Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 117/2014-T
Data da decisão: 2014-07-30  IUC  
Valor do pedido: € 3.393,64
Tema: IUC – Incidência subjectiva – Locação financeira
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            I – Relatório

 

            1.1. A..., S.A. (doravante designada por «requerente»), submete à apreciação do presente Tribunal a legalidade dos actos de liquidação de IUC referentes aos períodos de tributação de 2009, 2010, 2011 e 2012, tendo, para o efeito, apresentado, em 12/2/2014, um pedido de constituição de tribunal arbitral e de pronúncia arbitral, nos termos do disposto nos artigos 99.º do CPPT e 2.º, n.º 1, al. a), e 10.º, n.º 2, al. c), do Dec.-Lei n.º 10/2011, de 20/1 (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante somente designado por «RJAT»), em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), tendo em vista "a anulação das decisões da Autoridade Tributária e dos respectivos Documentos de cobrança dos IUCs [e] o reembolso das importâncias indevidamente pagas pela requerente".

 

            1.2. Em 15/4/2014 foi constituído o presente Tribunal Arbitral Singular.

 

            1.3. Nos termos do art. 17.º, n.º 1, do RJAT, foi a AT citada, enquanto parte requerida, para apresentar resposta, nos termos e para os efeitos do mencionado artigo. A AT apresentou a sua resposta em 21/5/2014, tendo argumentado, em síntese, a total improcedência do pedido da requerente. Na referida resposta, invocou duas excepções, a saber: "excepção peremptória de falta de objecto, a qual se invoca para todos os efeitos legais, nos termos do disposto no n.º 3 do Art.º 577.º do CPC na redacção dada pela Lei 41/2013 de 26 de Junho, a qual dá lugar à absolvição da R. do pedido nos termos e para os efeitos no disposto no n.º 3 do Art.º 576.º do CPC, em face de não terem sido emitidos actos de liquidação oficiosa de IUC pela entidade Requerida"; e "excepção dilatória impeditiva do conhecimento do mérito da causa, a que alude o artigo 576.º, n.os 1 e 2 do CPC ex vi artigo 2.º, alínea e), do CPPT e artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT, tendo em conta que o Tribunal Arbitral constituído é materialmente incompetente para apreciar e decidir o pedido objecto do litígio sub judice, atendendo à inexistência de actos de liquidação oficiosa de IUC emitidos pela entidade Requerida".

 

            1.4. A requerente, notificada da resposta da AT, respondeu, por escrito, às excepções invocadas, em requerimento de 11/6/2014, o qual foi notificado à requerida.

            1.5. Considerando que as partes já se tinham pronunciado, por escrito, sobre eventuais excepções, o presente Tribunal considerou, ao abrigo do art. 16.º, al. c), do RJAT, dispensável a reunião do art. 18.º do RJAT e que o processo prosseguisse para decisão. As partes foram notificadas por despacho de 7/7/2014 para dizerem, no prazo estabelecido, o que entendessem por conveniente. Por requerimentos dirigidos ao Tribunal, as partes disseram concordar com a dispensa da referida reunião.

 

            1.6. Nos termos do disposto nos arts. 16.º, alíneas c) e e), e 19.º, do RJAT, o Tribunal considerou, por despacho de 20/7/2014, dispensável a produção de alegações por entender que existiam nos autos os elementos suficientes, quer de facto, quer de direito, para proferir decisão. As partes foram notificadas, não se tendo pronunciado no prazo estabelecido.

 

            1.7. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.

 

            1.8. Considerando que foram invocadas duas excepções (supra referidas), justifica-se, previamente, a apreciação das mesmas, i.e., justifica-se saber se, como alega a ora requerida, o presente Tribunal é "materialmente incompetente" e, ainda, se há "falta de objecto" (por, no seu entender, "não terem sido emitidos actos de liquidação oficiosa de IUC pela entidade Requerida").

 

            1.9. Quanto à invocação de que o presente Tribunal é "materialmente incompetente" por, alegadamente, inexistirem os "actos de liquidação oficiosa de IUC emitidos pela entidade Requerida", considera-se que não assiste razão à requerida, uma vez que a competência dos Tribunais Arbitrais compreende não apenas a apreciação de pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos cuja administração seja cometida à AT (não aplicável ao presente caso, dado que os actos em causa não foram praticados pela AT), como também [ainda segundo o art. 2.º, n.º 1, al. a), do RJAT] a apreciação de pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação.

 

            Não há dúvida de que, no caso em análise, se está diante de actos de autoliquidação, visto que estes ocorrem quando a liquidação do tributo é feita pelo próprio sujeito passivo, tendo por base as regras e elementos definidos para a referida liquidação (neste caso, as "notas de cobrança" constantes do sistema informático da AT, e que estão identificadas e juntas aos autos como docs. n.os 2 a 60). O facto de a requerente se referir a estes actos de autoliquidação como "liquidações oficiosas" é incorrecção que não altera a substância e a natureza dos actos em causa (tanto mais que a requerente também fez questão de afirmar, na sua petição e na sua resposta às excepções invocadas pela AT, que procedeu ao "pagamento voluntário" do IUC), os quais, como se disse, caem no âmbito da competência material dos Tribunais Arbitrais, por via do que dispõe o já mencionado art. 2.º, n.º 1, al. a), do RJAT.

 

            Alega, contudo, a requerida, que "ainda que [...] se entenda que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do Art.º 2.º do RJAT, tais actos consubstanciam actos de autoliquidação, e como [são] passíveis de serem sindicados, refira-se desde já que tal entendimento enferma de erro nas suas premissas atendendo aos argumentos que se expõem. [Isto porque] nos termos do disposto no n.º 1 do Art.º 131.º do CPPT, [se] prescreve que em caso de erro na autoliquidação, a impugnação será obrigatoriamente precedida de reclamação graciosa, no prazo de 2 anos a contar da apresentação da declaração. In casu, a Requerente não apresentou qualquer reclamação graciosa relativamente aos actos de autoliquidação, razão pela qual, também por esta via não são susceptíveis de serem sindicados tais actos de autoliquidação."

            Com efeito, a requerente não apresentou, previamente, a referida reclamação graciosa. Contudo, estaria a requerente obrigada a fazê-lo? A resposta terá de ser negativa.

 

            Como bem refere Jorge Lopes de Sousa, no seu "Comentário ao Regime Jurídico da Arbitragem Tributária", que está inserido no Guia da Arbitragem Tributária, coordenado por Nuno Villa-Lobos e Mónica Brito Vieira (Almedina, 2013, p. 131), "as razões subjacentes à imposição legal e à dispensa de reclamação graciosa, prévia em relação à utilização de meios jurisdicionais, vale também em relação ao acesso aos tribunais arbitrais." Daqui decorre a conclusão, "por mera interpretação declarativa, [de] que a possibilidade de pedir aos tribunais arbitrais a declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação [...] prevista no artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, deve ser entendida em sintonia com o regime previsto nos n.os 1 e 3 do artigo 131.º do CPPT, sendo necessária a reclamação graciosa prévia nos casos em que ela também o é nos tribunais tributários."

 

            Resta, portanto, a seguinte pergunta: nos tribunais tributários, e no que diz respeito a actos de autoliquidação, a reclamação graciosa prévia é sempre necessária? A resposta é, uma vez mais, negativa (e tem, consequentemente, aplicação aos casos que sejam submetidos aos Tribunais Arbitrais).

 

            Como bem refere Jorge Lopes de Sousa (idem, 2013, p. 130), embora a regra seja a da necessidade da reclamação graciosa prévia, já "no que concerne a actos de autoliquidação e retenção na fonte, quando o fundamento de impugnação for exclusivamente matéria de direito e os actos tiverem sido efectuados de acordo com orientações genéricas emitidas pela Administração Tributária, deixa de ser obrigatória a reclamação graciosa prévia, como resulta do n.º 3 do artigo 131.º e do n.º 6 do artigo 132.º."         

 

            Ora, como tais condições estão preenchidas no caso ora em análise, conclui-se que não era obrigatória a reclamação graciosa prévia, pelo que os actos em causa são susceptíveis de serem sindicados.

 

            Resumindo: não "falta de objecto" porque, embora "não [tenham] sido emitidos actos de liquidação oficiosa de IUC pela entidade Requerida", o objecto deste processo consiste em actos de autoliquidação; e o presente Tribunal não é "materialmente incompetente" porque a declaração de ilegalidade de tais actos se insere no âmbito das competências dos Tribunais Arbitrais, de acordo com o disposto no art. 2.º, n.º 1, al. a), do RJAT.

 

            1.10. Pelo acima exposto (em 1.9.), conclui-se que o Tribunal Arbitral é materialmente competente, o processo não enferma de vícios que o invalidem e as Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, configurando-se legítimas.

 

            II – Fundamentação: A Matéria de Facto

 

            2.1. Vem a ora requerente alegar, na sua petição, que: a) "não é legítimo concluir que os sujeitos passivos [de IUC] são apenas os proprietários ou equiparados dos veículos, em nome dos quais os mesmos se encontrem registados"; b) "a ratio legis do IUC antes aponta no sentido de serem tributados os utilizadores dos veículos, os efectivos proprietários ou, ainda, os locatários financeiros, pois são estes que têm o potencial poluidor causador dos custos ambientais à comunidade"; c) "não poderá deixar de entender-se que a expressão «considerando-se como tais», utilizada no n.º 1 do art. 3.º do Código do IUC, configura uma presunção legal, a qual é ilidível, nos termos gerais, e, em especial, por força do disposto no art. 73.º da LGT"; d) "por forma a ilidir a presunção decorrente da inscrição no registo automóvel, a requerente apresenta cópias das facturas/recibos de vendas (cfr. documentos n.º 61 a 105)"; e) "à data da exigibilidade do imposto a que respeitam as liquidações em apreço, não era esta o proprietário dos veículos naquelas identificados, por se ter já anteriormente operado as respectivas transferências, nos termos da lei civil"; f) "não preenchendo a AT os requisitos da noção de «terceiro» para efeitos de registo, não pode prevalecer-se da ausência de actualização do registo do direito de propriedade para pôr em causa a eficácia plena do contrato de compra e venda e para exigir ao vendedor (anterior proprietário) o pagamento do IUC devido pelo comprador (novo proprietário) desde que a presunção da respectiva titularidade seja ilidida através de prova bastante da venda."

 

            2.2. Conclui a ora requerente, em face do supra exposto, que: a) deve ser "declarada a ilegalidade [dos actos de liquidação de IUC relativos aos períodos de tributação de 2009, 2010, 2011 e 2012] (e ser consequentemente anulados), no montante de €3.393,67"; b) deve ser reconhecido o direito ao "reembolso à requerente desta quantia, acrescida de juros indemnizatórios à taxa legal, contados desde a data do respectivo pagamento até ao integral reembolso."   

           

            2.3. Por seu lado, a AT alega, na sua contestação: a) que "a interpretação defendida pela Requerente prende-se com uma enviesada leitura da letra da lei";  b) "no que concerne ao elemento sistemático de interpretação da lei [...] a solução propugnada pela Requerente é intolerável, não encontrando, o entendimento por esta sufragado, qualquer apoio na lei"; c) que "à luz de uma interpretação teleológica do regime consagrado em todo o Código do IUC, a interpretação propugnada pela Requerente no sentido de que o sujeito passivo do IUC é o proprietário efectivo, independentemente de não figurar no registo automóvel, o registo dessa qualidade, é manifestamente errada"; d) que "os actos tributários em crise não enfermam de qualquer vício de violação de lei, na medida em que à luz do disposto no artigo 3.º, n.os 1 e 2, do CIUC e do artigo 6.º do mesmo código, era a Requerente, na qualidade de proprietária, o sujeito passivo do IUC"; e) que, "relativamente à junção de documentos com vista a elidir a presunção, cumpre referir o disposto no Art.º 3.º do CIUC refere que é sujeito passivo do imposto quem figurar como proprietário que consta da Conservatória do Registo Automóvel, daí que entendemos que todo o raciocínio propugnado pelo Requerente se encontra eivado, não sendo possível elidir a presunção estabelecida"; f) que "a interpretação veiculada pela Requerente se mostra contrária à Constituição"; g) que "o comportamento da Requerente – venire contra facto proprium – configura um abuso, consignado no Art.º 334.º do Código Civil", na medida em que, "sem que tenha sido notificada de qualquer acto de liquidação oficiosa de IUC pela Requerida, autoliquidou emitindo os documentos de cobrança e pagou o imposto, sabendo que ao fazê-lo sem ter sido interpelada pela Requerida está a assumir que é o sujeito passivo do imposto e depois, vem em sede arbitral sindicar os próprios actos a que deu origem e que agora já não se conforma".

 

            Conclui a AT que "deve ser julgado improcedente o presente pedido de pronúncia arbitral, mantendo-se na ordem jurídica os actos tributários de liquidação impugnados e absolvendo-se, em conformidade, a entidade requerida do pedido."

 

            2.4. Consideram-se provados os seguintes factos:

 

            i) No âmbito da sua actividade, a ora requerente celebra com os seus clientes contratos de aluguer de longa duração e contratos de locação financeira de veículos automóveis, findos os quais transmite a propriedade dos mesmos aos respectivos locatários ou a terceiros.

            ii) Entre 14/11/2013 e 20/12/2013, a requerente procedeu ao pagamento voluntário de IUC alegadamente em falta, relativo às viaturas identificadas no pedido de pronúncia arbitral e relativo aos períodos de tributação de 2009, 2010, 2011 e 2012, no valor total de €3393,67 (vd. docs. n.os 2 a 60 apensos à petição inicial).

 

            iii) Em data anterior àquela a que o imposto respeitava, as viaturas ora em causa foram objecto de venda a terceiros, não sendo, assim, propriedade da requerente, conforme se vê por docs. n.os 61 a 105 apensos à petição inicial, os quais, dada a sua extensão, aqui se darão por reproduzidos. Todas as vendas encontram-se suportadas pelas respectivas facturas de venda, as quais se encontram devidamente identificadas.

 

            2.5. Não há factos não provados relevantes para a decisão da causa.

 

            III – Fundamentação: A Matéria de Direito

 

            No presente caso, são quatro as questões de direito controvertidas: 1) a de saber se "a interpretação defendida pela Requerente prende-se com uma enviesada leitura da letra da lei"; 2) a de saber se a interpretação da ora requerente atende ao "elemento sistemático", e se ignora o "elemento teleológico" de interpretação da lei; 3) a de saber se há "interpretação desconforme à Constituição" da parte da requerente, e se esta incorreu em venire contra factum proprium; 4) a de saber se, no presente caso, são devidos juros indemnizatórios à requerente.  

 

            Vejamos, então.

 

            1) e 2) As duas primeiras questões de direito confluem na direcção da interpretação do art. 3.º do CIUC, pelo que se mostra necessário: a) saber se a norma de incidência subjectiva, constante do referido art. 3.º, estabelece ou não uma presunção; b) saber se, ao considerar-se que a norma estabelece uma presunção, tal desconsidera o elemento sistemático e teleológico; c) saber - admitindo que a presunção existe (e que a mesma é iuris tantum) - se foi feita a ilisão da mesma.   

 

            a) O art. 3.º, n.os 1 e 2, do CIUC, tem a seguinte redacção, que aqui se reproduz:

 

            "Artigo 3.º – Incidência Subjectiva

           

1 - São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.

2 - São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação".

             

            A interpretação do texto legal citado é, naturalmente, imprescindível para a resolução do caso em análise. Nessa medida, afigura-se necessário recorrer ao art. 11.º, n.º 1, da LGT, e, por remissão deste, ao art. 9.º do Cód. Civil (CC).

 

            Ora, nos termos do referido art. 9.º do CC, a interpretação parte da letra da lei e visa, através dela, reconstituir o "pensamento legislativo". O mesmo é dizer (independentemente da querela objectivismo-subjectivismo) que a análise literal é a base da tarefa interpretativa e os elementos sistemático, histórico ou teleológico são guias de orientação da referida tarefa.

            A apreensão literal do texto legal em causa não gera - ainda que seja muito discutível a separação desta relativamente ao apuramento, mesmo que mínimo, do respectivo sentido - a noção de que a expressão "considerando-se como tais" significa algo diverso de "presumindo-se como tais". De facto, muito dificilmente encontraríamos autores que, numa tarefa de pré-compreensão do referido texto legal, repelissem, "instintivamente", a identidade entre as duas expressões.

 

            Confirmando a indistinção (tanto literal como de sentido) das palavras "considerando" e "presumindo" (presunção), vejam-se, por ex., os seguintes artigos do Código Civil: 314.º, 369.º, n.º 2, 374.º, n.º 1, 376.º, n.º 2, e 1629.º. E, com especial interesse, o caso da expressão "considera-se", constante do art. 21.º, n.º 2, do CIRC. Como assinalam Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, a respeito desse artigo do CIRC: "para além de esta norma evidenciar que o que está em causa em sede de tributação de mais valias é apurar o valor real (o de mercado), a limitação ao apuramento do valor real derivada das regras de determinação do valor tributável previstas no CIS não poder deixar de ser considerada como uma presunção em matéria de incidência, cuja ilisão é permitida pelo artigo 73.º da LGT" (vd. Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada, 4.ª ed., 2012, pp. 651-652).

 

            b) Estes são apenas alguns exemplos que permitem concluir que é precisamente por razões relacionadas com a unidade do sistema jurídico (o elemento sistemático) que não se poderá afirmar que só quando se usa o verbo "presumir" é que se está perante uma presunção, dado que o uso de outros termos ou expressões (literalmente similares) também podem servir de base a presunções. E, de entre estas, as expressões "considera-se como" ou "considerando-se como" assumem, como se viu, destaque.

 

            Se a análise literal é apenas a base da tarefa, afigura-se, naturalmente, imprescindível a avaliação do texto à luz dos demais elementos (ou subelementos do denominado elemento lógico). Com efeito, a AT alega, também, que a interpretação da requerente ignora o elemento teleológico de interpretação da lei.

 

            Justifica-se, portanto, averiguar se a interpretação que considere a existência de uma presunção no art. 3.º do CIUC colide com o elemento teleológico, i.e., com as finalidades (ou com a relevância sociológica) do que se pretendia com a regra em causa. Ora, tais finalidades estão claramente identificadas no início do CIUC: "O imposto único de circulação obedece ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida do custo ambiental e viário que estes provocam, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária" (vd. art. 1.º do CIUC).

 

            O que se pode inferir deste artigo 1.º? Pode inferir-se que a estreita ligação do IUC ao princípio da equivalência (ou princípio do benefício) não permite a associação exclusiva dos "contribuintes" aí referidos à figura dos proprietários mas antes à figura dos utilizadores (ou dos proprietários económicos). Como bem se assinalou na DA n.º 73/2013-T, de 5/12/2013: "na verdade, a ratio legis do imposto [IUC] antes aponta no sentido de serem tributados os utilizadores dos veículos, o «proprietário económico» no dizer de Diogo Leite de Campos, os efectivos proprietários ou os locatários financeiros, pois são estes que têm o potencial poluidor causador dos custos ambientais à comunidade."

 

            Com efeito, se a referida ratio legis fosse outra, como compreender, p. ex., a obrigação (por parte das entidades que procedam à locação de veículos) - e para efeitos do disposto no art. 3.º do CIUC e no art. 3.º, n.º 1, da Lei n.º 22-A/2007, de 29/6 - de fornecimento à DGI dos dados respeitantes à identificação fiscal dos utilizadores dos referidos veículos (vd. art. 19.º)? Será que onde se lê "utilizadores", devia antes ler-se, desconsiderando o elemento sistemático, "proprietários com registo em seu nome"...?

 

            c) Do exposto retira-se a conclusão de que limitar os sujeitos passivos deste imposto apenas aos proprietários dos veículos em nome dos quais os mesmos se encontrem registados - ignorando as situações em que estes já não coincidam com os reais proprietários ou os reais utilizadores dos mesmos -, constitui restrição que, à luz dos fins do IUC, não encontra base de sustentação. E, ainda que se invoque o art. 6.º do CIUC, como o faz a AT, para alegar "que só as situações jurídicas objecto de registo [...] geram o nascimento da obrigação de imposto", é necessário ter presente que tal registo gera apenas uma presunção ilidível, i.e., uma presunção que pode ser afastada mediante prova em contrário (prova de que o registo já não traduz, no momento da obrigação de imposto, a verdade material que lhe teria dado origem).

 

            Seria, aliás, injustificada a imposição de uma espécie de presunção inilidível, uma vez que, sem uma razão aparente, estar-se-ia a impor uma (reconhecidamente discutível) verdade formal em detrimento do que realmente podia e teria ficado provado; e, por outro lado, a afastar o dever da AT de cumprimento do princípio do inquisitório estabelecido no art. 58.º da LGT, i.e., o dever de realização das diligências necessárias para uma correcta determinação da realidade factual sobre a qual deve assentar a sua decisão (o que significa, no presente caso, a determinação do proprietário actual e efectivo do veículo).

 

            Acresce que, se não se permitisse ao vendedor a ilisão da presunção constante do art. 3.º do CIUC, estar-se-ia a beneficiar, sem uma razão plausível, os adquirentes que, na posse de formulários de contratos de aquisição correctamente preenchidos e assinados, e usufruindo das vantagens associadas à sua condição de proprietários, se tentassem eximir, por via de um “formalismo registral”, ao pagamento de portagens ou coimas.

 

            A este propósito, convém notar, também, que o registo de veículos não tem eficácia constitutiva, funcionando, como antes se disse, como uma presunção ilidível de que o detentor do registo é, efectivamente, o proprietário do veículo. Neste sentido, vd., por exemplo, o Ac. do STJ de 19/2/2004, proc. 03B4639: "O registo não surte eficácia constitutiva, pois que se destina a dar publicidade ao acto registado, funcionando (apenas) como mera presunção, ilidível, (presunção «juris tantum») da existência do direito (art.s 1.º, n.º 1 e 7.º, do CRP84 e 350.º, n.º 2, do C.Civil) bem como da respectiva titularidade, tudo nos termos dele constantes."

 

            No mesmo sentido, referiu, a este respeito, a DA n.º 14/2013-T, de 15/10/2013, em termos que aqui se acompanham: "a função essencial do registo automóvel é dar publicidade à situação jurídica dos veículos não surtindo o registo eficácia constitutiva, funcionando (apenas) como mera presunção ilidível da existência do direito, bem como da respectiva titularidade, tudo nos termos dele constante. A presunção de que o direito registado pertence à pessoa em cujo nome está inscrito pode ser ilidida por prova em contrário. Não preenchendo a AT os requisitos da noção de terceiro para efeitos de registo [circunstância que poderia impedir a eficácia plena dos contratos de compra e venda celebrados], não pode prevalecer-se da ausência de actualização do registo do direito de propriedade para pôr em causa a eficácia plena do contrato de compra e venda e para exigir ao vendedor (anterior proprietário) o pagamento do IUC devido pelo comprador (novo proprietário) desde que a presunção da respectiva titularidade seja ilidida através de prova bastante da venda."

            Ora, no caso aqui em análise, verifica-se que a ilisão da presunção (por via de "prova bastante" das vendas alegadas) foi realizada (vd. docs. n.os 61 a 105 apensos à petição inicial).

 

            É certo que, numa extensa lista que se inicia no ponto 127.º e se prolonga até ao ponto 171.º da sua resposta, a AT procurou refutar as facturas apresentadas, argumentando, em síntese, que as mesmas não são "documento idóneo para comprovar a venda" dos veículos, nem logram "provar a pretensa transmissão" dos mesmos, e que é ainda exigível, para realizar tal prova, "a junção de cópia do [...] modelo oficial para registo da propriedade automóvel".

 

            O presente Tribunal, contudo, não vê razão para questionar as referidas facturas (nem foram apresentados quaisquer elementos que permitam, fundadamente, duvidar da veracidade das mesmas), entendendo que as mesmas são claramente demonstrativas de que esta não era, à data do imposto, a proprietária dos veículos em causa. Como bem se assinalou na DA n.º 27/2013-T, datada de 10/9/2013, "os documentos apresentados, particularmente as cópias das facturas que suportam, desde logo, as vendas [...] [dos] veículos atrás referenciados, [...] corporizam meios de prova com força bastante e adequados para ilidir a presunção fundada no registo, tal como consagrada no n.º 1 do art. 3.º do CIUC, documentos, esses, que gozam, aliás, da presunção de veracidade prevista no n.º 1 do art. 75.º da LGT."

           

            3) Por último, conclui-se, em face do que foi acima exposto [em 1) e 2)], não existir qualquer "interpretação desconforme à Constituição", ao contrário do que alegou a requerida nos pontos 103.º a 112.º da sua resposta, nem venire contra factum proprium, como também invocou a requerida nos pontos 113.º a 124.º da sua resposta. Note-se, quanto a esta última alegação, que a ora requerente autoliquidou, é certo, mas não há prova alguma de que sabia "que ao fazê-lo sem ter sido interpelada pela Requerida est[ava] a assumir que [era] o sujeito passivo do imposto"; antes fê-lo porque sabia, em razão das "notas de cobrança" presentes no sistema informático da AT, que era a requerida que estava a assumir que a requerente seria o sujeito passivo do imposto. Por último, nada há que permita considerar que o cumprimento, por parte da ora requerente, do que dispõe a AT - ainda que feito de motu proprio - implica a preclusão do direito a impugnar.  

 

            4) Uma nota final para apreciar, ao abrigo do disposto no art. 24.º, n.º 5, do RJAT, o pedido de pagamento de juros indemnizatórios a favor da requerente (art. 43.º da LGT e 61.º do CPPT).

 

            A este respeito, lembrou a DA n.º 26/2013-T, de 19/7/2013 (a qual tratou de situação muito semelhante à aqui em análise): "O direito a juros indemnizatórios a que alude a norma da LGT supra referida pressupõe que haja sido pago imposto por montante superior ao devido e que tal derive de erro, de facto ou de direito, imputável aos serviços da AT.  [...] ainda que se reconheça não ser devido o imposto pago pela requerente, por não ser o sujeito passivo da obrigação tributária, determinando, em consequência, o respectivo reembolso, não se lobriga que, na sua origem, se encontre o erro imputável aos serviços, que determina tal direito [a juros indemnizatórios] a favor do contribuinte. Com efeito, ao promover a liquidação oficiosa do IUC considerando a requerente como sujeito passivo deste imposto, a AT limitou-se a dar cumprimento à norma do n.º 1 do art. 3.º do CIUC, que, como acima abundantemente se referiu, imputa tal qualidade às pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados."

 

            Atendendo a esta justificação, com a qual se concorda, conclui-se, também no presente caso, pela improcedência do mencionado pedido de pagamento de juros indemnizatórios.  

 

***

 

            IV – Decisão

 

            Em face do supra exposto, decide-se:

 

            - Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, com a consequente anulação, com todos os efeitos legais, dos actos de liquidação em causa e o reembolso das importâncias indevidamente pagas;

            - Julgar improcedente o pedido na parte que diz respeito ao reconhecimento do direito a juros indemnizatórios a favor da requerente.

 

 

Fixa-se o valor do processo em €3393,67 (três mil trezentos e noventa e três euros e sessenta e sete cêntimos), nos termos do art. 32.º do CPTA e do art. 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no art. 29.º, n.º 1, als. a) e b), do RJAT, e do art. 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

Custas a cargo da requerida, no montante de €612,00 (seiscentos e doze euros), nos termos da Tabela I do RCPAT, dado que o presente pedido foi julgado procedente, e em cumprimento do disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e do disposto no art. 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

 

 

Notifique.

 

Lisboa, 30 de Julho de 2014.

 

O Árbitro

 

 

 

     

 

(Miguel Patrício)

 

 

 

***

 

Texto elaborado em computador, nos termos do disposto

no art. 138.º, n.º 5, do CPC, aplicável por remissão do art. 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT.

A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.