Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 116/2015-T
Data da decisão: 2015-06-24  IUC  
Valor do pedido: € 972,32
Tema: IUC – Incidência subjetiva
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Processo n.º 116/2015-T

 

            I – Relatório

 

            1.1. A…, Lda., pessoa colectiva n.º …, com sede no …, …, lote …, segundo andar, Lisboa (doravante designada por «requerente»), tendo recebido várias notas de liquidação de IUC sobre veículos relacionados com a sua actividade, relativas aos anos de 2013 e 2014, no montante total de €972,32, apresentou, em 19/2/2015, um pedido de constituição de tribunal arbitral e de pronúncia arbitral, nos termos do disposto no art. 10.º, n.º 2, do Dec.-Lei n.º 10/2011, de 20/1 (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante somente designado por «RJAT»), em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), tendo em vista a “anulação das liquidações de IUC identificadas na Tabela Anexa, por violação do art. 3.º do Código do IUC quanto aos pressupostos de incidência subjectiva de imposto, e o consequente reembolso do montante [acima indicado], bem como o pagamento de juros indemnizatórios [...], nos termos do artigo 43.º da LGT”.

 

            1.2. Em 5/5/2015 foi constituído o presente Tribunal Arbitral Singular.

 

            1.3. Nos termos do art. 17.º, n.º 1, do RJAT, foi a AT citada, enquanto parte requerida, para apresentar resposta, nos termos do referido artigo. A AT apresentou a sua resposta em 9/6/2015, tendo argumentado no sentido da total improcedência do pedido da requerente.

 

            1.4. Por despacho de 17/6/2015, o Tribunal considerou, nos termos do art. 16.º, al. c) e e), do RJAT, ser dispensável a reunião do art. 18.º do RJAT e que o processo estava pronto para decisão. Foi, ainda, fixada a data de 24/6/2015 para a prolação da decisão arbitral.

           

            1.5. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, é materialmente competente, o processo não enferma de vícios que o invalidem e as Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, configurando-se legítimas.

 

            II – Fundamentação: A Matéria de Facto

 

            2.1. Vem a ora requerente alegar, na sua petição inicial, que: a) “a requerente não é o sujeito passivo de IUC relativo ás matrículas em questão em nenhum dos anos sobre os quais incidiram as liquidações oficiosas agora objecto de pedido de pronúncia arbitral”; b) “os actos tributários de liquidação do IUC em crise enfermam de erro sobre os pressupostos do (alegado) facto tributário, o que consubstancia um vício de violação de lei, por força do artigo 99.º, alínea a), do [CPPT], ex vi da alínea c) do n.º 2 do artigo 10.º do [RJAT], susceptível de ser arguido para fundamentar a anulação dos actos tributários de liquidação de IUC na presente sede”; c) “em todos os casos abrangidos pelo presente pedido de pronúncia arbitral, o imposto liquidado respeita a veículos já vendidos pela Requerente à data da verificação do facto tributário”; d) “na data de vencimento do imposto, a Requerente já não era a proprietária dos veículos em questão, peo que o sujeito passivo deverá ser o novo proprietário de cada veículo”; e) “mesmo que não tenha sido dada publicidade às transmissões da propriedade sobre veículos através do registo automóvel, tal não obsta a que o IUC incida sobre os reais proprietários do veículo, uma vez demonstrada pela Requerente a respectiva transmissão”; f) “à luz do artigo 3.º, n.º 1, do Código do IUC, [conclui-se] que os veículos em causa foram vendidos pela Requerente previamente à verificação do facto gerador e consequente exigibilidade do imposto, pelo que deve incidir subjectivamente sobre os novos proprietários dos veículos.”

 

            2.2. Em síntese, conclui a ora requerente que deve ser declarado procedente “o pedido de anulação das liquidações de IUC [em causa e] identificadas, por violação do disposto no art. 3.º do Código do IUC, quanto aos pressupostos de incidência subjectiva de imposto, e o consequente reembolso do montante [...] de imposto pago indevidamente [...], bem como o pagamento de juros indemnizatórios pela privação do referido montante, nos termos do artigo 43.º da LGT.”  

           

            2.3. Por seu lado, a AT vem alegar, na sua contestação: a) “entender que o legislador consagrou [...] uma presunção [no artigo 3.º do CIUC] seria inequivocamente efectuar uma interpretação contra legem”; b) “que há “enviesada leitura da letra da lei”, uma vez que, no art. 3.º, n.º 1, do CIUC, “o legislador [...] estabeleceu expressa e intencionalmente que se consideram como tais [como proprietários ou nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas] as pessoas em nome das quais os mesmos [os veículos] se encontrem registados, porquanto é esta a interpretação que preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal”; c) que a interpretação da requerente “não atende ao elemento sistemático, violando a unidade do regime consagrado em todo o CIUC e, mais amplamente, em todo o sistema jurídico-fiscal”; d) “que à luz de uma interpretação teleológica do regime consagrado em todo o CIUC, a interpretação propugnada pela Requerente no sentido de que o sujeito passivo do imposto é o proprietário efectivo, independentemente de não figurar no registo automóvel o registo dessa qualidade, é manifestamente errada”; e) que “os actos tributários em crise não enfermam de qualquer vício de violação de lei, na medida em que à luz do disposto no artigo 3.º, n.os 1 e 2, do CIUC e do artigo 6.º do mesmo código, era a Requerente, na qualidade de proprietária, o sujeito passivo do IUC”; f) “[mesmo] aceitando-se ser admissível a ilisão da presunção à luz da jurisprudência já entretanto firmada neste centro de arbitragem, importará ainda assim, apreciar os documentos juntos pela Requerente e o seu valor probatório com vista a tal ilisão. [As segundas vias de facturas juntas pela ora requerente não são prova suficiente para abalar a alegada presunção legal do art. 3.º do CIUC porque] as facturas não são aptas a comprovar a celebração de um contrato sinalagmático como é a compra e venda, pois tais documentos não revelam por si uma imprescindível e inequívoca declaração de vontade (i.e., aceitação) por parte dos pretensos adquirentes”; g) que “a interpretação veiculada pela Requerente [...] mostra-se contrária à Constituição [dado que a mesma] traduz-se na violação do princípio da confiança, do princípio da segurança jurídica, do princípio da eficiência do sistema tributário e do princípio da proporcionalidade”; h) que “o IUC é liquidado de acordo com a informação registral oportunamente transmitida pelo Instituto dos Registos e Notariado [pelo que] o IUC não é liquidado de acordo com informação gerada pela própria Requerida. [...] a Requerida [limitou-se] a dar cumprimento às obrigações legais a que está adstrita e, paralelamente, a seguir a informação registral que lhe foi fornecida por quem de direito”; i) que “não ocorreu, in casu, qualquer erro imputável aos serviços [pelo que] não se encontram reunidos os pressupostos legais que conferem o direito aos juros indemnizatórios”.

 

2.4. Em síntese, a AT sustenta que “deve ser julgado improcedente o presente pedido de pronúncia arbitral, mantendo-se na ordem jurídica os atos tributários de liquidação impugnados e absolvendo-se, em conformidade, a Requerida do pedido.”

 

            2.5. Consideram-se provados os seguintes factos:

 

            i) A requerente prossegue a actividade de aluguer de veículos automóveis e prestação de serviços associados à gestão de frotas.

 

            ii) Em 20/11/2014, a ora requerente foi notificada para, querendo, exercer o direito de audição prévia relativo ao projecto de indeferimento do procedimento de reclamação graciosa das liquidações de IUC aqui em causa. Por despacho do Sr. Chefe do SF de Lisboa 6, datado de 11/12/2014, foi indeferida a referida reclamação graciosa, com o n.º … 2014 … (vd. PA apenso aos autos).

 

            iii) As liquidações de IUC aqui em causa, no montante total de €972,32 (= €952,24 de IUC + €20,08 de juros compensatórios: vd. tabela anexa à p.i.), foram pagas pela requerente e dizem respeito às seguintes dez viaturas: 1) (veículo de) matrícula …-…-…, IUC do ano de 2014 (doc. liquidação de IUC n.º 2014 …); 2) matrícula …-…-…, IUC do ano de 2014 (doc. liquidação de IUC n.º 2014 …); 3) matrícula …-…-…, IUC do ano de 2014 (doc. liquidação de IUC n.º 2014 …); 4) matrícula …-…-…, IUC dos anos de 2013 e 2014 (respectivamente, doc. liquidação de IUC n.º 2013 … e n.º 2014 …); 5) matrícula …-…-…, IUC do ano de 2014 (doc. liquidação de IUC n.º 2014 …); 6) matrícula …-…-…, IUC do ano de 2014 (doc. liquidação de IUC n.º 2014 …); 7) matrícula …-…-…, IUC do ano de 2014 (doc. liquidação de IUC n.º 2014 …); 8) matrícula …-…-…, IUC dos anos de 2013 e 2014 (respectivamente, doc. liquidação de IUC n.º 2013 … e n.º 2014 …); 9) matrícula …-…-…, IUC dos anos de 2013 e 2014 (respectivamente, doc. liquidação de IUC n.º 2013 … e n.º 2014 …); 10) matrícula …-…-…, IUC do ano de 2014 (doc. liquidação de IUC n.º 2014 …).  

 

            iv) Em momento anterior ao ano e mês da tributação do imposto em causa, as viaturas em causa foram objecto de venda a terceiros, não sendo, assim, propriedade da ora requerente, conforme se pode observar pelas segundas vias das facturas que constam do PA apenso e dos docs. de suporte n.os 1 a 10, anexos à p.i. da requerente.

 

            2.6. Não há factos não provados relevantes para a decisão da causa.

 

            III – Fundamentação: A Matéria de Direito

 

            No presente caso, são quatro as questões de direito controvertidas: 1) saber se o art. 3.º do CIUC contém uma presunção e se a ilisão da mesma foi feita; 2) saber se, como alega a AT, a interpretação da ora requerente não atende aos elementos sistemático e teleológico de interpretação da lei; 3) saber se houve, como também alega a AT, “a interpretação veiculada pela Requerente [...] mostra-se contrária à Constituição”; 4) saber se, no presente caso, são devidos juros indemnizatórios à requerente. 

 

            Vejamos, então.

 

            1) e 2) As duas primeiras questões de direito confluem na direcção da interpretação do art. 3.º do CIUC, pelo que se mostra necessário: a) saber se a norma de incidência subjectiva, constante do referido art. 3.º, estabelece ou não uma presunção; b) saber se, ao considerar-se que essa norma estabelece uma presunção, tal viola a “unidade do regime”, ou desconsidera o elemento sistemático e o elemento teleológico; c) saber - admitindo que a presunção existe (e que a mesma é iuris tantum) - se foi feita a ilisão da mesma.  

 

            a) O art. 3.º, n.os 1 e 2, do CIUC, tem a seguinte redacção, que aqui se reproduz:

 

            “Artigo 3.º – Incidência Subjectiva

           

1 - São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.

2 - São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação”.

             

            A interpretação do texto legal citado é, naturalmente, imprescindível para a resolução do caso em análise. Nessa medida, afigura-se necessário recorrer ao art. 11.º, n.º 1, da LGT, e, por remissão deste, ao art. 9.º do Código Civil (CC).

 

            Ora, nos termos do referido art. 9.º do CC, a interpretação parte da letra da lei e visa, através dela, reconstituir o “pensamento legislativo”. O mesmo é dizer (independentemente da querela objectivismo-subjectivismo) que a análise literal é a base da tarefa interpretativa e os elementos sistemático, histórico ou teleológico são guias de orientação da referida tarefa.

 

            A apreensão literal do texto legal em causa não gera - ainda que seja muito discutível a separação desta relativamente ao apuramento, mesmo que mínimo, do respectivo sentido - a noção de que a expressão “considerando-se como tais” significa algo diverso de “presumindo-se como tais”. De facto, muito dificilmente encontraríamos autores que, numa tarefa de pré-compreensão do referido texto legal, repelissem, “instintivamente”, a identidade entre as duas expressões.

 

            Confirmando a indistinção (tanto literal como de sentido) das palavras “considerando” e “presumindo” (presunção), vejam-se, por ex., os seguintes artigos do Código Civil: 314.º, 369.º, n.º 2, 374.º, n.º 1, 376.º, n.º 2, e 1629.º. E, com especial interesse, o caso da expressão “considera-se”, constante do art. 21.º, n.º 2, do CIRC. Como assinalam Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, a respeito desse artigo do CIRC: “para além de esta norma evidenciar que o que está em causa em sede de tributação de mais valias é apurar o valor real (o de mercado), a limitação ao apuramento do valor real derivada das regras de determinação do valor tributável previstas no CIS não poder deixar de ser considerada como uma presunção em matéria de incidência, cuja ilisão é permitida pelo artigo 73.º da LGT” (Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada, 4.ª ed., 2012, pp. 651-2).

            b) Estes são apenas alguns exemplos que permitem concluir que é precisamente por razões relacionadas com a “unidade do sistema jurídico” (o elemento sistemático) que não se poderá afirmar que só quando se usa o verbo “presumir” é que se está perante uma presunção, dado que o uso de outros termos ou expressões (literalmente similares) também podem servir de base a presunções. E, de entre estas, as expressões “considera-se como” ou “considerando-se como” assumem, como se viu, destaque.

 

            Se a análise literal é apenas a base da tarefa, afigura-se, naturalmente, imprescindível a avaliação do texto à luz dos demais elementos (ou subelementos do denominado elemento lógico). Com efeito, a AT alega, também, que a interpretação da requerente “não atende ao elemento sistemático, violando a unidade do regime consagrado em todo o CIUC e, mais amplamente, em todo o sistema jurídico-fiscal”, e “que à luz de uma interpretação teleológica do regime consagrado em todo o CIUC, a interpretação propugnada pela Requerente [...] é manifestamente errada”.

 

            Justifica-se, portanto, averiguar se a interpretação que considere a existência de uma presunção no art. 3.º do CIUC colide com o elemento teleológico, i.e., com as finalidades (ou com a relevância sociológica) do que se pretendia com a regra em causa. Ora, tais finalidades estão claramente identificadas no início do CIUC: “O imposto único de circulação obedece ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida do custo ambiental e viário que estes provocam, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária” (vd. art. 1.º do CIUC).

 

            O que se pode inferir deste artigo 1.º? Pode inferir-se que a estreita ligação do IUC ao princípio da equivalência (ou princípio do benefício) não permite a associação exclusiva dos “contribuintes” aí referidos à figura dos proprietários mas antes à figura dos utilizadores (ou dos proprietários económicos). Como bem se assinalou na DA no processo n.º 73/2013-T: “na verdade, a ratio legis do imposto [IUC] antes aponta no sentido de serem tributados os utilizadores dos veículos, o «proprietário económico» no dizer de Diogo Leite de Campos, os efectivos proprietários ou os locatários financeiros, pois são estes que têm o potencial poluidor causador dos custos ambientais à comunidade.”

 

            Com efeito, se a referida ratio legis fosse outra, como compreender, p. ex., a obrigação (por parte das entidades que procedam à locação de veículos) - e para efeitos do disposto no art. 3.º do CIUC e no art. 3.º, n.º 1, da Lei n.º 22-A/2007, de 29/6 - de fornecimento à DGI dos dados respeitantes à identificação fiscal dos utilizadores dos referidos veículos (vd. art. 19.º)? Será que onde se lê “utilizadores”, devia antes ler-se, desconsiderando o elemento sistemático, “proprietários com registo em seu nome”...?

 

            c) Do exposto retira-se a conclusão de que limitar os sujeitos passivos deste imposto apenas aos proprietários dos veículos em nome dos quais os mesmos se encontrem registados - ignorando as situações em que estes já não coincidam com os reais proprietários ou os reais utilizadores dos mesmos -, constitui restrição que, à luz dos fins do IUC, não encontra base de sustentação. E, ainda que a AT alegue a “intenção [do legislador] foi a de que, para efeitos de IUC, sejam considerados proprietários aqueles que, como tal, constem do registo automóvel”, é necessário ter presente que tal registo, em face do que foi dito anteriormente, gera apenas uma presunção ilidível, i.e., uma presunção que pode ser afastada pela apresentação de prova em contrário. Neste sentido, vd., por ex., o Ac. do TCAS de 19/3/2015, proc. 8300/14: “O [...] art. 3.º, n.º 1, do CIUC, consagra uma presunção legal de que o titular do registo automóvel é o seu proprietário, sendo que tal presunção é ilidível”.

            Seria, aliás, injustificada a imposição de uma espécie de presunção inilidível, uma vez que, sem uma razão aparente, estar-se-ia a impor uma (reconhecidamente discutível) verdade formal em detrimento do que realmente podia e teria ficado provado; e, por outro lado, a afastar o dever da AT de cumprimento do princípio do inquisitório estabelecido no art. 58.º da LGT, i.e., o dever de realização das diligências necessárias para uma correcta determinação da realidade factual sobre a qual deve assentar a sua decisão (o que significa, no presente caso, a determinação do proprietário actual e efectivo do veículo).

 

            Acresce que, se não se permitisse ao vendedor a ilisão da presunção constante do art. 3.º do CIUC, estar-se-ia a beneficiar, sem uma razão plausível, os adquirentes que, na posse de formulários de contratos de aquisição correctamente preenchidos e assinados, e usufruindo das vantagens associadas à sua condição de proprietários, se tentassem eximir, por via de um “formalismo registral”, ao pagamento de portagens ou coimas.

 

            A este propósito, convém notar, também, que o registo de veículos não tem eficácia constitutiva, funcionando, como antes se disse, como uma presunção ilidível de que o detentor do registo é, efectivamente, o proprietário do veículo. Neste sentido, vd., v.g., o Ac. do STJ de 19/2/2004, proc. 03B4639: “O registo não surte eficácia constitutiva, pois que se destina a dar publicidade ao acto registado, funcionando (apenas) como mera presunção, ilidível, (presunção «juris tantum») da existência do direito (art.s 1.º, n.º 1 e 7.º, do CRP84 e 350.º, n.º 2, do C.Civil) bem como da respectiva titularidade, tudo nos termos dele constantes.”

 

            No mesmo sentido, referiu, a este respeito, a DA proferida no processo n.º 14/2013-T, em termos que se acompanham: “a função essencial do registo automóvel é dar publicidade à situação jurídica dos veículos não surtindo o registo eficácia constitutiva, funcionando (apenas) como mera presunção ilidível da existência do direito, bem como da respectiva titularidade, tudo nos termos dele constante. A presunção de que o direito registado pertence à pessoa em cujo nome está inscrito pode ser ilidida por prova em contrário. Não preenchendo a AT os requisitos da noção de terceiro para efeitos de registo [circunstância que poderia impedir a eficácia plena dos contratos de compra e venda celebrados], não pode prevalecer-se da ausência de actualização do registo do direito de propriedade para pôr em causa a eficácia plena do contrato de compra e venda e para exigir ao vendedor (anterior proprietário) o pagamento do IUC devido pelo comprador (novo proprietário) desde que a presunção da respectiva titularidade seja ilidida através de prova bastante da venda.”

 

            Ora, no caso aqui em análise, verifica-se que a ilisão da presunção (por meio de “prova bastante” das vendas) foi realizada. Com efeito, apesar do que a AT alega nos pontos 82.º a 112.º da sua resposta, o Tribunal não vê razão para questionar as facturas apresentadas pela requerente, dado que se considera que as mesmas são claramente demonstrativas de que esta não era, à data do imposto, a proprietária dos veículos. Note-se, também, que a AT, apesar de “levanta[r] dúvidas” em algumas das facturas (vd. pontos 101.º a 106.º sobre uma alegada falta de “descritivo uniforme”), não as impugnou, invocando, nomeadamente, a sua falsidade ou a simulação das vendas.

 

            Conclui-se, portanto – e como se referiu na matéria de facto provada [ponto iv)] –, que em momento anterior ao ano e mês da tributação do imposto em causa, as viaturas em causa foram objecto de venda a terceiros, não sendo, assim, propriedade da requerente, conforme se pode observar pela leitura das segundas vias das facturas que constam do PA apenso e dos docs. de suporte n.os 1 a 10, anexos à p.i.. Nomeadamente, e como resulta evidente da leitura dos referidos documentos, constata-se que: 1) o veículo (de matrícula) …-…-… foi vendido a 3/4/2003; 2) o veículo …-…-… foi vendido a 30/8/2004; 3) o veículo …-…-… foi vendido a 5/2/2013; 4) o veículo …-…-… foi vendido a 8/2/2003; 5) o veículo …-…-… foi vendido a 19/11/2013; 6) o veículo …-…-… foi vendido a 22/4/2008; 7) o veículo …-…-… foi vendido a 31/3/2004; 8) o veículo …-…-… foi vendido a 8/3/2008; 9) o veículo …-…-… foi vendido a 8/3/2008; 10) o veículo …-…-… foi vendido a 8/5/1999.

 

            Ainda a este respeito, justifica-se notar que, como bem salientou a DA do processo n.º 27/2013-T, datada de 10/9/2013, “os documentos apresentados, particularmente as cópias das facturas que suportam, desde logo, as vendas [...] [dos] veículos atrás referenciados, [...] corporizam meios de prova com força bastante e adequados para ilidir a presunção fundada no registo, tal como consagrada no n.º 1 do art. 3.º do CIUC, documentos, esses, que gozam, aliás, da presunção de veracidade prevista no n.º 1 do art. 75.º da LGT.”

 

            Por último, note-se que, como bem afirma a DA do processo n.º 230/2014-T, datada de 22/7/2014, “os elementos documentais, constituídos por cópias das respectivas facturas de venda – que não foram impugnados pela AT –, gozam da força probatória prevista no artigo 376.º, do Código Civil e da  presunção de veracidade que é conferida pelo art. 75.º, n.º 1, da LGT, tendo, assim, idoneidade e força bastante para ilidir a presunção que suportou as liquidações efetuadas. Estas operações de transmissão de propriedade são oponíveis à Autoridade Tributária e Aduaneira, porquanto, embora os factos sujeitos a registo só produzam efeitos em relação a terceiros quando registados, face ao disposto no art. 5.º, n.º 1, do Código do Registo Predial [aplicável por remissão do Código do Registo Automóvel], a Autoridade Tributária não é terceiro para efeitos de registo, uma vez que não se encontra na situação prevista no n.º 2 do referido art. 5.º do Código do Registo Predial, aplicável por força do Código do Registo Automóvel, ou seja: não adquiriu de um autor comum direitos incompatíveis entre si. Quanto à prova de venda de veículos, ela pode ser feita por qualquer meio, uma vez que a Lei não exige forma específica, designadamente, escrita.”

 

            3) Conclui-se, em face do que foi supra exposto [em 1) e 2)], não existir interpretação “contrária à Constituição”, ao contrário do que é alegado pela requerida nos pontos 113.º a 121.º da sua resposta.

 

            4) Uma nota final para apreciar, ao abrigo do artigo 24.º, n.º 5, do RJAT, o pedido de pagamento de juros indemnizatórios a favor da requerente (art. 43.º da LGT e 61.º do CPPT).

 

            A este respeito, lembrou a DA n.º 26/2013-T (que tratou de situação semelhante à ora em apreciação): “O direito a juros indemnizatórios a que alude a norma da LGT supra referida pressupõe que haja sido pago imposto por montante superior ao devido e que tal derive de erro, de facto ou de direito, imputável aos serviços da AT. [...] ainda que se reconheça não ser devido o imposto pago pela requerente, por não ser o sujeito passivo da obrigação tributária, determinando, em consequência, o respectivo reembolso, não se lobriga que, na sua origem, se encontre o erro imputável aos serviços, que determina tal direito [a juros indemnizatórios] a favor do contribuinte. Com efeito, ao promover a liquidação oficiosa do IUC considerando a requerente como sujeito passivo deste imposto, a AT limitou-se a dar cumprimento à norma do n.º 1 do art. 3.º do CIUC, que, como acima abundantemente se referiu, imputa tal qualidade às pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados.”

           

Considerando esta justificação – com a qual se concorda inteiramente –, conclui-se, também quanto ao presente caso, pela improcedência do mencionado pedido de pagamento de juros indemnizatórios.

 

***

 

            IV – Decisão

 

            Em face do supra exposto, decide-se:

 

            - Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, com a consequente anulação, com todos os efeitos legais, dos actos de liquidação impugnados e o reembolso das importâncias indevidamente pagas.

            - Julgar improcedente o pedido na parte que diz respeito ao reconhecimento do direito a juros indemnizatórios a favor da requerente.

 

 

Fixa-se o valor do processo em €972,32 (novecentos e setenta e dois euros e trinta e dois cêntimos), nos termos do art. 32.º do CPTA e do art. 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no art. 29.º, n.º 1, als. a) e b), do RJAT, e do art. 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

Custas a cargo da requerida, no montante de €306,00 (trezentos e seis euros), nos termos da Tabela I do RCPAT, e em cumprimento do disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e do disposto no art. 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

 

 

Notifique.

 

Lisboa, 24 de Junho de 2015.

 

 

O Árbitro

(Miguel Patrício)

 

 

 

***

 

Texto elaborado em computador, nos termos do disposto

no art. 131.º, n.º 5, do CPC, aplicável por remissão do art. 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT.

A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.