Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 120/2017-T
Data da decisão: 2017-10-06  IRC  
Valor do pedido: € 982.980,06
Tema: IRC - Fusão invertida - Custos de financiamento - Artigo 23.º do CIRC
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Os árbitros José Baeta de Queiroz (árbitro-presidente), Tomás Cantista Tavares e Jorge Carita (árbitros vogais), designados respetivamente pelo CAAD (na falta de acordo dos árbitros nomeados pelas partes), pela Requerente e pela Requerida para formarem o Tribunal Arbitral, acordam no seguinte:

1. Relatório

A…, SA, NIPC…, com sede na Travessa…, …, …, Vila Nova de Gaia (doravante A… ou Requerente), apresentou um pedido de constituição do tribunal arbitral coletivo, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º, n,º 1, al. a), e 6.º, n.º 2, al. b) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante AT), com vista à declaração de ilegalidade da liquidação de IRC e juros do ano de 2012 (2016 … e compensação 2016 …), no valor total de 982.980,06€.

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação, nomeadamente com a notificação à AT. Todos os árbitros comunicaram a sua aceitação no prazo aplicável. As partes não manifestaram vontade de recusar a designação dos árbitros.

O tribunal arbitral coletivo foi constituído em 4/5/2017.

A AT respondeu, defendendo que o pedido deve ser julgado improcedente.

Por despacho, com acordo das partes, não se realizou a reunião do artigo 18.º do RJAT; as partes foram convidadas a realizar alegações escritas; a requerente não as efetuou e a requerida alegou, mantendo o que dissera na sua resposta.

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, como se dispõe nos artigos 2.º, n.º 1, al. a) e 4.º, ambos do RJAT.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O processo não enferma de nulidades e não há qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.

2. Matéria de facto

2.1. Factos provados

Consideram-se provados os seguintes factos relevantes para a decisão:

a) A Requerente dedica-se à reciclagem de sucata e desperdícios metálicos e comércio de ferro em geral;

b) O fundo B… (e suas dominadas) é uma entidade de capital de risco para investidores qualificados, cujo património se destina a ser investido na aquisição de partes sociais de entidades com elevado potencial de crescimento e valorização.

c) Até 2009, o fundo B… dominava a sociedade C… SGPS (nipc …) que por usa vez dominava a sociedade D… (nipc …), a qual adquiriu, em 2008, 100% do capital da requerente (e outra empresa).

d) A D… foi constituída para corporizar a aquisição do capital social o A… e o seu objeto social era a recolha, armazenamento, reciclagem e tratamento de todo o tipo de sucata e desperdícios.

e)  Em 2008, a D… adquiriu a totalidade do capital social da A… com recurso a: i) financiamento bancário (E…, F… e G…) de 61.200.000,00€; ii) financiamento do sócio C…, via suprimentos, no valor de 36.000.000,00€.

g) Em 2009, com efeitos a 1/1/2009, a D… fundiu-se com o A… (e com intervenção de outra sociedade, sem relevância para os autos), numa operação de fusão invertida, justificada por (i) exigência dos bancos financiadores (como é usual nestas operações, para que estejam garantidos pelos ativos e atividade da entidade operacional e lucrativa, (ii) racionalização de custos e (iii) efetua-se a fusão invertida porque a H… tinha nome, know-how e reputação para o exercício da atividade.

h)  Após a fusão, a Requerente (incorporante) assumiu a (i) totalidade das dívidas da D… e (ii) suportou os encargos (juros) contraídos pela D… junto da Banca e dos acionistas.

i)  Na atividade de capital de risco (como desenvolvida pelo grupo I…) é usual a compra das ações da empresa a adquirir ser efetuada por uma sociedade veículo constituída para o efeito (D…) e promover-se, depois, fusão com a entidade operacional (H…) – normal ou invertida – para (i) operar diminuição dos custos administrativos e (ii) por exigência da Banca (colocar a dívida na mesma entidade jurídica que possui os ativos).

j) A AT, em inspeção ao IRC de 2012 da requerente, não aceita que a A… possa deduzir 5.937.546,79€ em termos fiscais, relativos a juros de financiamento originariamente contraídos pela D… para a aquisição da A…, cujos empréstimos foram assumidos por esta, por efeito da fusão.

l) A AT ancora a sua pretensão no artigo 23.º do CIRC, considerando que tais encargos financeiros são alegada­mente não indispensáveis à obtenção dos rendimentos ou para a manutenção da fonte produtora e promove, em consequência, a liquidação de IRC objeto do presente processo arbitral.

 

2.2. Factos não provados

Não há factos com relevo para a apreciação do mérito da causa que não se tenham provado.

 

2.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto

Os factos provados baseiam-se nos documentos apresentados pelas partes (que são, essencialmente, documentos emitidos pelas Finanças e da fusão, no consenso das partes (também em relação aos documentos e valores e da­tas dos pagamentos) e nas informações oficiais juntas ao processo.

 

3. Matéria de direito

3.1. Questão a decidir

Como é aceite pelas partes, a questão que se coloca nos presentes autos prende-se apenas com o tratamento fiscal a dar aos juros e demais encargos suportados, em 2012, pela A… relativos a empréstimos (de sócios e de terceiros) para a compra do capital da própria A… e que a requerente suporta em virtude e por decorrência da fusão com a sua acionista D… que contraiu originariamente essas dívidas.

Na opinião da AT, esses juros e encargos são seriam fiscalmente dedutíveis, nos termos do artigo 23.º do CIRC (na redação e numeração à data dos factos) porque não indispensáveis à obtenção do rendimento ou à manutenção da fonte produtora. Para a Requerente, ao invés, esses juros e encargos seriam fiscalmente dedutíveis, por preenchimento dos requisitos ínsitos no artigo 23.º do CIRC.

 

3.2. As leis aplicáveis

Segundo o artigo 23.º do CIRC (na redação e numeração à data dos factos), consi­de­ram-se custos ou gastos: 

“1. […] os que comprovadamente sejam indispensáveis para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, nomeadamente:

(…)

c) De natureza financeira, tais como juros de capitais alheios aplicados na exploração […], gastos com operações de crédito […]”;

Por outro lado, com a fusão de empresas “extinguem-se as sociedades incorporadas […], transmitindo-se os seus direitos e obrigações para a sociedade incorporante” (artigo 112.º, al. a), do Código das Sociedades Comerciais).

 

3.3. Os argumentos das partes

A fundamentação da liquidação (e resposta da Requerida) invoca, em síntese, que os juros suportados pela A… após a consumação da fusão (e por decorrência desta operação) relativos ao financiamento inicialmente contratado pela D… diretamente para a própria a aquisição do capital da A… não merecem a natureza de indispensável para os proveitos ou manutenção da fonte produtora: após a fusão já não financiam a aquisição das participações; teria de haver, em cada ano em que se registam os juros, um balanceamento entre os encargos financeiros suportados e os proveitos e existência do ativo; esses juros não estariam ligados com a atividade normal da requerente e o ativo associado não existe e não contribuirá futuramente para rendimentos tributáveis.

O Requerente advoga, ao invés, que os juros suportados em 2012 pela A… são indispensáveis para os proveitos ou manutenção da fonte produtora, sendo por isso qualificados como um custo fiscal nos termos do artigo 23.º do CIRC; os juros, quando incorridos inicialmente (pela D…), eram indispensáveis aos proveitos e manutenção da fonte produtora – e se o eram no momento inicial, terão de o ser para sempre, quaisquer que sejam as modificações ulteriores (mesmo com a fusão); a fusão, entre os seus efeitos normais, leva a que ao resultado económico e fiscal dos autos; a fusão é uma operação permitida pela lei comercial e fiscal e a AT, na fundamentação do ato, não invoca o pretenso abuso da operação de fusão, precedida da aquisição, nos termos do artigo 38.º, n.º 2, da LGT.

 

3.4. Decisão

Os árbitros analisaram toda a retórica aduzida pelas partes (nas suas peças escritas e documentos e alegações da requerida), bem como a argumentação e ponderação de decisões arbitrais anteriores sobre o tema, mas tendo sempre presente as pequenas alterações do caso (“cada caso é um caso”).

Com efeito, várias Sentenças arbitrais (por exemplo, no processo 14/2011-T e 87/2014-T) recusaram a dedução fiscal dos juros suportados pela incorporante pós fusão, relativos a financiamentos contraídos pela incorporada pré fusão com vista à aquisição do capital social da futura incorporante. Ao invés, as Sentenças arbitrais 101/2013-T, 42/2015-T (aqui numa fusão não invertida, mas as considerações são iguais), 92/2015-T e 93/2015-T, 88/2016-T, 491/2016-T, 537/2016-T e 560/2016-T pronunciam-se em sentido oposto, aceitando a dedução destes encargos financeiros, por os considerarem manifestamente indispensáveis para a obtenção dos proveitos ou para a manutenção da fonte produtora.

Mais ainda: vários dos árbitros já se pronunciaram noutros processos sobre o mesmo tema (proc. 88/2016-T e 491/2016-T) – e decidiram-nos no sentido da aceitação fiscal da dedução desses encargos financeiros, mesmo após a fusão. Neste processo, reponderaram novamente todos os argumentos factuais e jurídicos constantes deste processo e o conteúdo das decisões arbitrais anteriores – e concluíram pela bondade do decidido anteriormente e pela inexistência de argumentos novos que os levassem a inverter o sentido das suas decisões.

Após toda essa ponderação, de­cidem, por maioria, no sentido da anulação daa liquidação impugnada e con­siderar que estes juros e encargos suportados pela Requerente são indispensáveis para os proveitos e manutenção da fonte produtora da A…, com base na ponderação e decisão da Sentença arbitral do processo 93/2015-T, a que se adere e seguidamente se reproduz a parte decisória, assumida também neste processo (foi isso o que se fez aliás também no processo 88/2016-T).

(Início da citação da Sentença do Processo arbitral 93/2015-T)

“ […] estão exclusivamente em causa juros de capitais alheios, considera-se, então que o ponto de partida do processo decisório do litígio que ora cumpre dirimir se situa no quadro do artigo 23.º/1/c) do CIRC.

            Tal norma dispõe, para além do mais e naquilo que diz respeito ao que ora importa, que “Consideram-se gastos (…) nomeadamente: c) juros de capitais alheios aplicados na exploração.”.

            Deste modo, e antes de avançar no sentido de apurar se do normativo em questão resulta, ou não, uma limitação da dedutibilidade dos juros de capitais alheios, à sua aplicação na exploração, ou se, como se concluiu no Ac. 42/2015T, serão no seu âmbito dedutíveis juros de capitais alheios aplicados noutros fins, cumpre aferir se, no caso, é essa, ou não, a situação que se verifica.

            Em tal juízo, e salvo melhor opinião, dever-se-á ter em conta, como referentes decisórios, para além do mais já devidamente tratado, quatro aspetos que se têm por fundamentais, a saber:

  • O primeiro […] é a circunstância de as participações sociais da sociedade incorporante, que integravam o ativo da sociedade incorporada, não existirem no património da sociedade resultante do processo de fusão;
  • O segundo, julga-se que tão incontornável quanto o anterior, é o de que os “capitais alheios” a que se reportam os juros suportados e cuja dedutibilidade é questionada se encontrarem, em momento anterior à fusão, já integralmente aplicados;
  • O terceiro, bem menos evidente, mas igualmente incontornável e relevante, é o de que a sociedade resultante do processo de fusão não se identifica materialmente (sob o prisma da realidade económica) com a sociedade beneficiária da fusão, tal como se configurava previamente à mesma;
  • O quarto, julga-se que não será, do mesmo modo, contestável, é o de que as ações atribuídas, no processo de fusão, aos acionistas da sociedade incorporada, serão contrapartida, não dos capitais por aquela obtidos, por via dos financiamentos cujos juros têm a respetiva dedutibilidade em crise, mas, como se viu já, das ações daquela mesma sociedade incorporada e que, por força do processo de fusão, se extinguem.

            À luz destes referentes, tem-se por boa a conclusão de que, efetivamente, no caso se preenchem os pressupostos da supra referida alínea c) do n.º 1 do artigo 23.º do CIRC, por os gastos com juros em questão, corresponderem a capitais alheios que foram aplicados na exploração da entidade que os suporta.

            Esta afirmação, que à primeira vista poderá constituir-se como contra intuitiva, será assimilável se se tiver devidamente presente o terceiro dos critérios decisórios fundamentais acima elencados.

Com efeito, e como se escreveu no Ac. do STA de 13-04-2005, proferido no processo 01265/04[1]:

A fusão por incorporação, ainda que implique que só sobreviva, com personalidade jurídica própria, a sociedade na qual as demais se incorporam, não tem como consequência, no campo das realidades económicas e empresariais, o desaparecimento das empresas fundidas. Alguma doutrina comercialista – vd. PINTO FURTADO, PINTO COELHO e PUPO CORREIA nos lugares citados na sentença recorrida – aponta que a sociedade fundida, perdendo a sua personalidade jurídica, todavia persiste, modificada, formando um todo com outras, em condições diversas das que ocorriam antes da fusão. Mas não deixa de continuar a existir a mesma realidade económica, um mesmo conjunto (agora integrado noutro mais alargado) de meios afetos a uma atividade produtiva, que os sócios, aliás, quiseram potenciar com a fusão.

Ou seja, com a fusão por incorporação ocorre uma transformação da sociedade, mas não uma extinção, não decorrendo da integração o seu desaparecimento, mas a sua alteração, ainda que implique a perda de personalidade jurídica."

Também no Ac. do TCA-Sul de 17-04-2012, proferido no processo 04172/10[2] se escreveu que “a fusão de sociedades é o ato pelo qual duas ou mais sociedades reúnem as suas forças económicas para formarem, com os sócios de todas elas, uma só personalidade coletiva, um novo sujeito económico e jurídico.

Daí que se possa afirmar, como parece tê-lo feito a A., que a fusão é, regra geral, e a situação em análise não constitui exceção, recomendada por interesses comuns às sociedades nela intervenientes, e não apenas a uma delas.

E mais adiante: “É certo que se poderia argumentar que a sociedade fundida, perdendo a sua personalidade jurídica, todavia persiste, modificada, formando um todo com outras, em condições diversas das que ocorriam antes da fusão; todavia, também o certo é que não deixa de continuar a existir a mesma realidade económica, um mesmo conjunto (agora integrado noutro mais alargado) de meios afetos a uma atividade produtiva, que os sócios, aliás, quiseram potenciar com a fusão.

Numa outra formulação, pode afirmar-se que com a fusão por incorporação ocorre uma transformação da sociedade, mas não uma extinção, não decorrendo da integração o seu desaparecimento, mas a sua alteração, ainda que implique a perda de personalidade jurídica.”.

            Compreendido isto, será compreensível então, a afirmação de que os gastos com juros em questão, correspondem a capitais alheios que foram aplicados na exploração da entidade que os suporta. Com efeito, compreendida devidamente a realidade pós-fusão (não fraudulenta), dever-se-á aceitar que a entidade daí resultante, embora contida na “casca” jurídica da sociedade incorporante, não corresponde mais a esta, tal como se configurava antes do referido processo de reorganização societária, sendo antes uma síntese entre a sociedade incorporada e a incorporante.

            Citando a jurisprudência que antecede, continua “a existir a mesma realidade económica”, o “mesmo conjunto (agora integrado noutro mais alargado) de meios afetos a uma atividade produtiva”, em cuja exploração foram aplicados os capitais alheios cujos gastos em juros vêm a sua dedutibilidade questionada, uma vez que não decorreu da integração o seu desaparecimento, mas a sua alteração, ainda que com a perda de personalidade jurídica.

            Assim, à luz desta compreensão dos efeitos da fusão por incorporação – incluindo a inversa – não se poderá concluir de outra forma que não pelo preenchimento dos pressupostos da supra referida al. c) do n.º 1 do artigo 23.º do CIRC.

Torna-se, assim, compreensível a passagem do Ac. 42/2015T acima citada, segundo a qual “a fusão mantém na Requerente o financiamento pelo qual esta pagou juros, e teve como consequência patrimonial a junção, no mesmo balanço, dos ativos que tal dívida financiava e continuou a financiar. Não já ativos financeiros, mas a sua real tradução em ativos e passivos de cariz operacional”. Com efeito, a perspetiva do acórdão em questão, que será inquestionável nos casos de fusão por incorporação “ordinária” (não inversa ou upstream), onde é evidente que a sociedade incorporante troca as participações que detém pela realidade económica em que se traduz a sociedade participada, dever-se-á considerar igualmente válida nos casos de fusão inversa, uma vez que a realidade material pós-fusão (a “realidade económica”, o “conjunto (...) de meios afetos a uma atividade produtiva”), será, pelo menos no que constituam aspetos relevantes para a problemática em discussão, precisamente a mesma[3].

            Não invalida, diga-se, esta conclusão que, como se afirma no Acórdão arbitral 87/2014T, “a dedução fiscal dos encargos financeiros incorridos (…) tem que ser aferida no contexto empresarial próprio da Requerente, em atenção aos critérios normativos resultantes do n.º 1 do artigo 23.º do CIRC”, e que “para proceder à aplicação ao caso em apreço do requisito da indispensabilidade dos custos, é decisivo averiguar (…) a afetação efetiva e concreta do financiamento de que os juros suportados são a remuneração ou, por outras palavras, importa verificar o destino ou uso dos fundos obtidos em relação aos quais o sujeito passivo pretende deduzir fiscalmente, para efeitos do apuramento do seu lucro tributável, os juros e demais encargos associados que suportou”.

            Antes pelo contrário. Compreendido que a Requerente, tal como se apresenta pós-fusão, não é já o mesmo centro de interesses que existia antes daquele processo, mas um outro diferente que se sintetizou com a sociedade incorporada e que, portanto, o contexto empresarial da Requerente incorpora, também, a realidade económica antes corporizada autonomamente pela sociedade nela incorporada, estar-se-á então – verdadeiramente – a aferir os “critérios normativos resultantes do n.º 1 do artigo 23.º do CIRC” “no contexto empresarial próprio da Requerente”.

            Por outro lado, e como se referiu já, também não se verifica que tenha ocorrido qualquer alteração na “(…) a afetação efetiva e concreta do financiamento de que os juros suportados são a remuneração”, ou desvio no “no destino ou uso dos fundos obtidos em relação aos quais o sujeito passivo pretende deduzir fiscalmente, para efeitos do apuramento do seu lucro tributável, os juros e demais encargos associados que suportou”, porquanto, por um lado e como se viu, o financiamento foi integralmente aplicado em momento prévio à fusão, e, por outro e como igualmente se viu já, não foi, sequer, o produto dessa aplicação desviado para um terceiro, mormente para a acionista (antes da incorporada e, depois, da incorporante), na medida em que as ações da incorporante de que aquela se tornou titular derivam, não dos financiamentos cujos juros estão em questão, mas das ações da sociedade incorporada que detinha, e que foram extintas pelo processo de fusão.

            A posição adotada é igualmente compatível com a asserção que se pode ler no mesmo acórdão que se vem de referir, segundo a qual “o facto de certos encargos finan­ceiros serem fiscalmente dedutíveis anteriormente no âmbito da determinação da matéria coletável de uma certa sociedade não significa, só por si, que o sejam necessariamente nos mesmos termos no âmbito da sociedade que, por fusão, incorporou aquela”.

            Com efeito, e como referia já o Prof. Teixeira Ribeiro, à luz do Código da Contribuição Industrial (CCI)[4], as alíneas do n.º 1 do artigo 23.º do CIRC não poderão ser entendidas de outra maneira que não a de que quando os custos ou perdas estão especificamente elencados no artigo 23.º, presume-se a sua essencialidade, dispensando-se, consequentemente, o contribuinte da correspondente prova, sendo, precisamente esse o propósito da enumeração (retirado, para além do mais, da utilização da expressão «nomeadamente»).

            Não quer dizer o preenchimento, no caso, da al. c) do n.º do artigo 23.º do CIRC, que a AT não possa questionar o requisito geral da dedutibilidade dos gastos, constante do corpo do artigo, demonstrando que, apesar de preenchida uma alínea do mesmo (no caso a al. c)), a fusão foi realizada por interesses não empresariais próprios das sociedades parte naquela[5].

            Do mesmo modo que, poderia a AT demonstrar que, apesar de preenchida uma alínea do n.º 1 do artigo 23.º, e que a fusão foi determinada por interesses próprios das sociedades parte naquela, a mesma foi realizada num contexto fraudulento, em termos de não produzir efeitos fiscais, tal como prescrito pelo artigo 38.º/2 da Lei Geral Tributária (LGT)[6].

            Sucede que, no caso, nem uma nem outra das vias foi encetada pela AT, pelo que não cumprirá ao Tribunal aferir da sua bondade.

            Não se considera, por fim, que assuma relevância a circunstância, também acima individualizada, de, no momento em que são suportados os juros, os ativos nos quais foram aplicados os capitais alheios, a que se reportam aqueles, não integrarem já a esfera jurídica da sociedade resultante da fusão.

            Efetivamente, aplicados os capitais alheios na exploração (situação diferente do “desvio” de parte dos capitais para aplicações estranhas ao interesse empresarial, que, como se viu já, não se verifica nos autos), considera-se que seria, ainda assim, possível recusar a dedutibilidade fiscal dos correspondentes encargos financeiros, demonstrando-se (e, assim, elidindo a presunção de dedutibilidade decorrente da al. c) do n.º 1 do artigo 23.º do CIRC, detetada na senda do Prof. Teixeira Ribeiro), que o produto daquela aplicação – e já não os capitais alheios - teriam sido desviados para finalidades extra-empresariais.

O que vem de se afirmar será de fácil compreensão com recurso ao exemplo de uma sociedade que, com recurso a capitais alheios adquira uma viatura, a qual afeta, desde logo, à exploração no âmbito da respetiva atividade, mas que, a partir de dado momento, passa a permitir a utilização da mesma exclusivamente no interesse de terceiros (v.g.: sócios; outras empresas).

Nesta situação, julga-se, a presunção de indispensabilidade dos encargos financeiros suportados com a aquisição da viatura, decorrente da aplicação dos capitais alheios na exploração da sociedade em causa, ver-se-á afastada[7], pelo que a dedutibilidade daqueles encargos deverá ser recusada. Não é, contudo, uma vez mais, essa a situação dos autos.

Antes, o que acontece na situação que nos ocupa, é que, por via da operação de fusão realizada, houve um desaparecimento do objeto da aplicação dos capitais alheios. Ou seja: tal objeto, que existia, deixou de existir (o que é diferente e, repete-se uma vez mais, não é o que acontece na situação sub iudice, de continuar a existir na esfera de terceiros).

Retomando o exemplo da viatura, a situação será a mesma que ocorreria no caso de, por via de uma decisão empresarial, aquela ficar inutilizada antes de terminar o período de pagamento dos encargos financeiros relacionados com a sua aquisição (p. ex.: a utilização da mesma numa campanha publicitária que a destrua). Ainda assim, crê-se, aqueles encargos manter-se-ão dedutíveis, não obstante o desaparecimento – por via de uma decisão empresarial – do objeto em que os capitais alheios que remuneram foram aplicados. Tal só não aconteceria, na sequência do que vem de se dizer, se se demonstrasse que a decisão que deu causa ao desaparecimento de tal objeto foi motivada por interesses alheios à empresa ou, então, que foi abusiva. O que – uma vez mais – não é o que está em causa no presente processo.

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            Diga-se, por fim, que se considera que não invalidará nem os referentes decisórios de que se partiu, nem as conclusões que se vêm de retirar, o regime relativo à proibição de assistência financeira à aquisição de participações próprias essencialmente regulado nos artigos 322.º/1 do CSC, e 23.º da Segunda Directiva 77/91/CEE do Conselho, de 13 de Dezembro de 1976.

            Não obstante tal questão não ter sido nem fundamento do ato tributário objeto da presente ação arbitral[8], nem suscitada pelas próprias partes[9], sempre se dirá, em abono da integridade da decisão, que não se descortina que tenha sido praticado qualquer ato que, concretamente, se possa apontar como ocorrido em violação da referida proibição.

            De facto, o próprio n.º 1 do artigo 23.º da Segunda Directiva 77/91/CEE do Conselho, de 13 de Dezembro de 1976, vigente à data do facto tributário[10], e à luz do qual deverá, no caso, ser lida a norma do artigo 322.º/1 do Código das Sociedades Comerciais (CSC)[11], considera assistência financeira o adiantamento de fundos, a concessão de empréstimos ou a prestação de garantias, sendo certo que, no caso, não se apura que tenha ocorrido qualquer dessas situações.

            Com efeito, os fundos utilizados para a aquisição das participações sociais da Requerente foram fornecidos por entidades bancárias, e não adiantados ou concedidos a crédito pela Requerente, e esta, tanto quanto se apura, não prestou qualquer garantia a favor dos credores do financiamento utilizado para a aquisição das referidas participações, pelo que, ressalvada a ocorrência de fraude, não se poderá considerar que, no caso, a Requerente tenha prestado assistência financeira, proscrita pelas normas referidas.

            Ou seja e em suma: não se tem dúvidas que não foram adiantados fundos, concedidos créditos ou prestadas garantias pela Requerente, com vista à aquisição de ações próprias. Se – e no caso, julga-se, esta é uma discussão que não caberá prosseguir, pelo que não interessará se tal é questionável ou inquestionável – os mesmos resultados foram obtidos por outras vias não proibidas, estaremos então perante uma atuação fraudulenta, a tratar como tal.

            É que, para considerar-se verificada qualquer violação da proibição de assistência financeira, sempre a mesma ter-se-ia que retirar da conjugação da globalidade dos atos jurídicos praticados pela Requerente, e da intenção – nesse caso, fraudulenta - de, por essa via, obter um resultado que a lei proíbe.

            Com efeito, uma conclusão de violação da proibição de assistência financeira pela Requerente terá – crê-se – sempre de assentar na conjugação do complexo de atos praticados, desde a organização societária grupal inicialmente instituída, até à realização da fusão por incorporação invertida, passando pela operação de financiamento realizada, sendo certo que todos esses atos, em si considerados, se apresentarão como lícitos e próprios da diversas entidades empresariais envolvidas nos mesmos, e apenas um propósito e um resultado fraudulentos efetivamente demonstrados serão suscetíveis de fazer cair o manto de legalidade que os cobre.

            Ora, salvo melhor opinião, sendo então cada um dos diversos atos jurídicos praticados pelos diferentes intervenientes na atuação complexa em causa no presente processo, lícitos e empresariais, o meio próprio de realizar a referida demonstração, e dela retirar os efeitos próprios em sede fiscal, será por meio da cláusula anti-abuso[12].

            Esta conclusão não será, julga-se, suscetível de ser afetada, por meio da consideração – de resto não efetuada pela própria AT – da proibição de assistência financeira em sede de densificação do critério geral da indispensabilidade do artigo 23.º/1 do CIRS, desde logo porquanto se entende que não só seria necessário, previamente, que se demonstrasse uma efetiva (e não meramente genérica ou potencial) violação da referida proibição, como que, estando em causa – no caso concreto, como se disse – uma atuação global de fraude à lei, a utilização da cláusula geral da indispensabilidade constituiria – salvo o devido respeito e, passe a expressão – ela própria uma “fraude à lei”, na medida em que se trataria de um meio expedito de subtrair as garantias que lei pretendeu conferir ao contribuinte, nos casos em que a AT entende que as formas jurídicas utilizadas por aquele não têm correspondência na realidade económica prosseguida.

            Em todo o caso, nota-se ainda que não restando dúvidas que no caso se processou uma, chamada, “fusão alavancada” (“merger leveraged buy-out”, mLBO), menos certo não será que tal figura é conhecida, de data que se pode considerar já longa, do legislador, que – até à data – entendeu não retirar desse conhecimento nem a sua ilegalização em geral (não se tendo notícia, de resto, que tal haja ocorrido em qualquer ordenamento comunitário), nem quaisquer outros efeitos no plano fiscal.

            De resto, nos regimes, como o italiano, onde se regularam já as operações de mLBO, a regulação instituída insiste especialmente nas obrigações de comunicação e auditoria, evidenciando-se, assim, que a operação em si não é intrinsecamente ilícita e/ou fraudulenta, mas que, unicamente, encerra em si um potencial de ilicitude/fraude, superior ao normal. Assim sendo, considera-se que a simples ocorrência de uma operação de fusão alavancada, não será, só por si, suscetível de ser considerada fraudulenta e, menos ainda, anti empresarial.

            Por fim, sempre se dirá que a aplicação ao caso, por via do critério geral da indispensabilidade dos gastos, da proibição de assistência financeira à aquisição de ações próprias, sob o argumento de que todos os atos e contratos realizados se caracterizaram pela finalidade de que fosse o património da Requerente a suportar os custo da aquisição das suas próprias participações sociais, esbarrará igualmente contra a constatação de que esse mesmo resultado seria obtido caso a fusão por incorporação se tivesse realizado em sentido oposto.

*

            Concluindo, e como referia o Prof. Saldanha Sanches[13], se “As operações de cisão e fusão são uma área onde se verificam com muita frequência tentativas de obter economias fiscais mediante práticas abusivas, o que motiva as legítimas preocupações do legislador.”, não se pode é partir de uma “insanável desconfiança (...) em relação à fusão inversa, como se esta operação só pudesse ser realizada para contornar a lei fiscal ou fosse, em si própria, uma operação abusiva”.

Deste modo, considerando-se que, no caso, se verificam os pressupostos do artigo 23.º/1/c), maxime, que os capitais alheios a que se referem os encargos financeiros cuja dedutibilidade é questionada pela AT, foram efetivamente aplicados na exploração da Requerente, tal como ela se apresentava à data em que suportou aqueles encargos (pós-fusão), em questão no presente processo, e que não se demonstra (nem tal facto constituiu, sequer, fundamento dos atos tributários objeto do presente processo arbitral) que a operação de fusão, da qual resultou o desaparecimento das participações sociais em que haviam sido aplicados os referidos capitais alheios, tenha sido exclusiva ou principalmente motivada por interesses extra empresariais, ou fraudulenta, deverão proceder integralmente os pedidos arbitrais anulatórios formulados.

(Fim da citação da Sentença arbitral)

Refira-se, em abono da verdade, que a matéria da assistência financeira não é propriamente um tema a decidir, pois nunca foi esgrimida pela AT durante o processo (nem de forma subsidiária). É abordada apenas como mero apontamento sugerido pelo tema, tal como aliás sucedeu no processo 93/2015-T.

Com o teor decisório da questão essencial – no sentido da anulação da liquidação im­pugnada, por não violar o artigo 23.º do CIRC – torna-se prejudicado o pronun­cia­mento sobre os demais vícios apontados pela requerente (alegada violação do re­gi­me de neutralidade fiscal da fusão, liberdade de gestão, tributação pelo lucro real, vio­lação do artigo 75.º-A, do CIRC e violação da igualdade e substância sobre a forma).

 

5. Decisão

De harmonia com o exposto, acorda este Tribunal Arbitral em julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade da liquidação impugnada de IRC e juros de 2012, no valor total de 982.980,06€.

6. Valor do processo

De harmonia com o disposto no artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do Código de Proce­dimento e de Processo Tributário (CPPT) e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de 982.980,06€.

Notifique-se

Lisboa, 06 de Outubro de 2017

Os Árbitros

 

José Baeta de Queiroz

 

Tomás Cantista Tavares

 

Jorge Carita

 (vencido conforme declaração junta, a qual faz parte integrante da presente decisão)


 

Voto de Vencido

 

Votei vencido, nomeadamente porque os argumentos para dar suporte à tese da não indispensabilidade dos custos referentes ao preço que uma sociedade paga para se adquirir a si própria, não me convenceram.

 

Mas revejo-me na primeira onda de Decisões Arbitrais (Proc. 14/2011-T, 87/2014-T) e do mesmo modo nos votos de vencido mais recentes (Proc. nº. 92/2015-T, 93/2015-T e 88/2016-T) que não conseguiram vislumbrar a absoluta indispensabilidade de tais gastos, suportados relativamente a um activo, a propriedade dela própria, infelizmente desaparecido aquando da fusão face à sua própria natureza.

 

Torna-se evidente que em todas estas decisões participaram dos melhores especialistas em direito fiscal actualmente em colaboração com o CAAD.

 

Relativamente ao texto desta Decisão tenho dificuldades em aceitar, no que à matéria de facto diz respeito, que as fusões invertidas com estes propósitos, são usuais na actividade de capital de risco.

 

Como também me pareceria “proveitoso” que constasse da matéria de facto o valor dos juros efectivos cuja aceitação como custo está em causa e não só o valor dos financiamentos, mas acrescentando-se o valor usual de juros suportados habitualmente pela Requerente, em comparação com os que passou a ter que suportar.

 

No caso concreto, não consigo compreender que numa empresa que revelava no exercício de 2008 modestos custos financeiros mensais, passe, após uma operação de fusão invertida de um grupo (para além de tudo o que foi feito antes para ali se chegar), a suportar quase 1o milhões de euros no primeiro ano, que a Autoridade Tributária tem que continuar a aceitar como dedutíveis para efeitos fiscais, nos anos seguintes e no que diz respeito a 2012, face a esta decisão do Tribunal.

 

É notável a constatação da evolução do lucro tributável da Requerente antes da fusão e depois da fusão, como bem consta do RIT e que aqui se transcreve:

 

Mat Colectável 2005

4.761.972,91 €

Mat Colectável 2006

8.843.208,32 €

Mat Colectável 2007

10.369.376,60 €

Mat Colectável 2008

7.645.442,00 €

Mat Colectável 2009

234.135,10 €

 

E pagar os juros devidos pelos empréstimos contraídos pela “mãe” para comprar a “filha” e aceitar fiscalmente como custo da filha, é tal e qual o mesmo que comprar matéria prima para fabricar e vender sucatas e desperdícios metálicos!!!

 

Tudo se passa, efectivamente, como se a actividade da Requerente fosse a sua própria aquisição, como diz a AT noutros processos em que está em causa igual situação, ou melhor, os custos “dizem respeito à sua Auto-aquisição”.

 

E toda a gente sabe que isto é mesmo assim e que é próprio, é inerente a qualquer uma aquisição de leveraged buyout (LBO), que constitui um mecanismo utilizado para tornar custos inadmissíveis em eficiência fiscal. (Não é preciso ir pela aplicação do CGAA, bastava não aceitar estes juros como custo).

 

E também não se diga que o caráter de indispensabilidade dos custos, deve ser aferido quando a dívida é contraída, esquecendo por completo o momento em que os juros são efectivamente suportados (adeus princípio da especialização dos exercícios, e para já não falar do sempre necessário nexo de causalidade entre custos e proveitos).

 

Efetivamente, tenho dificuldade em aceitar que os juros contraídos por uma sociedade para adquirir outra sociedade na qual ela própria se veio a incorporar, possam vir a ser aceites para efeitos fiscais.

 

E, se não tenho dúvidas de que no momento em que a dívida foi contraída os respectivos encargos eram um custo para efeitos fiscais, já tenho dúvidas que o possam continuar a ser após a fusão (invertida) e que ainda para mais que haja quem entenda que se o eram nesse momento, em que foram contraídos “terão que o ser para sempre…” (posição da Requerente no Proc. n.º 88/2016-T, pág. 7), independentemente das mudanças que ocorrerem, incluindo a fusão, ainda para mais invertida (ninguém dúvida que a fusão é uma operação prevista na lei e não está aqui em causa a aplicação de uma CGAA, mas sim a aplicação do artigo 23 do CIRC).

 

Como é que se pode referir que “… os gastos com juros em questão, correspondem a capitais alheios que foram aplicados na exploração da entidade que os suporta” (Proc. n.º 88/2016-T, pág. 9), quando eles serviram para que terceiros adquirissem precisamente a sociedade que actualmente os suporta.

 

Custa-me a compreender!!! Confesso.

 

Seria o mesmo que no âmbito de uma reestruturação societária, abrangida pelos benefícios fiscais no artigo 60.º do Estatutos dos Benefícios Fiscais, da qual constam uma fusão invertida, depois das isenções de IMT, IS, etc., ainda se viessem a considerar os juros de um idêntico endividamento, como custo fiscal da sociedade filha, que incorpora a mãe que a comprou.

 

Como é que se afirma que os capitais alheios foram aplicados na exploração pela sociedade incorporante, quando ela não comprou o capital social de qualquer outra sociedade!!!

 

Diz-se que importa averiguar “… a afectação efectiva e concreta do financiamento de que os juros suportados são a remuneração ou, por outras palavras importa verificar o destino ou uso dos fundos obtidos em relação aos quais o sujeito passivo pretende deduzir fiscalmente, …, os juros e demais encargos associados que suportou.” (Decisão citada, pág. 11/12)

 

Mas qual é a dúvida?

 

Não serviram os financiamentos para pagar o preço de aquisição da Requerente por parte da sociedade que nela se veio a incorporar. Os juros decorrem do endividamento de terceiros, tendo a dívida sido contraída antes da fusão.

 

Desse modo, a sociedade está a pagar aos seus próprios accionistas (ou parte deles, dependendo da relação de troca de fusão) o preço de aquisição das acções dela própria.

 

Nos processos do CAAD que analisei e que estão escalpelizados na presente Decisão, não posso, por isso, deixar de subscrever a Declaração de Voto subscrito pelo Dr. António Brás Carlos (Proc. n.º 88/2016-T), nomeadamente quando ele manifesta a sua discordância relativamente à tese do prolongamento da existência da sociedade incorporante.

 

Por seu turno, a síntese factual ali efectuada deixa a nu o propósito de toda a operação, colocando naturalmente em causa que os juros suportados possam continuar a ter relevância fiscal no período pós-fusão.

 

Categórico o ponto 8 desta declaração de voto, que aqui transcrevo, com a devida vénia:

 

“8. Todos os passos da operação estão inseridos na mesma “unidade de intenção e ação” e são, desde o início, unicamente dirigidos ao objectivo referido no número anterior. Objetivo esse estranho ao interesse empresarial da Requerente, não sendo o financiamento e o pagamento dos concomitantes encargos necessários à sua atividade, nem indispensáveis para a prossecução do seu interesse empresarial específico concretizado na produção dos seus rendimentos sujeitos a imposto ou na manutenção da sua fonte geradora. A obrigação de pagamento dos encargos em análise nunca foi, desde a primeira hora, contraída no interesse empresarial da Requerente, sendo para mim claro que não poderia, após a fusão, passar a considerar-se que tais financiamentos eram para si indispensáveis para efeitos do nº 1 do artigo 23º do CIRC.”

 

Razão tem o Dr. António Brás Carlos quando refere em síntese final (ponto 10) que a decisão ali em causa naquele processo não respeita, antes contrariando ostensivamente, a jurisprudência dos Tribunais Superiores (STA/TCA).

 

“10. Em consequência, tendo presente o acima referido, os encargos respeitantes àqueles empréstimos, suportados pela Requerente, não preenchem o requisito da indispensabilidade a que se refere o nº 1 do artigo 23º do CIRC, porque, em síntese:

a) Não respeitam à actividade por si desenvolvida (Ac. STA, proc. 171/11);

b) Os gastos correspondentes aos juros suportados por uma sociedade incorporante em virtude da aquisição de capitais alheios por parte da sociedade incorporada para adquirir 100% das ações da primeira, não são indispensáveis para esta sociedade (incorporante), porque não foram constituídos no seu interesse empresarial, não sendo, assim, necessárias para a prossecução do seu escopo societário (Ac. STA, proc. 164/12 e Acs. TCA-Sul, proc. nº 5327/12 e proc. nº 8137/14);

c) Não existe qualquer nexo causal entre aqueles gastos e os seus proveitos ou ganhos, explicado em termos de normalidade, necessidade, congruência e racionalidade económica (Ac. TCA-Sul, proc. nº 6754/13);”

 

Importa, igualmente, ter em conta neste contexto o Voto de Vencido do Prof. João Menezes Leitão nos Processos n.ºs 92/2015-t e 93/2015-T.

 

Aqui se reitera a referência à jurisprudência dos Tribunais Tributários que consagram que “os custos (…) não podem deixar de respeitar, desde logo, à própria sociedade contribuinte. Ou seja, para que determinada verba seja considerada custo daquela é necessário que a actividade respectiva seja por ela própria desenvolvida, que não por outras sociedades” (Acórdão do STA de 30.05.2012, Proc. 0171/11).

 

É por isso vasta a análise da jurisprudência que fazendo uso da leitura correcta do princípio da indispensabilidade de custos, leva a que da sua aplicação resulta a não indispensabilidade daqueles que em tais Decisões estão em causa (92/2015-T e 93/2015-T)

 

 “… que esses gastos não respeitam à actividade desenvolvida pela própria sociedade contribuinte, carecem de relação com a actividade prosseguida pelo sujeito passivo, não foram incorridos no interesse da empresa, na prossecução das respectivas actividades, são estranhos à actividade da empresa, não é possível descortinar neles qualquer nexo causal com os proveitos ou ganhos, explicado em termos de normalidade, necessidade, congruência e racionalidade económica, foram incorridos para além do objectivo social, ou seja, na prossecução de outro interesse que não o empresarial.” (sublinhado meu). Será que não chega!!!

 

 Também tenho que concordar com o Prof. Menezes Leitão quando ele refere que:

“… assumir os indicados gastos de financiamento a Requerente fica obrigada a desviar recursos extraídos do seu património, que deveriam ser destinados à prossecução da sua actividade e à realização do seu objecto social, para o pagamento da dívida e dos encargos financeiros respeitantes à aquisição das participações sociais no seu capital por outrem.” (pág. 62 e 63 da Decisão)

 

 Com aplicação ipis verbis ao caso nos autos!!!

 

E se a empresa não tiver suporte financeiro para suportar encargos desse montante (juros de milhões) e entrar em processo de insolvência?!!

 

“Sendo assim, os referidos custos financeiras não têm enquadramento na definição de custos e perdas (gastos) para efeitos de determinação do lucro tributável, uma vez que a assunção dos encargos em causa foi determinada por motivações empresariais no âmbito de uma política de interesses particulares ditada pelos responsáveis das sociedades interligadas e que só a eles diz respeito, e, nessa conformidade, tais custos não devem ser havidos por indispensáveis, em harmonia com o estatuído no artigo 23° do CIRC”.

 

 Razão pela qual não posso acompanhar a douta decisão proferida.

 

O bem fundado Relatório da Autoridade Tributária merecia melhor destino.

 

Lisboa, 6 de Outubro de 2017

 

Jorge Carita

 

 

(Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 131º nº 5 do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 29º nº 1 alínea e) do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária)

 



[1] Disponível para consulta em www.dgsi.pt.

[2] Idem.

[3] Note-se que não se está aqui a trabalhar um cenário hipotético em que a operação de fusão teria de ser realizada noutros termos. O que se está é a afirmar uma identidade de situações, na óptica dos tópicos relevantes para a abordagem da questão decidenda, entre a situação verificada e uma outra, relativamente à qual não se colocam dúvidas sobre a resposta a dar à mesma questão.

[4] Comentário ao acórdão do Supremo de 9 de Outubro de 1985, RLJ n. º3743, p. 39-43.

[5] Não obstante a circunstância de não constituir fundamento dos actos tributários em crise a motivação não empresarial da fusão, sempre se dirá que não é exacto o afirmado pela AT, em sede arbitral, ao referir que “A realidade dos factos, porém, não permite descortinar os efeitos positivos advenientes da fusão para a exploração da sua actividade. Antes, pelo contrário, é certo que os fundos não foram utilizados na exploração.” (cfr. artigo 33.º da resposta). Com efeito, resulta dos factos que, previamente à fusão, a Requerente suportava despesas de gestão, a favor da sociedade que veio a incoroporar, despesas essas que, com a fusão, deixou de suportar. Questão diferente, mas que, nos termos da jurisprudência já elencada, escapará ao crivo da AT, será a de saber se a decisão de proceder à fusão foi boa ou má.

[6] Onde, salvo melhor opinião, se situaria a sede própria para considerações relativas a uma possível situação de, em fraude à lei, se estar a colocar uma sociedade a financiar a sua própria aquisição, em violação do disposto no artigo 322.º/1 do CSC, e na Segunda Directiva 77/91/CEE do Conselho, de 13 de Dezembro de 1976 (artigo 23.º), vigente à data do facto tributário, conforme, a final, se desenvolverá.

[7] Considera-se, assim, que a questão do desvio do produto da aplicação dos capitais alheios mutuados, será distinta da questão de tal aplicação. Uma coisa será, então, a aplicação dos capitais alheios na exploração da entidade que contraiu o financiamento, que, verificada, determinará o preenchimento da alínea c) do n.º 1 do artigo 23.º do CIRC, que produzirá os respectivos efeitos, nomeadamente no que diz respeito à presunção de indispensabilidade dos gastos “para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora”. Outra coisa será o desvio do produto da aplicação dos capitais alheios mutuados, para fins não empresariais, que poderá relevar, não já ao nível da al. c) referida, mas – antes – ao nível do corpo do n.º 1 da mesma norma, enquanto infirmação da presunção decorrente daquela al. c).

O que desencadeia a presunção de indispensabilidade é a aplicação dos capitais; mas o juízo de dedutibilidade reporta-se aos juros suportados. Assim, estes presumir-se-ão dedutíveis se os capitais alheios a que respeitam tiverem sido aplicados na exploração. Esta aplicação, contudo, não equivale nem se identifica com a indispensabilidade daqueles; trata-se, antes, de um facto conhecido do qual se retira um facto desconhecido (presumido): o de que os encargos financeiros, no momento em que o são, são suportados no interesse da empresa. Daí que a demonstração de que o produto da aplicação dos capitais alheios foi “desviado”, na sua utilização, para fins extra-empresa, não signifique que, afinal, aqueles (os capitais alheios) foram aplicados fora da exploração. Aquela demonstração significa, isso sim, que, não obstante os capitais alheios terem sido aplicados na exploração, os encargos suportados, no momento em que o são, não o são no interesse da empresa, pelo que a (presumida) indispensabilidade, no caso e nesse período, então, não se verifica. Assim se demonstra, igualmente, que, na perspectiva adoptada, o “teste da indispensabilidade dos gastos”, como propugna a AT, é efectuado em “cada período de tributação (...) não sendo este exercício apenas efectuado no momento em que o empréstimo é contraído” (cfr. artigo 69.º e ss. da Resposta). Com efeito, o referido teste, é efectuado em todos os exercícios, não obstante o facto conhecido em que assenta a presunção que responde, em primeira linha, a tal teste, se reporte ao momento em que o empréstimo foi contraído.

[8] Com efeito, como tem sido repetidamente afirmado pelo STA, “É exclusivamente à luz da fundamentação externada pela AT quando da prática da liquidação adicional de IVA que deve aferir-se a legalidade desse acto tributário.” (Ac. do STA de 23-09-2015, proferido no processo 01034/11), pelo que o Tribunal se terá de ater, na apreciação da legalidade do acto em causa, aos fundamentos, quer de facto, quer de direito, externados naquele.

[9] Não consta da Fundamentação da liquidação.

[10] Correspondente ao n.º 1 do artigo 25.º da actual Directiva 2012/30/EU do Conselho, de 25 de Outubro de 2012.

[11] Que, de resto, contém-se na epígrafe “Empréstimos e garantias para aquisição de acções próprias”, e proscreve a concessão de empréstimos ou a prestação de garantias.

[12] Estando-se a falar de fraude, aqui, como na nota 16, supra, não haverá, julga-se, qualquer sobreposição entre a norma, no caso, do artigo 322.º do CSC e do artigo 38.º/2 da LGT, na medida em que por meio desta se visará realizar a proibição consagrada no primeiro, que por um meio de actuação fraudulenta possa ter sido formalmente evitada. Com efeito, uma coisa será a prática de um acto de assistência financeira proibida, que será nulo nos termos do artigo 322.º/3 do CSC e, como tal, não convocará a aplicação da cláusula geral antiabuso. Outra coisa serão situações em que, sem que haja qualquer acto praticado em violação daquela norma, fraudulentamente, são obtidos os mesmos resultados económicos que a mesma visa proibir. Evitada, dessa forma a proibição legal, e a nulidade daquela decorrente, será, crê-se, a CGA o meio próprio de realizar a legalidade tributária.

[13]Fusão Inversa e Neutralidade (Da Administração) Fiscal”, Fiscalidade N.º 34 – Revista de Direito e Gestão Fiscal.