Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 115/2012-T
Data da decisão: 2013-02-05   Outros 
Valor do pedido: € 15.963,47
Tema: Direitos de importação – imputação da dívida aduaneira, competência do Tribunal Arbitral
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Processo arbitral n.º 115/2012-T

Direitos aduaneiros (direitos adicionais de importação)


 

Requerente

Requerida

Autoridade Tributária e Aduaneira (Alfândega Marítima de Lisboa)

 

 

1. Relatório

 

1.1. …, doravante “Requerente”, contribuinte número …, despachante oficial com domicílio profissional na Rua … Lisboa, e residência habitual na Avenida …Lisboa, vem, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante referido por Regime Jurídico da Arbitragem Tributária ou pelo acrónimo “RJAT”), requerer a constituição de tribunal arbitral para pronúncia arbitral sobre a (i) legalidade da imputação da dívida aduaneira objecto da liquidação a posteriori, praticada pelo Director da Alfândega Marítima de Lisboa, referente a direitos agrícolas adicionais de importação no valor de € 14.345,31 e respectivos juros de € 1.618,16, relativamente ao ano 2009.

 

O pedido de declaração de ilegalidade tem por objecto o acto de liquidação resultante do processo de cobrança a posteriori n.º …/2012, da Alfândega Marítima de Lisboa, na sequência das declarações aduaneiras (DAU) processadas por essa Alfândega sob os n.ºs 2009PT…, de 10 de Agosto de 2009, e 2009PT…, de 5 de Novembro de 2009, referentes à importação de mercadoria declarada pelo código pautal 0207 141000 (peitos de frango, sem osso).

 

O Requerente funda o seu pedido nos argumentos que infra se sintetizam:

 

  1. Considera que não ocorreu qualquer erro declarativo por parte da sociedade de Despachantes Oficiais de que é sócio-gerente e que interveio, como declarante, no processo de desembaraço aduaneiro. Não se verificando erro na declaração aduaneira não existe fundamento para imputar ao declarante [a dita sociedade de Despachantes Oficiais] responsabilidade por eventual lapso das autoridades aduaneiras e, muito menos, ao sócio da sociedade declarante, pois, no caso, a obrigação tributária não emerge nem da autoria da declaração, nem de vício desta.

 

O facto gerador da dívida adicional não é nenhum acto declarativo culposo do declarante. A existir algum erro, este é um erro administrativo na liquidação oficiosa dos direitos adicionais, imputável às autoridades aduaneiras, ocorrido a jusante da saída da mercadoria, que nada tem a ver com os termos da declaração.

 

As imposições que integram a dívida aduaneira liquidada foram pagas na data do seu vencimento. Com este pagamento a sociedade declarante viu serem-lhe liberadas as cauções prestadas e exonerou-se de toda e qualquer responsabilidade, dado que não se verificou acto ou omissão que impedisse a correcta liquidação de tudo o que era devido.

 

  1. Mesmo que a dívida aduaneira fosse imputável ao declarante este seria a sociedade de Despachantes Oficiais, com personalidade jurídica e património próprios, e não o Requerente, que é parte ilegítima na relação tributária.

 

  1. A liquidação impugnada viola o disposto no n.º 3 do artigo 44.º do Código Aduaneiro Comunitário (“CAC”), suscitando-se o eventual reenvio prejudicial junto do TJUE, caso o tribunal arbitral tenha dúvidas de que “ante a evidência de erro das autoridades aduaneiras, não pode ser imputada responsabilidade tributária ao declarante que cumpriu zelosamente as suas obrigações”.

 

1.2. De acordo com o artigo 6.º, n.º 1 do RJAT, o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa designou como árbitro único Alexandra Coelho Martins.

 

O tribunal arbitral foi constituído no CAAD, em 13 de Dezembro de 2012, conforme acta de constituição do tribunal arbitral.

 

1.3. A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta na qual suscita a questão prévia de incompetência do tribunal arbitral em razão da matéria, uma vez que a pretensão deduzida se refere a direitos aduaneiros sobre a importação, expressamente excluídos da jurisdição dos tribunais arbitrais, em conformidade com a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março (“Portaria de Vinculação”).

 

Acrescenta que não procede o argumento segundo o qual a questão controvertida não se reconduz à apreciação da legalidade dos direitos aduaneiros de importação prendendo-se exclusivamente com a determinação de quem é o devedor da dívida aduaneira liquidada (se o Despachante Oficial [o Requerente] ou a Sociedade de Despachantes Oficiais a que pertence).

 

Efectivamente, mesmo que essa seja a única questão decidenda, em última análise, está sempre em discussão a legalidade do acto de liquidação de direitos aduaneiros adicionais, na perspectiva de um alegado erro sobre os pressupostos de direito, no que respeita à errada interpretação ou aplicação das normas de incidência tributária.

 

À cautela e sem conceder, a Autoridade Tributária e Aduaneira sustenta a legalidade da liquidação a posteriori dos direitos agrícolas adicionais, quer relativamente aos pressupostos substantivos da liquidação, quer no tocante à legitimidade passiva do Requerente.

 

1.4. Em 17 de Janeiro de 2013, realizou-se a primeira reunião do Tribunal Arbitral, nos termos e com os objectivos previstos no artigo 18.º do RJAT, incluindo o debate contraditório sobre a excepção de incompetência material invocada pela Autoridade Tributária e Aduaneira, no qual ambas as partes mantiveram a sua posição.

 

1.5. Em face do exposto, constitui questão prévia a decidir a da incompetência absoluta deste tribunal em razão da matéria, que, de imediato, se aprecia.

 

 

2. Questão prévia: incompetência absoluta em razão da matéria

 

A determinação da competência material dos tribunais é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria, conforme se extrai da leitura conjugada do disposto nos artigos 16.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (“CPTA”) e 101.º do Código de Processo Civil (“CPC”), subsidiariamente aplicáveis por remissão do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.

 

Neste quadro, atendendo a que a procedência da excepção suscitada, a verificar-se, obsta ao conhecimento das demais questões em conflito, importa delimitar o âmbito de competência da jurisdição arbitral tributária e aferir se esta abrange, ou não, as imposições aduaneiras.

 

A questão da incompetência material dos tribunais arbitrais tem sido abordada em diversos processos arbitrais julgados no âmbito do CAAD, ainda que relativamente a outros tributos não aduaneiros. Referimo-nos, designadamente, aos processos n.ºs 48/2012, 73/2012 e 76/2012, cujas decisões arbitrais proferidas em 06.07.2012, 23.10.2012 e 29.10.2012, respectivamente, são acessíveis por via electrónica no endereço www.caad.org.pt. e que, com as adaptações necessárias à matéria aduaneira, aqui acompanhamos.

 

O n.º 1 do artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, autorizou o Governo «a legislar no sentido de instituir a arbitragem como forma alternativa de resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária», devendo, segundo o seu n.º 2, “constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária».

 

O Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, concretizou a mencionada autorização legislativa e “instituiu a arbitragem tributária limitada a determinadas matérias, arroladas no seu art. 2.º” fazendo “depender a vinculação da administração tributária de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça” (vide a fundamentação do acórdão arbitral proferido no Processo n.º 76/2012 acima referido).

 

O âmbito da jurisdição arbitral tributária ficou, assim, delimitado, em primeira linha, pelo disposto no artigo 2.º do RJAT que enuncia, no seu n.º 1, os critérios de repartição material, abrangendo a apreciação de pretensões que se dirijam à declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos (alínea a)).

 

Os direitos aduaneiros inserem-se inequivocamente no conceito de tributos, como reconhece o n.º 2 do artigo 3.º da LGT: “Os tributos compreendem os impostos, incluindo os aduaneiros e especiais, e outras espécies tributárias criadas por lei, designadamente as taxas e demais contribuições financeiras a favor de entidades públicas”, pelo que, à face do RJAT, não estariam, à partida, excluídos da jurisdição arbitral.

 

Através da Portaria de Vinculação (Portaria n.º 112-A/2011, de 20 de Abril), o Governo, pelos Ministros de Estado e das Finanças e Justiça, vinculou os serviços da Direcção-Geral de Impostos e da Direcção-Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, sendo que a estes serviços corresponde, presentemente, a Autoridade Tributária e Aduaneira, nos termos do Decreto-Lei n.º 118/2011, de 15 de Dezembro, que aprova a estrutura orgânica desta Autoridade, resultante da fusão de diversos organismos.

 

Nesta Portaria, estabelecem-se condições adicionais e limites de vinculação tendo em conta a especificidade das matérias e o valor em causa.

 

Dispõe o artigo 2.º da Portaria de Vinculação:

 

Artigo 2.º

Objecto da vinculação

Os serviços e organismos referidos no artigo anterior vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto -Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com excepção das seguintes:

 

a) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário;

b) Pretensões relativas a actos de determinação da matéria colectável e actos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indirectos, incluindo decisão do procedimento de revisão;

c) Pretensões relativas a direitos aduaneiros sobre a importação e demais impostos indirectos que incidam sobre mercadorias sujeitas a direitos de importação; e

d) Pretensões relativas à classificação pautal, origem e valor aduaneiro das mercadorias e a contingentes pautais, ou cuja resolução dependa de análise laboratorial ou de diligências a efectuar por outro Estado membro no âmbito da cooperação administrativa em matéria aduaneira.”

 

E, como salientado no Acórdão arbitral proferido no Processo n.º 48/2012: “Em face desta segunda limitação da competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, a resolução da questão da competência depende essencialmente dos termos desta vinculação, pois, mesmo que se esteja perante uma situação enquadrável naquele art. 2.º do RJAT, se ela não estiver abrangida pela vinculação estará afastada a possibilidade de o litígio ser jurisdicionalmente decidido por este Tribunal Arbitral.”

 

É o que sucede com a pretensão material deduzida pelo Requerente, objecto do presente processo arbitral, que, apesar de ter cabimento na alínea a) do nº 1 do artigo 2.º RJAT, depois se enquadra rigorosamente na hipótese de exclusão constante da alínea c) do artigo 2.º da Portaria de Vinculação.

 

Com efeito, a matéria em discussão prende-se com a declaração de ilegalidade da liquidação de direitos de importação adicionais (e juros inerentes), previstos no Regulamento (CE) n.º 1484/95, da Comissão, de 28 de Junho de 1995, devidos pela introdução em livre prática de mercadorias do sector da carne de aves de capoeira.

 

Tais direitos consubstanciam, sem margem para dúvidas, imposições pecuniárias aduaneiras incidentes sobre mercadorias importadas e, por conseguinte, compreendidas na previsão normativa da alínea c) do artigo 2.º da Portaria de Vinculação que excepciona da competência dos tribunais arbitrais as pretensões relativas a direitos aduaneiros sobre a importação.

 

De notar que a apreciação da legalidade da liquidação dos referidos direitos compreende todas as vertentes da incidência: objectiva, subjectiva, espacial e temporal. Quer isto dizer que a questão da imputação dos direitos de importação a um determinado sujeito passivo, não é mais do que a aplicação de uma norma de incidência subjectiva relativa a direitos aduaneiros.

 

Dito de outro modo, estando em causa a determinação de quem é o sujeito passivo da dívida aduaneira liquidada, tal questão continua a configurar matéria relativa à legalidade do acto de liquidação dos direitos aduaneiros, excluídos da jurisdição arbitral pela Portaria de Vinculação.

 

E se se entender que o argumento de ilegitimidade invocado pelo Requerente se coloca noutro plano que não seja o da invalidade (por ilegalidade) do acto de liquidação, então, o conhecimento dessa matéria está de igual modo subtraído à jurisdição arbitral, desde logo, pela delimitação do objecto do processo arbitral tributário, no recorte efectuado pela lei de autorização legislativa (alínea a) do n.º 4 do artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril).

 

Neste domínio, o processo arbitral circunscreve-se aos “actos de liquidação de tributos, incluindo os de autoliquidação, de retenção na fonte e os pagamentos por conta, de fixação da matéria tributável, quando não dêem lugar a liquidação, de indeferimento total ou parcial de reclamações graciosas ou de pedidos de revisão de actos tributários, os actos administrativos que comportem a apreciação da legalidade de actos de liquidação, os actos de fixação de valores patrimoniais e os direitos ou interesses legítimos em matéria tributáriaos actos de liquidação de tributos, incluindo os de autoliquidação, de retenção na fonte e os pagamentos por conta, de fixação da matéria tributável, quando não dêem lugar a liquidação, de indeferimento total ou parcial de reclamações graciosas ou de pedidos de revisão de actos tributários, os actos administrativos que comportem a apreciação da legalidade de actos de liquidação, os actos de fixação de valores patrimoniais e os direitos ou interesses legítimos em matéria tributária”.

 

Esta delimitação foi, aliás, seguida pelo RJAT, que, no segmento que nos ocupa, fixa a competência dos tribunais arbitrais por referência à “declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta” (alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º), a que corresponde, nos termos do CPPT, a forma processual de impugnação judicial.

 

Desta forma, estão fora do âmbito das matérias susceptíveis de apreciação em foro arbitral as pretensões enquadráveis na impugnação de actos administrativos que não comportem a apreciação da legalidade do acto de liquidação (acto administrativo em matéria tributável), que têm a sua sede própria na acção administrativa especial, de acordo com a alínea p) do n.º 1 e com o n.º 2 do art.º 97.º do CPPT (neste sentido, veja-se o Acórdão proferido no processo arbitral n.º 73/2012).

 

De igual modo, não cabem na jurisdição arbitral as matérias pertencentes ao processo de cobrança de tributos, i. é, da execução fiscal, como decorre do cotejo do RJAT com a respectiva lei de autorização legislativa.

 

À face do exposto, conclui-se pela procedência da excepção suscitada pela Autoridade Tributária e Aduaneira, relativa à incompetência absoluta deste tribunal arbitral em razão da matéria, ficando, deste modo, prejudicado o conhecimento das demais questões invocadas.

 

 

3. DISPOSITIVO

 

Em face do exposto, julga-se procedente a excepção de incompetência absoluta em razão da matéria com a consequente absolvição da instância da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

* * *

 

 

Fixa-se o valor do processo em € 15.963,47, de harmonia com o disposto no artigo 315.º, n.º 2 do CPC e 97.º-A do CPPT e artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

Custas a cargo do Requerente fixando-se o respectivo montante em 918.00, de acordo com a Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, e com o disposto no artigo 12.º, n.º 2 do RJAT e artigo 4.º, n.º 4 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

 

* * *

Notifique.

Lisboa, 5 de Fevereiro de 2013

 

 

 

A árbitro

 

 

Alexandra Coelho Martins

 

 

Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 138.º, número 5 do Código de Processo Civil (CPC), aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do Regime de Arbitragem Tributária.

 

A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia antiga.