Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 583/2021-T
Data da decisão: 2022-04-26  IRC  
Valor do pedido: € 433.100,73
Tema: IRC -Perda por abate; Falta de fundamentação; Determinação do VPT de terrenos para construção.
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SUMÁRIO:

 

1 – As decisões administrativas têm que ser suficientemente fundamentadas, equivalendo a falta de fundamentação a adoção de fundamentos manifestamente contraditórios com a realidade subjacente.

2 – A manutenção de fachadas de prédios a serem demolidos, ditada por imperativos legais urbanísticos, não obsta ao desreconhecimento do valor de tais ativos, porquanto não se pode, objetivamente, esperar futuros benefícios económicos do seu uso ou alienação.

3 – Em 2018, o art. 45º do CIMI não previa a utilização dos coeficientes de afetação (Ca) e de localização (CI) na determinação do VPT dos terrenos para construção.


 

DECISÃO ARBITRAL

A..., Lda, NIPC..., com sede na Rua ..., n.º ..., ...-... Guimarães, apresentou, nos termos legais, pedido de constituição de tribunal arbitral, sendo Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

I - RELATÓRIO

  1. O pedido

A Requerente pede a declaração de ilegalidade da liquidação de IRC n.º 2020..., referente ao exercício de 2018, concluindo pela sua anulação com todas as consequências legais.
 

  1. Posição das partes
     

Está em causa a determinação do montante da perda fiscal correspondente a edificações a serem abatidas ao ativo da Requerente. Há consenso quanto a verificação dos pressupostos legais para a aceitação da perda, mas não quanto ao seu valor: a Requerente registou um gasto (abate em inventários) de € 586.181,75, sendo que a AT entendeu não aceitar o montante de € 433.100,75.

Em concreto, existem duas divergências: a primeira, relativa à determinação valor patrimonial tributário do terreno; a segunda, quanto à aceitação como perda do total da diferença entre o preço de aquisição e o valor fiscal do terreno (posição defendida pela Requerente) ou apenas 50% de tal valor (posição defendida pela Requerida).

A Requerente alega, em resumo, que:

  • o procedimento adotado pela AT configura uma correção por métodos indiretos e não uma correção meramente aritmética;
  •  na determinação do VPT dos terrenos para construção foi considerado o valor da área de implantação na percentagem de 35%, sem qualquer fundamentação
  • não se descortina por que razão entendeu a AT considerar que apenas 50% do valor das edificações construídas é que poderia ser aceite como gasto para efeitos fiscais.
  • A AT incorreu em ilegalidade no cálculo do VPT dos terrenos para construção, pois utilizou a fórmula prevista no n.º 1 do art.º 38.º do CIMI, quando, na verdade deveria ter utilizado a regra prevista no art.º 45.º do CIMI, ou seja, não poderiam ter sido considerados os coeficientes de afetação e de localização

 

A Requerida, na sua resposta, recusa ter havido lugar a avaliação indireta e, no mais, sustenta a legalidade da sua atuação.

 

  1. Tramitação processual
     

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite em 16/09/2021.

A Requerente não procedeu à indicação de árbitro, tendo a nomeação dos membros deste coletivo arbitral competido ao Conselho Deontológico do CAAD, a qual não mereceu oposição.
Os árbitros designados aceitaram tempestivamente as nomeações.

O tribunal arbitral ficou constituído em 26/11/2021.

 

A Requerida apresentou resposta e juntou o P.A.

Em 15/02/2002, teve lugar sessão para os fins previstos no artº 18º do RJAT e audição das testemunhas arroladas pela Requerente, de cujo depoimento esta prescindiu. Com o acordo das partes, o Tribunal arbitral prescindiu da produção de alegações.

 

 

II – SANEAMENTO

 

O processo não enferma de nulidades ou irregularidades.

Não existem exceções de que cumpra conhecer.

 

 

III – PROVA

 

III.1 – Factos provados:

 

  1. A Requerente adquiriu, em finais de 2014 e inícios de 2015, quatro edifícios, em Lisboa.
  2. Três desses edifícios, contíguos, confinam com a Rua ... e correspondem aos artigos matriciais urbanos ..., ... e ... .
  3. Em 30.04.2015, a Requerente apresentou na Câmara Municipal de Lisboa um projeto de reabilitação dos edifícios adquiridos.
  4. De tal projeto consta, nomeadamente, o seguinte:
  • o conjunto de edifícios adquirido tinha uma área bruta de construção de 1 647.68m2 e uma volumetria de 5 508.98m2;
  • os edifícios da rua ... tinham 5 pisos acima da cota de soleira;
  • os pisos térreos destinavam-se a comércio e os superiores a habitação, existindo duas lojas em funcionamento nos edifícios da Rua ... no momento da sua aquisição pela Requerente;
  • as fachadas sobre a rua apresentam dimensões reduzidas.
  1. No caso dos edifícios contíguos da Rua ..., a Requerente irá manter e reabilitar as fachadas principais.
  2. Ao registar estes bens no seu ativo tangível, a Requerente aplicou ao valor de aquisição dos referidos imóveis a percentagem de 25% para determinar o valor dos terrenos.
  3. E registou na sua contabilidade, na conta 6873 - abates, o valor de € 586.181,75, montante correspondente à diferença entre o valor de aquisição dos prédios e o valor que atribuiu aos terrenos onde se encontravam implantadas as edificações em causa.
  4. Por considerar ser superior o valor do terreno, a AT procedeu à avaliação dos prédios confinantes com a rua ..., por aplicação das regras previstas no CIMI.
  5. Em tal avaliação foram aplicados os coeficientes de afetação (Ca) e de localização (CI) e considerado que o valor da área de implantação corresponderia a 35% do valor das construções autorizadas ou previstas.
  6. O valor das construções foi calculado como correspondendo à diferença entre o preço de aquisição (1.019.350,00 €) e o VPT dos terrenos, determinado tal com referido nas alíneas anteriores (705.218,00 €).
  7. A AT considerou “que o valor aceite para efeitos fiscais corresponderia a 50% do valor atribuído às construções efetivamente abatidas (a parede traseira) (…) uma vez que nem todo o edifício foi abatido, tal como constava da memória descritiva do projeto apresentado na CM Lisboa, seriam de manter a fachada principal confrontante com a Rua, e que reveste em muitos casos uma obrigatoriedade para a conservação do estilo arquitetónico dos edifícios”.
  8. E que, “tendo o edifício duas fachadas de áreas de parede semelhante (a da rua e a interior), como uma das duas paredes foi demolida, a IT recorreu a esse fator para dividir o valor do edifício por essas duas fachadas (considerou a demolição de 50% da edificação)”
  9. Do que resultou, em sede de inspeção externa, entre outras, a seguinte correção ao valor do prejuízo fiscal declarado pela Requerente: “Abate não elegível para efeitos fiscais - € 429.115”
  10. Em 3/12/2020, a Requerente reclamou graciosamente da liquidação que ora impugna, a qual foi expressamente indeferida em 07/04/2021.

 

Os factos dados por provados resultam de documentação junta aos autos, nomeadamente o projeto de reabilitação dos edifícios em causa e as fichas de avaliação constantes do PA, não tendo sido objeto de controvérsia

 

III.2 – Factos não provados:

 

Não existem factos não provados relevantes para a decisão a causa.

 

 

IV – O DIREITO

 

1 – Não é questionado o direito da AT proceder à avaliação dos terrenos, pois, nos termos dos n.ºs 3 e 4 do artigo 10.º do Decreto Regulamentar n.º 25/2009, o valor a atribuir ao terreno (onde se encontre implantada uma construção), quando desconhecido, será de 25% do valor total do prédio (no caso, do preço de aquisição), mas nunca pode ser inferior ao determinado nos termos do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI).

 

2 – Como provado, a AT aceitou o preço de aquisição dos edifícios em causa, declarado pela Requerente, determinou o valor do terreno por aplicação de normas do CIMI e considerou que apenas 50% do valor correspondente ao edificado deveria ser aceite como custo fiscal.

Não houve assim recurso a qualquer tributação presuntiva, pois a AT não inferiu factos a partir de outros factos dados como provados.

O que a AT fez foi utilizar a margem de discricionariedade técnica, nomeadamente o recurso a estimativas, que qualquer processo de avaliação visando a determinação do valor de um imóvel necessariamente envolve. Critério cuja correção será adiante apreciada.

Improcede assim a alegação da Requerente de se estar perante um caso de avaliação indireta da matéria coletável.

 

3 – Começando pelas ilegalidades alegadamente cometidas na avaliação dos terrenos, temos que, como dado por provado, a AT aplicou os coeficientes de afetação (Ca) e de localização (CI) previstos no art.º 38º do CIMI.

É jurisprudência pacífica e reiterada que, até à alteração da redação do artº 45º do CIMI operada Lei nº 75-B/2020, de 31 de dezembro, tais coeficientes não deveriam ser utilizados na avaliação de terrenos para construção[1]. Remetendo, no mais, para a fundamentação de tais arestos, diremos que, ao tempo (2018), o artº 45º do CIMI não previa, na determinação do VPT dos terrenos para construção, o recurso aos coeficientes de afetação e de localização, os quais se encontravam previstos no art.º 38º do mesmo código apenas relativamente à avaliação dos prédios urbanos para habitação, comércio, indústria e serviços.

Procede assim este alegado vício de erro de direito.

 

3.1 - Dispõe o nº 2 do art. 45º do CIMI que o valor da área de implantação varia entre 15% e 45% do valor das edificações autorizadas ou previstas.

Analisando o RIT e, em particular, a “ficha de avaliação” constante do anexo II do P. A., verifica-se que não consta qualquer fundamentação explicativa da razão pela qual foi utilizada aa percentagem de 35% para a determinação do valor da área de implantação e não outra, dentro do intervalo que a lei estipula.

Dispõe o art.º 77º da LGT, em consonância com o art. 268º, nº 3, da CRP que a decisão administrativa é sempre fundamentada, mesmo que por simples remissão (o que poderia ser o caso, atento o facto de ter sido fixado um coeficiente de localização e o previsto no nº 3 do artº 45º do CIMI).

Verifica-se pois, neste ponto, a falta de fundamentação alegada pela Requerente.

 

4 – Analisemos, seguidamente, a questão de saber se o valor correspondente ao edificado (agora, independentemente da sua correta quantificação) deve ser aceite na totalidade, como sustenta a Requerente, ou apenas em 50%, como considerou a Requerida.

A questão coloca-se em relação aos prédios confinantes com a Rua ..., nos quais será mantida a fachada.

Tal como dado por provado em k), tendo o edifício duas fachadas de áreas de parede semelhante (a da rua e a oposta), como uma das duas paredes foi demolida, a AT recorreu a esse facto para dividir o valor do edifício por essas duas fachadas (ou seja, considerou a demolição de 50% da edificação).

  • As fachadas sobre a rua apresentam dimensões reduzidas.

É evidente que o que vai ser demolido (e, consequentemente, fiscalmente “abatido” ao ativo da Requerente) é muito mais que uma de duas paredes. O que irá ser demolido serão três paredes exteriores (as não confinantes com a Rua ...), os pavimentos dos andares, as paredes interiores, as escadas, as estruturas dos telhados, etc., com uma área bruta de construção e volumetria muito significativas.

Cumpre trazer à colação outros factos dados como provados em c):

  • o conjunto de edifícios adquiridos (incluindo o da Rua ...) tinha uma área bruta de construção de 1 647.68m2 e uma volumetria de 5 508.98m2;
  • os edifícios da rua ... tinham 5 pisos acima da cota de soleira;
  • os pisos térreos destinavam-se a comércio e os superiores a habitação, existindo duas lojas em funcionamento nos edifícios da Rua ... no momento da sua aquisição pela Requerente;
  • serão mantidas as fachadas confinantes com a rua ..., “de dimensões reduzidas”.

 

Resulta assim evidente que ofende o senso comum a fundamentação utilizada pela AT, porque manifestamente em contradição com a realidade subjacente.

Como esclarece o n.º 2 do art. 153º do CPA, equivale à falta de fundamentação a adoção de fundamentos que, por obscuridade, contradição ou insuficiência, não esclareçam concretamente a motivação do ato.

Procede, pois, o alegado vício de falta de fundamentação da decisão de aceitar como gasto fiscal por abate apenas 50% do valor do edificado.

 

Mais,

 

O tratamento contabilístico a dar aos ativos fixos tangíveis encontra-se prescrito na NCRF 7.

Sobre o desreconhecimento do valor de tais ativos, o parágrafo 66 refere que deve acontecer:

  1. Quando não se espere futuros benefícios económicos do seu uso ou alienação.

 

Reconhece-se que, em regra, este desreconhecimento implica o seu abate, ou desmantelamento, como prevê o art. 31º-B do CIRC.

No caso, a Requerente irá proceder à demolição dos edifícios em causa, pelo que estão verificados os requisitos para a consideração de perdas de imparidade em ativos não correntes, de acordo com o art. 31º-B do CIRC. O que não é posto em causa pela Requerida.

A questão que ora se coloca é saber se manutenção das paredes das fachadas corresponde à manutenção de um ativo (construção?) com valor económico.

Parece evidente que a não demolição dessas fachadas não resulta da expetativa da Requerente de obter futuros benefícios económicos do seu uso.

A manutenção dessas fachadas resulta de um imperativo urbanístico, de manter a traça medieval (sic) da Rua ..., tal como consta do projeto de reabilitação urbanístico apresentado pela Requerente à Câmara Municipal de Lisboa, junto ao PA, e é referido na própria fundamentação administrativa (j) dos factos provados).

Resulta da experiência comum que seria mais económica a demolição de tais fachadas, em mau estado de conservação (assim consta do referido projeto), que a sua reabilitação.

Mais, no referido projeto de reabilitação são evidenciadas limitações construtivas que resultam da obrigatoriedade da manutenção de tais fachadas, nomeadamente no relativo à altura de alguns pavimentos (andares) do futuro edifício.

Assim sendo, porque tais fachadas não representam um qualquer valor económico para a Requerente, antes importando encargos e limitações adicionais na utilização construtiva dos terrenos, correspondendo a sua manutenção ao cumprimento de uma exigência legal, há que concluir que a perda (gasto) suportado pela Requerente corresponde ao valor total da construção.

Sendo hoje pacificamente aceite que o contencioso tributário é de plena jurisdição, cumpre ao tribunal fixar o modo como deve ser reformulado o ato tributário considerado parcialmente ilegal. É o presente caso, no relativo ao valor (percentagem) a ser considerado como perda por abate.

 

V – DECISÃO ARBITRAL

 

Termos em que se decide pela anulação parcial da liquidação (correção de prejuízos fiscais) impugnada, a qual, em execução de sentença, deverá ser reformulada pela Requerida como se segue:

  • o valor da perda “por abate” fiscalmente aceite será no montante correspondente à diferença entre o valor de aquisição dos prédios em causa e o valor fiscal dos terrenos que os integram.
  • na (nova) determinação do valor fiscal dos terrenos não deverão ser considerados os coeficientes de afetação e de localização e deverá ser fundamentada a percentagem fixada correspondente ao valor da área de implantação, a que se refere o n.º 2 do artº 45º do CIMI.

 

 

Valor: € 433.100,73

 

Custas arbitrais, no montante de 7.038,00, pela Requerida, uma vez que a Requerente obteve total procedência do peticionado.

 

 

26 de abril de 2022

 

Os árbitros,

 

Rui Duarte Morais (Presidente e relator)

 

Jorge Bacelar Gouveia

 

Gustavo Gramaxo Rozeira

 

 



[1] Para além do acórdão de 21.09.2016, proc. n.º 01083/13, referido pela Requerente, vejam-se, p. ex.,ac. do STA de 23-10-2019, processo n.º 170/16.6BELRS 0684/17; acórdão de 05-04-2017, processo n.º 01107/16; acórdão de 28-06-2017, processo n.º 0897/16; acórdão de 16-05-2018, processo n.º 0986/16; acórdão de 14-11-2018, processo n.º 0133/18; acórdão de 23-10-2019, processo n.º 170/16.6BELRS 0684/17; acórdão de 13-01-2021, processo n.º 0732/12