Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 114/2017-T
Data da decisão: 2017-09-20  IRS  
Valor do pedido: € 9.547,00
Tema: IRS – Mudança do regime de tributação - Inclusão no regime simplificado - Competência
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DECISÃO ARBITRAL

 

1. RELATÓRIO

 

  1. No dia 14 de Fevereiro de 2017, A… e B…, respectivamente, Contribuintes n.ºs … e …, apresentaram pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (de ora em diante, abreviadamente, designado RJAT), no qual solicitaram a declaração de ilegalidade do acto tributário de liquidação do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) n.º 2015 …, por referência ao ano de 2014, no valor de € 9.547,00, bem como da decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º …2016… deduzida em relação à mesma. 

  

  1. Pedem ainda os Requerentes, a restituição da totalidade do imposto pago acrescido dos juros indemnizatórios, nos termos dos artigos 43.º e 100.º da LGT.

 

  1. Os Requerentes não procederam à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou a signatária como árbitro, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

  1. As partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar
  2. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído em 20-04-2017.

 

  1. No dia 05-06-2017, a Autoridade Tributária, doravante designada de Requerida ou AT, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por excepção e por impugnação, tendo juntado o Processo Administrativo (PA) aos autos.

 

  1. O Tribunal notificou os Requerentes para se pronunciarem sobre a invocada excepção, o que estes fizeram por requerimento de 09-06-2017.

 

  1. Atendendo a que, no caso, não se verificava qualquer das finalidades que legalmente lhe estão cometidas, ao abrigo do disposto nos art.ºs 16.º/c) e 29.º/2 do RJAT, bem como dos princípios da economia processual e da proibição da prática de actos inúteis, em 16-01-2017 foi dispensada a realização da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT.

 

  1. Notificadas para, querendo, apresentarem alegações as Partes fizeram-no sustentando e mantendo as suas posições iniciais.

 

 

2. Objecto dos autos

2.1 Posição dos Requerentes

 

Os Requerentes alegam, em síntese, o seguinte:

  1. Que, o Requerente marido exerce a actividade de revisor oficial de contas desde 1989, estando enquadrado na Categoria B do IRS e no regime geral de contabilidade organizada desde 2001 (data do início da vigência da reforma da tributação) até 2013, ininterruptamente, como aliás resulta do seu cadastro;
  2. Em 2013 iniciou-se o terceiro ciclo de 3 anos de permanência no regime de contabilidade organizada, o qual cessaria em 2015;
  3. O requerente foi enquadrado pela AT no regime simplificado no triénio 2014/2015, oficiosamente e sem que lhe tenha sido dado previamente conhecimento, com fundamento no facto de, no ano de 2013, o requerente marido ter auferido rendimentos ilíquidos em montante inferior a € 200.000,00;
  4. Sucede que, a cessação dos ciclos de 3 anos prevista na lei depende da manifestação de vontade do contribuinte nesse sentido, ademais, em 2013 o limite prevenido no artigo 28.º do CIRS era de € 150.000,00;
  5. A liquidação de IRS é ilegal por errada quantificação dos rendimentos da categoria B.

 

2.2. Posição da Requerida

 

Em resposta ao pedido do Requerente a AT:

  1. Por excepção, invoca a incompetência absoluta do Tribunal Arbitral em razão da matéria, por entender que o pedido de decisão arbitral se reconduz à declaração da ilegalidade da decisão da AT que enquadrou o Requerente no regime simplificado de tributação, o qual não se enquadra nos actos de fixação da matéria tributável e, consequentemente, está fora do âmbito da jurisdição tributária.

 

  1. Por impugnação, alega ainda o seguinte:
  1. Aos Contribuintes abrangidos pelo regime da contabilidade organizada, por imposição legal, não se aplica o período mínimo de permanência de 3 anos;
  2. O Contribuinte marido ficou integrado no regime da contabilidade organizada, por imposição legal, em 2001, uma vez que os seus rendimentos ultrapassaram, no período de tributação anterior, o limite legal previsto no n.º 2 do artigo 28.º do CIRS, na redacção à data dos factos;
  3. Tendo o Contribuinte marido, no ano de 2013, auferido rendimentos ilíquidos no valor de € 153.668,20, foi assim apurado um rendimento anual ilíquido inferior ao estabelecido pelo n.º 2 do artigo 28.º (€ 200.000,00) com a redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro (Orçamento de Estado para 2014);
  4. Não tendo o Contribuinte marido exercido a opção de tributação pelo regime da contabilidade organizada até ao mês de Março de 2104, o mesmo ficou abrangido pelo regime simplificado de tributação quanto a este ano.

 

3. Saneamento

 

Invocada a excepção de incompetência material do Tribunal Arbitral, impõe-se apreciar a mesma previamente.

 

A Requerida invoca que o pedido de decisão arbitral formulado pelos Requerentes não tem como fundamento qualquer ilegalidade do acto tributário de liquidação ou de fixação da matéria tributável, mas que se reconduz à declaração da ilegalidade da decisão da AT que enquadrou o Requerente no regime simplificado de tributação, vício a montante da liquidação o qual, consequentemente, está fora do âmbito da jurisdição tributária

 

Ora, os Requerentes impugnaram expressamente o acto de liquidação de IRS referente ao ano de 2014, requerendo, a final, a sua anulação com a consequente restituição do imposto pago, bem assim como a condenação da AT ao pagamento de juros indemnizatórios.

 

Donde, o acto sindicado pelos Requerentes, e objecto mediato da presente acção arbitral é o acto de liquidação de IRS n.º 2015 … e, subsidiariamente, a declaração de ilegalidade da decisão que indeferiu a reclamação graciosa (RG) deduzida pelos Requerentes.[1]

 

De acordo com o disposto no artigo 2.º, n.º 1 alínea a) do RJAT, os tribunais arbitrais têm competência para declarar a “(…) ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta.”, pelo que o Tribunal tem competência para apreciar a legalidade do acto de liquidação sindicado.

 

Quanto ao acto interlocutório (enquadramento cadastral) que ocorreu em data prévia à liquidação, do princípio da impugnação unitária consagrado no artigo 54.º do CPPT, aplicável ex vi, artigo 29.º do RJAT, resulta que qualquer ilegalidade cometida em data anterior à liquidação pode, e deve ser invocada aquando da impugnação da liquidação. O acto interlocutório não é passível de impugnação autónoma, até porque ele, em si mesmo, não é lesivo, por não ser susceptível de provocar, por si, efeitos jurídicos negativos imediatos na esfera jurídica da impugnante.

 

No caso em apreço, os Requerentes impugnam o ato de liquidação, o qual teve por base, entre outros pressupostos, o enquadramento do Requerente no regime simplificado do IRS. E fazem-no atacando precisamente a legalidade desse ato de enquadramento. A petição dos Requerentes está, portanto de acordo com o princípio da impugnação unitária do ato tributário, previsto no artigo 54º do CPPT e aplicável ao presente processo por força da al. a) do n. 1 do art.º 29º do RJAT.

 

Este entendimento é acolhido, entre outros, no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo datado de 13-11-2013, proferido no âmbito do processo n.º 0897/13 “(…)O artigo 54.º do CPPT consagra o denominado princípio da impugnação unitária, segundo o qual só é possível, em princípio, impugnar o acto final do procedimento, e não já os actos interlocutórios ou procedimentais, porquanto só o acto final atinge ou lesa, imediatamente, a esfera jurídica do contribuinte, fixando a posição da administração tributária perante este e definido os seus direitos e obrigações. E dele resulta, ainda, que no contencioso tributário, ao contrário do que acontece actualmente no contencioso administrativo, o critério da impugnabilidade dos actos é o da sua lesividade imediata e actual (e não meramente potencial), ou, por outras palavras, depende da produção de efeitos negativos imediatos na esfera jurídica do contribuinte, pela violação dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos. Deste modo, os actos interlocutórios do procedimento tributário, sendo meramente instrumentais ou preparatórios da decisão final, ainda que ilegais, não são, em princípio, imediatamente lesivos dos interesses do contribuinte, pois a sua situação tributária não fica com eles definida ou resolvida. Na verdade, sendo o procedimento de liquidação tributária constituído por uma série de actos interligados e dirigidos à concretização de um resultado jurídico final, ou seja, à liquidação do montante do imposto que o contribuinte tem de entregar nos cofres do Estado, compreende-se que só o acto final (liquidação em sentido estrito) seja susceptível de afectar, de forma objectiva e imediata, a esfera jurídica do contribuinte, sendo esse, por conseguinte, o acto lesivo e contenciosamente impugnável.[2]

 

Neste mesmo sentido já foi decidido em sede de jurisdição arbitral nos processos 266/2013-T e 253/2013-T.

 

Por último, importa esclarecer que a decisão arbitral n.º 118/2012-T por assentar em matéria de facto diversa, nomeadamente porque era pedido ao tribunal a apreciação da legalidade de um acto de fixação de matéria colectável e, à data da interposição desse pedido de pronúncia arbitral, não havia qualquer acto de liquidação de imposto, não tem aplicação aos presentes autos.

 

Atento o acima expendido, resulta inequívoco que a ilegalidade do enquadramento cadastral só pode ser sindicada judicialmente em sede de impugnação judicial ou acção arbitral, na qual foi requerida a apreciação da legalidade da liquidação de IRS, razão pela qual o Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5º. e 6.º, n.º 1, do RJAT.

O processo é próprio.

 

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011 de 22 de Março.

 

Inexistem outras questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da acção de que cumpra conhecer.

 

Tudo visto, cumpre proferir:

 

 

4. Decisão

4.1 Matéria de Facto

4.1.a. Factos dados como provados

 

Com relevância para a decisão de mérito, o Tribunal considera provada a seguinte factualidade:

  1. O Requerente marido exerce a actividade de revisor oficial de contas estando enquadrado na categoria B do IRS no regime geral de tributação – contabilidade organizada - desde 2001, por imposição legal (cf. Artigo 2.º do Pedido dos Requerentes e artigo 32.º da Resposta da AT)
  2. Em 2013 o Requerente marido estava enquadrado no regime de contabilidade organizada. (cf. Enquadramento do contribuinte e artigo 38.º da Resposta da AT).
  3. No ano de 2013, o Requerente marido auferiu rendimentos, ilíquidos, no montante de € 153.686,20. (Cf. Doc. n.º 1 junto pelos Requerentes)
  4. Os Requerentes entregaram declaração de rendimentos Modelo 3, referente ao ano de 2014, mas a mesma não foi aceite por ter acusado erro central (C70) (cf. artigo 4.º do pedido e informação n.º …/15 da Direcção de Serviços do IRS).
  5. Os requerentes deram entrada de requerimento no serviço de finanças do Porto contestando o erro central C70, e solicitando o enquadramento na contabilidade organizada, cuja pretensão foi indeferida. (Cf. informação n.º 2814/15 da Direcção de Serviços do IRS, pag. 25 do PA)
  6. Em 22-10-2015 deram entrada de recurso hierárquico na Direcção de Finanças do Porto com os mesmos fundamentos, o qual foi indeferido com fundamento nos argumentos expendidos na informação n.º …/15 da Direcção de Serviços do IRS. (Cf. Documento n.º 2 junto aos autos pelos Requerentes)
  7. Na pendência do recurso hierárquico os Requerentes foram notificados para apresentar a declaração de rendimentos Mod. 3 de IRS relativa a 2014, sob pena de serem considerados contribuintes faltosos, o que os requerentes fizeram no prazo de 30 dias contados da notificação (Cf. Reclamação graciosa e doc. n.º 1 junto com a mesma)
  8. Relativamente ao exercício de 2014, os serviços enquadraram o contribuinte no regime simplificado de tributação, por entenderem que o regime da contabilidade organizada por exigência legal tinha a validade de apenas 1 ano e no ano de 2013 foi apurado um montante anual de rendimentos inferior a € 200.000,00. (cf. Pag 24 do PA, informação n.º …/15 da Direcção de Serviços do IRS)
  9. Os requerentes foram notificados da liquidação n.º 2005…, tendo pago a quantia de € 9.547,00 no dia 11-01-2016. (cf. Liquidação de IRS e comprovativo)
  10. Em 31 de Maio de 2016 apresentaram reclamação graciosa da liquidação referida no número precedente. (Cf. PA junto aos autos)
  11. A notificação do indeferimento da reclamação graciosa foi notificada pelo ofício n.º…, datada de 04-11-2016. (Cf. PA junto aos autos pag. ilegível)

 

4.1.b. Factos dados como não provados

Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.

 

4.2. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes e a prova documental junta aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, de resto não contestados pelas partes.

 

 

 

5. Questão decidenda

 

A questão a apreciar nos presentes autos consiste em saber se a AT pode alterar oficiosamente o regime de tributação, em sede de IRS, do Contribuinte enquadrado no regime de contabilidade organizada antes de decorrido o período mínimo de permanência, em virtude de, no exercício anterior, aquele ter obtido um rendimento anual ilíquido inferior ao previsto no artigo 28.º n.º 2 do CIRS, passando a enquadrá-lo no regime simplificado.

 

6. Do Direito

Da Liquidação de IRS referente ao ano de 2014

A questão a decidir prende-se com o regime de tributação dos rendimentos da categoria B em sede de IRS, mais concretamente com a interpretação do artigo 28.º do CIRS, nomeadamente com o período mínimo de permanência no regime de contabilidade organizada e condições de cessação desse regime.

À data dos factos em análise, rendimentos auferidos no ano de 2014, o artigo 28.º do CIRS, na parte em que nos interessa, tinha a seguinte redacção:

Artigo 28.º
Formas de determinação dos rendimentos empresariais e profissionais

1 - A determinação dos rendimentos empresariais e profissionais, salvo no caso da imputação prevista no artigo 20.º, faz-se:

a) Com base na aplicação das regras decorrentes do regime simplificado;

b) Com base na contabilidade.

2 - Ficam abrangidos pelo regime simplificado os sujeitos passivos que, no exercício da sua actividade, não tenham ultrapassado no período de tributação imediatamente anterior um montante anual ilíquido de rendimentos desta categoria de (euro) 200 000. (redacção da Lei n.º 83-C/2013, de 31.12 na anterior redacção o limite era de € 150.000 )

3 - Os sujeitos passivos abrangidos pelo regime simplificado podem optar pela determinação dos rendimentos com base na contabilidade. (redacção da Lei n.º 211/2005, de 07.12)

4 - A opção a que se refere o número anterior deve ser formulada pelos sujeitos passivos: 

a) Na declaração de início de actividade; (redacção da Lei n.º 211/2005, de 07.12)

b) Até ao fim do mês de Março do ano em que pretendem alterar a forma de determinação do rendimento, mediante a apresentação de declaração de alterações. (redacção da Lei n.º 53-A/2006, de 29.12)

5 - O período mínimo de permanência em qualquer dos regimes a que se refere o n.º 1 é de três anos, prorrogável por iguais períodos, excepto se o sujeito passivo comunicar, nos termos da alínea b) do número anterior, a alteração do regime pelo qual se encontra abrangido. (redacção da Lei n.º 53-A/2006, de 29.12)

6 - A aplicação do regime simplificado cessa apenas quando o montante a que se refere o n.º 2 seja ultrapassado em dois períodos de tributação consecutivos ou, quando o seja num único exercício, em montante superior a 25 %, caso em que a tributação pelo regime de contabilidade organizada se faz a partir do período de tributação seguinte ao da verificação de qualquer desses factos. (redacção da Lei n.º 3-B/2010, de 28.04)

(…) 

Os Requerentes impugnaram a liquidação do exercício de 2014, por erro nos pressupostos de direito em que a mesma assentou e violação de lei, uma vez que o rendimento auferido pelo Requerente marido, no ano de 2014, devia ter sido apurado nos termos da contabilidade organizada e não no do regime simplificado.

Pois, na verdade, o Requerente marido encontrava-se enquadrado em tal regime de tributação desde 2001 e, a partir de 2007, o n.º 5 do artigo 28.º do CIRS, com a redacção introduzida pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, introduziu a permanência no regime de tributação, quer simplificado quer no de contabilidade organizada, por ciclos de 3 anos, sucessivamente prorrogáveis, excepto se o contribuinte comunicasse a sua vontade de o alterar.

Assim, em 2007 iniciou-se um ciclo de 3 anos de permanência no regime de contabilidade organizada, o qual se foi prorrogando, tendo-se iniciado um novo ciclo de 3 anos em 2013 que se manteria até 2015, dado que o Contribuinte não manifestou vontade de o alterar.

Entende a AT que, o regime de prorrogação automática de ciclos de 3 anos, apenas tem aplicação aos Contribuintes que se encontrem enquadrados no regime da contabilidade organizada por opção, mas não nos casos em que tal enquadramento resulta de imposição legal.

Partindo desta premissa, a AT alterou oficiosamente o regime de enquadramento do Contribuinte marido, porquanto no ano de 2013, este obteve um rendimento anual ilíquido inferior ao limite estabelecido no n.º 2 do artigo 28.º do CIRS (€ 200.000,00), sem que tenha exercido a opção pelo regime de contabilidade organizada até Março de 2014, tendo, por isso, ficado abrangido pelo regime simplificado de tributação no ano de 2014.

Para melhor sustentar a sua posição, invoca a AT o teor da circular n.º 5/2007, de 13-03-2007, cujo teor, como é consabido, não vincula nem os contribuintes nem os Tribunais. mas apenas os respectivos serviços.

Tal entendimento é perfilhado pela doutrina segundo a qual “(…) os despachos interpretativos, as instruções e as circulares dimanadas da Administração Tributária para esclarecer ou uniformizar o entendimento da lei e o procedimento dos serviços tendo de peculiar o facto de desenvolverem a sua eficácia exclusivamente na ordem interna da Administração de onde provêm. Não vinculam nem os contribuintes, nem os tribunais, mas são meras resoluções Administrativas (…)” (Cfr. Alberto Xavier, Manual de Direito Fiscal, I, Lisboa, 1974, pags. 193 e 140).[3]

No demais, vejamos.

O regime simplificado de tributação previsto no artigo 28.º do CIRS constitui um regime não obrigatório, que depende de opção do sujeito passivo[4].

Referindo-se à natureza jurídica deste regime e às consequências pela sua opção, o Professor Saldanha Sanches salienta que este regime simplificado “(…) tem sempre como pressuposto uma acção do contribuinte que renuncia ao seu direito subjectivo de ser tributado com base na contabilidade. E que, procedendo a uma estimativa de custos que vai suportar e declarar, opta pela dedução standardizada. (…)”[5]

Ademais, com a alteração introduzida no n.º 5 do artigo 28.º do CIRS pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, o período mínimo de permanência em qualquer dos regimes a que se refere o n.º 1 é de três anos, prorrogável por iguais períodos, excepto se o sujeito passivo comunicar, nos termos da alínea b) do número anterior, a alteração do regime pelo qual se encontra abrangido. (sublinhado nosso)

Sendo certo que, o artigo 28.º do CIRS não distingue se tal período de permanência tem aplicação apenas nas situações em que o Contribuinte manifesta vontade de ser tributado segundo o regime de contabilidade organizada, nem tão pouco prevê qualquer regime de caducidade nas situações em que, não tendo tal enquadramento resultado da vontade do contribuinte, se deixam de verificar os pressupostos que levaram ao seu enquadramento no mesmo.

Respinga dos ensinamentos do Prof. José Xavier de Bastos que: “Com a nova redacção do n.º 5 do art.º 28º e a consequente fixação do período de permanência em qualquer dos regimes, de três anos, fechou-se assim a uma fonte de dificuldades para os contribuintes que decidem optar pelo regime de contabilidade. Sabem agora que a opção é válida por três anos, prorrogáveis por iguais períodos e que só se pretenderem a alteração do seu regime (no caso, obviamente de preencher para tanto as condições) é que são obrigados a comunica-lo através de declaração de alterações.” [6]

Assim, tendo-se iniciado um novo ciclo de permanência no regime de contabilidade organizada em 2013, e não tendo a contribuinte optado por essa alteração, nos termos da parte final do artigo 28.º n.º 5 do CIRS, é evidente que se prorrogou automaticamente, por igual período (3 anos) até ao ano de 2015, pelo que, no exercício de 2014 o Requerente marido estava enquadrado no sobredito regime.

Resta apurar se, tendo o Requerente marido auferido um rendimento ilíquido inferior a € 200.000,00 por referência ao exercício de 2013, lhe era exigido que comunicasse até Março de 2014 a opção pelo regime de contabilidade organizada, sob pena de ser oficiosamente enquadrado no regime simplificado.

Antes de mais, importa esclarecer que o limite prevenido no n.º do artigo 28.º do CIRS em vigor no ano de 2013 era de € 150.000,00[7], tendo o Requerente marido, nesse ano, auferido um rendimento ilíquido de € 153.686,20, mantendo-se assim no regime da contabilidade organizada.

Ainda que se entenda que com a Lei n.º 83-C/2013, Orçamento de Estado para o ano de 2014, passaram a estar abrangidos pelo regime simplificado os sujeitos passivos que no período anterior (2013) auferiram rendimentos inferiores a € 200.000,00, o legislador não previu qualquer situação que faça cessar o regime de contabilidade organizada durante o ciclo de três anos, independentemente de tal enquadramento resultar de opção do contribuinte ou da aplicação da lei.

Nem resulta da lei qualquer imposição sobre o Contribuinte - que aufira rendimentos de valor inferior ao estabelecido no artigo 28.º n.º 2 do CIRS - de manifestar a sua vontade no sentido de se manter no regime da contabilidade organizada, como pretende a AT.

Aliás, é a própria lei que, de modo explícito, no n.º 4 do artigo 28.º do CIRS, dispõe que a opção do sujeito passivo pelo regime de contabilidade organizada deve ser efectuado em duas circunstâncias:

  1. Na declaração de início de actividade;
  2. Até ao fim do mês de março do ano em que pretendem alterar a forma de determinação do rendimento.

Não há, pois, qualquer correspondência na letra da lei para a interpretação defendida pela AT, segundo a qual, uma vez excedido o volume de vendas previsto no n.º 2 do artigo 28.º CIRS, caduca a sua tributação de acordo com o regime da contabilidade organizada.

Sendo certo que, na interpretação das normas se deve presumir que o legislador se soube exprimir o seu pensamento e consagrou a solução mais acertada, conforme decorre do disposto no artigo 9.º, n.º 2 do CC, ex vi artigo n.º 1 do artigo 11 e artigo 2.º da LGT.

Ademais, não contendo o artigo 28.º n.º 2 qualquer distinção sobre a manutenção em determinado enquadramento, não pode a AT fazer tal distinção, tal como resulta do brocardo “bi lex non distinguir, nec... nos distinguere debemus, ou seja, onde a lei não distingue, ao intérprete não é dado fazê-lo.

Não tendo o legislador previsto qualquer situação que faça cessar o regime da contabilidade organizada durante o ciclo de três anos, deve o intérprete concluir, de acordo com as regras da interpretação, que a sua inexistência é a mais acertada.

E ainda que se entendesse existir uma lacuna, o que não se concede, ela não seria susceptível de integração analógica, por tal estar expressamente vedado pelo artigo 11.º, n.º 4 da LGT.

Pelo que, não tendo o Requerente marido comunicado qualquer alteração ao seu regime de tributação, fez uma opção clara e inequívoca pela manutenção do regime de tributação em que estava enquadrado, não podendo a AT proceder à sua alteração, oficiosamente, quando o Contribuinte não atinja rendimentos em montante superior ao previsto no artigo 28.º do CIRS.

Face a tudo quanto acima fica expendido, carece de suporte legal a interpretação que a recorrida faz do n.º 1, do n.º 2 e do n.º 4 do artigo 28.º do CIRS, a qual visa impor sobre o contribuinte um ónus, relativo a uma obrigação tributária acessória, que a lei não prevê, e que é mesmo contrária ao seu sentido literal, violadora do princípio da legalidade tributária, consagrado no artigo 103.º n.ºs 2 e 3 da CRP e no artigo 8.º, n.ºs 1 e 2 da LGT.

Pelo exposto, entende-se que a liquidação de IRS n.º 2015 …, referente ao ano de 2014, e a decisão de indeferimento proferida no âmbito da Reclamação Graciosa deduzida contra a mesma, enfermam de vício de violação de lei, por errada interpretação do artigo 28.º do CIRS e, em consequência, devem tais actos ser anulados.

Dos Juros Indemnizatórios

 

O direito a juros indemnizatórios enquanto garantia dos contribuintes encontra-se previsto no artigo 43.º da LGT e tem, na sua origem, o facto de o contribuinte ter pago indevidamente impostos em virtude de erros imputáveis aos serviços ou o não cumprimento por estes, de determinados prazos legais.

 

Neste particular não releva o tipo de erro (se foi de facto ou de direito) nem o grau de culpa, até porque está em causa uma responsabilização objectiva dos serviços[8].

 

Tem sido considerado na inúmera jurisprudência do STA em matéria de juros indemnizatórios que, a expressão utilizada no artigo 43.º da LGT, “erro” e não “vício” ou “ilegalidade” para aludir aos factos que podem servir de base à atribuição de juros, significa que o legislador teve em mente o erro sobre os pressupostos de facto e o erro sobre os pressupostos de direito.[9]

Os requisitos do direito a juros indemnizatórios previsto no artigo 43.º, n.º1, da LGT, são os seguintes:

  1. Que haja um erro num acto de liquidação de um tributo;
  2. Que o erro seja imputável aos serviços;
  3. Que a existência desse erro seja determinada em processo de reclamação graciosa ou de impugnação judicial;
  4. Que desse erro tenha resultado o pagamento de uma dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.[10]

A anulação da liquidação de IRS objecto dos presentes autos arbitrais fica a dever-se a uma incorrecta interpretação e aplicação da Lei, a qual conduz à consequente anulação do acto tributário que o tenha por base, enquadrando-se no erro sobre os pressupostos de direito, que funciona como requisito do direito a juros indemnizatórios consagrado no examinado artigo 43.º, nº.1 da LGT.

Nestes termos, deve considerar-se que se encontram reunidos os pressupostos de condenação da Fazenda Pública no pagamento de juros indemnizatórios aos Requerentes, em virtude da anulação da liquidação, dado estarem reunidos todos os pressupostos previstos no artigo 43.º, nº.1, da LGT.

Procede, pois, o pedido de juros indemnizatórios, que deverão ser contados, à taxa apurada, de harmonia com o disposto no artigo 43.º, n.º 4, da LGT, entre os dias em que foi efectuado o pagamento indevido até à data da emissão da correspondente nota de crédito.  

7. Questões de conhecimento prejudicado

Sendo de julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral por vício de violação de lei, que impede a prática de novo acto com o mesmo sentido, fica prejudicado, por ser inútil, o conhecimento das restantes questões suscitadas pelos Requerentes.[11]

8. Decisão

Nestes termos, em conformidade com o acima exposto, decide-se:

  1. Julgar procedente a declaração de ilegalidade do acto de liquidação de IRS n.º 2015 …, por erro nos pressupostos de direito em que a mesma assentou e, em consequência ordenar a sua anulação;

 

  1. Julgar procedente o pedido de restituição do imposto pago, bem como o de pagamento de juros indemnizatórios nos termos dos artigos 43.º e 100.º da LGT.

 

9. Valor da acção

Fixa-se em € 9.547,00 nos termos do disposto nos artigos 315.º do CPC, artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT bem assim como do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

10. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 918,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a suportar pela Requerida, uma vez que o pedido foi integralmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

Notifique-se.

 

Lisboa 20 de Setembro de 2017

 

O Árbitro

(Cristina Coisinha)

 

***

Texto elaborado em computador nos termos do disposto no artigo 131.º, n.º 5 do CPC, aplicável por remissão do artigo 29.º do RJAT.

A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.



[1] Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça proferidos no âmbito dos recursos n.ºs: 0793/14, de 03-06-2015, n.º 01942/13, de 18-06-2014, consultáveis in http://www.dgsi.pt

 

[2] Consultável em: http://www.gde.mj.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/ddcedae527b7acf580257c2900451f6d?OpenDocument&ExpandSection=1

[3] Neste sentido veja-se o Acórdão proferido pelo TCAS, a 08-02-2011, no âmbito do processo 0443/11, consultável em: www.dgsi.pt

[4] Vd, v.g. os Acórdãos do STA, de 17-03-2010, Processo n.º 56/10, de 04-11-2015 e de, 04-11-2015 processo n.º 0877/15, consultáveis em www.dgsi.pt

[5] In Fiscalidade 7/8, Julho/Outubro 2001, pag. 48

[6] In IRS Incidência Real e Determinação dos Rendimentos Líquidos, Coimbra Editora, 2007, pág. 181

[7] Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, Orçamento de Estado para 2010

[8] Rui Duarte Morais, in Manual de Procedimento e Processo Tributário, Edição de 2014, páginas 365 a 376

[9] Acórdãos proferidos nos recursos n.ºs 622/08, de 29.10.2008, 945/08, de 21.01.2009; 347/09 de 25.06.2009 e 665/09 de 04.11.2009.

[10] Cfr. Jorge Lopes de Sousa, CPPT Anotado e Comentado, I Volume, Áreas Editora, 6ª. Edição, 2011, pág.530).

[11] Artigo 24.º do RJAT n.ºs 1 e 4.