Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 113/2014-T
Data da decisão: 2014-07-28  IUC  
Valor do pedido: € 6.392,24
Tema: : IUC – Incidência subjectiva; incompetência absoluta do Tribunal em razão da matéria.
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DECISÃO ARBITRAL

 

CAAD: Arbitragem Tributária

Processo nº 113/2014 – T

Tema: IUC – Incidência subjectiva; incompetência absoluta do Tribunal em razão da matéria.

 

I – RELATÓRIO

 

A)    As Partes e a Constituição do tribunal Arbitral

 

  1. “a” – Instituição Financeira de Crédito, SA, NIPC .., com sede na Rua …, Lote…, em Lisboa, doravante designada por “Requerente”, requereu a constituição de Tribunal Arbitral singular, ao abrigo do disposto nos artigos 2º, nº 1, a alínea a) e 10º, nºs 1 e 2 do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, doravante designado por “RJAT” e da Portaria nº 112 – A/2011, de 22 de Março, pretendendo a declaração de ilegalidade das liquidações de Imposto Único de Circulação (IUC) referentes aos períodos de tributação de 2009, 2010, 2011 e 2012, juntas aos autos como documentos nºs 2 a 77 e que se dão por integralmente reproduzidos, no montante global a pagar de €6.392,24. Pretende ainda o reconhecimento do direito ao reembolso do montante de imposto indevidamente pago bem assim como o direito a juros indemnizatórios, calculados sobre o referido montante de imposto pago.

 

  1. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral, foi apresentado pela Requerente em 12 de Fevereiro de 2012, foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

  1. A Requerente optou por não designar árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no nº1 do artigo 6º do RJAT, foi designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa a ora signatária como árbitro singular. A nomeação foi aceite e as partes notificadas da designação do árbitro, não tendo manifestado a vontade de recusar a designação.

 

  1. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c), do nº 1, do artigo 11º, do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228º da Lei nº 66-B/2012, de 31 de Dezembro (RJAT), o Tribunal Arbitral Singular foi constituído em 15 de abril de 2014. Na mesma data, foi a AT notificada, nos termos e para os efeitos do disposto nos nºs 1 e 2 artigo 17º do RJAT, para apresentar resposta no prazo legal.

 

  1. A AT apresentou a sua resposta em 21 de Maio de 2014, a qual se dá por integralmente reproduzida. Em 5 de Junho de 2014 a Requerente apresentou requerimento de resposta às excepções invocadas pela AT, em relação ao qual esta se pronunciou, por requerimento de 11 de junho de 2014, os quais se dão por integralmente reproduzidos.

 

  1. A 17 de Junho de 2014, realizou-se a reunião prevista no artigo 18º do RJAT, tendo as partes apresentado as suas alegações orais, como consta da acta junta aos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzida. Ficou determinado que até ao dia 31 de Julho de 2014 seria proferida a Decisão Arbitral.

 

 

B) DO PEDIDO FORMULADO PELA REQUERENTE:

 

 

  1. A Requerente formula o presente pedido de pronúncia arbitral pugnando pela ilegalidade, com a consequente anulação, das liquidações de Imposto Único de Circulação e respectivos Juros Compensatórios, referentes aos períodos de tributação de 2009, 2010, 2011 e 2012, consubstanciadas nos documentos juntos aos autos como documentos nºs 2 a 77, designadas pela Requerente como liquidações oficiosas de IUC.

 

  1. Em síntese, fundamenta o seu pedido, alegando o seguinte:

 

a)       no âmbito da sua actividade a Requerente celebra com os seus clientes contratos de aluguer de longa duração e contratos de locação financeira de veículos automóveis, findos os quais transmite a propriedade dos mesmos aos respectivos locatários ou a terceiros;

b)       entre 14 de Novembro de 2013 e 20 de Dezembro de 2013, a Requerente foi notificada de liquidações oficiosas de IUC relativas às viaturas identificadas no pedido de pronúncia arbitral (quadro síntese junto como documento nº1 e documentos nºs 2 a 77) e aos períodos de tributação 2009, 2010, 2011 e 2012;

c)      a Requerente procedeu ao pagamento voluntário do IUC alegadamente em falta. Apesar disso, a Requerente não pode deixar de manifestar a sua discordância relativamente aos referidos actos de liquidação, na medida em que, os veículos relativamente aos quais impendia o pagamento do IUC não eram sua propriedade à data identificada pela ATA como data da ocorrência do facto gerador do imposto;

d)     nos termos do disposto no artigo 3º, nº1 e no artigo 6º do CIUC, o regime legal em vigor, recorrendo ao elemento registral, estabelece, simultaneamente, o facto gerador do imposto e a respectiva conexão fiscal;

e)      o artigo 3º do CIUC consagra uma norma de incidência subjectiva que estabelece, meramente, uma presunção legal, tanto mais que no ordenamento jurídico tributário podemos encontrar o verbo “considerar” usado com um sentido presuntivo;

f)        trata-se, pois, de uma presunção, cuja ilisão é permitida pelo artigo 73º da LGT; a requerente indica, a este propósito, vários exemplos extraídos do ordenamento jurídico em vigor;

g)      invoca, ainda, em defesa da sua tese, o princípio da equivalência, previsto no artigo 1º do CIUC, nos termos do qual o imposto deve onerar os contribuintes na medida do custo ambiental e viário que estes provocam em concretização de uma regra geral de igualdade tributária;

h)       conclui, ainda, à luz dos elementos interpretativos extraídos dos propósitos revelados na Proposta de Lei nº 118/X, e, bem assim, do elemento racional subjacente à reforma da tributação automóvel, ser este um princípio estruturante do IUC;

i)        assim sendo, os sujeitos passivos deste imposto são apenas os proprietários ou equiparados dos veículos, em nome dos quais os mesmos se encontrem registados, ou seja os seus “efectivos proprietários”;

j)        alega a Requerente que as presunções de incidência podem ser ilididas através do procedimento previsto no artigo 64º CPPT ou, em alternativa, por via de reclamação graciosa ou impugnação judicial dos actos tributários que nelas se baseiam;

k)      nessa medida, e de forma a ilidir a presunção decorrente da inscrição do registo automóvel, a Requerente apresentou cópias das faturas/recibos de vendas, que juntou como documentos nºs 78 a 133;

l)        conclui, assim, que à data da exigibilidade do imposto a que respeitam as liquidações em apreço, não era esta (a RCI Gest IFIC) a proprietária dos veículos naquelas identificados, por se ter já anteriormente operado as respectivas transferências, nos termos da lei civil, de acordo com os princípios consagrados nos artigos 874º, 879º e 408º do Código Civil (CC);

m)    acrescenta que, se é certo que o artigo 5º do Decreto-Lei nº 54/75 de 12 de fevereiro, dispõe que o direito de propriedade dos veículos automóveis está sujeito a registo, do mesmo diploma se extrai que o registo tem essencialmente por fim dar publicidade à situação jurídica dos veículos (…) e, sendo omisso quanto ao valor jurídico do registo de propriedade automóvel, o seu artigo 29º remete para a aplicação das disposições relativas ao registo predial;

n)       o artigo 7º do Código de Registo Predial dispõe que o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define;

o)       esta presunção pode ser ilidida mediante apresentação de prova em contrário, como a que a Requerente apresenta nos presentes autos;

p)      não preenchendo a AT os requisitos da noção de “terceiro” para efeitos de registo, não pode prevalecer-se da ausência de actualização do registo do direito de propriedade para pôr em causa a eficácia plena do contrato de compra e venda e para exigir ao vendedor (antigo proprietário) o pagamento do IUC devido pelo comprador (novo Proprietário), desde que a presunção da respectiva titularidade seja ilidida;

q)      conclui peticionando a declaração de ilegalidade destas liquidações de IUC, no montante global de €6.392,24, o reconhecimento do direito ao reembolso do valor de imposto já pago, bem assim como, o direito a juros indemnizatórios pelo pagamento de imposto indevidamente liquidado.

 

 

C – A RESPOSTA DA REQUERIDA

 

  1. A Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou tempestivamente a sua resposta na qual, alegou, em síntese, o seguinte:

 

                     a)         Por excepção:

aa)   a falta de objecto e da incompetência do Tribunal Arbitral em razão da matéria;

bb)   a preterição da prévia Reclamação Graciosa.

 

                    b)         Por impugnação:

aa)    alega a AT que não assiste razão à Requerente quanto ao invocado erro sobre os pressupostos, dado que o entendimento propugnado pela Requerente incorre, não só de uma enviesada leitura da letra da lei, como da adopção de uma interpretação que não atende ao elemento sistemático, violando a unidade do regime consagrado em todo o CIUC e, mais amplamente, em todo o sistema jurídico-fiscal e decorre ainda de uma interpretação que ignora a ratio do regime consagrado no artigo em apreço, e bem assim, em todo o CIUC;

bb)  assenta a sua alegação no disposto nos n.ºs 1 e 2, do artigo 3.º do CIUC;

cc)   alega, ainda, a AT que o legislador não usou a expressão “presumem-se”, como poderia ter feito, aliás à semelhança do que sucede em outros normativos legais, exemplificando algumas situações previstas na lei;

dd)  entende, por isso, que nos casos em que o legislador fiscal utiliza a expressão “considera-se”, não está a estabelecer uma presunção;

ee)   entender que o legislador consagrou aqui uma presunção, seria inequivocamente efectuar uma interpretação contra legem;

ff)    conclui, pois, que no caso dos presentes autos, o legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que se consideram como tais as pessoas em nome das quais os mesmos se encontrem registados, porquanto é esta a interpretação que preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal;

gg)  outra interpretação seria ignorar o elemento teleológico de interpretação da lei: a ratio do regime consagrado no artigo em apreço, e bem assim, em todo o CIUC;

hh)  reforça esta alegação invocando que este é o entendimento seguido pela jurisprudência dos nossos tribunais expressa na sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, no âmbito do Processo n.º 210/13.0BEPNF;

ii)      conclui, que o artigo 3º do CIUC não comporta qualquer presunção legal, e pela improcedência do pedido arbitral, porquanto os actos tributários em crise não enfermam de qualquer vício de violação de lei, na medida em que à luz do disposto no artigo 3.º, n.ºs 1 e 2 do CIUC e do artigo 6.º do mesmo código, era a Requerente, na qualidade de proprietária, o sujeito passivo do IUC, tal como atesta a Informação relativa ao histórico da propriedade dos veículos em causa, emitida pela Conservatória do Registo Automóvel;

jj)      na óptica da AT é inegável que o Código de registo predial se aplica subsidiariamente ao Regulamento do Registo Automóvel, porém, o Código de Registo predial não é legislação subsidiária do Código do IUC;

kk)  o IUC passou, nos termos do disposto no artigo 3º do CIUC, a ser devido pelas pessoas que figuram no registo como proprietárias dos veículos;

ll)      outra interpretação seria ignorar o elemento teleológico de interpretação da lei; seria, ainda, uma interpretação desconforme à Constituição, por violação do princípio da confiança e segurança jurídica, o princípio da eficiência do sistema tributário e o princípio da proporcionalidade;

mm)         por fim alega, ainda, que ainda que assim não se entenda se entenda, importará apreciar os documentos probatórios juntos pela Requerente, e o seu valor probatório, com vista à elisão da presunção, concluindo que os documentos juntos pela Requerente (55 facturas constantes dos autos como documentos nºs 78 a 133 juntos à PI) “não constituem prova suficiente para abalar a suposta presunção legal estabelecida no artigo 3º do CIUC, porquanto uma factura não é um documento apto a comprovar a celebração de um contrato sinalagmático de compra e venda, pois aquele documento não revela por si só uma imprescindível e inequívoca declaração de vontade (i.e. de aceitação) por parte do pretenso adquirente”;

nn)  os elementos de prova carreados pelo Requerente são insusceptíveis de demonstrar os factos alegados, nomeadamente para efeitos de elidir a presunção legal;

oo)  Em consequência conclui, mais uma vez, pela improcedência do pedido arbitral, bem assim como do pedido de juros, invocando quanto a estes a inexistência de qualquer erro imputável aos serviços que, em qualquer caso, sustentasse tal condenação.

 

D. Resposta àS excepções

 

  1. A Requerente apresentou, em 5 de Junho de 2014, requerimento de resposta às excepções invocadas pela AT, no qual alegou, em síntese, que foi confrontada na sua parte privativa do Portal das Finanças, com uma série de dívidas de IUC, documentadas naquilo a que a AT chama de notas de cobrança (documentos de cobrança). Para efeitos da sua situação fiscal, as dívidas de IUC documentadas pelas referidas notas de cobrança eram já passíveis de pagamento, e foram pagas pela Requerente conforme consta da documentação anexa ao pedido de constituição de Tribunal Arbitral.
  2. Foi uma prioridade para a requerente proceder ao pagamento daquelas dívidas de IUC aparecidas no sistema, uma vez que a lesividade decorrente da impossibilidade de obter, para os mais variados efeitos da sua actividade comercial, uma certidão negativa de dívidas (certidão de situação contributiva regularizada), ultrapassava em muito a lesividade das concretas liquidações de imposto, pressupostas naquelas dívidas e que lhe são logicamente antecedentes. “No mais a requerente não sabe, não tem como saber. E acha altamente preocupante que a AT, com respeito a uma pluralidade de situações de dívidas em sede de IUC que a Requerente desconhecia e não inventou, constantes do sistema informático da AT em estádio que permitia e permitiu o seu pagamento, venha dizer agora que não tem nada a ver com isso, e que teria sido a requerente a responsável pela geração das notas de cobrança, o que quer que seja que isso possa exactamente querer dizer.”

 

  1. As dívidas de IUC constantes do sistema informático da AT (na área de acesso reservado à requerente), são um facto indesmentível da criação da AT, a possibilidade do seu pagamento é também um facto indesmentível da responsabilidade da AT, e a quantificação dos seus montantes muito concretos, ano e matrícula do imposto, é também da inteira responsabilidade da AT e respectivo sistema informático. Estas dívidas de IUC pressupõem uma série de liquidações de IUC, sendo irrelevante para o caso o meio pelo qual a requerente tomou delas conhecimento e o facto é que contra elas reagiu via pedido de constituição de Tribunal Arbitral.

 

  1. A terminar, mais constata a Requerente que pagou as dívidas de IUC em Dezembro de 2013 e, até à data (Junho de 2014), não foi ainda notificada directamente ou ex professo, das liquidações. Invoca que, esta situação está a suceder com outros contribuintes, o que revela “um grave comportamento da parte da AT: coloca as dívidas de IUC visíveis para os contribuintes nas respectivas áreas reservadas do Portal das Finanças; estes acodem a pagar para evitar ficarem impedidos de obter certidões negativas de dívidas fundamentais para variadíssimos efeitos (ou para evitar, designadamente em fim de exercício, verem prejudicados os benefícios fiscais que se encontrem a fruir, por exemplo); pagamento feito, a AT dá por encerrado o assunto e não notifica ou dá a conhecer via Portal das Finanças (área reservada), mais nada; e depois vem invocar que não há liquidação (o que por si só é uma impossibilidade lógica) susceptível de ser discutida em Tribunal.” Isto parece animado da mais pura má-fé. 

 

  1. Por fim, invoca ainda que, caso se venha a concluir ter havido cobrança de uma importância a título de IUC de determinado ano e com referência a determinada matrícula, num cenário de ausência de liquidação de imposto lógica e legalmente pressuposta nessa cobrança, estar-se-á então perante o tipo penal previsto no artigo 379.º do Código Penal – agravado pelo facto de até à data não haver sinal da mínima intenção por parte da AT de devolver as quantias recebidas da requerente –, devendo ser extraída certidão destes autos para remessa ao Ministério Público para que se inicie o competente procedimento criminal.

 

  1. A AT pronunciou-se por Requerimento de 11 de Junho de 2014, alegando que o RJAT não prevê a figura da Réplica, pelo que, tendo a Requerente apresentado resposta por escrito às excepções e sendo esta aceite, então ficaria afastada a possibilidade de se pronunciarem sobre esta matéria posteriormente, nomeadamente na reunião a que alude o artigo 18º.

 

  1. Na mesma data de 11 de Junho de 2014 foi proferido despacho arbitral admitindo a resposta às excepções e a junção aos autos do requerimento de resposta da AT e as partes convidadas a se pronunciar sobre a eventual dispensa de realização da reunião prevista no artigo 18º passando-se imediatamente á decisão final ou manter a reunião ou, ainda, marcação de prazo para alegações por escrito. A AT pronunciou-se entendendo ser de manter a reunião já agendada.

 

  1. Nesta conformidade foi realizada a reunião a que alude o artigo 18º, na qual as partes produziram as respectivas alegações orais, quanto à restante matéria em discussão nos autos, tendo, em síntese, ambas, dado por reproduzido tudo o que já se encontrava vertido nos respectivos articulados juntos aos autos.

 

  1. Por requerimento de 21 de Julho de 2014 a AT veio, ao abrigo dos princípios da colaboração e da justiça, requerer a junção aos autos da decisão arbitral proferida no âmbito do processo nº 183/2014 –T, por versar sobre a mesma matéria em discussão nos presentes autos.

 

 

 II - PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS

 

  1. O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído. É materialmente competente, nos termos do artigo 2º, nº1, alínea a) do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro.

 

  1.  As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se legalmente representadas (Cfr. 4º e 10º nº2 do DL nº 10/2011 e art. 1º da Portaria nº 112/2011, de 22 de Março).

 

  1. O processo não enferma de vícios que o invalidem.

 

  1. Tendo em conta o processo administrativo tributário, a prova documental junto aos autos, cumpre agora apresentar a matéria factual relevante para a compreensão da decisão, que se fixa como segue.

 

III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

 

A)    Factos Provados

 

  1. Como matéria de facto relevante, dá o presente tribunal por assente os seguintes factos:

a)      A Requerente, entre 14 de Novembro de 2013 e 20 de Dezembro de 2013, procedeu ao pagamento voluntário de Imposto Único de Circulação, considerado pela AT como em falta, relativo aos períodos de tributação 2009, 2010, 2011 e 2012 e às viaturas identificadas nos documentos nºs 2 a 77 juntos em anexo ao pedido arbitral, que aqui se dão por integralmente reproduzidos.

b)      Para proceder a este pagamento a Requerente emitiu as liquidações de IUC, constantes dos já supra referidos documentos nºs 2 a 77, conforme procedimento próprio, no Portal das Finanças.

c)       Os veículos supra referidos foram alienados a terceiros nas datas constantes nos documentos nºs 78 a 133, juntos em anexo com o pedido arbitral, que se dão por integralmente reproduzidos.

d)     A AT não notificou a Requerente de qualquer liquidação oficiosa de IUC referente a algum dos veículos constantes dos presentes autos;

e)      A Requerente não apresentou Reclamação Graciosa em relação às liquidações de IUC, cujo pagamento efectuou, e que impugnou nos presentes autos.

 

 

B)    FACTOS NÃO PROVADOS

 

  1. Não há factos não provados com relevo para decisão a proferir.

 

C)    FUNDAMENTAÇÃO DOS FACTOS PROVADOS

 

  1.  Os factos supra descritos foram dados como provados com base nos documentos que as partes juntaram ao presente processo, a Requerente em anexo ao pedido formulado e a AT no processo Administrativo enviado aos autos.

 

 

IV – QUESTÕES DECIDENDAS e FUDAMENTAÇÃO DE DIREITO

 

  1. Cumpre, pois, apreciar e decidir as questões a dirimir.

 

A título de questão prévia foi suscitada pela ATA a questão da irregular certificação da procuração forense junta aos autos pela Mandatária da Requerente. Tal irregularidade foi, porém, devidamente sanada.

 

Considerando as posições assumidas pelas das Partes nos argumentos apresentados, há que apreciar em primeiro lugar as excepções invocadas pela AT, relativas:

 

A)    À falta de objecto e

B)    À preterição de prévia Reclamação Graciosa geradoras de incompetência material do Tribunal Arbitral

 

  1. Assim sendo, estas questões são prévias e precedentes quanto às demais questões de direito suscitadas pelas partes. Apenas se apreciará a ilegalidade dos atos de liquidação de IUC e respetivos juros compensatórios em causa nos presentes autos, bem assim como do direito à restituição do valor de imposto pago e eventual direito a juros indemnizatórios, caso estas excepções sejam julgadas improcedentes.

 

Analisemos, pois, a primeira questão decidenda, ou seja, o conhecimento das excepções invocadas pela AT.

 

A)    Quanto À falta de objecto:

 

  1. Alega a Requerida que não estão em causa, contrariamente ao que alega a Requerente, liquidações de imposto, mas simples notas de cobrança, as quais não constituem um acto tributário. Assim sendo, estaríamos perante uma situação de falta de objecto geradora de incompetência do tribunal arbitral, já que o meio de reacção contra este tipo de actos deve ser a via processual da propositura de uma Acção Administrativa Especial e não a dedução de pedido de pronúncia arbitral aqui utilizada pela Requerente. Ainda a este propósito, alega a AT que o Tribunal Arbitral é materialmente incompetente para apreciar e decidir o pedido objeto de litígio, atendendo à inexistência de actos de liquidação oficiosa de IUC emitidos pela AT. Na óptica da Requerida tal situação consubstancia uma excepção dilatória impeditiva do conhecimento do mérito da causa, atento o disposto nos artigos 576º, nºs 1 e 2 do CPC, ex vi art. 2º, alínea e), do CPPT e do artigo 29º, nº 1 , alínea a) e e) do RJAT.

 

  1. Pois bem, quanto a esta questão importa atender à natureza dos documentos nºs 2 a 77 juntos aos autos, e, analisado o seu conteúdo extrair do mesmo se estes evidenciam apenas uma mera nota de cobrança, como pretende a AT, ou algo mais do que isso. Ora, analisados os referidos documentos, não subsiste qualquer dúvida de que não estamos perante meras “notas de cobrança”, como pretende a AT.

 

De facto resulta muito claro que os documentos em causa contém os elementos típicos de uma liquidação de imposto, constando mesmo do referido documento a demonstração dos juros devidos, o que claramente induz o sujeito passivo a concluir que está em falta com o pagamento do imposto e é sua obrigação efectuar o seu pagamento, sob pena de sofrer todos os efeitos lesivos decorrentes do seu incumprimento.

 

  1.  No caso concreto, a liquidação do imposto, em sentido estritamente técnico-jurídico foi efectuada, ou emitida pelo próprio sujeito passivo, de acordo com o procedimento próprio prevista na lei para o efeito e de acordo com as regras implementadas pela própria AT. E, assim, sendo, não se compreende a argumentação da Requerida nesta matéria quando alega tratar-se de meras notas de cobrança para daí concluir pela ausência de acto tributário impugnável.

Na verdade, também não se trata de liquidações oficiosas como invoca a Requerente, mas sim de autoliquidações, as quais são verdadeiros actos tributários.

 

  1. Importa, a este propósito, ter em conta o disposto no artigo 16º, nº2 do CIUC, do qual, aliás, resulta como regra que “a liquidação do imposto é feita pelo próprio sujeito passivo através da internet, nas condições de registo e acesso às declarações electrónicas, sendo obrigatória para as pessoas colectivas”.

E acrescenta o nº4 do mesmo normativo legal que “ é no momento dessa liquidação do imposto que é emitido o documento único de cobrança que, certificado pelos meios em uso na rede de cobrança, comprova o bom pagamento do imposto”.

 

  1. Entende-se, pois, que face ao disposto na lei, apesar de não ter sido a AT a proceder à emissão de uma liquidação oficiosa de imposto, nos termos e com o sentido previsto no artigo 18º, nº 2 do CIUC, daí não se pode extrair a conclusão por esta invocada, segundo a qual estamos perante meras notas de cobrança e não perante actos tributários impugnáveis. A verdade é que estas se encontravam disponíveis na parte privativa do sujeito passivo do Portal das Finanças, com indicação explícita dos valores em dívida e com demonstração de liquidação de juros compensatórios. Qualquer cidadão comum entenderia tal “nota de cobrança”, como pretende a AT, com o mesmo sentido que lhe atribuiu a ora Requerente, a qual se limitou a cumprir o procedimento legal e a emitir as respectivas autoliquidações e a efectuar o seu pagamento.

 

  1. O facto das liquidações se terem produzido por iniciativa do sujeito passivo, como igualmente alega a AT, apenas pode ter o significado que a própria lei lhe atribuiu, ao prever o regime que consta no artigo 16º do CIUC. Ora, seria totalmente inaceitável que o sujeito passivo fosse penalizado por cumprir os procedimentos legais previstos. Não se acompanha, pois, a tese da AT, segundo a qual, no caso sub judice, não há liquidações de imposto ou que estas não são verdadeiros actos tributários, incorrendo daí a falta de objecto e a incompetência material do Tribunal arbitral. Assim mesmo decidiu o Tribunal Arbitral na decisão proferida no processo nº 183/2014, a qual, aliás, foi invocada pela requerida no âmbito dos presentes autos.

 

  1. Quanto aos argumentos aduzidos pela Requerida na resposta a esta excepção no que tange à prática de eventual ilícito criminal entende este Tribunal não ter competência para se pronunciar cabendo à Requerida exercer os meios de defesa legalmente previstos que entender como adequados.

 

 

  1. Em conclusão, no que toca à primeira excepção invocada pela AT é entendimento deste Tribunal Arbitral que as autoliquidações em causa nos presentes autos são actos tributários e, como tal, podem ser impugnados nos termos legalmente previstos, sendo uma das vias a do recurso ao pedido de pronúncia arbitral, nos termos do artigo 2º, nº1, alínea a) do RJAT, o qual prevê a possibilidade de apreciação da legalidade de atos de liquidação e de autoliquidação de tributos. Deste modo, não assiste razão à Requerida AT na invocada excepção dilatória de incompetência material do Tribunal Arbitral por falta de objecto, a qual se considera improcedente.

 

 

B) Quanto à preterição de prévia Reclamação Graciosa:

 

  1. Passando agora à análise da segunda excepção invocada, alega a AT que caso se entenda que se trata de autoliquidações geradas pela própria Requerida no Portal das Finanças, então há que concluir, ainda assim, pela incompetência do Tribunal Arbitral, por preterição da prévia Reclamação Graciosa necessária.

Nos termos do disposto no artigo 2º, nº1, alínea a) do RJAT a competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação da declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta. A Portaria nº 112-A/2011 de 22 de Março, exceptua da competência dos tribunais arbitrais as pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação que não tenham sido precedidos de recurso prévio à via administrativa nos termos dos artigos 131º e 133º do CPPT.

 

  1. A questão que agora se coloca é, pois, a seguinte: a AT vinculou-se à jurisdição dos tribunais arbitrais, nos termos da Portaria 112-A/2011, de 22 de Março, que tenham por objecto a apreciação da legalidade de pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida, exceptuando pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa, nos termos do disposto no artigo 131º CPPT.
  2. Ora, no caso dos autos, por tudo o que já se deixou exposto supra, entende este Tribunal que os actos em causa cuja declaração de ilegalidade se peticiona se caracterizam como autoliquidações de IUC. Enquanto tal, deviam ter sido precedidos de prévia Reclamação Graciosa necessária, nos termos do artigo 131º do CPPT, pelo que, nesta questão assiste razão à AT na invocada excepção de incompetência deste Tribunal Arbitral.
  3. Não tendo existido, no caso dos autos, prévio recurso á via administrativa graciosa, o Tribunal Arbitral carece de competência para julgar esta questão, como resulta do disposto no artigo 2º, alínea a) da Portaria 112-A/2011, de 22 de Março. Neste sentido decidiu, em idêntica situação, o Tribunal Arbitral constituído no âmbito do Processo nº 183/2014T, já supra mencionado.

 

  1. Nestes termos, conclui-se pela procedência da excepção de incompetência absoluta deste Tribunal Arbitral em razão da matéria. Em consequência fica prejudicado o conhecimento das restantes questões de direito suscitadas pelas partes.

 

 

VI - DECISÃO

 

Face ao exposto, este Tribunal Arbitral decide julgar procedente a excepção de incompetência absoluta em razão da matéria, nos termos e fundamentos supra expostos, com a consequente absolvição da instância da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

 

Valor do processo: Em conformidade com o disposto nos artigos 306º, nºs 1 e 2 do CPC, artigo 97º - A, nº 1, alínea a), do CPPT e artigo 3º, nº 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de €6.392,24

 

 

Custas: Nos termos do disposto no artigo 22º, nº 4, do RJAT e nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em €612,00, a cargo da Requerente.

 

Registe-se e notifique-se. 

 

 

Lisboa, 28 de Julho de 2014

 

A Árbitro singular,

 

 

 

 

(Maria do Rosário Anjos)

 

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Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 131.º do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20/01.

A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia antiga.