Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 1/2018-T
Data da decisão: 2018-11-23  IRC  
Valor do pedido: € 502.586,03
Tema: IRC – Imparidades; juros; custos dedutíveis; descontos e abatimentos: art.º 23.º, 28.º-A e 28.º-B, do CIRC.
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Os árbitros Juíza Conselheira Dra. Fernanda Maças (árbitro-presidente), Doutor Tomás Cantista Tavares e Dr. Rui Manuel Correia de Pinho (árbitros vogais), designa­dos, respetivamente, por acordo dos árbitros nomeados pelas partes, pela Reque­rente e pela Requerida para formarem o Tribunal Arbitral, acordam no seguinte:

 

 1. Relatório

A..., SA, NIPC..., com sede na ..., n.º..., ..., -..., ... (doravante A... ou Requeren­te) apresentou pedido de constituição do tribunal arbitral coletivo, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º, n.º 1, al. a) e 6.º, n.º 2, al. b) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante AT), com vista à declaração de ilegalidade da liquidação de IRC e Juros compensatórios de 2014, no valor de 502.586,03€ (n.º 2017..., compensação 2017...).

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação.

 O tribunal arbitral coletivo foi constituído em 28/3/2018.

A AT respondeu, por impugnação, defendendo que o pedido deve ser julgado improcedente.

Por desnecessidade e com o acordo das partes, foi dispensada a reunião do artigo 18.º do RJAT. Foi realizada inquirição de testemunha indicada pela requerente. As partes produziram alegações escritas. O tribunal prorrogou, até dois meses, a prolação da decisão, atenta a extensão e complexidade do caso.

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, como se dispõe no art.º 2.º, n.º 1, al. a) e 4.º, ambos do RJAT.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art.º 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O processo não enferma de nulidades e não há qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.

 

2. Matéria de facto

2.1. Factos provados

Consideram-se provados os seguintes factos relevantes para a decisão:

Factos gerais

a) A requerente é uma sociedade anónima, constituída em 3 de dezembro de 2013, inscrita para o exercício da atividade principal de “fabricação de perfumes, de cosmética e de produtos de higiene”.

b) Entre 12/9/2016 e 23/6/2017 (com despacho de prorrogação de inspeção), a requerente foi alvo de inspeção tributária ao seu exercício de 2014.

c) A Requerente foi notificada para exercício do direito de audição prévia; que o exerceu – e na sua sequência a AT diminuiu parcialmente as correções à matéria coletável, do valor inicial de 2.236.170,77€ para 1.931.919,29€, a seguir discriminadas.

 

Projeto

Relatório final

Faturas não contabilizadas como proveitos

299.505,67€

70.285,30€

Descontos e abatimentos em vendas

91.581,08€

76.085,60€

Encargos não dedutíveis para efeitos fiscais - acrualls

228.990,17€

169.454,54€

Encargos não dedutíveis para efeitos fiscais - juros

735.957,20€

735.957,20€

Imparidades em clientes

880.136,65€

880.136,65€

Total

2.236.170,77€

1.931.919,29€

d) A Autoridade Tributária efetuou um relatório final em que explica os motivos subjacentes a todas estas correções – e as aceitações parciais introduzidas na audição prévia.

e) Na sequência destas correções, a Requerente foi alvo da liquidação de IRC e juros com­pen­sa­tórios de 2014, no valor de 502.586,03€ (n.º 2017..., compen­sa­­ção 2017...) – cuja impugnação da sua legalidade consta deste proces­so arbitral.

f) Em 22/11/2017, a requerente prestou garantia bancária n.º..., no valor de 636.468,71€, pelo B..., SA, para suspender o correspondente processo executivo.

g) A sociedade C..., SA (doravante C...) está em relação especial com a requerente, pois ambas são dominadas a 100% pela D..., SGPS, SA.

h) o objeto social da requerente é: “a) todas e quaisquer atividades relacionadas com a produção, comercialização, compra e venda, distribuição, importação e exportação de qualquer tipo de produtos de higiene, perfumaria, cosmética e limpeza doméstica ou pessoal, produtos alimentares ou similares, bem como produtos destinados a animais de estimação ou outros semelhantes; b) aquisição e gestão de marcas e outros direitos de propriedade industrial, tendo em vista a comercialização dos produtos referidos na alínea a); c) implementação e gestão de redes e sistemas seletivos e informatizados para a comercialização de produtos referidos na alínea a) e prestação de serviços relacionados com a gestão de compras e vendas e distribuição dos mesmos através de tais redes; d) prestação de serviços de consultoria e gestão, compra e venda de imóveis, incluindo a compra para revenda dos adquiridos para esse fim, bem como o exercício de atividades com estas relacionadas ou conexas; e) prestação de serviços de consultoria e assessoria a quaisquer entidades ou acessórias às atividades referidas nas alíneas anteriores”.

Factos sobre “faturas não contabilizadas em proveitos”

i) O tema reporta-se a uma fatura (n.º 1410140), no valor de 70.285,30€, datada de 31 de Agosto e emitida à E... SARL.

j) A requerente serviu de mera intermediária entre o cliente (E...) e o fornecedor (C...) – empresa “irmã” e fornecedora da requerente e com administradores comuns com a requerente.

k) A C... passava à época (2014) por dificuldades financeiras, que desembocaram na sua insolvência, em Janeiro de 2015.

l) A C... faturou à requerente a quantia de 70.285,30€ (contabilizada em balanço, por débito na conta 32 Inventários e a crédito na conta 22 fornecedor).

m) Por sua vez, a requerente faturou essa mesma quantia à E..., também registada (apenas) em Balanço (e nunca na demonstração de resultados), por crédito na conta 32 inventários e a débito na conta 21 cliente E... .

n) Esta operação não passou pela demonstração de resultados, nem a fatura de proveitos (faturação à E...), nem o gasto simétrico associado do mesmo montante (fatura da C...).

Factos sobre descontos e abatimentos em vendas

o) Em Dezembro de 2014, a requerente atrasou-se na entrega de bens ao cliente F..., ficando assim sujeita a penalidades, no valor de 30 mil euros.

p) Ainda em Dezembro de 2014, há uma troca de e-mails do e com o cliente F... onde se comprova o atraso da requerente na remessa dos produtos.

q) A requerente aceitou essas penalidades e emitiu duas notas de crédito, em 03/04/2015, no valor total de 30.000,00€, com a descrição de “logistics penalties”.

r) Em 2014, a requerente registou essas notas de crédito, no valor de 30 mil euros – como acréscimo de gasto.

Factos sobre “Encargos não dedutíveis para efeitos fiscais – acrualls”

s) Este tema, segundo nomenclatura do relatório de inspeção, reporta-se a consultores fiscais e financeiros – 3.650,00€; consultores de vendas – 142.114,17€; e outros – 23.690,37€.

Quanto ao tema “consultores fiscais e financeiros”

t) A G... emitiu duas faturas em 2015, no valor total de 3.750,00€ com os descritivos, “análise das implicações fiscais da venda de produtos de Espanha para as Canárias” (1500€) e “nossos honorários relativos a finalização do processo de preços de transferência- 50% conforme nossa proposta” (2250€). A AT, no seu relatório de inspeção, totaliza estas duas faturas em 3.650,00€.

u) A requerente contabilizou esses valores em 2014 (como gasto contabilístico e fiscal de 2014) por entender que o serviço diz respeito a esse ano, apesar de faturado em 2015.

v) A requerente não contabilizou esses valores como gasto contabilístico e fiscal de 2015.

Quanto ao tema “consultores de vendas”

w) A requerente vendia produtos em Espanha, mas não tinha força comercial própria de vendas nesse País.

x) Em 2014, a A... Espanha emitiu uma fatura em 30/12/2014, no valor de 72.000,00€, com a designação “por los servicios comerciales realizados ante sus clientes em España en el ejercicio de 2014”.

y) Uma parte significativa do volume de negócios da requerente é efetuado em Espanha – e em 2014 houve necessidade de renegociar contratos com clientes em Espanha, o que foi feito pela A... Espanha, contratada para esse efeito pela requerente.

z) Em 2014, a requerente registou 3 faturas na conta 622105: fatura 02/14 no valor de 12.268,61€ (18/3/2014); fatura 005/14, no valor de 32.812,47€ (em 10/3/2014); fatura 14/14, no valor de 24.709,76€ (em 4/12/2014).

aa) A requerente constatou depois, ainda em 2014, que se enganou na contabilização: devia ter antes contabilizado na conta 622104 – e respetivamente em Abril de 2014, Abril de 2014 e Dezembro de 2014, registou a débito a conta 622104 e a crédito na conta 622105 – por forma a corrigir o erro por si praticado.

ab) Cada uma dessas faturas de gastos só contribuíram por uma vez para o resultado contabilístico e fiscal da requerente.

Factos sobre os “Encargos não dedutíveis para efeitos fiscais – juros”

ac) As sociedades dominantes da requerente prestaram suprimentos a requerente, em dois contratos, no valor de 2,5 milhões de euros, e de 4,635 milhões de euros, com uma taxa de juro anual de 15% em cada contrato, para que a requerente, com esses fundos, pudesse adquirir certas marcas para o exercício da sua atividade.

ad) Em 2014, por esses dois contratos de suprimentos foram devidos juros no valor de 725.482,19€ (que apenas serão pagos em anos posteriores, no fim do contrato, juntamente com o capital, por acordo contratual).

ae) a requerente suportou ainda outros juros em 2014, no valor de 10.475,00€.

Factos sobre as imparidades

af) A Autoridade Tributária divide este tema em dois assuntos: perdas por imparidade de clientes, no valor de 395.789,98€; e perdas por imparidades em outros devedores (empresas C...), no valor de 484.346,67€.

ag) Várias sociedades do grupo E... tinham créditos sobre a sociedade C..., SA, no valor de 881.740,96€.

ah) Em 1/10/2014, a E... cedeu os créditos referidos no ponto anterior à requerente, pelo valor de 395.789,98€.

ai) A requerente tinha uma dependência económica sobre a C..., que produzia os produtos que a requerente vendia; e tinha interesse, portanto, que a C... continuasse a produzir.

aj) No final de 2014, a requerente efetua a imparidade (contabilística e fiscal) desse crédito, no valor total de 395.789,98€.

al) Em Abril de 2014, a C... SA, apresentou um PER (pedido especial de revitalização), que por oposição do credor H... foi transformado em processo de insolvência que foi declarada em janeiro de 2015.

am) O valor de outros devedores resulta de 3 componentes de imparidades: (i) 391.891,35€, por créditos por compras de matéria-prima por conta da C...; (ii) 53.379,03€, relativos a créditos por cedência de pessoal da requerente à C...; (iii) 39.076,29€, relativos a créditos por transferências para a D... SGPS (a sociedade mãe da requerente).

an) A C..., em dificuldades financeiras, não conseguia comprar matéria prima, por si, para produzir para a requerente.

ao) Então a requerente comprava a matéria prima e vendia-a, ao mesmo preço à C... (e ficava credora da C...); a C... produzia os produtos e vendia-os à requerente, que saldava o crédito sobre a C... relativo à matéria- prima.

ap) Várias encomendas (vendas à C...) não foram pagas e a requerente teve de efetuar esta imparidade.

aq) A C..., em crise, ficou sem pessoal do departamento comercial e financeiro.

ar) A requerente prestou esses serviços (financeiros e comercial) à C... (por acordo entre as partes) e ficou credora da C...: no final de 2014 faz a imparidade desse crédito.

as) A requerente vendeu matéria prima sem margem à C... e prestou serviços de cedência pessoal, por interesses próprios e egoísticos: vendia os produtos à C..., sem margem (porque esta não tinha capacidade financeira para o fazer por si) e depois comprava os produtos finais que a C... incorporava com essas matéria primas; cedeu pessoal seu à C... (para apoio às áreas comercial, financeira e fabril) porque a C... já o não tinha, atenta as suas dificuldades financeiras; a requerente é uma empresa comercial e precisava da C... para produzir os seus produtos; sem a produção da C..., a requerente ficava sem produtos para vender aos seus clientes.

at) A requerente efetuou transferências a favor da sociedade mãe (D... SGPS, SA) e, no final de 2014, constitui imparidades sobre esses créditos, em termos contabilísticos e fiscais (no valor de 39.076,29€).

 

2.2. Factos não provados

Na análise e decisão de cada situação concreta deste processo (capítulo 3) far-se-á referência aos pontos e temas que não foram dados como provados no processo, seja por inexistência de documentos comprovativos relevantes, seja por a prova testemunhal não ter sido coerente e concreta nalguns dos pontos desta ação. A testemunha inquirida tinha conhecimento das questões, mas nalguns casos efetuou uma prova meramente genérica e de congruência, sem analisar as operações nas suas vicissitudes concretas, que, por isso, não logrou convencer o tribunal.

 

2.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto

Os factos provados baseiam-se nos documentos juntos pelas partes, no consenso destas (também em relação aos documentos, valores e datas dos pagamentos), nas informações oficiais e demais documentação constante do processo administrativo.

A inquirição da testemunha I... revelou-se importante, não só pelo conhecimento que a mesma tinha sobre os factos (diretora financeira da requerente em 2014), mas também pela isenção que o seu testemunho revelou. O tribunal valorou nessa medida o depoimento da testemunha em causa, na parte em que “desceu” ao concreto e revelou coerência e congruência lógica e ajudou assim a esclarecer alguns dos factos e motivações associadas às decisões de gestão da requerente.

De referir, todavia, que o seu depoimento não se revelou esclarecedor, entre outros, no tema dos descontos e abatimentos, na matéria que extravasa o tema das “logistic penalties”, e em parte das imparidades, como se detalhará adiante. O depoimento da testemunha, nestes temas, não foi às explicações concretas e detalhadas de cada uma das situações (ficou-se em considerações genéricas) e não explicou, de forma convincente, os comportamentos e motivações da empresa.

 

3. Matéria de direito

3.1. Questões a decidir

Como é aceite pelas partes, as questões a decidir nos presentes autos são as seguintes:

a) Alegada falta de fundamentação dos atos de liquidação de IRC e de juros compensatórios.

b) Alegada preterição de formalidade essencial – falta de audição prévia.

c) Fatura não contabilizada como proveito: 70.285,30€.

d) Descontos e abatimentos em vendas: 76.085,60€.

e) Encargos não dedutíveis para efeitos fiscais – “acrualls”: 169.454,54€.

f) Encargos não dedutíveis para efeitos fiscais – juros: 735.957,20€.

g) Imparidades de clientes: 880.136,65€.

Por facilidade sistemática, cada tema constará de um capítulo autónomo da sentença – onde se reterão, por remissão, os factos relevantes, as posições e argumentos das partes, se referirão as leis e direito aplicável e a decisão do tribunal, perante todo esse acervo factual e jurídico.

De referir, desde já, dada a relevância para a decisão, que o tribunal se cinge, por obrigação legal, ao objeto do processo introduzido pelas partes, seja quanto aos factos expostos pelas partes (exceto de conhecimento oficioso), seja nos argumentos carreados pela AT para justificar as correções. Assim, por exemplo, a Requerente efetua uma exígua explicação de muitos itens do tema “descontos e abatimentos em vendas”, seja no texto da sua PI, seja na inquirição da testemunha por si arrolada – donde, o tribunal tem de analisar o tema com base nesses dados (e apenas neles); a Autoridade Tributária não efetua as correções com base no instituto dos preços de transferência – donde, o tribunal não pode analisar as questões sob o prisma desse instituto, nem sequer indiretamente, reinterpretando os argumentos jurídicos apresentados, como que os reconduzindo aqueles outros institutos possíveis mas não trazidos à fundamentação.

 

3.2. Da alegada falta de fundamentação dos atos de liquidação de IRC e de juros compensatórios

A requerente invoca na PI que a liquidação não está fundamentada, pois nesse documento não são explicitados todos os fundamentos, de facto e de direito, que justificariam o ato administrativo em matéria fiscal (liquidação do imposto e dos juros compensatórios) – nem sequer existe uma remissão expressa ou implícita para a fundamentação anterior já entregue ao contribuinte; e tal seria legalmente exigível, segundo a tese da requerente. E quanto aos juros compensatórios, a requerente entende ainda que não existe qualquer fundamentação, pois não se explicitam os seus fundamentos, mas apenas que decorre de recebimento indevido.

A requerida contrapõe dizendo, em síntese, que a fundamentação alicerça-se num processo inspetivo, que a mesma é anterior ao ato e exaustiva – permitindo ao requerente conhecer todos os factos e argumentos em que se estriba a posição do fisco, seja quanto ao valor do imposto, seja em relação aos juros.

O tribunal decide no sentido de que não existe qualquer falta de fundamentação do ato de liquidação de IRC e de juros compensatórios.

A autoridade tributária realizou um processo de inspeção ao contribuinte, onde analisou operações várias e, no final do procedimento, efetuou um extenso relatório inspetivo (a fundamentação) onde explana, de forma organizada, clara, exaustiva e suficiente, quais os fundamentos e raciocínios (com documentos anexos) que presidem a cada uma das correções – e que determinam depois a liquidação de imposto e juros. Um destinatário médio, como o contribuinte, compreende, perfeitamente, o teor e fundamentos em causa neste processo. Comprova-o o teor da petição inicial, em que o requerente rebate os argumentos da fundamentação, em normal contraditório, sinal que os percebeu perfeitamente. Foram assim cumpridas as exigências de fundamentação descritas nos artigos 268.º da CRP, do art.º 77.º da LGT e do art.º 124 e 125.º do CPA.

Questão diversa, mas que ao tribunal também não merece censura, é a de saber se a liquidação do imposto e juros (melhor dito, o documento da liquidação de imposto e juros) tem de conter a fundamentação ou pelo menos indicá-la por remissão, sob pena desse incumprimento formal determinar a ilegalidade da liquidação por falta de fundamentação ou preterição de formalidade essencial. O tribunal entende que não existe qualquer ilegalidade, sustentando que o ato de liquidação adicional está fundamentado por se basear no relatório inspetivo, ainda que não lhe faça referencia expressa ou implícita – dado que se situa, não pode deixar de se situar, no respetivo quadro legal e fáctico, perfeitamente claro, esclarecedor e devidamente notificado. Ou seja, o contribuinte (requerente) sabe que aquela liquidação de imposto e juros decorre de uma fundamentação, em corolário de uma inspeção de que foi alvo (cfr. neste sentido, ac. STA de 9/5/2001, proc. 025832).

Não existe, outrossim, qualquer falta de fundamentação quanto aos juros compen­sa­tórios. O juro compensatório, por imposição legal, decorre do retardamento da liquidação por facto imputável (culposo) do contribuinte (art.º 35.º da LGT). Ora, da fundamentação decorre que, na opinião da AT, houve um retardamento do imposto (IRC de 2014) por atos imputáveis à requerente – e por isso, os juros compensatórios estão legal e suficientemente fundamentados.

 

3.3. Da alegada preterição de formalidade essencial – falta de audição prévia

O requerente invoca que não lhe terá sido dada a possibilidade para o exercício da audição prévia (sobre a fundamentação e incidência de juros) – situação que constituiria uma preterição de formalidade essencial.

A requerida refuta o argumento, invocando que o contribuinte exerceu e audição prévia e foi disso expressamente notificado no procedimento inspetivo.

Ora, de acordo com os factos provados nos autos (facto provado c) supra), a requerente foi notificada para o exercício do direito de audição prévia; e exerceu esse direito; e os argumentos expostos foram tidos em conta na decisão final, levando inclusive à diminuição da correção à matéria coletável constante do projeto de relatório final – cfr. factos provados c). Donde, não existe qualquer preterição de formalidade essencial, nem a liquidação sofre de qualquer ilegalidade consequente, quanto a este hipotético fundamento, incluindo em relação aos juros compensatórios, pois do ambiente dos argumentos do projeto de inspeção infere-se, segundo um critério médio de análise, que a AT entende que houve um retardamento na liquidação e pagamento do imposto por facto imputável ao contribuinte (cfr. art. 35.º da LGT).

 

3.4. Fatura não contabilizada como proveito: 70.285,30€

A autoridade tributária aumenta a matéria coletável em 70.285,30€, pois entende que esse valor decorre da fatura nº 1410140 cujo cliente é a E..., mas que esse valor não foi levado a proveito contabilístico e fiscal, por não constar da demonstração de resultados da requerente (mas apenas de contas de balanço), em violação do art.º 20.º do CIRC.

A Requerente alega, em sua defesa, que é verdade que a fatura não foi levada a proveito contabilístico e fiscal, mas com razão justificativa: a requerente serviu de interme­diária entre o cliente final (E...) e o produtor (C...) – e acedeu a isso, perante as dificuldades financeiras da C..., que era tam­bém fornecedor da requerente. Assim, a C... faturou es­se valor à requerente que o “refaturou”, ao mesmo preço à E...; e que optou por não levar nem o rendimento a resultado contabilístico e fiscal (à demonstração de resultados); nem o gasto associado, do mesmo valor, a gasto contabilístico e fis­cal – e que passou todas esses movimentos apenas por contas de balanço; e que de­ve­ria ser aceite o comportamento da requerente porque não houve prejuízo para o Estado.

Como se referiu supra, o tribunal deu como provados os factos essenciais indicados pe­la requerente: o rendimento e o gasto, do mesmo valor, não foram levados à demonstração de resultados; que esta situação só ocorreu sobre este valor, representado ape­nas por uma fatura; que a requerente avança com uma justificação preten­sa­mente legitimadora (dificuldades financeiras da C... e ajuda a esse fornece­dor).

O tribunal entende que os valores dos rendimentos (e dos gastos) deveriam ter sido levados à demonstração de resultados no ano a que diziam respeito. Não foi isso o que fez a requerente e por isso ocorreu uma violação do normativo contabilístico e das disposições fiscais aplicáveis.

Todavia, o tribunal, na procura da solução legal e justa, tem de atender às demais circunstância do caso, a saber:

a) Não houve fuga fiscal – a situação fiscal seria a mesma, caso se contabilizasse o rendimento e o gasto, na demonstração de resultados.

b) Não houve qualquer elisão de imposto, atendendo à operação na sua globalidade.

c) Ou seja, a requerente não pagaria mais imposto, se tivesse cumprido todos os formalismos e imposições do normativo contabilístico e das disposições fiscais aplicáveis.

d) O tribunal tem de atender ao facto de que a sua decisão não pode conduzir à violação do balanceamento entre rendimentos e gastos (art.º 18.º do CIRC): não se pode chegar a uma solução que se tribute apenas o rendimento, mas não se incorpore fiscalmente o gasto correspondente.

e) A requerente tem uma justificação plausível para este comportamento (apoio à C... e igualdade do valor do rendimento e do gasto) e este comportamento não é generalizado no ano em causa – apenas consta de uma fatura.

Por todas estas razões, deve-se tolerar a violação formal do normativo contabilístico e das disposições fiscais aplicáveis de registo dos rendimentos (e dos gastos) na demonstração de resultados, quando se revela agora como imprescindível para salvaguardar a justiça do caso concreto, onde esta operação não está ligada a qualquer resultado gerado – pois o gasto é equivalente ao rendimento. Tributar o rendimento, como pretende o ato tributário, sem considerar o gasto associado, do mesmo valor – corresponderia, para o tribunal, numa decisão injusta, porque violadora da justiça e da verdadeira capacidade contributiva do sujeito passivo (art.º 55.º da LGT). Equivaleria, no fundo, a tributar um rendimento aparente, ou melhor dito, um não rendimento. Por todos estes motivos, anula-se a liquidação neste segmento.

 

3.5. Descontos e abatimentos em vendas: 76.085,60€

A Autoridade Tributária invoca (p. 24 do relatório de inspeção) que existe um conjunto de situações de descontos e abatimentos em vendas que o contribuinte registou como diminuições de rendimentos em 2014 (em termos contabilísticos e fiscais), mas em que i) não existe documentação justificativa (pelo menos não foi junta pelo requerente – art.º 75, n.º 2, al. b), da LGT e art.º 123.º do CIRC), ii) e a que foi junta não permite aferir do cumprimento da regra da especialização de exercícios (se são gastos de 2014 ou de outro exercício – art.º 18.º do CIRC) e de indispensabilidade (art.º 23.º do CIRC, na redação nova deste preceito introduzida pela reforma do IRC).

A requerente contrapõe dizendo que existe documentação justificativa – trocas de e-mails e contratos – que essa diminuição de rendimento, e respeito acréscimo de gasto, se reportam a factos ocorridos em 2014 e que nesse ano já eram quantificáveis de forma fiável; e que por isso não se violou, mas antes se cumpriu, a regra da especialização de exercícios e o nexo causal entre o rendimento e o gasto no exercício de 2014.

O tribunal decide da seguinte forma:

a) Perante as situações em causa (descontos e abatimentos – que o contribuinte alega que se reportam a 2014, mas há documentação que os relaciona com 2015) e pela natureza concreta destas operações (nomeadamente, motivos das reduções de preço ou do rappel) – entende-se que a Autoridade Tributária tem legitimidade para exigir ao contribuinte a documentação e explicação concreta dos motivos e fundamentos que legitimam a inscrição desses descontos e abatimentos, seus valores e justificações no ano em causa, sob pena, se não se fizer tal explicação, desta diminuição de rendimentos (e respetivo acréscimo de gasto) não ser considerada em termos fiscais no exercício em causa. É essa a conclusão que se retira da interpretação dos artigos 75.º, da LGT e do art.º 18.º e 23.º e 123.º do CIRC.

b) A requerente fez prova cabal do caso das logistic penalties – de 30.000,00€ com o cliente F..., porquanto:

- Junta troca de e-mails com o cliente F..., em que se comprova que se atrasou na entrega das encomendas desse cliente em Dezembro de 2014.

- A requerente aceitou as penalidades associadas a esse atraso, no valor de 30.000,00€, que apenas foram exigidas no ano seguinte (2015) – em duas notas de crédito, emitidas em 2015, no valor de 30.000,00€, com a descrição de “logistics penalties”.

- Em 2014, a requerente registou já essa diminuição dos rendimentos, no valor de 30 mil euros – como acréscimo de gasto.

O tribunal entende, assim, neste caso, que o acréscimo de gasto se reporta a 2014; que se cumpre o princípio da especialização dos exercícios, descrito no art.º 18.º do CIRC; e que existe documentação bastante (troca de e-mails e emissão das notas de crédito) e explicação legitimadora, que conduz à aceitação do acréscimo de gasto, por preenchimento dos requisitos do art.º 23.º e 123.º do CIRC: os atrasos nas entregas são algo indesejado, mas possível nas empresas que atuam na mira do lucro, com as mais variadas justificações – e assumem-se como reais empobrecimentos, obviamente indesejados, mas efetivos, que diminuem os valores dos proveitos e dos lucros da organização. Esta rubrica de 30.000,00€ constituiu uma diminuição do resultado fiscal efetivo de 2014 e nessa medida a liquidação deve ser anulada.

Já quanto às demais situações inseridas no tema de descontos e abatimentos no valor de 46.085,60€ (76.085,60€ - 30.000,00€) – o tribunal entende que a requerente não fez prova dos factos em que se estriba a sua contestação.

Em concreto, a requerida invocou factos concretos que lhe permitem desconsiderar a diminuição de rendimentos, e respetivos acréscimos de gastos efetuados em 2014: os dizeres das faturas não permitem aferir a que diminuição de rendimentos, e respetivo acréscimos de gastos, se tratam de forma efetiva e concreta; e há sinais de que as mesmas se reportam, nalguns casos, a 2015 (e não a 2014).

Ora, perante isso, a requerente não efetuou qualquer contra prova (ou alegação) em concreto: Não alegou nem provou: a) a que se referem em concreto estas situações (nomeadamente, coop advertising, rappel); b) qual a justificação exata e detalhada para a sua inscrição em 2014; c) documentação e justificação subjacente a estas situações e a que se reportam, em concreto; d) que não ocorreu a duplicação da diminuição de rendimentos noutro exercício, em que as situações potencialmente também se podiam reportar; e) não indica qualquer concreta justificação plausível e legitimadora para explicar o comportamento que tomou – de os considerar como diminuição de rendimentos contabilísticos e fiscais de 2014.

Assim, o tribunal entende que são de manter estas correções – por falta de docu­men­tação e explicação legitimadora, por interpretação do art.º 18.º e 23.º, do CIRC: não está provado a que exercício se deva inserir a diminuição de rendimentos, e respetivos acréscimos de gastos; não se ex­plica a existência real e concreta para estes abatimentos e descontos, para depois se aferir da sua correlação com obtenção ou garantia dos proveitos sujeitos a IRC.

 

3.6. Encargos não dedutíveis para efeitos fiscais – “acrualls”: 169.454,54€

Segundo a fundamentação da AT, as correções – por gastos não dedutíveis em termos fis­cais sob a designação de acrualls – dizem respeito a 3 situações: a) consultores fis­cais e financeiros (empresa G...) – 3.650,00€; b) consultores de vendas (A... Es­panha) – 142.114,17€; c) outros – 23.690,37€. E todas estes casos não foram aceites em termos fiscais por parte da AT, por alegada falta de documentação, justificação dos gastos, violação da especialização dos exercícios (art.º 18.º do CIRC) e alegada não imprescindibilidade para a organização (art.º 23.º do CIRC).

Em relação ao tema do consultor fiscal e financeiro, a fundamentação entende ainda que as 2 faturas foram emitidas em 2015, e logo deveriam ser considerados como gastos de 2015 e não de 2014.

A requerente advoga que estes gastos se reportam ao ano de 2014, de acordo com a especialização dos exercícios, pois o serviço diz respeito a esse ano.

Em relação ao tema dos consultores de vendas, está em causa a fatura 01/14 no valor de 72 mil euros, com data de 30/12/2014, emitida pela A... SL (sociedade espanhola), com a seguinte descrição: “por los servicios comerciales realizados ante sus clientes em espanha en el ejercicio de 2014”. A fundamentação da AT entende ainda que a fatura, pela sua data e dizeres, e na falta de documentação complementar, não permite aferir clara e inequivocamente quais foram os serviços prestados e que os gastos foram incorridos no interesse da sociedade.

A requerente advoga que a fatura engloba todo os gastos por si suportados no ano de 2014, com o serviço contratado à sociedade espanhola de apoio aos seus clientes em Espanha.

Em relação aos outros gastos não aceites (e também a parte dos valores de consultores de vendas), a fundamentação da AT entende ainda que o contribuinte não apresenta qualquer justificação cabal para explicar os movimentos a crédito e a débito da mesma conta, anulando-se entre si e porque permanece o gasto em causa, em termos contabilísticos e fiscais.

A requerente alega que se trata de gastos reais e efetivos de 2014 – e que os registou na conta contabilística errada e quando tomou consciência desse erro de classificação contabilística, procedeu às reclassificações a débito e a crédito.

Ainda relativamente aos consultores fiscais e financeiros, o tribunal detetou um erro de soma nas duas faturas emitidas pela G... (1.500€ e 2.250€), as quais totalizam 3.750€ e não 3.650€, conforme indicado em todos os documentos de ambas as partes.

O tribunal, depois de ponderar todos os argumentos das partes e toda a prova documental e testemunhal, toma a seguinte decisão.

Anula a liquidação, na parte relativa aos consultores fiscais e financeiros (empresa G...), no valor de 3.750,00€ de alteração da matéria coletável, com base no seguinte.

Estas despesas estão devidamente documentadas, são necessárias (estão ligadas) à atividade do sujeito passivo e justificada para a atividade da requerente – contratou este consul­tor para lhe prestar serviços para melhorar o exercício da sua atividade (serviço de como proceder a vendas em Espanha, e em concreto nas Canárias) e para apoiar o processo de preços de transferência. Logo, o tema reporta-se apenas a saber qual o ano a que se reportam estes dois gastos incorridos pela requerente.

E sobre este ponto segue-se o disposto nos Acórdãos do STA de 29/2/2000, publicado no BMJ n.º 494, Março de 2000, p. 182 e ss., de 5/2/2003, proc. 1649/02, de 25/1/2006, proc. 830/2005 e de 2/4/2008, proc. 807/07 (em www.dgsi.pt). Mais relevante do que apurar o exato exercício a que as despesas se reportam, ainda que estejamos em violação da especialização dos exercícios (a ocorrer eventualmente), a verdade é que a mesma, no caso concreto, é sempre formal e involuntária, cuja errónea inscrição (a ocorrer) não se reconduz a um comportamento voluntário e intencional, com vista a operar a transferência de resultados entre exercícios. As circunstâncias relevantes do caso para a decisão são as seguintes:

a) Os valores em causa são baixos e despiciendos;

b) O requerente sustenta a sua posição numa interpretação legal, lógica e plausível da lei fiscal – se os serviços se reportam a 2014 e dizem respeito a esse ano, o gasto deve ser reconhecido nesse período, ainda que faturado posteriormente.

c) Não existe uma intenção de diferimento temporal do imposto – nem de uma tentativa de duplicação do gasto. O requerente só o registou por uma vez, em 2014, com base em razões atendíveis.

d) A criação de uma solução justa caso não se anulasse a liquidação exigiria que a requerente encetasse um procedimento burocrático para reconhecer o gasto no outro ano (revisão oficiosa), contingente e contencioso, sem ganhos materiais – e cuja justiça é alcançada com a aceitação da violação formal da especialização dos exercícios, mesmo que porventura o contribuinte pudesse ter registado o gasto em causa num período diverso do indicado pelo princípio da especialização. Ou seja, para o tribunal não é sequer imprescindível debruçar-se sobre qual o exercício correto para o lançamento contabilístico e fiscal destes gastos. Basta-se com a conclusão de que ainda que se tenha violado a regra formal da especialização de exercícios, deve anular-se a liquidação neste ponto, para prevalência da regra material da capacidade contributiva (evitar o risco do gasto nunca ser aceite em termos fiscais, por efeito da não anulação, pura e simples, porque não produz efei­tos automáticos nos demais exercícios). Entende-se, aliás, que a fundamentação da au­toridade tributária teria de fazer essa ponderação global – e não proceder à li­qui­da­ção neste ponto, por aceitação da violação formal da especialização dos exer­cí­ci­os, dadas as circunstâncias do caso e a tutela prevalecente da justiça e da capa­ci­dade contributiva. Acresce, note-se, que estamos em presença de uma situação pontual (duas faturas para a mesma operação, com valores baixos) e com uma justificação plausível indicada pela requerente para efetuar o procedimento que encetou (considerou que o serviço se esgotou em 2014, mas foi apenas faturado em 2015, por comportamento da contra parte, tendo o cuidado a requerente de evitar a duplicação do gasto – não o levou a custo contabilístico e fiscal em 2015.

Em relação ao tema dos consultores de vendas, o tribunal toma a seguinte decisão. A autoridade tributária escolheu a fundamentação que entendeu para justificar o ato tributário – e é sobre isso que o tribunal se tem de pronunciar. Ou seja, a autori­da­de tributária não invoca que os serviços não existiram (pois, nesse caso, teria indi­ca­do e liquidado com base no pressuposto de se ter verificado uma simulação e cri­me fiscal); do mesmo modo, a autoridade tributária não constrói a correção com ba­se no instituto dos preços de transferência, entre a requerente e a sociedade espan­ho­la que presta o serviço. Se não fundamenta com base no art.º 63.º do CIRC, não pode a sentença socorrer-se desse material e arsenal jurídico para a sua decisão.

Assim, assume-se que os serviços foram prestados e que o seu preço é de mercado e correspondente ao valor em causa, na ótica de um terceiro independente. A fundamentação sustenta-se apenas na não documentação da despesa e no caráter muito sintético da sua descrição. Entende-se que não há problema em que esses serviços continuados (serviços comerciais de apoio aos clientes da requerente) que vão sendo prestados ao longo do ano, apenas sejam faturados no final do ano (e, com isso, cumpre-se a especialização dos exercício de inserir em 2014 os gastos deste calibre que se reportam a este exercício) – ou seja, essa vicissitude não coloca em causa, por si, esses gastos; entende igualmente que está provado no processo a razão de ser da utilização dos serviços da empresa espanhola – para acompanhamento dos clientes espanhóis da requerente, sendo que esta não possui um departamento comercial no país vizinho (e isso é uma opção da empresa, entre “internalizar” ou “externali­zar” o serviço comercial de apoio às vendas, que o tribunal tem de aceitar essa liberdade de opção, na opção que faz da interpretação do art.º 23.º do CIRC). Perante esta prova, conclui-se que os serviços estão correta e suficientemente descritos e justificados e que existe prova bastante da sua documentação, efetividade e indispensabilidade para a organização. Donde, anula-se a liquidação quanto a este ponto.

As demais situações qualificadas como “consultores de vendas” e “outros” dividem-se em dois casos:

a) O tema das faturas 002/14, de 18/3/2014, no valor de 12.268,61€; fatura 005/14, de 10/3/2014, no valor de 32.812,47€ e fatura 14/14 de 4/12/2014, no valor de 24.709,76€ - o que perfaz uma correção total à matéria coletável de 69.790,84€, designadas ainda como “consultores de vendas”.

b) As faturas registadas na conta 622119, no valor total de 23.690,37€, designadas por “outros”.

Em relação às três faturas em causa (002/14, 005/14 e 14/14) ocorreu o seguinte: essas faturas foram inicialmente lançadas pela requerente na conta 622105 (em 18/3/2014, 18/3/2014 e 22/12/2014, respetivamente) que é uma conta de gastos, de fornecedores de serviços externos, designada como “consultores de gestão” (como consta do doc. n.º 22 da PI); posteriormente, ainda em 2014, a requerente constatou que contabilizou erradamente essas verbas, que deviam figurar antes na conta 622104, que é também uma conta de gastos, de fornecimento de serviços externos, mas sob a designação “consultores de vendas”; a requerente, respetivamente em 30/4/2014, 30/4/2014 e 31/12/2014, corrigiu esta situação (cfr. doc. n.º 22, da PI); ou seja, retirou esses gastos da rubrica de consultores de gestão e colocou-os na conta de consultores de vendas, via operações de créditos e débitos entre essas duas contas; assim, estes gastos foram no final corretamente contabilizados e só contribuírem, por uma vez, para o resultado fiscal de 2014.

Os erros, apesar de indesejados, são conaturais a um sistema contabilístico complexo e com muitas operações de organização da realidade, com intervenção humana ativa. Ora, os erros quando corrigidos (por imposição legal) não podem desembocar, obviamente, na não-aceitação fiscal dos gastos. O contribuinte demonstrou o erro, explicou a sua causa, detalha a forma como o corrigiu em termos contabilísticos, e comprova que não houve duplicação de registos. Então, perante esta justificação e comprovação, idónea e concreta, tal como provada nos autos, impõe-se a anulação da liquidação adicional, neste segmento.

Estamos em presença de gastos suportados pela requerente, no exercício da sua atividade; que contratou consultores para promover as suas vendas e atividade, e que para isso lhes pagou os fees em causa; e as operações estão corretamente contabilizadas, se analisadas globalmente – aliás estas reclassificações visam a adesão à realidade e à verdade revelada pela contabilidade; e significa, por fim, que estes gastos foram levados a custo contabilístico e fiscal, apenas por uma vez (não há duplicações de gastos) – na medida em que foram inseridos na conta 622104, por transferência, no mesmo momento e pelos mesmos valores, da conta 622105.

A AT indica ainda que os descritivos das faturas (“TSA fee servisse” e depois com a indicação do mês a que diz respeito) que são emitidas pela J... (sociedade de direito suíço do grupo E...) (cfr. doc. n.º 20 da PI) não permitiria conhecer quais os serviços que são efetivamente prestados pela sociedade Suíça e que utilidade teriam para a atividade da requerente (até porque a fatura 005/14 diz TSA fee spain e não Portugal).

Mas estes argumentos não procedem. As faturas, para lá dessas expressões, indicam também “details attached” (com anexo descritivo) ou seja, percebe-se, também pela sua periodicidade, e pelo descritivo, que se reportam a um serviço contratado a essa empresa do grupo E..., para servir como consultor de vendas para auxiliar as suas vendas, cujo preço é formado através do quadro anexo. E o dizer-se “spain” numa delas não impede a aceitação do gasto pois reporta-se seguramente às vendas em Espanha dos produtos da requerente.

O que releva neste caso é antes uma visão ilegal da questão por parte da AT: recusou a aceitação fiscal dessas fatu­ras, corretamente contabilizadas e com descritivos satisfatórios; se, ainda assim tinha dúvidas quanto à sua aceitação fiscal, teria de perguntar ao contribuinte – e não recusar a sua aceitação por má contabilização ou deficiente descrição (sendo certo que nunca coloca verdadeiramente em causa a sua veracidade). O ponto jurí­di­co é a presunção de veracidade da contabilidade corretamente organizada, como é o caso (art.º 75.º da LGT); e a AT não introduziu indicadores concretos e reveladores da elisão dessa presunção de veracidade.

Por estes motivos, impõe-se a anulação da liquidação adicional de IRC em causa, na parte relativa a estas três faturas, no valor total de 69.790,84€: faturas 002/14, no valor de 12.268,61€; fatura 005/14, no valor de 32.812,47€ e fatura 14/14, no valor de 24.709,76€.

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Em relação aos outros gastos não aceites sob a nomenclatura de accruals, no valor de 23.690,37€ de correção à matéria coletável, o tribunal toma a seguinte decisão: a AT não aceitou estes gastos constantes de duas faturas 76/15 e 77/15 emitidas pela K... em 27/3/2015 e a fatura 1/93 emitida pela L... em 25/4/2015 – por força das regras de especialização dos exercícios: se as faturas são de 2015, então os gastos devem ser registados (contabilística e fiscalmente) em 2015 e não no ano anterior (2014), como fez a requerente. A requerente, por seu turno, não explica cabalmente os motivos para essa situação, nem explica tão pouco que não houve duplicação dos gastos (considerá-los em 2014 e 2015). Donde, não se anula a liquidação, neste segmento – por legalidade da fundamentação e da liquidação neste ponto.

 

3.7. Encargos não dedutíveis para efeitos fiscais – juros: 735.957,20€

A fundamentação entende que os juros suportados (registados contabilística e fiscalmente) relativos aos suprimentos efetuados pela sociedade dominantes não devem ter aceitação fiscal por parte da requerente (devedora e obrigada ao pagamento de juros), por falta de documentação (que a apresentação de contratos não é suficiente) – em violação do art.º 23.º e 123.º do CIRC.

A Requerente alega que os gastos de juros estão documentados (existem contratos de suprimentos) e que se referem à aquisição de marcas pela requerente, que são ativos fulcrais para o exercício da sua atividade.

O tribunal anula a liquidação neste ponto, com base nos seguintes argumentos:

a) Não há dúvida (ninguém contesta no processo) que os juros suportados se relacionam com os suprimentos efetuados pelo sócio com vista à tomada das marcas de produtos para a requerente desenvolver a sua atividade – e por isso, tais gastos associam-se à aquisição de ativos, para o desenvolvimento da atividade da requerente, sendo por isso indispensáveis e relacionados com a sua atividade (nos termos do art.º 23.º do CIRC); e o tribunal não pode sindicar, no âmbito do art.º 23.º do CIRC, da bondade económica ou oportunidade empresarial dessas inegáveis opções e decisões de gestão, para efeitos de não-aceitação fiscal do gasto.

b) É óbvio, outrossim, que a fundamentação não se debruça especificamente sobre o preço de aquisição das marcas ou sobre a taxa de juro em causa – nem com base no instituto dos preços de transferência ou de simulação ou abuso de negócio. E assim sendo, não pode o tribunal sindicar o ato com base nesse enquadramento, nem se quer de forma indireta ou por substituição.

c) Fica apenas por analisar a documentação destes gastos: e aqui, não há dúvida que existe documentação suficiente e bastante para estes gastos. Desde logo, os próprios contratos de suprimentos, onde se indicam, os valores mutados, o prazo do contrato e a taxa de juro anual. Logo, por simples equação matemática é possível apurar ao cêntimo o valor do juro anual, como fez o contribuinte, através de documentação externa, já que o contrato também é assinado pelo mutuante e não apenas pela requerente.

d) Perante tal situação, dispensa-se a fatura – até porque não houve pagamentos neste ano de juros (por acordo contratual entre as partes). Mas os juros não são contabilizados quando pagos, mas quando devidos pelo decorrer do tempo. E os documentos existentes (contratos de suprimentos) são documentos justificativos e bastantes para legitimar a correta contabilização destes gastos financeiros (cfr. art.º 123.º do CIRC).

e) Acresce que os juros são contabilizados pelo devedor sob a regra da especialização dos exercícios (art.º 18-º do CIRC) – no sentido que são contabilizados como um gasto, não quando são pagos (pelo contrato apenas é no final), mas na sua quantificação anual. Assim, o facto de em 2014 não haver pagamento de juros – movimento financeiro – não implica que não sejam aceites em termos fiscais, nem que tenha de haver qualquer documentação de ambas as partes, especifica sob a sua quantificação anual. Tal não é necessário, pois tal já decorre, de forma total e absoluta, do contrato celebrado entre as partes.

Existe uma outra correção de juros, de valor menor, na quantia de 10.475,00€ re­la­ti­va a “outros juros” (conta 691803). Ora, quanto a este ponto, a fundamentação não é clara, nem suficiente – é vaga e imprecisa – acerca dos motivos, factos e causas que justificaram a correção. A posição do tribunal é que existe falta de funda­men­ta­ção e violação de lei, por errónea interpretação e aplicação do art.º 23.º e 23.º-A do CIRC (e a AT não elide a presunção de veracidade da contabilidade neste ponto, art.º 75.º da LGT). Por regra, os juros suportados são um gasto contabilístico e fiscal. Para não o serem, a autoridade tributária tem de indicar motivos concretos que a levem a pretender inverter essa regra geral. Como nada foi feito sobre o valor dos “outros juros”, a liquidação é anulada, também quanto a este ponto.

Por todas estas razões, anula-se a liquidação adicional na matéria dos juros de suprimentos, no valor de 735.957,20€ de correção à matéria coletável. 

 

3.8. Imparidades de clientes: 880.136,65€

A fundamentação da AT divide estas correções em dois temas: (i) perdas por im­pa­ri­da­de de clientes, no valor de 395.789,98€ (via operação da sociedade C..., SA); e (ii) perdas por imparidades noutros de­ve­do­res, de 484.346,67€, assim desdobradas: a) 391.891,35€, relativos a créditos por com­pras de matéria-prima por conta da C...; b) 53.379,03€, relativos a cré­di­tos por cedência de pessoal da requerente à C...; c) 39.076,29€, relativos a cré­ditos por transferências para a D... SGPS (sociedade mãe da requerente).

No que concerne às (i) perdas por imparidade de clientes, a fundamentação sustenta: em Outubro de 2014, a requerente adqui­riu os créditos que o grupo E... tinha sobre a C..., pelo valor de 395.789,98€ (quando o valor nominal dos créditos ascendia a 881.740,96€); a devedora (C...) teve um processo de PER durante o ano de 2014 e foi declarada insolvência em janeiro de 2015; A AT não aceita a im­pa­ridade fiscal do crédito efetuada pela requerente em 2014, no valor de 395.789,98€ (valor de aquisição do crédito), porque não resul­ta da atividade normal da requerente aferida pelo seu objeto social; e que constituiria um abuso de imparidades, dadas as circunstância do caso; e que só poderia ocorrer a imparidade fiscal, após a homologação do PER pelo juiz, o que não teria acontecido no caso dos autos.

A requerente defende a sua pretensão, no sentido de que essa imparidade se insere num crédito resultante da sua atividade normal, analisado o seu objeto social e de facto, na sua globalidade – e perante a identidade de objetos sociais entre si e o devedor C...; as dificuldades financeiras da C... não retiram o caráter normal do crédito; e não havia dúvidas de que a sociedade se encontrava numa situação de insolvência de facto em final de 2014.

As (ii) perdas por imparidades em outros devedores (empresas C...), no valor de 484.346,67€ desdobram-se em três situações, em que a fundamentação advoga o seguinte para justificar a correção tributária:

- Quanto ao valor de 391.891,35€, relativos a créditos por compras de matéria-prima por conta da C...: a requerente comprava matérias-primas que vendia sem margem à C... (pelo valor de aquisição); corria desnecessariamente um risco de crédito, sem ganho algum; estas vendas à C... não constituem uma ati­vi­dade normal da requerente pelo que não pode ser aceite a imparidade (a C... aca­bou por não pagar algumas mercadorias, que levaram à constituição de im­pa­ri­da­des pelo valor de 391.891,35€); o PER não foi homologado, e por isso não se legi­ti­ma a constituição de imparidade fiscal.

- Quanto ao valor de 53.379,03€, relativos a créditos por cedência de pessoal da requerente à C...: a requerente cedeu pessoal à C... (que a C... não pagou e o crédito entrou em mora e foi objeto de imparidade); segundo a AT esse crédito (e imparidade) não se insere no critério de atividade normal da requerente, pelo que não pode constituir uma imparidade aceite em termos fiscais.

- Quanto ao valor de 39.076,29€, relativos a créditos por transferências para a D... SGPS (a sociedade mãe da requerente), a AT entende que não pode ser considerada uma imparidade fiscalmente dedutível, nos termos do art.º 28.º-B, n.º 3, al. c), do CIRC, na medida em que se trata de créditos detidos sobre o sócio que detém mais de 10% do capital da empresa de forma direta ou indireta.

A requerente refuta estes argumentos, nas três situações, com base no seguinte:

Quanto à cedência de matéria-prima, entende que tinha interesse direto e próprio nesta atividade e auxilio à C..., que era o seu principal fornecedor industrial e não podia ver-se na contingência de o perder, pois tal acarretava-lhe danos na sua atividade (ficava sem produtos para vender). Por isso, tal atividade insere-se na sua atividade normal de negócio, perante as circunstâncias do caso. Sem isso, não conseguiria obter produtos e vendas. A C... estava em processo de PER desde abril de 2014.

Quanto à cedência de pessoal, a C... estava sem vários departamentos, finan­ceiro, comercial e fabril (fruto das suas dificuldades financeiras) e a requerente, via seus funcionários, auxiliaram a C..., em cedência de pessoal, que a C... ficou em dívida perante tais créditos. Perante o caso concreto, tal insere-se na atividade normal da requerente – sem a cedência de pessoal a requerente teria grande dano na sua atividade normal, pois a C... produzia produtos muito relevantes para a atividade da requerente.

No que concerne a D..., a requerente invoca em sua defesa que existiu falta de fundamentação por parte da AT.

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Em todos os casos dos cré­ditos da requerente sobre a C... está sempre em causa a análise e apli­ca­ção do instituto tributário das imparidades de créditos (por aquisição a terceiros, ao grupo E..., por cedência de pessoal e por vendas de mercadorias), que importa agora analisar detalhadamente.

As imparidades de créditos são reconhecidas em termos fiscais, quando preencham cumulativamente os seguintes requisitos, concretizados ao caso dos autos (art.º 28.º-A e 28.º-B, do CIRC):

a) Exista imparidade contabilística sobre estes temas, em 2014 ou em ano anterior (nos casos dos autos, isso verifica-se e não é sequer posto em causa).

b) O risco de incobrabilidade esteja devidamente justificado – entre outros casos, se o devedor (C...) tenha pendente, em 31 de Dezembro de 2014, Processo Especial de Revitalização ou Processo de Insolvência.

A lei fiscal indica apenas que no final do ano (2014), o devedor tenha pendente um PER ou Processo de Insolvência – e isso ocorre manifestamente, em termos formais (o processo do PER se­guiu os seus trâmites durante o exercício de 2014 e existiu um pedido de insolvência em novembro de 2014) e em termos substanciais: no fim de 2014, a C... estava em si­tua­ção económica muito difícil, que motivou, ainda em Janei­ro de 2015, que o pro­ces­so do PER tenha desembocado na declaração de insolvência, por vontade dos cre­do­res.

c) As imparidades estejam “relacionadas com créditos resultantes da atividade normal” (é esta a expressão literal da lei – art.º 28.º-A, n.º 1, al. a), do CIRC).

Esta expressão legal não é de fácil interpretação. Para analisar o seu conteúdo e subsunção aos casos dos autos, retiram-se vários corolários relevantes:

  1. O qualificativo “normal” associa-se à atividade do credor (e ao crédito que decorre dessa atividade concreta): possui um sentido prescritivo, ou seja, não é meramente programático. Não se aceitam as imparidades de créditos que resultem de atividade não normal do contribuinte.
  2. O qualificativo “normal” associa-se à atividade do credor, sem interferência nas opções económicas do sujeito e sua liberdade de gestão. Um enorme (volumoso) crédito sobre um cliente que compra os produtos produzidos e vendidos pela empresa resulta da atividade normal (decorre do “coração” da atividade produtiva da empresa), apesar de que a empresa, numa análise a posteriori, deveria ter “cortado” o crédito (fornecimento de produtos ou serviços) mais cedo, para evitar o avolumar do incobrável. Do mesmo modo, a normalidade não tem que ver com a solvabilidade do devedor, mas com a atividade do credor.
  3. Há situações evidentes de atividade normal, em que, por princípio, decorrem da ati­vi­dade normal – quando os créditos de­cor­rem sobre os clientes (por venda de produtos e serviços comercializados ou produzidos pela empresa e inte­gra­dos no seu objeto social e atividade concreta); mas importa estabelecer crité­rios sobre as restantes situações, em “zona cinzenta”.
  4. A interpretação do preceito em causa, nessa “zona cinzenta” (como suce­de nos casos dos autos) não pode redundar, por um lado, na permis­são de um controlo da AT sobre a atividade da empresa, sindicando todo e qualquer ato de gestão, numa ótica de ingerência casuística e discricio­nária sobre as opções económicas da empresa.
  5. Mas, por outro lado, dado que a expressão não é meramente progra­má­tica, mas tem conteúdo prescritivo, tal significa que não se aceitam, em ter­mos fiscais, as imparidades de créditos decorrentes de atividade não nor­mal da empresa (ainda que sejam imparidades em termos conta­bi­lís­ti­cos).
  6. Esta análise do caráter normal da atividade não é aferida em abstrato (meramente perante o tipo de negócio em causa), mas tem de ser filtrada e sindicada em concreto, perante as especificas circunstâncias do caso; perante a situação real e efetiva da empresa em causa, e suas circunstâncias.
  7. A expressão “atividade normal” funciona como uma cláusula geral que pretende comportar-se teleologicamente como repressão de um abuso fiscal de imparidade. É o que sucede, em termos homólogos, quando se fala em residência “efetiva” – quer-se evitar a residência aparente, para obtenção abusiva de vantagens fiscais alicerçadas na residência.
  8. No fundo, o abuso de imparidade (crédito por atividade não normal) ocorre quando o contribuinte concede crédito a terceiro, já não com o fito essencial de zelar pelo seu negócio e atividade, mas com o propósito principal (ou relevante) de ver reconhecido uma imparidade fiscal. Já não se preocupa com a atividade, mas com interesses terceiros e com o ganho fiscal associado a essa imparidade de crédito.
  9. Claro está que este guião interpretativo tem de ser aferido ao caso concreto e pode-se dizer que nos créditos sobre clientes (decorrentes da venda de matérias-primas e cedência de pessoal pela empresa) como que se presume que decorre da atividade normal; e que, nos restantes casos – nomeadamente, como nos autos, no crédito a fornecedores e que decorrem da compra de créditos de terceiros – é o contribuinte que tem de explicar e provar a necessidade e ligação desse crédito com a sua atividade “normal”.

Perante estas notas interpretativas, estamos agora em condições de resolver os casos concretos, na parte dos créditos sobre o fornecedor C...– (i) créditos adquiridos a terceiro sobre a C...; (ii) créditos sobre o fornecedor de matéria-prima (iii) créditos sobre o fornecedor por cedência de pessoal.

Quanto aos créditos adquiridos a terceiros sobre a C... (395.789,98€):

A ponderação dos factos provados (e não provados) pendem para o seguinte: a) os créditos em causa resultam da atividade inicial de terceiros (grupo E...) sobre a C..., alheia portanto à atividade da requerente, que não é parte nos negócios que estão na origem dos créditos; b) a requerente torna-se credora, por aquisição desses créditos por valor inferior ao valor nominal; c) mediou um curto espaço temporal entre a aquisição dos créditos e a constituição das imparidades (3 meses, sensivelmente); d) na atividade da requerente não consta atividade de compra de créditos sobre empresas em dificuldades para as tentar recuperar ou consolidar – e existem empresas especializadas neste tipo de negócios, de cariz quase financeiro; e) tem de se aferir a ligação com a atividade normal da requerente no concreto momento da aquisição dos créditos: quais os motivos para a requerente comprar a terceiros (grupo E...) créditos de uma empresa em dificuldade, as quais são conhecidas pela requerente, ou seja, em que medida a compra desses créditos se relaciona com a atividade normal da requerente.

A requerente não provou em concreto essas motivações – para explicar cabalmente a recondução à sua atividade normal:

- Em tese, poderia tê-los adquirido para evitar a insolvência do devedor C... (e assim tentar subsumi-los na sua atividade normal) e assim continuar a ter uma empresa que produza os seus produtos, mas, para isso, teria de provar, em concreto (o que não logrou fazer), que o valor dos créditos adquiridos, somados aos já detidos pela requerente, lhe criavam um poder de decisão significativo no PER da C... (ou que a requerente tinha uma estratégia implementada de compra “massiva” de créditos sobre a C... para alcançar esse desiderato – que até poderia ter fracassado, mas que existia na prática; mas não fez essa prova, em concreto; apenas alegou que essa compra de créditos visava também evitar a insolvência da C... (e aprovação do PER), mas não provou em concreto qual o valor dos seus créditos (originais e adquiridos) sobre o total das dívidas da C..., nem acordos (ou tentativas) ou reuniões com outros credores para a viabilização da empresa.

- Em tese, a compra desses créditos também poderia estar relacionada com a manutenção e fortalecimento da relação comercial com o seu cliente (grupo E...): a C... e a requerente faziam parte do mesmo grupo de empresas; o grupo E... tinha créditos sobre a C..., e porque as empresas eram do mesmo grupo, a requerente poderia temer que o grupo E... lhe deixasse de comprar produtos, porque represália pelo desagrado com a incobrabilidade dos créditos sobre a empresa do grupo – e a requerente compraria esses créditos para manter o cliente E... . Mas a requerente nada prova em concreto neste sentido: não indica, nem sequer em termos numéricos, qual a relevância do cliente Grupo E...; não se provou que a E... pudesse cortar a relação comercial com a requerente, na sequência de incobráveis sobre a C...; e não se provou que a cessão de créditos visava evitar esse receio (e se tinha ou não produzido os efeitos pretendidos).

E o ónus da prova – de que os créditos decorrem da atividade normal da requerente – pertence no caso concreto à requerente: não decorrem de vendas originais de bens da requerente (a um cliente); resultam de cessão de créditos, sendo que a requerente não se dedica a essa atividade. E a requerente não provou em concreto, os motivos dessa aquisição (e existência) dos créditos, no sentido que resultariam da sua atividade normal.

A requerente invoca ainda outros argumentos, mas em vão, para pretensamente jus­tificar que esta imparidade decorre de crédito resultante da sua atividade nor­mal.

A identidade de objetos sociais entre si e o devedor C... é irrelevante, por si, para se aferir o caráter normal desses créditos na sua atividade, pois não são originariamente detidos e constituído pela requerente. Claro que a requerente poderia provar que adquiriu esses créditos para a tomada do controlo societário ou do poder de facto sobre a C... para com isso incrementar a sua capacidade, produção e atividade. Mas essa prova não é feita em concreto pela requerente. Não prova, em concreto, como se viu, quais os direitos de voto como credora em PER que passou a deter; não prova qual o plano, em concreto, de concertação operacional projetada com a C... para incrementar a sua atividade conjunta e concertada.

É verdade, como indica a requerente, que as dificuldades financeiras da C... não retiram, por si, o caráter normal do crédito: o tema é, como se viu, mais abran­gen­te: não está provado que esse crédito adquirido (e depois levado a imparidade) pela requerente tivesse uma qualquer relação concreta com a atividade normal da requerente.

Termos em que se mantém a correção promovida pela Autoridade Tributária em relação aos créditos adquiridos a terceiros sobre a C..., no valor de correção à matéria coletável de 395.789,98€.

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Quanto aos créditos relativos a compra de matéria-prima por conta da C... (391.891,35€) e à cedência de pessoal da requerente à C... (53.379,03€):

Está provado nos autos que a requerente tinha interesse próprio e egoístico em ajudar a C... , sociedade em dificuldades financeiras – seja vendendo-lhe, sem margem, matéria-prima que depois compraria os produtos finais à C... (após o trabalho industrial e de processamento da C...); a requerente era apenas uma empresa comercial, e a C... era uma empresa industrial – e o principal fornecedor dos produtos da requerente. A paralisação imediata do fornecedor (sem essas ajudas na compra e venda de matéria prima e sem a cedência de pessoal) tinha grave dano no cliente (requerente), que não conseguiria substituir o fornecedor de um dia para o outro. Assim, a requerente ajudou a C... (comprava a matéria prima dos seus produtos e venda sem margem à C..., que se pagava depois com a entrega das mercadorias e a requerente cedeu parte do seu pessoal – horas de trabalho dos seus empregados – para ajudar à sobrevivência do fornecedor). Claro está que com isso conseguiu criar maiores stocks dos seus produtos, para fazer face às situações de mercado e com essas “ajudas” ganhou tempo para tentar arranjar um substituto do fornecedor em causa, no tempo necessário. Até lá, ajudou-o – mas no seu interesse próprio e na manu­tenção da sua atividade normal; não podia ponderar sequer em ficar sem o forne­ce­dor e produtos – tinha uma considerável dependência económica do fornecedor. Se per­desse o fornecedor, sem garantir a produção noutro lado, a requerente ficaria sem produto para vender – e tal redundaria num dano imediato, concreto e conside­rável. 

Quer dizer: a requerente concedeu estes créditos (por matéria primas e cedência de pessoal), com vista, em concreto, à obtenção dos produtos – que depois os vende, no essencial da sua atividade comercial. Perante as dificuldades do fornecedor C..., vende-lhe as matérias primas que serão incorporadas depois nos produtos que lhe vai adquirir (e fazia então uma compensação de créditos, se possível); do mesmo modo, cede parte da sua força de trabalho à C... (que não a tem, dada a crise em que se encontra), para permitir que a C... consiga produzir os produtos, os consiga comercializar, para a requerente e outros clientes e para permitir que se continue com a gestão financeira da empresa (gerir os recebimentos e pagamentos). Quer dizer, a requerente, com estes créditos ao fornecedor, visa ainda e sempre obter os produtos para o exercício da sua atividade normal. De notar, a reforçar o que se diz, que a requerente estava numa de dependência económica perante o fornecedor C... . Não conseguia substituir esse fornecedor imediatamente por outro: e nesse ínterim era fundamental para a sua atividade que mantivesse os fornecimentos de produtos do seu fornecedor C..., nem que à custa de lhe conceder crédito de matérias-primas e de cedência de pessoal. Existe, assim, uma ligação em concreto entre estes créditos ao fornecedor C... com a atividade normal da requerente, na venda dos produtos que adquiria à C... . O nexo de causalidade económico está provado pela requerente: sem esse financiamento ao fornecedor era possível, dadas as suas dificuldades, que ficasse sem produtos para venda, sem conseguir substituir o fornecedor C..., no curto prazo. Entende-se, por isso, que no caso concreto não existe qualquer abuso de dedutibilidade fiscal de imparidades: os créditos são concedidos na mira de assegurar a existência de produtos para venda; e não para a requerente conseguir sobretudo e diretamente a sua dedução fiscal, independentemente da ligação com a sua atividade.

Em suma: o tribunal anula a liquidação, na parte em que se refere às imparidades relativas a matéria-prima (391.891,35€) e à cedência de pessoal (53.379,03€).

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Falta analisar, por fim, o tema dos créditos relativos a transferências para a D... SGPS (a sociedade mãe da requerente) – no valor de 39.076,29€. Neste caso, mantém-se a liquidação adicional (não se anula, neste ponto o ato tributário), com base na interpretação e análise do art.º 28.º-B, n.º 3, al. c), do CIRC.

Este preceito indica, de forma perentória e inequívoca, que não são considerados de cobrança duvidosa: “os créditos sobre pessoas […] coletivas que detenham, direta ou indiretamente, nos termos do n.º 6, do art.º 69.º, mais de 10% do capital da empresa […], salvo nos casos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1. 

No caso concreto, o devedor D... SGPS detém mais de 10% do capital social da requerente e não se encontra nalguma das situações descritas no art.º 28.º-B, n.º 1, al. a) e b), do CIRC: não estava em 31/12/2014 em processo de insolvência, recuperação, PER ou afim, nem os seus créditos tinham sido reclamados judicialmente ou em tribunal arbitral.

Donde, os créditos da requerente sobre o seu acionista D... SGPS nunca podem ser objeto de imparidade fiscal. Por outro lado, a argumentação da requerente improcede, na medida, como se viu supra, que o tribunal não anulou esta liquidação com base em putativos vícios de fundamentação e falta de audição prévia, como já decidido supra.

 

3.9. Resumo da decisão

O quadro seguinte resume os valores e situações anuladas (e mantidas) da liquidação impugnada. Por facilidade, aferem-se os valores às correções à Matéria coletável, sendo que a Autoridade Tributária, em sede de execução da Sentença, terá de calcular, com a base descrita, quais os valores de imposto a anular e a pagar (bem como os respetivos juros compensatórios e de mora).

 

Correções AT (após audição prévia – o objeto da liquidação impugnada)

Decisão tribunal (correções ao relatório da AT)

Correções AT (após decisão do tribunal)

Faturas não contabilizadas como proveitos

70.285,30€

70.285,30€

0,00€

Descontos e abatimentos em vendas

76.085,60€

30.000,00€

46.085,60€

Encargos não dedutíveis para efeitos fiscais - acrualls

169.454,54€

145.764,17€

23.690,37€

Encargos não dedutíveis para efeitos fiscais - juros

735.957,20€

735.957,20€

0,00€

Imparidades em clientes

880.136,65€

445.270,38€

434.866,27€

Total

1.931.919,29€

1.417.277,05€

504.642,24€

 

3.10. Indemnização por garantia indevida

A requerente solicitou, para além da anulação da liquidação, que a Autoridade Tributária seja condenada ao pagamento das despesas suportadas com a prestação de garantia bancária para suspender o processo executivo relativo à liquidação impugnada – porque a requerente não pagou a liquidação, mas ofereceu garantia idónea, na modalidade de garantia bancária sobre o imposto e acrescido, numa opção de gestão insindicável.

Segundo o art.º 53.º, n.º 2, da LGT, o contribuinte tem direito a ser indemnizado por garantia indevida, mesmo quando a tenha mantido por prazo inferior a 3 anos, quando se verifique, em impugnação judicial – e deve ler-se também, na arbitragem tributária, numa leitura atualizada da lei e integrada na sua unidade sistemática – que houve erro imputável aos serviços na liquidação do tributo. Ora, a constatação da ilegalidade (nas partes) da liquidação adicional promovida pela AT tem como consequência que à mesma subjaz um erro imputável aos serviços – que procederam a uma liquidação ilegal (e subsequente exigência de uma garantia indevida). Por isso, a requerente tem direito a ser indemnizada pelos custos da garantia indevida, em proporção do vencimento da presente ação arbitral, cujo exato valor deve ser determinado espontaneamente pela Autoridade Tributária (ou se assim não acontecer, em execução de sentença), tendo em mente os limites e procedimento descritos no n.º 3 e 4 do art.º 53.º da LGT (cujos dados exatos não constam do presente processo).

 

4. Decisão

De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em:

  1. Julgar parcialmente procedente o pedido de declaração de ilegalidade da liquidação impugnada de IRC e Juros compensatórios de 2014, no valor de 502.586,03€ - com uma correção total à matéria tributável de 1.931.919,29€;
  2. Manter correções à matéria coletável de 504.642,24€ (cfr. ponto 3.9 supra);
  3. Anular parcialmente a liquidação de IRC e juros compensatórios identificada em a. – nos valores de imposto e juros que decorram da anulação à matéria coletável de 1.417.277,05€ (cfr. 3.9 supra).

E, em consequência:

  1. Conceder à requerente o direito de indemnização por garantia indevida, a ser liquidado espontaneamente pelos serviços da Autoridade Tributária ou, na falta de cumprimento voluntário, em execução de Sentença – na parte proporcional do seu vencimento

 

5. Valor do processo

De harmonia com o disposto no art.º 97.º-A, n.º 1, alínea a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 502.586,03€€;

Notifique-se.

Lisboa, 23 de Novembro de 2018.

Os Árbitros

 

Fernanda Maças (árbitro Presidente)

Tomás Cantista Tavares (árbitro Vogal)

Rui Manuel Correia de Pinho (Árbitro Vogal)

 

 

 

 

(Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 131º nº 5 do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 29º nº 1 alínea e) do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária)