Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 103/2022-T
Data da decisão: 2022-12-29  IRS  
Valor do pedido: € 56.965,79
Tema: Tema: IRS – Regime simplificado; Coeficiente aplicável (artigo 31.º do CIRS); Vendas de produtos ou prestações de serviços no exercício da profissão de médico dentista
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SUMÁRIO:

I - Os produtos ou materiais aplicados ou incorporados por dentistas ou médicos dentistas nos seus clientes integram a respetiva prestação de serviço, constituindo uma única prestação complexa, o que faz desses profissionais prestadores de serviços e não comerciantes;

II - Quando abrangidos pelo regime simplificado de tributação em IRS, nos termos da alínea a), do n.º 1 e n.º 2 do artigo 28.º do CIRS, devem inscrever a totalidade dos respetivos rendimentos no campo 403 do quadro 4-A do anexo B da declaração de rendimentos modelo 3, como rendimentos das atividades profissionais especificamente previstas na Tabela do artigo 151.º do CIRS (códigos 7010 Dentistas e 7015 Médicos dentistas), e não no campo 401 do mesmo quadro como vendas de mercadorias e produtos;

III – A determinação do rendimento tributável obtém-se através da aplicação do coeficiente 0,75, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 31.º do CIRS. 

 

 

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

1 – Relatório

  1. – A…, contribuinte n.º … e B…, contribuinte n.º …, residentes na Rua …,  … VFR, concelho de Santa Maria da Feira, distrito de Aveiro, doravante designados por «Requerentes», vêm, ao abrigo dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, n.ºs 1 e 2, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária), doravante apenas designado por «RJAT» e artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, requerer a constituição de tribunal arbitral singular, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “Requerida” ou “AT”).

 

  1. - O pedido de pronúncia arbitral, apresentado em 21 de fevereiro de 2022, tem por objeto o despacho de indeferimento da reclamação graciosa (Processo n.º …) proferido pela Chefe de Divisão de Justiça Tributária da Direção de Finanças de …, em 17 de novembro de 2021, ao abrigo de subdelegação de competências, bem como as liquidações adicionais de IRS e respetivos juros compensatórios referentes aos anos de 2017 e 2018, nos montantes, respetivamente, de 31.038,13 € e 25.927,66 €, efetuadas pela “AT” em 04 de julho de 2020, no montante global de 56.965,79 €, com data limite de pagamento em 27 de agosto de 2020. 

 

  1. – Com o pedido de pronúncia arbitral, os Requerentes juntaram 55 documentos; comprovativo de pagamento da taxa de arbitragem inicial; e respetiva procuração forense.

 

1.4 - Os Requerentes optaram por não designar árbitro.

 

1.5 - O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 22 de fevereiro de 2022.

 

1.6 - O signatário foi designado pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD como árbitro do tribunal arbitral singular, nos termos do disposto no artigo 6.º do RJAT, e comunicada a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

1.7 - Em 13 de abril de 2022, as Partes foram notificadas dessa designação, não se tendo oposto à mesma, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

 

1.8 - Assim, em conformidade com o preceituado no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o tribunal arbitral singular ficou constituído em 4 de maio de 2022.

 

1.9 - A AT foi notificada, por despacho arbitral da mesma data, nos termos do artigo 17.º, n.º 1 do RJAT, para, no prazo de 30 dias, apresentar Resposta, querendo, e solicitar a produção de prova adicional.

 

1.10 - Mais foi notificada para, no mesmo prazo, apresentar o processo administrativo (PA) referido no artigo 111.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

 

1.11 – Em 30 de maio de 2022, a Requerida apresentou a sua Resposta, defendendo-se por impugnação, pugnando pela improcedência, por não provada, do pedido de pronúncia arbitral, mantendo-se na ordem jurídica o ato tributário de liquidação com a consequente absolvição do pedido.

 

1.12 – Na mesma data juntou o respetivo PA.

 

1.13 - Considerando que as Partes não requereram a produção de qualquer prova, para além da documental junta ao processo, o Tribunal Arbitral, face aos princípios da autonomia na condução do processo, da celeridade, da simplificação e informalidades processuais, ínsitos nos artigos 16.º e 29.º, n.º 2, do RJAT, por despacho de 2 de junho de 2022, dispensou a realização da reunião prevista no artigo 18.º do mesmo diploma, determinando que o processo prosseguisse com alegações escritas e simultâneas, a apresentar pelas Partes, querendo, no prazo de 20 dias, o que as mesmas optaram por não fazer.  

 

1.14 - Pelo mesmo despacho foi determinado que a decisão arbitral seria proferida até ao termo do prazo a que alude o artigo 21.º/1 do RJAT, ou seja, até 4 de novembro de 2022, devendo até essa data a Requerente efetuar o pagamento da taxa de arbitragem subsequente, cfr. n.º 3 do artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

1.15 – Por despacho de 26 de outubro de 2022 foi prorrogado por dois meses o prazo para a prolação da decisão arbitral, nos termos do artigo n.º 21.º, n.º 2 do RJAT.

 

 

Posição das Partes

Dos Requerentes -

Sustentam o seu pedido de pronúncia arbitral, sinteticamente, da seguinte forma:

Que nos anos de 2017 e 2018 exerceram a profissão de médico dentista, classificada na Tabela anexa ao artigo 151.º do CIRS com o código “7015”, encontrando-se enquadrados no regime simplificado de tributação em IRS.

Que, como é por demais sabido, as prestações de serviços efetuadas por dentistas incorporam ao mesmo tempo e no mesmo momento em que são prestadas, uma grande quantidade de bens e materiais, como implantes e próteses dentárias, para além de anestesias e materiais de obturação e afins.

Deste modo os Requerentes, para efeitos de tributação em IRS, declararam separadamente os montantes dos serviços prestados e o relativo aos produtos que simultaneamente aplicaram.

Na sequência de procedimento inspetivo levado a cabo pela Direção de Finanças de … foram propostas correções aos elementos declarados que se traduziram na desconsideração dos valores declarados como vendas e no seu acréscimo aos rendimentos (prestações de serviços) da atividade profissional de médico dentista, desaplicando os coeficientes separados de 0,15 respeitante a vendas de produtos (campo 401 do anexo B da declaração modelo 3 de IRS) e 0,75 referente a prestações de serviços (campo 403), aplicando unitariamente este último coeficiente.

Entende a AT que os rendimentos auferidos por cada um dos Requerentes no âmbito da sua atividade de médico dentista devem ser tratados de forma unitária como rendimentos de atividade profissional prevista na tabela a que se refere o art.º 151.º do CIRS, com a consequente aplicação do coeficiente de 0,75 à totalidade dos rendimentos.

Porém os Requerentes entendem que procederam de conformidade com as exigências legais ao declararem separadamente os valores relativos aos materiais aplicados e os relativos aos serviços prestados propriamente ditos, pelo que são ilegais as liquidações sindicadas bem como a decisão da reclamação graciosa.

Também não colhe o argumento da AT segundo o qual os Requerentes, sendo profissionais liberais, não são nem podem ser estatutariamente considerados comerciantes, estando impedidos de vender os bens que incorporam nos serviços que prestam.

A determinação do rendimento através do regime simplificado constitui uma das modalidades de avaliação indireta, prevista na alínea a), n.º 1 do artigo 87.º da Lei Geral Tributária, com base em elementos objetivos de tipo presuntivo, sendo que tais presunções são ilidíveis nos termos do 73.º da LGT, através dos meios previstos no artigo 64.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário.

Estas correções aos elementos declarados tiveram como consequência liquidações adicionais de IRS e respetivos juros compensatórios dos referidos anos de 2017 e 2018, na importância total de 56.965,78 €, assim decomposta:

 

2017

2018

Soma

Imposto

28.774,05 €

25.038,64 €

53.812,69 €

Juros compensatórios

2.264,08 €

889,02 €

3.153,10 €

Total

31.038,13 €

31.038,13 €

56.965,79 €

 

Terminam pugnando pela procedência do pedido de pronúncia arbitral, por provado, e por via disso pela anulação dos atos de liquidação adicional de IRS dos anos de 2017 e 2018 bem como dos respetivos juros compensatórios e restituição do montante indevidamente liquidado.

 

 

Da Requerida -

Defendendo-se por impugnação, invoca os seguintes argumentos:

Na sequência da entrega pelos Requerentes das declarações modelo 3 de IRS referentes aos anos de 2017 e 2018, a Direção de Finanças de …, a coberto das Ordens de Serviço nºs OI2019… de 2019/10/22 e OI2020… de 2020/01/29, levou a cabo ações inspetivas externas de âmbito parcial, com início a 2019/11/12 e termo em 2020/01/28, com o objetivo de comprovação e verificação, visando a confirmação do cumprimento das obrigações dos sujeitos passivos e demais obrigados tributários (Código PNAITA 102-21 – Controlo dos fluxos de pagamento com cartões de débito e crédito – Modelo 40).

Conforme é referido no Relatório de Inspeção Tributária (RIT) a forma como os sujeitos passivos declararam, para efeitos de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS), os rendimentos da sua atividade, não se afigura correta, porquanto, na declaração de rendimentos modelo 3 de IRS, estes declararam uma parte do rendimento no campo 401 do anexo B, campo este que é dedicado exclusivamente à inscrição de rendimentos resultantes de vendas de mercadorias e produtos e, a outra parte (bastante inferior), como prestação de serviços no campo 403 daquele anexo. Deste modo, os sujeitos passivos ao declararem parte do seu rendimento no campo 401 (da modelo 3 – anexo B de IRS), estão a considerar que, na sua atividade de médicos dentistas, estão a efetuar uma operação tributária distinta e autónoma da prestação de serviços (de cuidados médicos). Deste procedimento, resulta numa diminuição de 60% do rendimento tributável dos SP, o que contraria por completo o esclarecimento da AT, quanto à qualificação destes rendimentos como prestação de serviços.

É por todos sabido que as prestações de serviços efetuadas por dentistas têm a particularidade de incorporarem uma grande quantidade de bens e materiais, como, por exemplo, os implantes e as próteses dentárias, para além de anestesias e materiais de obturação e afins. Esta realidade não pode ser entendida de forma distinta quando tratamos de IRS ou de IVA. Neste imposto os sujeitos passivos enquadram-se e comportam-se como prestadores de serviços, isentos no âmbito das al.s 1) e 3) do artigo 9.° do CIVA. Por conseguinte, quando passamos para a esfera do imposto sobre o rendimento, a natureza da atividade exercida pelos sujeitos passivos não se altera, mantendo-se como prestação de serviços.

A dificuldade existente prende-se com o facto de estarmos perante operações complexas, dito de outra forma, por o profissional dentista (ou outro qualquer que exerça uma atividade da tabela anexa ao artigo 151.º do CIRS), prestar serviços, onde incorpora, ao mesmo tempo e no mesmo momento, materiais e produtos. Nestas operações ditas complexas, coloca-se a questão de se poder ou não dividir este tipo de operações tributáveis em, prestações de serviços e em transmissões de bens.

Esta questão não é nova, existindo no campo da incidência do imposto, vários documentos (Fichas Doutrinárias, Ofícios-Circulados da AT e acórdãos do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE)), que visam esclarecer, qual a fronteira entre prestação de serviços e transmissão de bens no caso das operações tributárias complexas.

Diploma incontornável para a apreciação desta matéria é o Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 11 de Fevereiro de 2010, Graphic Procédé, C-88109, ECLI:EU:C:2010:76, o qual, estabelece critérios de distinção, entre os conceitos de "prestação de serviços» e "transmissão de bens", tendo sido, até ao momento, referência orientadora para todos os pareceres e decisões sobre esta temática.

Este acórdão, estabelece no seu ponto n.° 18, a metodologia a seguir na qualificação duma determinada operação tributável complexa, como prestação de serviços ou, como transmissão de bens. Esta metodologia segue duas etapas, primeiramente e, olhando para todas as circunstâncias em que se desenvolve a operação em questão, deve-se determinar, se se está perante duas ou mais operações distintas ou, pelo contrário, se se está perante uma operação única. Seguidamente, caso se conclua que se está perante uma prestação única, deve-se apurar se esta prestação deve ser qualificada como transmissão de bens, ou, como prestação de serviços.

Antes de mais, é necessário definir os conceitos de prestação de serviços e de transmissão

de bens, assim, o n.° 1 do art.° 14 da Diretiva 2006/112/CE, define "transmissão de bens" como, a transferência do poder de dispor de um bem corpóreo como proprietário, definição essa, que encontra correspondência no direito interno, no n.° 1 do artigo 3.° do CIVA: "Considera-se, em geral, transmissão de bens a transferência onerosa de bens corpóreos por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade", por sua vez, "prestação de serviços" encontra-se definida no n.° 1 do artigo 24.° da Diretiva do IVA como sendo: "qualquer operação que não constitua uma entrega de bens", transposto, em termos similares para, o n.° 1 do artigo 4.° do CIVA "São consideradas como prestações de serviços as operações efetuadas a título oneroso que não constituem transmissões, aquisições intracomunitárias ou importações de bens.

Assim, reafirmamos que estamos perante uma única prestação complexa, uma prestação de serviços que incorpora de forma acessória, quando necessário, materiais e componentes para satisfazer as necessidades do cliente/paciente e, executar de forma plena, o serviço que este demandou, o que faz do dentista um prestador de serviços e não um comerciante.

Desta forma e dando cumprimento ao estipulado pelo nº 4 do artigo 65º do CIRS, o rendimento dos SP’s oriundo do exercício da atividade de médico dentista, deve ser declarado, todo ele, no campo 403 da declaração modelo 3 de IRS, ou seja, em “Rendimentos das atividades profissionais especialmente previstas na Tabela do artigo 151.º do IRS”, pelo que se vai proceder à correção das declarações de rendimento dos SP em conformidade com este entendimento.

Os sujeitos passivos abrangidos pelo regime simplificado podem optar pela determinação dos rendimentos com base na contabilidade.

Das conclusões da ação inspetiva, resultou (Pontos III.3.1/2.), páginas 11 e 12 dos Relatórios de Inspeção que:

· No ano de 2017, correções técnicas aos rendimentos de Categoria B (profissionais) no valor total de € 64 446,00 (SP A no valor de € 3 717,00 e SP B no valor de € 60 729,00, respetivamente) do qual resultou um rendimento coletável corrigido – regime simplificado no valor total de € 92 827,73 (SP A no valor de € 5 673,98 e SP B no valor de € 87 153,75, respetivamente).

· No ano de 2018, correções técnicas aos rendimentos de Categoria B (profissionais) no valor total de € 60 613,80 (SP A no valor de € 6 988,80 e SP B no valor de € 53 625,00, respetivamente) do qual resultou um rendimento coletável corrigido – regime simplificado no valor total de € 87 312,00 (SP A no valor de € 11 865,75 e SP B no valor de € 75 446,25, respetivamente).

Em conformidade com as conclusões dos procedimentos inspetivos e não tendo procedido à entrega das respetivas declarações de substituição, os serviços elaboraram as declarações oficiosas modelo 3 de IRS dos anos de 2017 e 2018, inserindo o total dos rendimentos brutos no campo 403 do Q4A, referente a rendimentos das atividades profissionais especificamente previstas na Tabela do artigo 151.º do CIRS, aplicando o coeficiente de 0,75 previsto na alínea c), n.º 1 do artigo 31.º do CIRS, uma vez que a determinação dos rendimentos profissionais é feita com base na aplicação das regras decorrentes do regime simplificado, no qual os Requerentes se encontram.

A principal questão a esclarecer consiste em saber se a transmissão de próteses e outros materiais por médicos dentistas no exercício da respetiva profissão constitui uma atividade de prestação de serviços ou de transmissão de bens.

Tais atividades em termos de incidência de imposto deverão ser qualificadas de prestação de serviços e não de transmissão de bens, pois que, ainda que as prestações de serviços que esses profissionais efetuem aos seus clientes/pacientes, mesmo que impliquem a incorporação de materiais, nomeadamente prótese, implantes, entre outros, ainda se consideram incluídas naquelas prestações de serviços isentas, nos termos do artigo 9.º, n.º 3 do CIVA.

Assim, para que as transmissões de próteses, implantes e outros materiais estejam isentos de IVA, as mesmas devem ocorrer concomitante ou simultaneamente com a prestação de cuidados de saúde realizados a um paciente/cliente, constituindo assim, parte integrante da prestação de serviços, uma vez que se trata de material economicamente indissociável da prestação de serviços do ato médico prestado pelo médico dentista.

A transmissão isolada destes materiais é considerada transmissão de bens sujeitas a IVA, à taxa reduzida na verba 2.6 da Lista I do CIVA, sendo este o entendimento não só da doutrina emanada pela AT, como pela jurisprudência europeia, nomeadamente as fichas doutrinárias: Processo 8495 com despacho de 2015/04/14 do SDG do IVA, por delegação da DG da AT; Processo 13432, com despacho de 2018/05/07 da DS do IVA; Ofício Circulado nº 30183 de 2016/10/28; e Ofício Circulado 30188 de 2017/01/31, que visa esclarecer as alterações ao n.º 3 do artigo 9.º do CIVA, introduzidas pela Lei do Orçamento de Estado de 2017 (Lei 42/2016 de 28/12); Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) de 11 de fevereiro de 2010, Graphic Procédé, C-88/09, ECLI:EU:C:2010:76; bem como da Diretiva de IVA nº 2006/112/CE.

Em termos declarativos, de acordo com as instruções de preenchimento do Anexo B à declaração modelo 3 de IRS, referente aos anos de 2017 e 2018 (aprovadas pelas Portarias nºs 404/2015 de 16/11; 385-H/2017 de 29/12; e 34/2019 de 28/01, bem como do Ofício Circulado nº 20 187 de 2016/04/05):

· Campo 401 do Q4A do anexo B, destina-se a declarar vendas de mercadorias e produtos;

· Campo 403 do Q4A do anexo B, destina-se a declarar os rendimentos auferidos no exercício, por conta própria, de qualquer atividade de prestação de serviços que tenha enquadramento na alínea b) do n.º 1 do artigo 3.º do CIRS, independentemente da atividade exercida se encontrar classificada de acordo com a Classificação Portuguesa de Atividades Económicas (CAE), do Instituto Nacional de Estatística, ou de acordo com os códigos na tabela de atividades prevista no artigo 151.º do CIRS e aprovada pela Portaria nº 1011/2001, de 21/08, mas com exclusão da atividade com o código “1519 – outros prestadores de serviços”.

Nos termos das alíneas a) e b) do artigo 31.º do CIRS, vigentes à data dos factos (2017 e 2018), a determinação do rendimento tributável, no âmbito do regime simplificado, obtém-se através da aplicação dos coeficientes de 0,15 às vendas de mercadorias e produtos, bem como às prestações de serviços efetuadas no âmbito de atividades de restauração e bebidas e de atividades hoteleiras e similares, com exceção daquelas que se desenvolvam no âmbito da atividade de exploração de estabelecimentos de alojamento local na modalidade de moradia ou apartamento (na redação dada pela Lei 42/2016 de 28/12) e 0,75 aos rendimentos das atividades profissionais especificamente previstas na tabela a que se refere o artigo 151.º do CIRS.

Deste modo e de acordo com as conclusões dos procedimentos inspetivos, em termos de incidência real, os rendimentos auferidos no exercício das tarefas desenvolvidas pelos ora Requerentes (código 7015 – Médicos Dentistas, da tabela a que se refere o artigo 151º do CIRS), enquadram-se na alínea b) do n.º 1 do artigo 31.º do CIRS (qualificados como prestação de serviços dos atos médicos prestados por médicos dentistas), sendo os rendimentos declarados/inseridos no campo 403 do quadro 4A do anexo B da declaração modelo 3 de IRS e o rendimento tributável obtido através da aplicação do coeficiente 0,75, previsto na referida alínea.

Acolher a pretensão dos Requerentes, ou seja, declarar no campo 401 do quadro 4A os rendimentos relacionados com a aplicação de próteses, implantes e outros materiais, como se de vendas se tratasse, seria admitir que praticam atos de comércio (como os próprios admitem) e, consequentemente, não haveria suporte legal para tal, porquanto os médicos dentistas encontram-se impedidos de vender produtos e materiais aos seus pacientes (próteses e implantes entre outros), de acordo com o Regulamento nº 515/2019 da Ordem dos Médicos Dentistas, publicado no Diário da República, 2.ª série nº 115 de 2019/06/18.

A AT procedeu a uma correção meramente técnica decorrente dos procedimentos inspetivos, atuando unicamente ao nível da qualificação e enquadramento dos rendimentos declarados pelos ora Requerentes, transferindo-os do campo 401 para o campo 403 do Q4A do anexo B da declaração modelo 3 de IRS dos anos de 2017 e 2018, não tendo havido, como reconhecido por aqueles, qualquer alteração de rendimentos resultantes dos aludidos procedimentos.

Pelo que não pode falar-se em avaliação indireta, não obstante a alínea a) do n.º 1 do artigo 87.º da LGT a prever no regime simplificado de tributação, mas apenas nos casos e condições previstos na lei.

Por último refere que a AT fundamentou de facto e de direito (artigo 77º da LGT), as correções meramente técnicas efetuadas, conforme descrito no Cap. III do RIT, contendo todos os factos relevantes para a tomada de decisão, bem como o itinerário cognoscitivo e valorativo seguido (cfr. Acórdão STA nº 068/17, artigos nºs 268º, nº3 da CRP; 77º da LGT e 153º do CPA), improcedendo, consequentemente, todo o alegado pelos Requerentes.

Termina pugnando pela improcedência do pedido de pronúncia arbitral, por não provado, e absolvição da Requerida, mantendo-se na ordem jurídica os atos tributários impugnados, uma vez que as liquidações controvertidas consubstanciam uma correta interpretação e aplicação do direito aos factos, não padecendo de vício de violação de lei por erro nos pressupostos de facto e de direito.

 

2. Saneamento

2.1 - As Partes têm personalidade e capacidades judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

              

2.2 - O processo não enferma de nulidades.

 

2.3 - Não se verificam quaisquer outras circunstâncias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.

 

2.4 - O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente para conhecer e decidir o pedido, cfr. artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT.

 

 

3. Matéria de Facto

3.1 Factos provados

Com relevo para a apreciação e decisão das questões suscitadas, dão-se como assentes e provados os seguintes factos:

  1. Os Requerentes A…, contribuinte n.º … e B…, contribuinte n.º …, nos anos de 2017 e 2018 exerceram a profissão de médico dentista, sendo o rendimento tributável, para efeitos de IRS, determinado com base na aplicação das regras decorrentes do regime simplificado previsto no artigo 31.º do CIRS, cfr. pedido de pronúncia arbitral (ppa), Relatório de Inspeção Tributária e Resposta da AT, juntos aos autos;
  2. Relativamente ao ano de 2017 os Requerentes optaram pela tributação conjunta dos rendimentos para efeitos de IRS, nos termos da alínea a), n.º 2 do artigo 59.º do CIRS, tendo apresentado a respetiva declaração modelo 3, bem como os anexos A, B (um por cada sujeito passivo), G e H, cfr. processo administrativo (PA).

No campo 07 do quadro 3A do anexo B, destinado a declarar os rendimentos da categoria B no regime simplificado ou em atos isolados, respeitante ao Requerente A…, foi inscrito o código “7015” da Tabela de Atividades prevista no artigo 151.º do CIRS, publicada pela Portaria n.º 1011/2001, de 21 de agosto, correspondente à atividade exercida de “médico dentista”.

No campo 08 do mesmo quadro foi inscrito o código “47740” da Classificação Portuguesa de Atividades Económicas, Revisão 3 (CAE) correspondente à atividade de “comércio a retalho de produtos médicos e ortopédicos, em estabelecimentos especializados”.

No quadro 4A, destinado a declarar rendimentos profissionais, comerciais e industriais (brutos), foi inscrito no campo 401, relativo a vendas de mercadorias e produtos, o montante de 6.195,00 € e no campo 403, relativo a rendimento das atividades profissionais especificamente previstas na Tabela do artigo 151.º do CIRS (médico dentista), o montante de 1.370,30 €. A soma dos rendimentos profissionais, comerciais e industriais do Requerente é de 7.565,30 €.

  1. No campo 07 do quadro 3A do anexo B, destinado a declarar os rendimentos da categoria B no regime simplificado ou em atos isolados, respeitante à Requerente B…, foi inscrito o código “7015” da Tabela de Atividades prevista no artigo 151.º do CIRS, publicada pela Portaria n.º 1011/2001, de 21 de agosto, correspondente à atividade exercida de “médico dentista”.

No campo 08 do mesmo quadro foi inscrito o código “47740” da Classificação Portuguesa de Atividades Económicas, Revisão 3 (CAE) correspondente à atividade de “comércio a retalho de produtos médicos e ortopédicos, em estabelecimentos especializados”.

No quadro 4A, destinado a declarar rendimentos profissionais, comerciais e industriais (brutos), foi inscrito no campo 401, relativo a vendas de mercadorias e produtos, o montante de 101.215,00 € e no campo 403, relativo a rendimento das atividades profissionais especificamente previstas na Tabela do artigo 151.º do CIRS (médico dentista) o montante de 14.990,00 €. A soma dos rendimentos profissionais, comerciais e industriais da Requerente é de 116.205,00 €.

O total dos rendimentos profissionais, comerciais e industriais de ambos os Requerentes no ano de 2017 é de 123.770,30 €, correspondendo 107.410,00 € a vendas de mercadorias e produtos e 16.360,30 € a rendimento das atividades profissionais especificamente previstas na Tabela do artigo 151.º do CIRS (médico dentista).

  1. Relativamente ao ano de 2018 os Requerentes optaram pela tributação conjunta dos rendimentos para efeitos de IRS, nos termos da alínea a), n.º 2 do artigo 59.º do CIRS, tendo apresentado a respetiva declaração modelo 3, bem como os anexos A, B (um por cada sujeito passivo), G e H, cfr. processo administrativo (PA).

No campo 07 do quadro 3A do anexo B, destinado a declarar os rendimentos da categoria B no regime simplificado ou em atos isolados, respeitante ao Requerente A…, foi inscrito o código “7015” da Tabela de Atividades prevista no artigo 151.º do CIRS, publicada pela Portaria n.º 1011/2001, de 21 de agosto, correspondente à atividade exercida de “médico dentista”.

No campo 08 do mesmo quadro foi inscrito o código “47740” da Classificação Portuguesa de Atividades Económicas, Revisão 3 (CAE) correspondente à atividade de “comércio a retalho de produtos médicos e ortopédicos, em estabelecimentos especializados”.

No quadro 4A, destinado a declarar rendimentos profissionais, comerciais e industriais (brutos), foi inscrito no campo 401, relativo a vendas de mercadorias e produtos, o montante de 11.648,00 € e no campo 403, relativo a rendimento das atividades profissionais especificamente previstas na Tabela do artigo 151.º do CIRS (médico dentista), o montante de 4.173,00 €. A soma dos rendimentos profissionais, comerciais e industriais do Requerente é de 15.821,00 €.

  1. No campo 07 do quadro 3A do anexo B, destinado a declarar os rendimentos da categoria B no regime simplificado ou em atos isolados, respeitante à Requerente B…, foi inscrito o código “7015” da Tabela de Atividades prevista no artigo 151.º do CIRS, publicada pela Portaria n.º 1011/2001, de 21 de agosto, correspondente à atividade exercida de “médico dentista”.

No campo 08 do mesmo quadro foi inscrito o código “47740” da Classificação Portuguesa de Atividades Económicas, Revisão 3 (CAE) correspondente à atividade de “comércio a retalho de produtos médicos e ortopédicos, em estabelecimentos especializados”.

No quadro 4A, destinado a declarar rendimentos profissionais, comerciais e industriais (brutos), foi inscrito no campo 401, relativo a vendas de mercadorias e produtos, o montante de 89.375,00 € e no campo 403, relativo a rendimento das atividades profissionais especificamente previstas na Tabela do artigo 151.º do CIRS (médico dentista) o montante de 11.220,00 €. A soma dos rendimentos profissionais, comerciais e industriais da Requerente é de 100.595,00 €.

  1. O total dos rendimentos profissionais, comerciais e industriais de ambos os Requerentes no ano de 2018 é de 116.416,00 €, correspondendo 100.595,00 € a vendas de mercadorias e produtos e 15.821,00 € a rendimento das atividades profissionais especificamente previstas na Tabela do artigo 151.º do CIRS (médico dentista).
  2. O total dos rendimentos profissionais, comerciais e industriais de ambos os Requerentes nos anos de 2017 e 2018 é de 240.186,30 €, correspondendo 123.770,30 € a 2017 e 116.416,00 € a 2018.
  3. Em cumprimento das Ordens de Serviço n.ºs OI201… e OI202…, emitidas nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1 e n.º 2, alínea a), 12.º, n.º 1 e 14.º, n.º 1, alínea b), ambos do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira (RCPITA), respetivamente em 23 de outubro de 2019 e 29 de janeiro de 2020, foi ordenado procedimento inspetivo externo aos Requerentes, relativo ao exercício de 2017 e de âmbito geral, e ao exercício de 2018 em sede de IRS, com início a 2019/11/12 e termo em 2020/01/28, com o objetivo de comprovação e verificação, visando a confirmação do cumprimento das obrigações dos sujeitos passivos e demais obrigados tributários (Código PNAITA 102-21 – Controlo dos fluxos de pagamento com cartões de débito e crédito – Modelo 40), cfr Relatório da Inspeção Tributária (RIT) junto aos autos;
  4. A fls. 4 a 11 do referido relatório vem referido:

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  1. Pelo ofício n.º … da Direção de Finanças de …, de 10 de março de 2020 (registo n.º RH…PT) foram os Requerentes notificados para, no prazo de 15 dias, exercer, querendo, o direito de audição sobre o projeto de RIT, nos termos dos artigos 60.º da LGT e 60.º do RCPITA, cfr. processo administrativo (PA);
  2. Pelo ofício n.º … da Direção de Finanças de …, de 4 de junho de 2020 (registo n.º RH…PT) foram os Requerentes notificados do RIT, nos termos do artigo 62.º do RCPITA, cfr. processo administrativo (PA);
  3. Por despacho do Chefe de Divisão dos Serviços de Inspeção Tributária, de 03 de junho de 2020, no uso de competência delegada, os elementos declarados pelos Requerentes nos anexos B por eles apresentados relativamente aos anos de 2017 e 2018, foram alterados, nos termos do n.º 4 do artigo 65.º do CIRS, face às correções técnicas constantes do RIT, de natureza meramente aritmética, nos montantes de 64.446,00 € e 60.613,80 €, respetivamente, sendo emitidos os respetivos documentos de correção, cfr. RIT; 
  4. Em 04 de julho de 2020 a Autoridade Tributária e Aduaneira procedeu à liquidação adicional de IRS n.º 2020 … e ao respetivo acerto, relativa ao ano de 2017, no montante de 28.774,05 € e juros compensatórios de 2.264,08 €, no montante global de 31.038,13 €, com data limite de pagamento de 27 de agosto de 2020, cfr. demonstração de liquidação de IRS e documento de compensação que constituem os documentos n.ºs 3 e 4;
  5. Em 04 de julho de 2020 a Autoridade Tributária e Aduaneira procedeu à liquidação adicional de IRS n.º 2020 … e ao respetivo acerto, relativa ao ano de 2018, no montante de 25.038,64 € e juros compensatórios de 889,02 €, no montante global de 25.927,66 €, com data limite de pagamento de 27 de agosto de 2020, cfr. demonstração de liquidação de IRS e documento de compensação que constituem os documentos n.ºs 5 e 6;
  6. O pagamento do IRS de 2017 e juros compensatórios ocorreu em 11 de agosto de 2020, e o de 2018 em 07 de agosto de 2020, cfr. talões do Multibanco com as referências n.ºs … e …, respetivamente, sobrepostos nos documentos n.ºs 4 e 6;   
  7. Em 28 de dezembro de 2020 os Requerentes apresentaram reclamação graciosa (Processo n.º …) na qual peticionavam a anulação das liquidações impugnadas nos presentes autos, no montante global de 56.965,79 €, cfr. processo administrativo;
  8. Pelo ofício n.º … da Direção de Finanças de …, de 11 de outubro de 2021 (registo n.º RH…PT), os Requerentes foram notificados para, nos termos do artigo 60.º da LGT, exercer, querendo, no prazo de 15 dias, o direito de audição prévia, cfr documento n.º 2 junto com o ppa;
  9. Por despacho de 17 de novembro de 2021 da chefe de Divisão da Justiça Tributária da Direção de Finanças de …, no uso de competência subdelegada, a reclamação graciosa foi indeferida, sendo os Requerentes notificados pelo ofício n.º …, de 18 de novembro de 2021 (registo n.º RH…PT), cfr. documento n.º 1 junto com o ppa;
  10. Em 21 de fevereiro de 2022 os Requerentes apresentaram pedido de constituição de Tribunal Arbitral, ao abrigo da alínea a), número 1 do artigo 2.º e do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que deu origem ao presente processo, peticionando a anulação das liquidações adicionais de IRS e respetivos juros compensatórios, no montante global de 56.965,79 €, referentes aos anos de 2017 e 2018, 4 de julho de 2020.

 

3.2 Factos não provados            

Não há factos relevantes para a decisão da causa que devam considerar-se não provados.

 

3.3 Motivação

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de selecionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido formulado pelo autor [(cfr. artigos 596º, nº 1 e 607º, nºs 2 a 4 do CPC, aplicáveis ex vi do artigo 29º, nº 1, alíneas a) e e) do RJAT)] e consignar se a considera provada ou não provada (cfr. artigo 123º, nº 2 do CPPT).

Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação às provas produzidas, na sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento das pessoas (cfr. artigo 607.º, n.º 5 do CPC). Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g. força probatória plena dos documentos autênticos, cfr. artigo 371.º do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação. 

Assim, a convicção do Tribunal fundou-se no acervo documental junto aos autos bem como nas posições assumidas pelas partes.

 

 

4 - Matéria de Direito (fundamentação)

Objeto do litígio

A questão que constitui o thema decidenduum consiste em saber se os produtos ou materiais aplicados ou incorporados por dentistas ou médicos dentistas nos seus clientes integram a respetiva prestação de serviço, constituindo uma única prestação complexa ou consubstanciam uma operação de transmissão de bens, distinta e autónoma da prestação de serviços de cuidados médicos.

 

Questão a decidir:

- Da (i)legalidade das liquidações impugnadas

 

Os Requerentes são médicos dentistas, tendo ficado abrangidos, nos anos de 2017 e 2018, pelo regime simplificado de tributação em IRS previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 28.º e no artigo 31.º do Código do IRS.

Tendo optado pela tributação conjunta dos rendimentos para efeitos de IRS, nos termos da alínea a), n.º 2 do artigo 59.º do CIRS, apresentaram a respetiva declaração modelo 3, bem como os anexos A, B (um por cada sujeito passivo), G e H, cfr. processo administrativo (PA).

No campo 07 do quadro 3A dos anexos B, destinado a declarar os rendimentos da categoria B no regime simplificado ou em atos isolados, os Requerentes inscreveram o código “7015” da Tabela de Atividades prevista no artigo 151.º do CIRS, publicada pela Portaria n.º 1011/2001, de 21 de agosto, correspondente à atividade exercida de “médico dentista”.

E no campo 08 do mesmo quadro foi inscrito o código “47740” da Classificação Portuguesa de Atividades Económicas, Revisão 3 (CAE) correspondente à atividade de “comércio a retalho de produtos médicos e ortopédicos, em estabelecimentos especializados”.

 

Relativamente ao ano de 2017, no quadro 4A do anexo B respeitante ao Requerente A…, destinado a declarar rendimentos profissionais, comerciais e industriais (brutos), foi inscrito no campo 401, relativo a vendas de mercadorias e produtos, o montante de 6.195,00 € e no campo 403, relativo a rendimento das atividades profissionais especificamente previstas na Tabela do artigo 151.º do CIRS (médico dentista), o montante de 1.370,30 €. A soma dos rendimentos profissionais, comerciais e industriais do Requerente é de 7.565,30 €.

No anexo B relativo à Requerente B…, foram inscritos nos campos 401 e 403 do quadro 4A, os montantes de 101.215,00 € e 14.990,00 €, respetivamente. A soma dos rendimentos profissionais, comerciais e industriais da Requerente é de 116.205,00 €.

O total dos rendimentos profissionais, comerciais e industriais de ambos os Requerentes é de 123.770,00 €, correspondendo 107.410,00 € a vendas de mercadorias e produtos e 16.360,30 € a rendimento das atividades profissionais especificamente previstas na Tabela do artigo 151.º do CIRS (médico dentista).

 

Relativamente ao ano de 2018, no quadro 4A do anexo B respeitante ao Requerente A…, destinado a declarar rendimentos profissionais, comerciais e industriais (brutos), foi inscrito no campo 401, o montante de 11.648,00 € e no campo 403, o montante de 4.173,00 €. A soma dos rendimentos profissionais, comerciais e industriais do Requerente é de 15.821,00 €.

No anexo B relativo à Requerente B…, foram inscritos nos campos 401 e 403 do quadro 4A, os montantes de 89.375,00 € e 11.220,00 €, respetivamente. A soma dos rendimentos profissionais, comerciais e industriais da Requerente é de 100.595,00 €.

O total dos rendimentos profissionais, comerciais e industriais de ambos os Requerentes é de 116.416,00 €, correspondendo 101.023,00 € a vendas de mercadorias e produtos e 15.393,00 € a rendimento das atividades profissionais especificamente previstas na Tabela do artigo 151.º do CIRS (médico dentista).

 

Ao inscreverem no campo 401 do quadro 4A do anexo B rendimentos brutos da sua atividade, os Requerentes consideraram os produtos ou materiais aplicados ou incorporados como venda de produtos, constituindo uma operação de transmissão de bens, distinta e autónoma da prestação de serviços de cuidados médicos, não integrada nas respetivas prestações de serviço nem constituindo uma única prestação complexa.

Porém os médicos dentistas estão impedidos de proceder à venda, nos seus consultórios e clínicas, de quaisquer produtos aos seus clientes ainda que seja uma simples pastas de dentes.

Com efeito os artigos 7.º e 22.º do Regulamento Interno n.º 2/99, publicado no Diário da República – II Serie, nº 143, de 22 de Junho, alterado pelo Regulamento interno nº 4/2006, publicado em DR-II Serie nº 103, de 29 de Maio do Código Deontológico da Ordem dos Médicos Dentistas, dispunham:

“Artigo 7.º - Comércio e Mediação – (…) 2. No consultório o médico dentista não pode exercer actividade comercial, podendo contudo disponibilizar ao doente bens, aparelhos e equipamentos, necessários e adequados ao tratamento em curso (…)”. 

“Artigo 22.º - Honorários – (…) 2. Na fixação dos honorários o médico dentista terá em conta, nomeadamente, a importância, complexidade e dificuldade dos cuidados prestados, o tempo gasto e os custos inerentes (…).

Os custos inerentes antes referidos respeitarão, com certeza, aos materiais e produtos utilizados nos cuidados prestados. 

Este código foi revogado pelo artigo 65.º do Código Deontológico aprovado pelo Regulamento n.º 515/2019, publicado na 2.ª série do Diário da República, n.º 115, de 18 de junho, em vigor desde 19 de junho de 2019.

 

Sendo os médicos dentistas profissionais liberais, uma vez que exercem de modo habitual e autónomo atividades primordialmente intelectuais, suscetíveis de regulamentação e controlo próprios a cargo de ordens profissionais, os mesmos não são qualificáveis como comerciantes, cfr. COUTINHO DE ABREU Jorge Manuel, em Curso de Direito Comercial, 2002, Vol. I, 3.ª ed., pág. 103.

 

O n.º 1 do artigo 3.º do código do IVA define transmissão de bens como a transferência onerosa de bens corpóreos por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade.

E o n.º 1 do artigo 4.º do mesmo código define como prestações de serviços as operações efetuadas a título oneroso que não constituem transmissões, aquisições intracomunitárias ou  

Não obstante estes conceitos constarem do CIVA não vemos motivos para não os aplicarmos ao IRS.

O acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 11 de fevereiro de 20101, Graphic Procédé, C-88/09, ECLI:EU:C:2010:76, estabelece nos pontos 16 e seguintes critérios de distinção entre “entrega de bens” e “prestação de serviços”.

Assim: “16 – No que respeita ao conceito de «entrega de bens», o artigo 5.º, n.º 1, da Sexta Directiva dispõe que por tal entrega se entende a transferência do poder de dispor de um bem corpóreo, como proprietário. A este propósito, a jurisprudência do Tribunal de Justiça precisa que este conceito inclui qualquer operação de transferência de um bem corpóreo por uma parte que confira à outra parte o poder de dispor desse bem como se fosse o seu proprietário.

17 – Quanto ao conceito de «prestação de serviços», resulta do artigo 6.º, n.º 1, da Sexta Diretiva que o mesmo abrange qualquer prestação que não constitua uma entrega de bens na acepção do artigo 5.º desta directiva. 

18 – Como decorre da jurisprudência do Tribunal de Justiça, quando uma operação é constituída por um conjunto de elementos e de actos, devem tomar-se em consideração               todas as circunstâncias em que se desenvolve a operação em questão, para determinar, por um lado, se se está na presença de duas ou mais prestações distintas ou de uma prestação única e, por outro, se, neste último caso, esta prestação única deve ser qualificada de entrega de bens ou de prestação de serviços.

19 – O Tribunal de Justiça também já declarou, tendo em conta a dupla circunstância de, por um lado, decorrer do artigo 2.º da Sexta Directiva que cada operação deve normalmente ser considerada distinta e independente e de, por outro, a operação constituída por uma única prestação no plano económico não dever ser artificialmente decomposta para não alterar a funcionalidade do sistema do IVA, que se está em presença de uma prestação única quando dois ou vários elementos ou actos fornecidos pelo sujeito passivo ao cliente estão tão estreitamente ligados que formam, objectivamente, uma única prestação económica indissociável cuja decomposição revestiria um carácter artificial .

24 – Para determinar se uma prestação complexa única, como a do caso em apreço no processo principal, deve ser qualificada de entrega de bens ou de prestação de serviços, cumpre identificar os seus elementos dominantes (…). A este respeito, resulta da jurisprudência que uma prestação deve ser considerada acessória de uma prestação principal quando constitua para a clientela não um fim em si, mas um meio de beneficiar nas melhores condições do serviço principal do prestador”.

Pelo exposto é entendimento deste Tribunal Arbitral que estamos perante uma prestação de serviços que incorpora, de forma acessória, materiais e componentes para satisfazer as necessidades do paciente, o que faz do médico dentista um prestador de serviços e não um comerciante.                   

Deste modo os montantes inscritos no campo 401 (vendas de mercadorias e produtos) do quadro 4 A dos anexos B, das declarações de rendimento modelo 3 de IRS, deveriam constar do campo 403 (rendimento das atividades profissionais especificamente previstas na Tabela do artigo 151.º do CIRS).

E foram estas correções técnicas de natureza meramente aritmética, resultantes de avaliação direta, face à interpretação a contrario da alínea a), n.º 1 do artigo 87.º da LGT, que, nos termos do n.º 4 do artigo 65.º do CIRS, foram feitas pela Autoridade Tributária e Aduaneira, na sequência da ação inspetiva aos Requerentes.

 

Deste modo foram emitidos os documentos de correção tendo em vista as liquidações adicionais, ora impugnadas, sendo a determinação do rendimento tributável obtida no âmbito do regime simplificado através da aplicação à totalidade dos rendimentos obtidos do coeficiente 0,75, previsto na alínea b), n.º 1 do artigo 31.º do CIRS, destinado aos rendimentos das atividades profissionais especificamente previstas na tabela a que se refere o artigo 151.º, como seja a de médico dentista, à qual foi atribuído o código 7015.

 

No sentido de que não deixam de ser qualificados como prestadores de serviços todos aqueles que, concomitantemente com a atividade que exercem, incorporam produtos ou materiais, podem ver-se, entre outros, a decisão do CAAD de 17-10-2017 (processo n.º 107/2017) e os acórdãos do STA de 26-11-2016 (processo n.º 379/2016) e de 15-02-2017 (processo n.º 01238-16); e do TCAN de 11-10-2017 (processo n.º 00864/05.1BEVIS); de 04-05-2017 (processo n.º 01349/04.9BEVIS); e de 14-07-2016 (processo n.º 01505/04.0BEVIS), que acompanhamos.

Refere este último acórdão, reportado a período diferente do dos autos (2001) em que os coeficientes previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 31.º do CIRS eram 0,20 e 0,65, respetivamente, contrariamente aos de 0,15 e 0,75 em vigor à data do período em causa nos presentes autos: “(…) 1. A lei prevê dois métodos de determinação do rendimento colectável da categoria B (art.º 3.º do CIRS): com base na aplicação das regras decorrentes do regime simplificado, ou com base na contabilidade (art.º 28.º, n.º 1, do CIRS). 2. No regime simplificado de tributação, o rendimento líquido é determinado pela aplicação do coeficiente de 0,20 à venda de bens materiais e de 0,65 aos restantes rendimentos da categoria B [rendimentos empresariais e profissionais] (art.º 31,º., n.º 2, do CIRS); 3. Sendo de qualificar como prestação de serviços com fornecimento de materiais (art.º 1207.º e 1210.º, n.º1, do Cód. Civil) as operações económicas praticadas pelo sujeito passivo, o rendimento líquido resultante da actividade assente nessas operações determina-se pela aplicação do coeficiente de 0,65 ao valor global das operações, ainda quando o sujeito passivo orçamente e facture separadamente ao cliente o fornecimento dos materiais e da mão-de-obra; 4. Os princípios constitucionais da igualdade, da capacidade contributiva e da tributação pelo rendimento real (art.º 104.º da CRP) não saem violados perante a constatação de que a aplicação dos coeficientes previstos na lei introduz, em concreto, distorções muito significativas nos resultados, pois o regime simplificado pode ser afastado por opção expressa dos contribuintes pelo regime de contabilidade organizada (art.º 28.º, n.º 4, do CIRS).

 

 

Pela sua relevância transcreve-se parte do Projeto/Informação de 2021/03/15, ponto 4, V, páginas 8 e 9 – Processo nº DJT … da Divisão da Justiça Tributária – Contencioso da Direção de Finanças de …, que acompanhamos:

“O regime simplificado de tributação é um método de tributação previsto no sistema fiscal português, que visa a determinação do rendimento tributável, mediante a aplicação dos coeficientes do artigo 31.º do CIRS aos rendimentos brutos dos Sujeitos Passivos. Estes coeficientes fazem parte do próprio regime e encontram-se inscritos em norma legal, a qual é geral e abstrata. São por isto um elemento objetivo deste regime.

O artigo 39º do CIRS, que se refere à aplicação de métodos indiretos, menciona que a determinação do rendimento por métodos indiretos se verifica nos casos e condições previstos nos artigos 87º a 89º da Lei Geral Tributária (LGT) e segue os termos do artigo 90º da referida lei e do artigo 59º do Código do IRC, com as adaptações necessárias.

Ora, a alínea a) do nº 1 do artigo 87º da lei geral tributária (LGT), refere que a avaliação indireta só pode efetuar-se em caso de regime simplificado de tributação, nos casos e condições previstos na lei, significando que há avaliação indireta quando se procede à alteração do volume de negócios, tal como decorre do nº 1 do artigo 91º da lei geral tributária, que se refere ao pedido de revisão da matéria coletável nos casos em que é determinada a matéria tributável por métodos indiretos, conforme se transcreve:

- O sujeito passivo pode, salvo nos casos de aplicação do regime simplificado de tributação em que não sejam efetuadas correções com base noutro método indireto, solicitar a revisão da matéria tributável fixada por métodos indiretos em requerimento fundamentado dirigido ao órgão da administração tributária da área do seu domicílio fiscal, a apresentar no prazo de 30 dias contados a partir da data da notificação da decisão e contendo a indicação do perito que o representa.

Este normativo legal - nº 1 do artigo 91.º da LGT - veda o acesso ao procedimento de revisão aos Sujeitos Passivos nos casos de aplicação do regime simplificado de tributação, onde são aceites os rendimentos brutos declarados e são aplicados os coeficientes do artigo 31.º do CIRS, ou seja, é afastado do procedimento de revisão quando não há avaliação indireta da faturação dos sujeitos passivos, conforme se verifica no caso em análise.

Não obstante a doutrina invocada pelos reclamantes, não podem os mesmos desconhecer que o autor da mesma (João Sérgio Ribeiro, Tributação Presuntiva do Rendimento, Almedina, coleção Teses, 2010, pág. 381) assume que é dominante no nosso sistema a convicção de que o regime simplificado não é susceptível de ser afastado, pura e simplesmente, através da comprovação de que os rendimentos obtidos se afastam dos que dele resultam.

Por outro lado, os reclamantes reconhecem, nos pontos 7.º e 13.º da sua reclamação, que a AT se limitou a transferir os rendimentos por si declarados no campo 401 do anexo B da declaração modelo 3 de IRS, para o campo 403, não havendo qualquer alteração quantitativa ao rendimento declarado.

Por conseguinte, esta correção é meramente técnica, atuando unicamente ao nível da qualificação e enquadramento daqueles rendimentos, tal como se explica no corpo do Relatório Final de inspeção e se reforçou nos pontos anteriores, pelo que, não tendo as liquidações reclamadas por base uma correção indireta no procedimento inspetivo, o artigo 64.º do CPPT não será aplicável ao caso em apreço.”

 

Quanto à presunção de rendimentos referida pelos Requerentes no ppa, refira-se que a mesma inexiste, como antes se referiu, uma vez que a correção efetuada é meramente técnica atuando unicamente ao nível da qualificação e enquadramento dos rendimentos declarados pelos ora Requerentes, transferindo-os do campo 401 para o campo 403 do Q4A do anexo B da declaração modelo 3 de IRS dos anos de 2017 e 2018, aplicando unitariamente o coeficiente 0,75 previsto na alínea b), n.º 1 do artigo 31.º do CIRS, não tendo havido, como reconhecido por aqueles, qualquer alteração de rendimentos resultantes dos aludidos procedimentos.

Refira-se também que, nos termos do n.º 3 do artigo 28.º do CIRS, os Recorrentes podiam ter optado pelo regime de contabilidade, e, não o tendo feito, terão de suportar as respetivas consequências, ou seja, a determinação do rendimento tributável com base na aplicação das regras decorrentes do regime simplificado através da aplicação do coeficiente 0,75, supra referido.

 

Assim inexistem quaisquer ilegalidades nas liquidações impugnadas, devendo as mesmas manter-se na ordem jurídica.

 

 

***

 

5 - Decisão

Em face do exposto, decide-se:

  1. Julgar improcedente o pedido de anulação das liquidações de IRS dos anos de 2017 e 2018, supra referenciadas, bem como dos respetivos juros compensatórios, no montante global de 56.965,79 €, mantendo-se tais atos na ordem jurídica com a consequente absolvição da Autoridade Tributária e Aduaneira do pedido;
  2. Julgar improcedente o pedido de condenação da AT no reembolso do montante pago; e  
  3. Condenar os Requerentes no pagamento das custas arbitrais do processo.

 

Valor do Processo

De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT), fixa-se ao processo o valor de 56.965,79 € (cinquenta e seis mil, novecentos e sessenta e cinco mil, setenta e nove cêntimos).

 

Custas

Nos termos do artigo 4.º, n.º 4 do citado RCPAT e artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT, fixa-se o montante das custas em 2.142,00 € (dois mil, cento e quarente e dois euros), nos termos da Tabela I, anexa àquele regulamento, a cargo dos Requerentes.

 

Notifique.

Lisboa, CAAD, 29 de dezembro de 2022.

 

O Árbitro,

 

(Rui Ferreira Rodrigues)