Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 115/2019-T
Data da decisão: 2019-10-28  IRS  
Valor do pedido: € 90.447,56
Tema: IRS – exceção da incompetência do tribunal arbitral em razão da matéria Adiantamento por conta dos lucros. Contrato de mútuo.
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DECISÃO ARBITRAL

 

Acordam em tribunal arbitral

 

I – Relatório

            

                1. A..., Unipessoal, Lda., titular do número de identificação de pessoa coletiva..., vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciar a legalidade do indeferimento da reclamação graciosa deduzida contra as liquidações adicionais referentes a retenção na fonte em IRS, com referência aos anos de 2013 e 2014, bem como a liquidação de juros compensatórios, nos montantes globais de € 74.868,06 e € 15.579,50.

Fundamenta o pedido nos seguintes termos.

 

A Autoridade Tributária, na sequência de um procedimento inspectivo incidente sobre os anos de 2013 e 2014, determinou correcções aritméticas em sede de retenção na fonte, por considerar que os fluxos monetários realizados pela Requerente a favor do seu sócio gerente correspondem a distribuição de lucros, configurando rendimentos sujeitos a IRS nos termos dos artigo 5.º, n.º 1, e n.º 2, alínea h), e a retenção na fonte, nos termos do artigo 71.º, n.º 1, alínea c), do Código do IRS.

No entanto, esse pressuposto não corresponde à verdade, porquanto as atribuições patrimoniais da sociedade a favor do sócio gerente constituem empréstimos formalizados por contrato como é evidenciado pelos reembolsos que têm sido efectuados pelo sócio. Além de que a caracterização dos referidos empréstimos como distribuição de lucros assenta numa mera presunção de facto, pelo que havia lugar à adopção do procedimento destinado à avaliação da matéria colectável por métodos indirectos.

Por outro lado, nos termos do disposto no artigo 74.º, n.º 1, da LGT, cabe à Administração o ónus da prova dos factos constitutivos do direito de liquidação de imposto com base na imputada distribuição de lucros.

Conclui pela verificação dos vícios formais de falta de fundamentação e do procedimento de avaliação por métodos indirectos e de violação de lei por ofensa ao disposto nos artigos 5.º, n.º 1, e n.º 2, alínea h), e 71.º, n.º 1, alínea c), do Código do IRS.

A Autoridade Tributária, na sua resposta, suscita a excepção da incompetência do tribunal arbitral em razão da matéria, por considerar que a liquidação de imposto que a Requerente pretende ver anulada se funda – segundo alega - na avaliação do valor tributável por recurso a métodos indirectos, sendo que como resulta do disposto no artigo 2.º, alínea b), da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, a Autoridade Tributária não está vinculada à jurisdição dos tribunais arbitrais que tenham por objecto pretensões relativas a actos de determinação da matéria colectável por métodos indirectos.

Por impugnação, a Requerida alega que os extractos bancários da conta da Requerente revelam fluxos monetários da Requerente para o sócio gerente através de transferências bancárias e levantamentos em numerário e de uma transferência bancária para uma conta de que era titular a ex-cônjuge do sócio gerente, tendo sido retiradas, desse modo, importâncias que perfazem, no ano de 2013,  o total de € 281.752,00, e, no ano de 2014, o total de € 51 463,00.

Acresce que a contabilidade da Requerente não expressa contabilisticamente esses movimentos nem reflectem as entregas e eventuais reembolsos em nome do sócio gerente que pudessem encontrar-se justificadas com base num contrato de mútuo.

Além do que o referido contrato de mútuo não estipula qualquer plano de reembolso, nem prazo para a sua efectivação, nem prevê qualquer remuneração em relação aos valores alegadamente mutuados, e é nulo por inobservância dos requisitos legais.

 

Nessa circunstância, tais montantes não são mais do que adiantamentos por conta de lucros e são classificáveis como como rendimentos de capitais, categoria E, nos termos do artigo 5.°, n.º 1, alínea h), do Código do IRS, impendendo sobre a Requerente a obrigação de efectuar a retenção na fonte de IRS no momento em que colocou à disposição do seu sócio gerente as importâncias em causa.

Conclui no sentido da procedência da excepção dilatória e, se assim se não entender, pela improcedência do pedido arbitral.

 

2. Na sequência da resposta da Autoridade Tributária, foi determinada a dispensa da reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT e ordenado o prosseguimento do processo para alegações, por prazo sucessivo, também destinadas a permitir à Requerente responder à matéria de excepção.

 

As partes não contra-alegaram.

 

3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.

 

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 2 de Maio de 2019.

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

O processo não enferma de nulidades e foi invocada a excepção de incompetência material do tribunal arbitral.

 

Cabe apreciar e decidir.

 

II - Fundamentação

 

Matéria de facto

 

4. Os factos relevantes para a decisão da causa que poderão ser tidos como assentes são os seguintes.

 

A)           Na sequência de uma acção inspectiva incidente sobre os períodos de tributação de 2012, 2013 e 2014, a Autoridade Tributária determinou correcções aritméticas em sede de retenção na fonte por considerar que fluxos monetários detectados na contabilidade da Requerente a favor do sócio gerente B..., no montante total de € 281.752,00, relativamente ao ano de 2013,  e de € 51 463,00, relativamente ao ano de 2014, correspondem a distribuição de lucros e estão sujeitos a tributação como rendimentos de capitais, em sede de IRS, e a retenção na fonte por parte da entidade que colocou esses valores à disposição do sócio gerente;

B)           O Relatório de Inspecção Tributária, emitido no âmbito do procedimento inspectivo, que aqui se dá como reproduzido, justifica as correcções, em síntese, com os seguintes fundamentos:

a)            os extractos bancários da conta da Requerente, ... n.º..., evidencia fluxos monetários da Requerente através de transferências bancárias para a conta nº ... de que é titular o sócio gerente C..., em diversas datas do ano de 2013, no montante global de € 271.752,00;

b)           foram igualmente detectados levantamentos em numerário a favor do sócio gerente;

c)            há ainda a considerar uma transferência bancária, realizada em 7 de Novembro de 2013, no valor de € 10.000,00, a favor a conta bancária ... nº ...de que era titular D..., ex-mulher do sócio gerente, destinada ao pagamento de dívida à segurança social da sociedade E..., que tinha como sócio gerente C..., e que deve ser entendida como efectuada no interesse pessoal do sócio gerente para viabilizar a dissolução da sociedade;

d)           o total de retiradas a favor e no interesse do sócio gerente da Requerente, no ano de 2013, perfaz o montante de € 281.752,00 (€ 271.752,00 + € 10 000);

e)           em diversas datas do ano de 2014, foram efectuadas transferências bancárias a favor do sócio gerente C..., com origem na conta da Requerente, ... n.º..., no montante global de € 51.463,00;

f)            a contabilidade da Requerente não expressa contabilisticamente os movimentos mencionados nas alíneas precedentes, não havendo um registo apropriado das entregas e eventuais reembolsos em conta de terceiros titulada em nome do beneficiário e posterior controlo do saldo a favor da empresa;

g)            em resposta a um pedido de esclarecimento dos serviços de inspecção tributária, a Requerente informou que as transferências bancárias e os levantamentos em numerário correspondem a empréstimos efectuados ao sócio gerente com base em contrato de mútuo celebrado em 3 de janeiro de 2013;

h)           pelo contrato de mútuo, a Requerente autoriza empréstimos ao sócio gerente até ao montante de € 400.000,00, em montantes e datas que o sócio gerente indique, desde que a sociedade tenha disponibilidade financeira; o empréstimo não vence juros e a restituição dos valores ocorre quando a sociedade o exigir e mediante prévio aviso de, pelo menos, um ano de antecedência;

i)             para o contrato de mútuo não está definido qualquer plano de reembolso, nem um prazo para a sua efectivação, nem estabelecida qualquer garantia para acautelar a restituição;

j)             os termos e condições do contrato de mútuo afiguram-se improváveis num contexto de norma gestão empresarial por falta de razoabilidade dos direitos e obrigações imputados às partes, pelo que o contrato não merece credibilidade;

k)            o contrato de mútuo é nulo por inobservância dos requisitos formais previstos no artigo 1143.º do Código Civil, considerando que o mútuo é de valor superior a € 25000,00 e não foi formalizado por escritura pública ou documento particular autenticado e ainda por efeito do disposto no artigo 397.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais que proíbe a concessão de empréstimos da sociedade aos administradores;

C)           O procedimento inspectivo foi instaurado ao abrigo das ordens de serviço n.ºs OI 2016..., OI 2017... e OI 2017..., tem natureza de procedimento parcial, destinado a verificar o cumprimento das obrigações fiscais no âmbito do IRC, IVA e IRS - retenção na fonte, regulando-se pelo disposto no Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária e Aduaneira;

D)           A Requerente, por requerimento enviado por correio electrónico em 13 de Agosto de 2018, deduziu reclamação graciosa contra os actos de liquidação adicional de IRS;

E)            Por ofício datado de 18 de Outubro de 2018, a Requerente foi notificada do projecto de decisão, ao abrigo do disposto no artigo 60.º, alínea b), da LGT, para exercer o direito de audição;

F)            A reclamação graciosa foi indeferida por despacho de 15 de Novembro de 2018, do chefe de divisão da direcção de finanças de ..., praticado ao abrigo de subdelegação de competência;

G)           O despacho de indeferimento da reclamação graciosa, no que se refere à qualificação dos fluxos financeiros da sociedade para o sócio gerente, baseia-se nas considerações formuladas no Relatório de Inspecção Tributária, quanto ao invocado vício de não ter sido adoptado o procedimento de avaliação indirecta, o despacho refere que a avaliação indirecta da matéria colectável só tem lugar quando se verifiquem os pressupostos do artigo 81.º da LGT e que, no caso, o Administração optou pela avaliação directa por se encontrar na posse de todos os elementos para propor as correccões à tributação;

H)           A Requerente é uma sociedade por quotas unipessoal, que tem por objecto a fabricação e comercialização de artigos plásticos e moldes bem como produtos afins, tendo como único e gerente C..., sendo suficiente para obrigar a sociedade a intervenção do gerente;

I)             No decurso do procedimento inspectivo, a Requerente juntou um contrato de mútuo celebrado entre a sociedade, como primeira outorgante, e o sócio gerente C... do de 3 de Janeiro de 2013, que se rege pelas seguintes cláusulas:

1.ª  A primeira contraente autoriza a sua gerência a fazer ao segundo contraente empréstimos até à quantia global de € 400.000,00, em montantes e em datas que o segundo contraente indique, desde que a primeira tenha disponibilidades financeiras para o efeito e não seja ultrapassada a quantia global indicada.

2.ª O capital emprestado deve ser restituído logo que a primeira contraente o exija, devendo para o efeito interpelar o segundo contraente com, pelo menos, um ano de antecedência.

3.ª Este empréstimo não vence juros.

4.ª Os contratantes renunciam mutuamente ao direito de arguir a eventual nulidade deste contrato por vícios formais.

 

O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária.

 

Matéria de direito

 

Excepção de incompetência material do tribunal arbitral

 

5. A Autoridade Tributária começa por suscitar a excepção da incompetência do tribunal arbitral em razão da matéria com o argumento de que - segundo a própria alegação da Requerente – as correcções ariméticas em sede de IRS foram efectuadas com o recurso a métodos indirectos, e, sendo assim, a pretensão  não pode ser conhecida pelo tribunal arbitral por se encontrar excluída do âmbito de vinculação da Administração à jurisdição arbitral, em face do disposto no artigo 2.º, alínea b), da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

De facto, a Requerente, na petição inicial, alega que a correcção da matéria tributável, em resultado da qualificação dos fluxos monetários a favor do sócio gerente como distribuição de lucros, assenta em mera suposição ou presunção de facto, daí retirando a conclusão de que havia lugar ao procedimento de avaliação indirecta a que se refere o artigo 87.º da LGT, subsistindo, por isso, um vício de procedimento.

É, no entanto, evidente que a competência do tribunal arbitral não pode ficar definida pela mera alegação das partes, havendo que verificar objectivamente se, na situação do caso, havia lugar ao procedimento específico de avaliação por métodos indirectos para a fixação da matéria tributável.

Ora, no caso vertente, a liquidação adicional de IRS foi determinada no âmbito de um procedimento de inspecção tributária, regulado pelo Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária e Aduaneira, tendo em vista a confirmação dos elementos declarados pelo sujeito passivo, e, por conseguinte, tem por base meras correcções técnicas que resultam de a Administração não ter aceite os valores declarados pelo contribuinte ou que constam da sua contabilidade ou escrita, seja porque existem erros ou omissões, seja porque existe – como é o caso – uma divergência na qualificação de actos, factos ou documentos com relevância para o apuramento do imposto.

Como é bem de ver, as correcções técnicas não se confundem com a avaliação por recurso aos métodos indirectos, porquanto nesse caso a Administração, sem recorrer a qualquer presunção ou indício, limita-se a lançar mão de meios directos, como sejam as declarações do contribuinte ou de terceiros ou a análise dos registos contabilísticos, pelo que estamos ainda aí no domínio da avaliação directa (cfr., neste sentido, JOAQUIM FREITAS DA ROCHA, Lições de Procedimento e Processo Tributário, 5.ª edição, Coimbra, págs. 198-199).

Certo é que a Requerente alega que a correcção foi efectuada com base em meras suposições ou presunções de facto, mas isso apenas pode ter o efeito de pôr em causa o resultado probatório alcançado pela Administração por via da avaliação directa. E, em todo o caso, o que importa reter é que a determinação da matéria tributável não foi efectuada por via do procedimento específico da avaliação por métodos indirectos, que, de resto, apenas teria lugar se se verificasse algum dos pressupostos a que se refere o artigo 87.º da LGT.

O tribunal é assim competente para conhecer do pedido.

 

Vícios de procedimento

Falta de fundamentação

 

6. A Requerente imputa aos actos tributários de liquidação o vício de falta de fundamentação, limitando-se a dizer que os motivos invocados no relatório de inspecção para considerar as transferências bancárias para a conta do sócio gerente não são suficientes nem adequados à sua qualificação como distribuição de lucros e carece ainda de adequada fundamentação a desconsideração do contrato de mútuo para efeito de afastar a tributação em IRS.

Como é entendimento jurisprudencial corrente, a fundamentação do ato administrativo ou tributário é um conceito relativo que varia conforme o tipo de acto e as circunstâncias do caso concreto, sendo que a fundamentação é suficiente quando permite a um destinatário normal aperceber-se do itinerário cognoscitivo e valorativo seguido pelo autor do acto para proferir a decisão, isto é, quando aquele possa conhecer as razões por que o autor do acto decidiu num certo sentido e não de forma diferente.

 

 No caso vertente, como resulta da matéria de facto dada como assente (alínea B)), o Relatório de Inspecção Tributária justifica as correcções técnicas na circunstância de se terem detectado transferências bancárias da sociedade a favor do sócio gerente, bem como levantamentos em numerário, que não foram objecto de registo apropriado na contabilidade da empresa, e por se ter entendido que o contrato de mútuo junto no decurso do procedimento, pelo seu próprio clausulado contratual, não oferecia credibilidade, e era nulo por inobservância de requisitos formais e violação da regra da proibição de negócios com a sociedade.

O despacho de indeferimento da reclamação graciosa encontra-se igualmente fundamentado quer por remissão para o relatório de inspecção, quer por referência, quanto ao invocado vício de procedimento na avaliação, ao condicionalismo em que decorreu a quantificação das correcções à matéria tributável (alínea G)).

Compulsando o Relatório de Inspecção Tributária constata-se ainda que a Administração fez uma análise detalhada dos extractos bancários, descrevendo os movimentos, identificando os documentos de suporte, indicando com precisão os montantes que se entendeu deverem ser objecto de correcção e efectuando o enquadramento jurídico mediante a indicação das normas legais que justificam a tributação em IRS e a obrigação de retenção na fonte por parte da entidade que colocou os rendimentos à disposição. Por outro lado, no Relatório analisa-se criticamente a argumentação invocada pelo sujeito passivo no âmbito do procedimento inspectivo e indicam-se as razões pelas quais se não deu relevância ao contrato de mútuo.

 

Face aos termos em que se encontra elaborado o Relatório de Inspecção Tributária, que serviu de base aos actos tributários de liquidação, bem como a decisão de indeferimento da reclamação graciosa, não pode dizer-se, de nenhum modo, que o interessado se encontrou impossibilitado de discutir as soluções propostas e de rebater a factualidade descrita ou que tenha sequer ficado impedido de aceitar ou reagir processualmente contra o acto.

 

Improcede, por conseguinte, o indicado vício de forma por falta de fundamentação.

 

Inobservância do procedimento de avaliação indirecta

 

7. A Requerente alega ainda que a correcção da matéria tributável se baseia em meras suposições ou presunções de facto, pelo que havia lugar ao procedimento de avaliação indirecta a que se refere o artigo 87.º da LGT.

 

 Como se explicou já em momento anterior (cfr. supra 5.), a liquidação adicional de IRS foi determinada no âmbito de um procedimento de inspecção tributária que teve por objectivo a determinação do valor real dos rendimentos sujeitos a tributação, caracterizando-se tipicamente como um procedimento de avaliação directa destinado a quantificar a matéria tributável com base nos registos e elementos de informação recolhidos.

 

Por outro lado, o Relatório de Inspecção Tributária e a decisão que incidiu sobre a reclamação graciosa não fazem alusão a qualquer dos pressupostos que poderiam justificar a realização da avaliação indirecta, e não é o facto de a Requerente afirmar, já na fase de impugnação judicial, que a correcção foi efectuada com base em meras suposições ou presunções de facto que poderia tornar exigível que tivesse sido seguido o procedimento de avaliação indirecta, quando este apenas tem lugar nas condições definidas no artigo 87.º da LGT.

 

Não se verifica, pois, o invocado vício de procedimento.

 

Questão de fundo

Adiantamento por conta dos lucros

 

8. A Autoridade Tributária, na sequência de um procedimento inspectivo, efectuou a liquidação adicional em IRS, relativamente aos anos de 2013 e 2014, por ter considerado que as transferências bancárias realizadas pela Requerente a favor ou no interesse do sócio gerente, bem como os levantamentos em numerário, correspondem a adiantamentos por conta dos lucros, devendo ser tributados a título de rendimentos de capitais, implicando a retenção na fonte a título definitivo por parte da sociedade que colocou à disposição os rendimentos, nos termos  do artigo 71.º, n.º 1, alínea c), do Código do IRS, na redacção então vigente.

 

A Requerente sustenta que as atribuições patrimoniais efectuadas ao sócio gerente tem por base um contrato de mútuo celebrado entre a sociedade e o sócio gerente, que se encontra documentado nos autos, pelo que a sua qualificação como adiantamento por conta dos lucros  assenta num erro nos pressupostos de facto, além de que era à Administração que competia o ónus da prova do direito a que se arroga.

 

Segundo o disposto no artigo 5.º, n.º 1, alínea h), do Código do IRC, os lucros das entidades sujeitas a IRC colocados à disposição dos associados ou titulares e os adiantamentos por conta de lucros (com exclusão daqueles que são objecto de imputação especial aos sócios ou membros de entidades abrangidas pelo regime de transparência fiscal) constituem facto gerador de rendimentos de capitais e são sujeitos a tributação. Por outro lado, os rendimentos de capitais obtidos em território português estão sujeitos a retenção na fonte a título definitivo, à taxa liberatória de 28 % (artigo 71.º, n.º 1, alínea c), do Código do IRS).

 

Como resulta do n.º 2 do artigo 20.º da LGT, o mecanismo de retenção na fonte do imposto devido constitui uma forma de substituição tributária. A substituição tributária, a que se refere esse preceito, pressupõe a deslocação da obrigação tributária do contribuinte directo - que se encontra abrangido pelas normas de incidência do imposto - para um terceiro que é devedor dos rendimentos sujeitos a tributação e a quem incumbe a dedução de uma parcela desses rendimentos aquando do seu pagamento para entrega ao Estado. A responsabilidade do substituto tributário – como especifica o artigo 28.º - traduz-se na obrigação de dedução das importâncias que estiverem sujeitas a retenção e da sua entrega nos cofres do Estado que, uma vez satisfeita, desonera o substituído do pagamento dessas importâncias.

 

Por seu lado, o mecanismo da retenção na fonte encontra-se regulado, em  termos gerais, no artigo 98.º do Código do IRS, consignando-se aí que, nos casos em que haja lugar à retenção de imposto no momento do pagamento de rendimentos do trabalho dependente, as entidades devedoras dos rendimentos sujeitos a retenção são obrigadas, no acto do pagamento do vencimento, a deduzir as importâncias correspondentes à aplicação das taxas de tributação que se encontram previstas para essa categoria de rendimentos (n.º 1). Tratando-se de rendimentos de capitais, a retenção é definitiva, nos termos do disposto no artigo 71.º, n.º 1, alínea a), do Código do IRS, sendo o substituído apenas subsidiariamente responsável pela não retenção ou entrega do imposto (artigo 28.º, n.º 3, da LGT).

 

Por conseguinte, tendo havido lugar à correcção da matéria colectável por efeito do procedimento inspectivo, com a consequente emissão de um acto de liquidação adicional de imposto, tudo se passa como se essa liquidação tivesse resultado dos rendimentos originariamente declarados pelo contribuinte, não havendo nenhuma razão para deixar de aplicar as regras gerais em matéria de substituição tributária e retenção na fonte.

 

Relativamente à retenção na fonte operada no caso vertente, a Requerente contrapõe que não se verifica a presunção legal do artigo 6.º, n.º 4, do Código do IRS, porquanto os fluxos monetários detectados encontram-se justificados através do contrato de mútuo celebrado entre a sociedade e o sócio gerente.

 

Com a epígrafe “Presunções relativas a rendimentos da categoria E”, essa disposição prevê que “os lançamentos a seu favor, em quaisquer contas correntes dos sócios, escrituradas nas sociedades comerciais ou civis sob a forma comercial, quando não resultem de mútuos, de prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, presumem-se feitos a título de lucros ou adiantamento de lucros”.

 

Por efeito dessa regra de direito probatório material, cabe à Administração Tributária a prova da base da presunção, isto é, a prova da existência dos lançamentos, ao passo que ao sujeito passivo cabe a prova dos factos que ilidem a presunção, e, portanto, a demonstração de que os lançamentos resultam de mútuos, de prestação de trabalho ou de exercício de cargos sociais.

 

No caso, a Administração efectuou a prova cabal de que foram realizados transferências bancárias e levantamentos em numerário a favor do sócio gerente. Por outro lado, a Requerente não põe em causa essa realidade, limitando-se a afirmar que a deslocação de capital se encontra justificada por contrato de mútuo, com o que terá pretendido afastar a presunção legal do artigo 6.º, n.º 4, do Código do IRS.

 

Sucede que, como se encontra provado documentalmente e resulta da matéria de facto tida como assente, a Requerente é uma sociedade por quotas unipessoal, que tem por objecto a fabricação e comercialização de artigos plásticos e moldes, tendo como único sócio e gerente C... (alínea G) da matéria de facto e certidão permanente). E, por outro lado, o contrato de mútuo, junto no decurso do procedimento inspectivo, datado de 3 de Janeiro de 2013, celebrado entre a Requerente e o sócio gerente, e subscrito pelo sócio gerente na dupla qualidade de primeiro e segundo contraente, e autoriza a sociedade a conceder empréstimos ao sócio gerente até ao montante global de  € 400.000,00 (alínea H) da matéria de facto).

 

Ora, o artigo 270.º-F do Código das Sociedades Comerciais, aplicável às sociedades unipessoais por quotas, e especificamente ao contrato do sócio com a sociedade unipessoal, dispõe o seguinte:

 

1- Os negócios jurídicos celebrados entre o sócio único e a sociedade devem servir a prossecução do objecto da sociedade.

2 - Os negócios jurídicos entre o sócio único e a sociedade obedecem à forma legalmente prescrita e, em todos os casos, devem observar a forma escrita.

3 - Os documentos de que constam os negócios jurídicos celebrados pelo sócio único e a sociedade devem ser patenteados conjuntamente com o relatório de gestão e os documentos de prestação de contas; qualquer interessado pode, a todo o tempo, consultá-los na sede da sociedade.

4 - A violação do disposto nos números anteriores implica a nulidade dos negócios jurídicos celebrados e responsabiliza ilimitadamente o sócio.

 

Como resulta do preceito, os negócios jurídicos celebrados entre o sócio único e a sociedade devem servir a prossecução do objecto da sociedade. E, tendo a sociedade como objecto a fabricação e comercialização de artigos plásticos e moldes, não se vê em que termos é que é a concessão de empréstimo ao sócio possa relacionar-se com o objecto social, tanto mais que, nos termos do clausulado contratual, os empréstimos são concedidos nos montantes e em datas que o segundo contraente (sócio gerente) indicar e restituídos quando a primeira contraente (sociedade) o exigir, o que significa, na prática, que o reembolso apenas será efectuado quando assim for decidido pelo mutuário na qualidade de representante da sociedade.

 

Acresce que os negócios jurídicos entre o sócio único e a sociedade obedecem à forma legalmente prescrita e, por conseguinte, quando se tratar de contrato de mútuo de valor superior a € 25.000,00, não podem deixar de observar a forma estabelecida pelo artigo 1143.º do Código Civil, ou seja, a escritura pública ou o documento particular autenticado.

 

As limitações à possibilidade de celebração de contratos entre o sócio e a sociedade unipessoal também se compreendem, porquanto a sociedade unipessoal é constituída por um único sócio, que é o titular da totalidade do capital social, e é o sócio único que exerce as competências das assembleias gerais, podendo nomear o gerente (artigos 270.º-A e 270.º- E, do Código das Sociedades Comerciais).

 

Importa ainda reter que a nulidade do negócio jurídico é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal (artigo 286.º do Código Civil).

 

Havendo de ser tido como nulo o contrato de mútuo, por efeito da violação do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 270.º-F do Código das Sociedades Comerciais, este último interpretado em conjugação com o artigo 1143.º do Código Civil, não pode considerar-se verificada a ilisão da presunção legal do artigo 6.º, n.º 4, do Código do IRS, e, assim sendo, entende-se que os montantes em causa devem ser tidos como adiantamentos por conta dos lucros e tributáveis em IRS como rendimentos de capitais.

 

O pedido arbitral mostra-se, pois, ser improcedente, não havendo lugar à declaração de ilegalidade das liquidações adicionais referentes a retenção na fonte, bem como dos correspondentes juros compensatórios .

 

III – Decisão

Termos em que se decide julgar totalmente improcedente o pedido arbitral.

 

Valor da causa

 

A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 90.447,56, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.

 

Custas

 

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 2.754,00, que fica a cargo da Requerente.

 

Notifique.

 

Lisboa, 28 de Outubro de 2019

  

 

O Presidente do Tribunal Arbitral

Carlos Fernandes Cadilha

 

O Árbitro vogal

José Rodrigo de Castro

 

O Árbitro vogal

Ricardo Marques Candeias