança jurídica e da tutela da confiança que enformam o Estado de direito (art. 2.º da CRP)”.

Partindo-se da admissibilidade teórica de leis interpretativas em matéria fiscal, cumpre analisar se, no caso em apreço, não obstante a declaração expressa do legislador, estamos efectivamente perante uma lei interpretativa.

de Baptista Machado conclui que “a razão pela qual a lei interpretativa se aplica a factos e situações anteriores reside fundamentalmente em que ela, vindo consagrar uma das interpretações possíveis da lei antiga com que os interessados podiam e deviam contar, não é susceptível de violar expectativas seguras e legitimamente fundadas”. Nestes casos, não há verdadeira retroactividade na aplicação da lei interpretativa porque a interpretação da norma originária efectuada à luz do quadro legal em vigor levaria à mesma solução que a consagrada pelo legislador em norma posterior.

Considera-se, assim, que, para qualificar uma lei como interpretativa, deverão verificar-se os seguintes requisitos:

(i)            haver uma questão controvertida ou incerta na lei em vigor; e

(ii)          o legislador consagra uma solução interpretativa que resolve a incerteza a que chegariam o intérprete ou o julgador com base no normativo vigente anteriormente à alteração legislativa.

Aplicando estes critérios à situação em apreço, somos levados a concluir que estamos, realmente, perante uma lei interpretativa. Na verdade, a matéria regulada pelo novo n.º 21 do art. 88.º do CIRC era controversa e incerta (tendo dado origem aos processos arbitrais elencados pela própria Requerente), correspondendo a solução consagrada a uma das interpretações plausíveis a que o julgador chegaria, como efectivamente chegou, por exemplo, na decisão arbitral proferida no proc. 113/2015-T, de 30-12-2015. A solução não deixa de ser uma solução plausível e fundamentada que encontrou aderência jurisprudencial prévia.

Contra este entendimento não procederá a alegação da Requerente de que, para se estar perante uma efectiva lei interpretativa seria necessária uma corrente jurisprudencial que impusesse determinada solução ao legislador. E esta alegação não procede porquanto, como refere Baptista Machado “(…) Não é preciso que a lei venha consagrar uma das correntes jurisprudenciais anteriores ou uma forte corrente jurisprudencial anterior. Tanto mais que a lei interpretativa surge muitas vezes antes que tais correntes jurisprudenciais se cheguem a formar. (…) Para que uma lei nova possa ser realmente interpretativa são necessários, portanto, dois requisitos: que a solução do direito anterior seja controvertida ou pelo menos incerta; e que a solução definida pela nova lei se situe dentro dos quadros da controvérsia e seja tal que o julgador ou o intérprete a ela poderiam chegar sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação e aplicação da lei. Se o julgador ou o intérprete, em face de textos antigos, não podiam sentir-se autorizados a adotar a solução que a lei nova vem consagrar, então esta é decididamente inovadora.” (sublinhado nosso). 

Face a tudo o que vem exposto supra, resta concluir pelo carácter interpretativo do n.º 21 do art. 88.º do CIRC, introduzido pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, que, sendo directamente aplicável à situação em apreço, de acordo com o art. 13.º do Código Civil, implicará o indeferimento da pretensão da Requerente por determinar expressamente a referida norma que ao montante de tributações autónomas não serão efectuadas quaisquer deduções.”

*

 

Conclui-se, por conseguinte que o legislador ao incluir no IRC o n.º 21 do artigo 88.º, norma interpretativa» aditada pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março:

«A liquidação das tributações autónomas em IRC é efetuada nos termos previstos no artigo 89.º e tem por base os valores e as taxas que resultem do disposto nos números anteriores, não sendo efetuadas qualquer deduções ao montante global apurado».

 

Se limitou a acolher e a reforçar o sentido interpretativo que já resultava das normas vigentes, como ficou demonstrado pelo que foi exposto até aqui. Nessa medida dispensa-se a aplicação retroativa daquela normal.

 

Se porventura, o posicionamento for o de que é possível fazer deduções ao montante de tributações autónomas, consideramos que uma boa hermenêutica jurídica impõe a aplicação retroativa da lei interpretativa.

 

Concluímos pela negação ao provimento do pedido arbitral de declaração de ilegalidade da autoliquidação de IRC referente aos exercícios de 2010 e 2011.

 

 

VI.

REEMBOLSO DAS QUANTIAS PAGAS E JUROS INDEMNIZATÓRIOS        

 

A Requerente pede o reembolso das quantias pagas, acrescidas de juros indemnizatórios à taxa legal, contados, até integral reembolso.

O reembolso das quantias e o direito a juros indemnizatórios dependem da procedência do pedido de declaração de ilegalidade das autoliquidações.

Por isso, improcedendo este pedido, improcedem necessariamente os de reembolso e juros indemnizatórios.

 

 

VII.

DECISÃO

 

Termos em que acordam neste Tribunal Arbitral em:

– julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral;

– absolver a Autoridade Tributária e Aduaneira dos pedidos.

 

VIII.

VALOR DO PROCESSO

 

De harmonia com o disposto no art. 305.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 76.741,70.

 

 IX.

CUSTAS

 

Nos termos do art. 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas, a cargo da Requerente, em € 2.448,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

Lisboa, 04-11-2016

 

Os Árbitros

 

 

 

(José Baeta Queiroz – Presidente – vencido conforme voto que se segue e integra a presente decisão)

 

 

 

 

(António Martins - Vogal)

 

 

-

(João Sérgio Ribeiro- Vogal)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

           

Voto de vencido

 

A jurisprudência produzida pelos tribunais arbitrais que funcionam no âmbito do CAAD tem entendido, quase unanimemente, que as tributações autónomas integram o IRC, com a argumentação de que também o presente acórdão se não afastou.

E, se não fosse como se vem decidindo, não haveria norma legal que suportasse a respectiva liquidação, e as tributações autónomas teriam de se considerar inconstitucionais, por violação do nº 3 do artigo 103º da Constituição.

Por outro lado, o que aos tribunais primacialmente interessa é o modo como o legislador configurou as coisas, e não os conceitos doutrinários, que o legislador nem sempre tem em conta. E o legislador, no caso, ao incluir as tributações autónomas no artigo 90º do CIRC, optou indubitavelmente por considerá-las IRC.

Por sua vez, os pagamentos especiais por conta nem por serem especiais deixam de ser pagamentos por conta. Ou seja, adiantamentos do imposto que a final se liquide, ao qual devem ser deduzidos os pagamentos já efectuados, créditos resultantes de um empréstimo que o contribuinte foi forçado a fazer ao Estado – sejam eles especiais ou não.

É verdade que estes pagamentos especiais por conta visam tributar as empresas que sistematicamente apresentam prejuízos fiscais, e não as que evidenciam resultados fiscais positivos. Mas tal não é obstáculo ao que vimos afirmando.

Assim, no nosso entender, a colecta encontrada mediante a liquidação efectuada nos termos do artigo 90º nº 1 inclui as tributações autónomas, e o nº 2 do mesmo artigo, na sua alínea c), manda deduzir ao montante apurado, que é um só, o “pagamento especial por conta a que se refere o artigo 106º”.

Não vemos como esta norma possa legitimamente interpretar-se senão literalmente. Todos os elementos a que se atende para a interpretação das leis, designadamente, a intenção do legislador, ou a unidade do sistema, de nada valem se o resultado a que se chega não tem expressão bastante na letra da lei. E essa letra, no caso, é clara e não comporta, a nosso ver, senão um sentido.

É verdade que numerosa jurisprudência dos tribunais arbitrais fez da norma uma interpretação restritiva, considerando não dedutíveis os pagamentos especiais por conta. Tal jurisprudência assenta, em resumo, na consideração de que, tendo os pagamentos especiais por conta sido introduzidos para tributar as empresas que sistematicamente apresentam prejuízos fiscais; e assumindo as tributações autónomas um efeito dissuasor e compensatório, perseguindo a evasão fiscal por transferência de rendimentos – o sistema sairia defraudado se se permitisse a utilização dos pagamentos especiais por conta para extinguir a dívida resultante das tributações autónomas.

Dai que tais intérpretes se tenham sentido autorizados a fazer uma interpretação restritiva – o legislador disse mais do que queria ao admitir a dedução à colecta resultante das tributações autónomas dos pagamentos especiais por conta.

Porém, com toda a consideração pelos membros dos tribunais que assim entenderam, bem como pela douta argumentação que expandiram, não acompanhamos o assim decidido, pelas razões já sinteticamente expostas. A nosso ver, tal interpretação atende mais ao elemento sistemático e à intenção atribuída ao legislador do que à letra da lei, nada nos fazendo crer que o legislador se manifestou incorrectamente, e nada recomendando, consequentemente, a interpretação restritiva.

 

Cumpre, porém, atentar em que o artigo 133º da lei nº 7-A/2016, de 30 de Março, introduziu no artigo 88º do CIRC um novo nº 21, deste teor:

“A liquidação das tributações autónomas em IRC é efectuada nos termos previstos no artigo 89º e tem por base os valores e as taxas que resultem do disposto nos números anteriores, não sendo efectuadas quaisquer deduções ao montante global apurado”.

E o artigo 135º da dita lei afirmou a natureza interpretativa do transcrito nº 21 do artigo 88º.

Sucede que as nossas doutrina e jurisprudência sustentam, desde há muito, que não basta a uma norma, para ser interpretativa, a afirmação do legislador em tal sentido.

Verdade que, no caso, há uma controvérsia jurisprudencial que, em princípio, justificaria uma intervenção interpretativa do legislador. Verdade é, também, que a nova norma, afirmada como interpretativa, vai no sentido de uma das correntes jurisprudenciais pré-existentes, ou seja, já antes alguns julgadores tinham chegado à interpretação agora feita pelo legislador.

Mas atente-se no que em 1997 escreveu o Professor Oliveira Ascensão: “não basta que em relação a um ponto duvidoso surja uma lei posterior que consagre uma das interpretações possíveis para que a lei seja interpretativa” (apud Saldanha Sanches, “Lei interpretativa e retroactividade em matéria fiscal”, in FISCALIDADE, nº 1, pág. 87). Ao que acrescenta o Professor Saldanha Sanches: “É necessário que haja uma efectiva controvérsia, conhecida pelos destinatários da norma, sobre a incerteza da interpretação”.

Este ponto parece-nos relevante. É que os destinatários da norma não são, prima facie, os juristas, os julgadores, mas os cidadãos em geral, todos obrigados ao pagamento de impostos e todos vinculados à lei, cujo desconhecimento não podem invocar.

Ora, a interpretação a que chegaram aqueles tribunais arbitrais não está ao alcance de qualquer cidadão, sem sequer de qualquer jurista, mas só de um fiscalista altamente especializado, capaz de conjugar vários elementos, sejam eles histórico, sistemático e outros, interpretativos, razoavelmente ignorados da maioria das pessoas, destinatários da lei, e nem sequer atingíveis pelos mais empenhados em entendê-la.

Ou seja: o cidadão comum, o bonus pater familias, mesmo que empresário, investidor ou gerente, não conhecendo, nem tendo que conhecer, a jurisprudência dos tribunais arbitrais, contava, antes da lei dita interpretativa, com a possibilidade de dedução à colecta, nela incluídas as tributações autónomas, dos pagamentos especiais por conta. Era isso o que lia na lei então existente.

O que vale por dizer que a norma interpretativa “(…) por não corresponder a qualquer coisa com que o contribuinte devesse ou pudesse contar, vem constituir pelo seu carácter imprevisível um comportamento lesivo da segurança jurídica” (Saldanha Sanches, obra e local citados, pág. 86).

Mais: para o Autor cujo ensinamento temos vindo a acompanhar, “(…) não nos parece que a lei interpretativa possa ter lugar em matéria fiscal (…) a [IV] revisão constitucional veio impedir os efeitos retroactivos de qualquer norma em matéria fiscal. Incluindo os provocados por lei interpretativa” (obra e local citados, pág. 88).

E, para quem pense que esta posição possa ter sido meramente circunstancial, reportada ao ano de 2000, em que foi escrito o artigo que temos vindo a referir, é ver o MANUAL DE DIREITO FISCAL do mesmo professor, em cuja edição de 2007 se lê, a págs. 195, que “(…) mesmo quando estamos perante uma lei verdadeiramente interpretativa, e não uma daquelas que o legislador designa de interpretativa “para tornar menos perceptível a retroactividade da lei”, (…) estamos , em todas estas situações, perante casos abrangidos pela proibição constitucional da retroactividade”.

Mais assim é para quem, como nós, entende que a letra da lei anterior à lei do orçamento para 2016 não comportava a interpretação depois adoptada pelo legislador, pois era unívoco o sentido que dessa letra se retirava: os pagamentos especiais por conta eram dedutíveis à colecta apurada nos termos do nº 1 do artigo 90º, incluísse esta, ou não, tributações autónomas. Ou seja, que o nº 21 do artigo 88º do CIRC não é uma verdadeira norma interpretativa. Como, aliás, logo indicia o modo como o legislador procedeu: em vez de dar à norma supostamente ambígua uma nova redacção, agora inequívoca, criou uma outra norma, nova - o nº 21 do artigo 88º do CIRC -, em colisão com o artigo 90º, que não pode deixar de ser a “norma interpretada”. E, se o falado nº 21º do artigo 88º do CIRC fosse uma verdadeira norma interpretativa, seria desconforme com o artigo 103º nº 3 da Constituição.

Eis, em rápida súmula, as razões porque não acompanhamos o decidido e por que, consequentemente, julgaríamos procedente o pedido.

 

                               

 

 

José Baeta Queiroz



[1] Cfr. Acórdão n.º 617/2012, processo n.º 150/12, de 31/1/2013 e Acórdão 197/2016, processo n.º 465/2015, de 13/04/2016.

[2] Cfr. Acórdão 21/3/2012, processo 830/11, de 21/3/2012, entre outros

[3] Cfr. Acórdão 535/2015-T de 27/04/2016; Acórdão n.º 697/2014-T,de 13/05/ 2015, entre outros.

[4] Cfr. Rui Duarte Morais, Apontamentos ao IRC, Almedina, 2019, pp. 2020-203; José Casalta Nabais, Direito Fiscal, 8.ª edição, almedina, Coimbra, 2015, p. 542; Ana Paula Dourado, Direito Fiscal, Lições, 2015, pp. 237 ess.

[5] Saldanha Sanches considera que a introdução de tributações autónomas conferiu ao sistema uma natureza dual. Ver Saldanha Sanches, Manual de Direito Fiscal, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, pp. 406-408.