Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 116/2018-T
Data da decisão: 2018-11-26  IRS  
Valor do pedido: € 7.462,06
Tema: IRS e união de facto.
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DECISÃO ARBITRAL

 

  1. RELATÓRIO
  1. 1. A..., contribuinte n.º ... e B..., contribuinte n.º..., doravante designados por Requerentes, apresentaram em 15/03/2018 pedido de constituição de tribunal e de pronúncia arbitral respeitante ao despacho de indeferimento expresso do recurso hierárquico que manteve o indeferimento da reclamação graciosa e, mediatamente sobre a legalidade da liquidação oficiosa de  Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) n.º 2016... por,  no seu juízo, padecer do vício de violação de lei.

 

  1. 2. O Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), designou em 09/05/2018 como árbitro, Francisco Nicolau Domingos.

 

  1. 3. No dia 29/05/2018 ficou constituído o tribunal arbitral.

 

  1. 4. Cumprindo a estatuição do art. 17.º, n.º 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (RJAT) foi a Requerida, em 02/06/2018 notificada para, querendo, apresentar resposta, solicitar a produção de prova adicional e para remeter o processo administrativo (PA).

 

  1. 5. Em 09/07/2018 a Requerida apresentou a sua resposta na qual defende a improcedência do pedido de pronúncia arbitral, atenta a legalidade da liquidação.

 

  1. 6. Por despacho datado de 10/07/2018 o tribunal agendou a data para a produção da prova testemunhal relativamente à matéria alegada sob o art. 9.º, 10.º e 14.º do pedido de pronúncia arbitral.

 

  1. 7. No dia 12/10/2018 foi inquirida a testemunha C... relativamente à matéria de facto supra identificada.

 

  1. 8. Por despacho datado do dia 12/10/2018 o tribunal concedeu o prazo de 8 dias para que as partes, querendo, apresentassem as suas alegações finais escritas e simultâneas e para os Requerentes procederem ao pagamento da taxa de arbitragem subsequente.

 

  1. 9. Os Requerentes apresentaram as suas alegações finais escritas no dia 17/10/2018, onde mantêm integralmente a sua pretensão inicial.

 

  1. POSIÇÃO DAS PARTES

Os Requerentes alegam que vivem em união de facto há mais de 8 anos, habitando na Rua..., n.º..., ..., Matosinhos, residência na qual fazem uma vida em comum. Por conseguinte, têm o direito subjetivo à aplicação do regime de IRS nas mesmas condições aplicáveis aos sujeitos passivos casados e não separados de pessoas e bens.

Por isso, imputam erro sobre os pressupostos de facto e de direito ao despacho de indeferimento expresso do recurso hierárquico n.º ...2016... que manteve a decisão da reclamação graciosa e mediatamente, a liquidação de IRS n.º 2016... .

            Terminam requerendo que o tribunal extraia as consequências da anulação do despacho de indeferimento expresso do recurso hierárquico, alegando da seguinte forma: «…designadamente relativamente às garantias prestadas para salvaguarda do pagamento do imposto».

            A Requerida apresenta uma defesa com os seguintes fundamentos:

  1. Erro sobre os pressupostos de facto e de direito

O regime introduzido pela Lei n.º 82-E/2014, de 31 de dezembro relativamente à determinação da residência somente é aplicável às hipóteses de alteração de residência que ocorram após a entrada em vigor da referida lei - 1 de janeiro de 2015.

Assim, na redação em vigor do art. 14.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS) à data do facto tributário exigia-se, para além da prova da união de facto, a identidade do domicílio fiscal e a assinatura da declaração pelos unidos de facto. Requisitos que, no seu juízo, não foram cumpridos, pelo que a liquidação de IRS dever-se-á manter na ordem jurídica. Até porque a referida alteração legislativa tem natureza inovatória, aplicando-se somente para o futuro.

Nesta sequência, são as seguintes questões que o tribunal deve apreciar:

  1. Se o indeferimento expresso do recurso hierárquico que mediatamente tem subjacente a liquidação de IRS padece de erro sobre os pressupostos de facto e de direito;
  2. Se os Requerentes têm direito a indemnização por prestação de garantia indevida.

 

  1. SANEAMENTO

A coligação de autores e a cumulação de pedidos subjacente aos presentes autos é admissível, porquanto se verifica a identidade entre a matéria de facto e a procedência daqueles depende da interpretação dos mesmos princípios e regras de direito, cfr. art. 3.º, n.º 1 do RJAT.

O processo não enferma de nulidades, o tribunal arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente para conhecer e decidir o pedido, verificando-se, consequentemente, as condições para ser proferida a decisão final.

4. MATÉRIA DE FACTO

4.1. Factos que se consideram provados

4.1.1.  Em 06/05/2015, os Requerentes apresentaram uma declaração modelo 3 de IRS, tendo preenchido a quadrícula de «Unidos de Facto».

4.1.2. No dia 06/06/2015, os Requerentes foram notificados pela Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) para corrigir a referida declaração de rendimentos por não se encontrarem preenchidos os pressupostos legais para, na qualidade de unidos de facto, se aplicar o regime de tributação previsto para os sujeitos passivos casados e não separados de pessoas e bens.

4.1.3. Os Requerentes não entregaram uma declaração de substituição em resultado do teor da notificação referida em 4.1.2. da presente.

4.1.4. A AT procedeu ao preenchimento de declaração oficiosa, na qual o Requerente A... foi considerado divorciado, tendo sido tributado como único membro do agregado familiar.

4.1.5. Não foram detetados pela AT rendimentos fiscalmente relevantes em relação ao sujeito passivo B..., não tendo assim sido incluída em qualquer declaração fiscal.

4.1.6. A declaração oficiosa deu origem à liquidação de IRS n.º 2016..., apurou uma coleta líquida de 20 822,88€, que após a consideração dos valores retidos na fonte, pagamentos por conta, sobretaxa e juros compensatórios, determinou imposto a pagar de 7 462,06 €, com prazo de pagamento voluntário até ao dia 27/04/2016.

4.1.7.  Em 31 de dezembro de 2014 os domicílios fiscais dos Requerentes não coincidiam.

4.1.8. Os Requerentes apresentaram em 12/05/2016 reclamação graciosa na qual alegam que vivem em união de facto desde 2007.

4.1.9. Em 06/09/2016 os Requerentes foram notificados do indeferimento expresso da reclamação graciosa.

4.1.10. Os Requerentes em 06/10/2016 apresentaram recurso hierárquico do ato de indeferimento expresso da reclamação graciosa.

4.1.11. Por despacho da Sra. Chefe de Divisão da Direção de Serviços do IRS, datado de 12/12/2017, o recurso hierárquico foi expressamente indeferido.

4.1.12. Os Requerentes vivem juntos, desde 2007, na Rua..., n.º..., ..., partilhando a casa, onde dormem, fazem as suas refeições e recebem amigos.

4.1.13. Os Requerentes desde então participam como marido e mulher nos eventos da união das freguesias ... e ... e passeiam pelas ruas da aludida união de freguesias igualmente nessa condição.

4.1.14. A junta de freguesia de ... emitiu em 03/09/2014 atestado, por conhecimento pessoal, de que os Requerentes viviam há 7 anos em união de facto.

4.1.15. O pedido de pronúncia arbitral foi apresentado em 15/03/2018.

4.2. Factos que não se consideram provados

4.2.1. Que foi prestada garantia para suspender a execução fiscal.

Não existem quaisquer outros factos com relevância para a decisão arbitral que não tenham sido dados como provados.

4.3. Fundamentação da matéria de facto que se considera provada

            A matéria de facto dada como provada tem génese nos documentos utilizados para cada um dos factos alegados e cuja autenticidade não foi colocada em causa e na prova testemunhal produzida.

4.4. Fundamentação da matéria de facto que não se considera provada

Não foram juntos quaisquer documentos pelos Requerentes que permitam que se dê a matéria como provada.

5.  MATÉRIA DE DIREITO

5.1. Questão de apurar se o indeferimento expresso do recurso hierárquico que mediatamente tem subjacente a liquidação de IRS padece de erro sobre os pressupostos de facto e de direito

A união de facto encontra-se definida na Lei n.º 7/2001, de 11 de maio – art. 1.º, n.º 2 - por comparação com o casamento. Isto é, a união de facto verifica-se em relação àqueles que vivem numa situação análoga à dos cônjuges por um determinado período de tempo – há mais de dois anos.  A jurisprudência entende que o preenchimento do conceito (união de facto) exige: «…a existência entre os membros da união de um projeto de vida em comum, análogo à vivência marital, que deve ser concretizado por uma comunhão plena de vida, nomeadamente por uma comunhão de mesa, leito e habitação que deve perdurar, em termos de estabilidade, por um período temporal superior a dois anos, comportando-se os membros dessa união, no fundo, como se efetivamente de marido e mulher se tratassem», acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12/12/2017, proferido no âmbito do processo n.º 2292/16.4T8CTB.C1 e em que foi relator o Desembargador ISAÍAS PÁDUA.

             Um dos direitos subjetivos que as pessoas que vivem em união de facto podem invocar é precisamente a aplicação do regime do IRS nas mesmas condições aplicáveis aos sujeitos passivos casados e não separados de pessoas e bens, como a alínea d), do n.º 1 do art. 3.º da Lei n.º 7/2001, de 11 de maio expressa e concretamente prevê.

O reconhecimento da união de facto depende de prova, mas como se prova a união de facto? O art. 2.º - A da Lei n.º 7/2001, de 11 de maio dispõe que: «1. Na falta de disposição legal ou regulamentar que exija prova documental específica, a união de facto prova-se por qualquer meio legalmente admissível. 2. No caso de se provar a união de facto por declaração emitida pela junta de freguesia competente, o documento deve ser acompanhado de declaração de ambos os membros da união de facto, sob compromisso de honra, de que vivem em união de facto há mais de dois anos, e de certidões de cópia integral do registo de nascimento de cada um deles (…)».

À data do facto tributário, o art. 14.º do CIRS determinava que esse direito dependia do preenchimento de dois requisitos: a) identidade do domicílio fiscal durante o período exigido pela lei para verificação dos pressupostos da união de facto –  no período de tributação e ii) assinatura, por ambos, da declaração de rendimentos.

A opção dos contribuintes que vivem em união de facto pelo regime de tributação em IRS dos sujeitos passivos casados e não separados de pessoas e bens pressupunha, assim, à data do facto tributário, a identidade do domicílio fiscal.

No que concerne a este primeiro requisito sustenta a jurisprudência[1] que: «O conceito de domicílio fiscal vem definido na alínea a) do n.º 1 do art. 19.º, n.º 1 da LGT, e deste modo, salvo disposição em contrário, o domicílio fiscal do sujeito passivo, no caso das pessoas singulares, é o local da residência habitual. É a residência habitual que integra o conceito de domicílio fiscal. Deste modo, verificando-se a residência habitual do sujeito passivo, pessoa singular, num determinado local, então, esse é o seu domicílio fiscal, independentemente da sua comunicação à AT. Ou seja, a previsão legal não faz depender o conceito de domicílio fiscal de qualquer comunicação, mas tão-somente da “residência habitual”. A obrigatoriedade da comunicação do domicílio do sujeito passivo à administração tributária apenas vem prevista, autonomamente, no n.º 3 daquele preceito legal, sendo que no n.º 4 estabelece-se que é ineficaz a sua mudança enquanto não for comunicada à administração tributária. Ora, trata-se tão-somente de uma questão da eficácia da mudança de domicílio, da sua produção de efeitos perante a AT, que não afeta a substância, e nem sequer integra, o conceito legal de domicílio fiscal previsto no n.º 1 do art. 19.º da LGT. Dito de outro modo, o domicílio fiscal de um determinado sujeito passivo pessoa singular que é o local da sua residência habitual, não deixa de o ser por não ter sido comunicado à AT. Por conseguinte, para efeitos do disposto no n.º 2 do art. 14.º do CIRS, verifica-se a identidade de domicílio fiscal dos sujeitos passivos quando estes tenham a mesma residência habitual [provada], independentemente do cumprimento da comunicação prevista do n.º 3 do art. 19.º da LGT. A ausência daquela comunicação relevará, in casu, para efeitos de prova do domicílio fiscal, que caberá aos sujeitos passivos, face a ineficácia da mudança de domicílio que resulta do disposto do n.º 4 do art. 19.º da LGT.».

Isto é, podem os contribuintes ilidir a presunção de que não vivem em união de facto por não terem alterado o domicílio fiscal, fazendo prova no âmbito do processo de impugnação judicial ou arbitral da coabitação durante mais de dois anos por meio distinto da identidade do domicílio fiscal[2].

Deste modo há que, desde logo, apurar se nos autos se encontra provado que os Requerentes tinham, no ano de 2014, a mesma residência habitual e se viviam em união de facto. Pois como sustenta a Recomendação 13/A/2013 do Senhor Provedor de Justiça, a propósito da declaração de prova da união de facto a emitir pela junta de freguesia: «É que a declaração, para efeitos fiscais, de um mesmo domicílio fiscal ao longo de dois ou mais anos - que a AT exige em prova única da união de facto - não é, evidentemente, garantia da existência de uma verdadeira união de facto. Cidadãos que coabitem com meros objetivos de partilha de despesas, sem que vivam em condições análogas às dos cônjuges, não reúnem certamente os requisitos exigidos pela Lei n.º 7/2001, de 11 de maio, com as alterações que lhe foram introduzidas pela Lei n.º 23/2010, de 30 de agosto e têm, aos olhos da AT, uma especial facilidade em «provar» uma «união de facto» inexistente».

      Relativamente ao segundo requisito, observa a jurisprudência[3] que: «As exigências vertidas no artigo 14º, n.º 2 do CIRS, indicação de uma morada comum e da assinatura conjunta da declaração de rendimentos, apenas podem ser vistas como requisitos formais que facilitam a prova perante a AT da referida união de facto e, caso os interessados não cumpram tais exigências, incumbe-lhes fazer a prova, por qualquer meio, de que podem efetivamente beneficiar do regime próprio das uniões de facto».

Na diligência de produção de prova apurou-se, nomeadamente, que os Requerentes são vistos pela população como marido e mulher a passear nas ruas da união das freguesias de ... e ...; comparecem em diversos eventos nessa condição e o Senhor Presidente desta entregou um convite para evento na seguinte morada – Rua..., n.º..., ...-  tendo sido recebido pela Requerente B... .

      Deste modo, importa analisar se foram apresentadas provas suficientes e claras de que, pelo menos, desde 2012 existia coabitação entre os Requerentes de forma análoga à dos cônjuges, com vista a ilidir a presunção vertida no art. 14.º, n.º 2 do CIRS na redação em vigor à data dos factos.

Da conjugação da prova documental e testemunhal é legítimo extrair que os Requerentes em 2014 já viviam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos. Por isso, a liquidação adicional de IRS e de juros compensatórios é ilegal.

 

 

5.2. Questão da indemnização por prestação de garantia indevida

 

            Os Requerentes solicitam uma indemnização por prestação de garantia indevida, sucede que não se encontra minimamente documentado nos autos que foi prestada qualquer garantia para suspender a execução fiscal do crédito tributário de que a AT se arroga titular. Só aos Requerentes impendia alegar e provar a existência da referida garantia, não o tendo feito, absolvida fica a AT deste pedido.

 

6. DECISÃO

 

Nestes termos decide julgar-se parcialmente procedente o pedido de pronúncia arbitral, anulando-se a liquidação adicional de IRS de 2014 e respetivos juros compensatórios, com demais efeitos legais, designadamente, a anulação do despacho de indeferimento expresso do recurso hierárquico e absolvendo-se a Requerida relativamente ao pedido de indemnização por prestação de garantia indevida.

 

 

 

 

 

7. VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se o valor do processo em 7 462,06 €, nos termos do art. 97.º - A do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), aplicável por força do disposto no art. 29.º, n.º 1, al. a) do RJAT e do art. 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

8. CUSTAS

Custas a suportar pela Requerida, no montante de 612 €, cfr. art. 22.º, n.º 4 do RJAT e da Tabela I anexa ao RCPAT.

 

Notifique.

 

Lisboa, 26 de novembro de 2018

 

O árbitro,

 

 

 

(Francisco Nicolau Domingos)

 

 



[1] Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 05/03/2015, proferido no âmbito do processo n.º 05655/12 e em que foi relatora a Desembargadora CRISTINA FLORA. V. ainda nesse mesmo sentido, acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 16/11/2016, proferido no âmbito do processo n.º 0761/15 e em que foi relator o Conselheiro ARAGÃO SEIA.

[2] V. neste sentido acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 16/11/2016, proferido no âmbito do processo n.º 0761/15 e em que foi relator o Conselheiro ARAGÃO SEIA.

[3] Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 16/11/2016, proferido no âmbito do processo n.º 0761/15 e em que foi relator o Conselheiro ARAGÃO SEIA.