Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 95/2014-T
Data da decisão: 2014-11-12  IRC  
Valor do pedido: € 209.933,24
Tema: IRC – Tributações Autónomas; não dedutibilidade.
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DECISÃO ARBITRAL

 

CAAD: Arbitragem Tributária

Processo nº 95/2014 – T

Tema: IRC – Tributações Autónomas; não dedutibilidade.

 

Os árbitros, Juiz José Poças Falcão (árbitro-presidente), Dr. Jorge Carita e Dra. Ana Teixeira de Sousa (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 10-4-2014, acordam no seguinte:

 

I RELATÓRIO

 

“a”, S.A., com sede social na Rua …, n.º …, …, pessoa coletiva n.º …, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de … sob o mesmo número (“A” ou requerente), sociedade dominante de grupo (o Grupo “A”) sujeito ao regime especial de tributação dos grupos de sociedades previsto, desde 2010 até hoje, nos artigos 69.º e seguintes do Código do IRC, estando abrangida pelos serviços periféricos locais do Serviço de Finanças de … …,

veio, ao abrigo dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011 de 20 de Janeiro e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 de 22 Março, requerer a constituição de Tribunal Arbitral, pedindo  para ser declarada a ilegalidade parcial de autoliquidação de IRC (e ser consequentemente anulada), na parte correspondente ao montante de € 209.933,24 e reconhecido o direito ao reembolso deste montante e, bem assim, o direito a juros indemnizatórios pelo pagamento de imposto indevidamente liquidado, contados desde 31 de Maio de 2011.

 

Alegou, no essencial e em síntese:

a) Tendo procedido a ora requerente, na qualidade de sociedade dominante do referido Grupo Fiscal “A”, à autoliquidação de IRC e derrama consequente relativamente ao exercício de 2010 mediante apresentação da declaração Modelo 22 (Doc. nº 1), vem suscitar a ilegalidade daquele ato de autoliquidação.

 

b) Em 29 de Maio de 2013, a requerente apresentou reclamação graciosa contra a referida autoliquidação de IRC e derrama municipal consequente respeitante ao exercício de 2010 (cfr. cópia da folha de rosto da reclamação graciosa que aqui se junta como Doc. n.º 2).

 

c) No dia 11 de Dezembro de 2013, a requerente foi notificada, por intermédio do Ofício n.º …, de 9 de Dezembro de 2013, da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, por despacho proferido em 8 de Dezembro de 2013 pelo Exmo. Senhor Chefe de Divisão de Gestão e Assistência Tributária da Unidade dos Grandes Contribuintes (cfr. cópia da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, que aqui se junta como Doc. n.º 3).

 

d) O ato objeto do pedido de pronúncia do Tribunal Arbitral é o indeferimento da reclamação graciosa supra identificado e, consequentemente (e em termos finais ou últimos), o ato de autoliquidação de IRC e derrama consequente relativo ao exercício de 2010, na medida correspondente à não relevação fiscal dos encargos fiscais com tributações autónomas desse mesmo exercício (cfr. Doc. n.º 1).

 

e) Pretende a requerente submeter à apreciação do Tribunal Arbitral (i) a legalidade deste indeferimento da reclamação graciosa, na medida em que desatende o reconhecimento da ilegalidade daquela parte da autoliquidação de IRC e derrama consequente referente ao exercício de 2010 do Grupo Fiscal “A” e, bem assim, (ii) a legalidade daquela parte da autoliquidação de IRC e derrama consequente referente a este exercício de 2010, cujo montante (conforme se demonstrará infra) ascende a € 209.933,24.

 

f) Na referida autoliquidação de IRC do exercício de 2010, o “A” procedeu também à autoliquidação de tributações autónomas previstas no artigo 88.º do CIRC, num total, em termos finais de € 729.884,84 – cfr. campo 365, do quadro 10, do Doc. n.º 1 – que correspondem a (cfr. quadro 11 do Doc. n.º 1 , e Doc. n.º 4 que aqui se junta):

i) tributação autónoma sobre encargos com viaturas, que gerou o montante de € 594.004,70;

ii) tributação autónoma sobre ajudas de custo que gerou o montante de € 95.125,35;

iii) tributação autónoma sobre despesas de representação, que gerou o montante de € 40.754,79.

 

g) Tributações autónomas do exercício de 2010 estas que, à semelhança do IRC também autoliquidado, se encontram totalmente pagas (cfr. comprovativo de pagamento que aqui se junta como Doc. n.º 5).

 

h) Não deduziu porém o “A”, para efeitos do apuramento do lucro tributável do seu grupo fiscal, o encargo suportado com as referidas tributações autónomas, antes tratando-as como se fossem IRC ou derrama municipal (Doc. n.º 6).

 

i) E devia ter deduzido ou, de outra perspetiva, tem legalmente o direito de relevar os encargos ficais com tributações autónomas no cômputo do lucro tributável para efeitos de IRC (e da derrama consequente), donde o presente pedido de constituição de Tribunal Arbitral que tem por objeto a autoliquidação de IRC (e derrama consequente) respeitante ao exercício de 2010.

 

j) Em termos de quantificação do imposto aqui em causa (impacto fiscal decorrente de não ter sido deduzido o encargo com tributações autónomas no apuramento do IRC e da Derrama Municipal consequente) com respeito ao exercício de 2010 do “A”, temos os seguintes valores,:

i.IRC resultante da aplicação de taxa base de 25%, no valor de € 182.471,21 (€729.884,84 x 25%];

ii.derrama municipal consequente no montante de € 9.793,64, conforme cálculos discriminados constantes do Doc. n.º 7 que aqui se junta;

iii.derrama estadual consequente no montante de € 17.668,39, conforme cálculos discriminados constantes do Doc. n.º 7 atrás junto; 

num total de € 209.933,24.

 

Depois de longo, douto e exaustivo enquadramento jurídico e legal, conclui a requerente:

 

k) Do exposto, em síntese, resulta que quer o indeferimento da reclamação graciosa supra melhor identificado, quer a autoliquidação de IRC (incluindo a sua sobretaxa “derrama estadual”) e derrama municipal consequente relativa ao exercício de 2010, padecem de vício material de violação de lei, devendo ser declarada e ilegalidade parcial desta autoliquidação (e ser consequentemente anulada), na parte correspondente ao montante de € 209.933,24 e ser, consequentemente, reconhecido o direito ao reembolso deste montante e, bem assim, o direito a juros indemnizatórios pelo pagamento de imposto indevidamente liquidado, contados desde 31 de Maio de 2011.

 

A requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT, os signatários foram designados pelo Presidente do Conselho Deontológico do CAAD para integrar o presente Tribunal Arbitral coletivo, tendo aceitado nos termos legalmente previstos.

 

Foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar tal designação, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 10-4-2014, seguindo depois o processo os demais termos legais e regulamentares.

 

Em 19-4-2014, a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) apresentou resposta impugnatória do pedido concluindo que “(…) nenhum subsídio interpretativo cauciona uma interpretação restritiva do 45.º, n.º 1, al. a) do CIRC, no sentido de se lhe excluir as tributações autónomas; pelo contrário, tal mostra-se contrário à teleologia da norma uma vez que as tributações autónomas têm um papel instrumental no apuramento do IRC, não têm autonomia em termos funcionais (só na forma de apuramento: incidência e taxa), e contraria a  própria coerência sistemática, mostrando-se incompatível com o disposto no artigo 88.º, n.º 14 do CIRC (…)pelo que, também aqui decai liminarmente o pedido de juros indemnizatórios formulado pela Requerente(…)”.

 

Foram apresentadas alegações finais escritas por ambas as partes concluindo estas, no essencial, pela forma que o haviam feito nos seus articulados.

 

Saneador/pressupostos processuais

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, em face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do RJAT, mostrando-se cumprido o pressuposto de recurso prévio à via administrativa (cfr. artigo 2.º, alínea a), da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março e Docs. n.ºs 3 a 6, juntos com o pedido de pronúncia).

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O processo não enferma de nulidades.

Não há exceções ou outras questões prévias a apreciar e decidir.

 

II FUNDAMENTAÇÃO

 

Factos essenciais provados:

a) A requerente, na qualidade de sociedade dominante do Grupo Fiscal “A”, procedeu à autoliquidação de IRC e derrama consequente relativamente ao exercício de 2010, mediante apresentação da declaração Modelo 22, em 30-5-2011 (Doc[1]. nº 1);

b)Em 29 de Maio de 2013, a requerente apresentou reclamação graciosa contra a referida autoliquidação de IRC e derrama municipal consequente respeitante ao exercício de 2010 (cfr. cópia da folha de rosto da reclamação graciosa - Doc. n.º 2).

c) No dia 11 de Dezembro de 2013, a requerente foi notificada, por intermédio do Ofício n.º …, de 9 de Dezembro de 2013, da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, por despacho proferido em 8 de Dezembro de 2013 pelo Exmo. Senhor Chefe de Divisão de Gestão e Assistência Tributária da Unidade dos Grandes Contribuintes (cfr. Doc. n.º 3).

d) Na referida autoliquidação de IRC do exercício de 2010, o “A” procedeu também à autoliquidação de tributações autónomas previstas no artigo 88.º do CIRC, num total, em termos finais de € 729.884,84 – cfr. campo 365, do quadro 10, do Doc. n.º 1 – que correspondem a (cfr. quadro 11 do Doc. n.º 1, e Doc. n.º 4):

i) tributação autónoma sobre encargos com viaturas, que gerou o montante de € 594.004,70;

ii) tributação autónoma sobre ajudas de custo que gerou o montante de € 95.125,35;

iii) tributação autónoma sobre despesas de representação, que gerou o montante de € 40.754,79.

 

            e) Tais tributações autónomas do exercício de 2010, à semelhança do IRC também autoliquidado, foram totalmente pagas (cfr. comprovativo de pagamento - Doc. n.º 5).

            f) A requerente não deduziu, para efeitos do apuramento do lucro tributável do seu grupo fiscal, o encargo suportado com as referidas tributações autónomas, antes tratando-as como se fossem IRC ou derrama municipal (Doc. n.º 6).

            g) Em termos de quantificação do imposto aqui em causa (impacto fiscal decorrente de não ter sido deduzido o encargo com tributações autónomas no apuramento do IRC e da Derrama Municipal consequente) com respeito ao exercício de 2010 do “A”, apura-se a importância de € 209.933,24 :

i.IRC resultante da aplicação de taxa base de 25%, no valor de € 182.471,21 (€729.884,84 x 25%];

ii.derrama municipal consequente no montante de € 9.793,64, conforme cálculos discriminados constantes do Doc. n.º 7;

iii.derrama estadual consequente no montante de € 17.668,39, conforme cálculos discriminados constantes do Doc. n.º 7.

 

Factos essenciais não provados

Dos autos ou de conhecimento oficioso, não se revela a existência de factos não provados essenciais para o conhecimento das questões decidendas.

 

Fundamentação da fixação da matéria de facto

Os factos provados além de documentados [sem impugnação dos respetivos documentos], resultam igualmente da não impugnação pela Autoridade Tributária e Aduaneira de qualquer dos factos alegados e também, e no essencial, do processo administrativo instrutor (PA).

 

II FUNDAMENTAÇÃO (cont)

 

O DIREITO[2]

Questões decidendas

O ato objeto do pedido de pronúncia do Tribunal Arbitral é o indeferimento da reclamação graciosa supra identificado e, consequentemente (e em termos finais ou últimos), o ato de autoliquidação de IRC e derrama consequente relativo ao exercício de 2010, na medida correspondente à não relevação fiscal dos encargos fiscais com tributações autónomas desse mesmo exercício

Considera a requerente, no essencial, que os atos de autoliquidação padecem parcialmente de “vício material de violação de lei” e formula - para além do pedido de declaração de ilegalidade do indeferimento do recurso hierárquico - um pedido que visa a declaração de ilegalidade (parcial) dessa mesma autoliquidação e a sua, consequente, anulação  [“(… )ser declarada e ilegalidade e anulado o indeferimento da reclamação graciosa na medida em que recusou a anulação da parte ilegal, nos termos que aqui se discutiram, da autoliquidação de IRC e derrama municipal consequente do exercício de 2010 (…)”].

Resulta dos autos que a sobredita autoliquidação foi apresentada/submetida a 30.05.2011 e foi objeto de reclamação graciosa que culminou com despacho de indeferimento, proferido pelo Exmo. Senhor Chefe de Divisão de Gestão e Assistência Tributária da Unidade dos Grandes Contribuintes.

As questões a decidir serão assim saber se a requerente tem o direito a relevar, como gastos do período de tributação, para efeitos do cálculo do seu lucro tributável em IRC, os encargos que suportou a título de tributações autónomas e, no caso de ser reconhecido tal direito, se tem fundamento o pedido de reembolso com pagamento de juros indemnizatórios.

 

Vejamos então.

I.                   Considerações Gerais

Importa assinalar, pese embora o esforço assinalável e sábio da requerente, continuam a não ser antolhadas razões para inverter a Jurisprudência quase unânime dos Tribunais Arbitrais constituídos no âmbito do CAAD sobre esta matéria da dedutibilidade ou não dedutibilidade das tributações autónomas para efeitos de IRC.

Na verdade, conforme foi defendido já pelo presidente deste Tribunal Coletivo em anteriores processos, a dúvida acerca da dedutibilidade das tributações autónomas no âmbito da anterior redação do Código do IRC surge em consequência da margem interpretativa criada pela conjugação de duas normas: por um lado, o princípio geral de dedutibilidade de encargos comprovadamente indispensáveis para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, nomeadamente, os de natureza fiscal e parafiscal, que resultava do artigo 23.º, n.º 1, alínea f), do Código do IRC e, por outro lado, a regra de não dedutibilidade prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 45.º do mesmo Código, nos termos da qual não eram dedutíveis para efeitos de determinação do lucro tributável o IRC e quaisquer outros impostos que direta ou indiretamente incidam sobre os lucros.

Em concreto, as dúvidas surgem porque a norma prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 45.º do Código do IRC (com a redação em vigor em 2010) não menciona expressamente as tributações autónomas e porque o princípio geral em sede de IRC era e é o da dedutibilidade de encargos indispensáveis para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora. Assim, face a um princípio geral de dedutibilidade de encargos e à ausência de referência expressa às tributações autónomas, a dúvida surge sobre se o legislador quis incluí-las ou não na exceção de não dedutibilidade prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 45.º.

 As dúvidas surgidas a propósito da dedutibilidade das tributações autónomas em sede de IRC são, portanto, perfeitamente justificáveis face à incerteza criada pelo elemento literal das normas enunciadas e sobre a própria natureza técnica do tipo de imposto que é a tributação autónoma, a qual, admite este Tribunal, não tem as características típicas de um imposto como o IRC.

Assim, será necessário aprofundar a análise além do seu elemento literal.

As tributações autónomas foram introduzidas no ordenamento jurídico português através do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 192/90, de 9 de Junho, que previu a tributação autónoma, à taxa de 10%, das despesas confidenciais ou não documentadas.

Posteriormente as tributações autónomas foram incluídas no Código do IRC, através da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro, que veio integrar a previsão das tributações autónomas no diploma que regula o IRC.

Desde então o regime das tributações autónomas tem vindo a passar por um processo de expansão progressiva, em parte ditado pela aparente intenção contínua de aumentar a receita fiscal por via deste mecanismo.

Atualmente, são vários os tipos de tributações autónomas que encontramos no artigo 88.º do Código do IRC:

i) Tributação autónoma sobre despesas não documentadas;

ii) Tributação autónoma sobre encargos com viaturas;

iii) Tributação autónoma sobre despesas de representação;

iv) Tributação autónoma sobre importâncias pagas ou devidas, a qualquer título, a pessoas singulares ou coletivas residentes fora do território português e aí submetidas a um regime fiscal claramente mais favorável;

v) Tributação autónoma sobre despesas com ajudas de custo e com compensações pela deslocação de trabalhadores em viatura própria ao serviço da entidade patronal;

vi)  Tributação autónoma sobre os lucros distribuídos por entidades sujeitas a IRC a sujeitos passivos que beneficiam de isenção total ou parcial;

vii) Tributação autónoma sobre gastos ou encargos relativos a indemnizações ou quaisquer compensações devidas não relacionadas com a concretização de objetivos de produtividade previamente definidos na relação contratual, quando se verifique a cessação de funções de gestor, administrador ou gerente, bem como sobre os gastos relativos à parte que exceda o valor das remunerações que seriam auferidas pelo exercício daqueles cargos até ao final do contrato, quando se trate de rescisão de um contrato antes do termo;

viii) Tributação autónoma sobre gastos ou encargos relativos a bónus e outras remunerações variáveis pagas a gestores, administradores ou gerentes.

 

II.                Thema Decidendum

 

Da análise do elenco de realidades a que nos referimos supra podemos retirar duas ilações de princípio:

(i) A primeira é a de que as tributações autónomas incidem quer sobre encargos dedutíveis, quer sobre encargos não dedutíveis;

(ii) A segunda é a de que as tributações autónomas visam evitar a erosão da base tributável em sede de IRC, fazendo incidir tributação sobre encargos que podem ser deduzidos pelos sujeitos passivos de IRC, mas que, sendo-o, se transformam num agravamento da tributação, pretendendo, portanto, servir como desincentivo à despesa com tais encargos.

Em relação às tributações autónomas sobre despesas não dedutíveis, caso se admitisse a sua dedutibilidade, estaria a admitir-se a dedutibilidade de um encargo não indispensável para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora.

Com efeito, se o gasto sobre o qual incide a tributação autónoma não é, em si mesmo, dedutível, é porque (para o sistema de IRC) o mesmo não é indispensável para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora.

Ora, se assim é, a tributação autónoma que sobre ele incide, também o não será pelo que se estaria a admitir a dedução de um encargo em frontal desacordo com o princípio geral de que os encargos só são dedutíveis em sede de IRC se lhes estiver inerente aquela indispensabilidade para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora.

Assim, tal como não são dedutíveis os tributos incidentes sobre factos não relacionados com a realização de rendimentos sujeitos a IRC, também as tributações autónomas que incidem sobre despesas não dedutíveis terão, forçosamente, que estar excluídas de tributação sob pena de se admitir uma evidente contradição sistemática no Código do IRC, o que não é de aceitar face aos princípios interpretativos consagrados no artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil (que a LGT manda aplicar nos termos do no n.º 1 do seu artigo 11.º), os quais determinam que o intérprete deve presumir que o legislador “soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” “que consagrou as soluções mais acertadas”.

Pelo que em relação a este tipo de despesas é entendimento do Tribunal que não sendo as mesmas dedutíveis, não o poderá ser, igualmente, a tributação autónoma que sobre estas incide.

 

 

Aqui chegados importa agora analisar a eventual dedutibilidade das tributações autónomas que incidem sobre despesas dedutíveis. Serão tais tributações também dedutíveis?

Não deverá desde logo concluir-se que, sendo dedutível a despesa, deverá ser dedutível a tributação autónoma, ela própria, como encargo que foi suportado por força da realização de tal despesa, seguindo o princípio de que o acessório segue o caminho do principal (acessorium principale sequitur)?

A Requerente defende que, configurando a tributação autónoma um tributo que incide sobre despesa[3] e não sobre o rendimento, esta tributação não poderá ser considerada “IRC” para efeitos da exclusão da dedutibilidade prevista na alínea a) do n.º 1 do art. 45.º do Código do IRC.

Na apreciação da matéria em causa nos autos, deve-se, igualmente, ter desde logo em conta, que a norma do artigo 45.º do Código do IRC se situa num contexto de ampla discricionariedade legislativa.

Ou seja, na definição do que sejam encargos dedutíveis ou não dedutíveis para efeitos fiscais, o legislador fiscal goza de uma ampla liberdade concretizadora. Daí que, não se possa dizer que esteja vedado ao legislador, pela “natureza” das tributações autónomas (e, em concreto, da que é própria das tributações autónomas decorrentes de gastos dedutíveis em sede de IRC), seja ela qual for, excluí-la dos encargos dedutíveis para efeitos do imposto em questão.

Considera-se, deste modo, que será legítimo ao legislador incluir ou excluir as tributações autónomas que se ocupam daquela categoria dos encargos dedutíveis para efeitos de IRC, independentemente da natureza que a doutrina ou a jurisprudência lhes atribua.

Entende o Tribunal que uma coisa é o tipo de facto tributário que está na base de determinada imposição e que outra coisa é o título a que tal imposição é devida, no fundo, a causa da obrigação de imposto. E, no caso das tributações autónomas em sede de IRC, essa causa, o título a que o imposto é exigido, será, ainda, e efetivamente, o IRC.

Dever-se-á atentar, para além de tudo o mais, que o regime legal das tributações autónomas em questão nos autos apenas faz sentido no contexto da tributação em sede de IRC, ou seja, desligado do regime legal deste imposto, carecerão aquelas do seu principal referencial de sentido. A sua existência, o seu propósito, a sua explicação, no fundo, a sua juridicidade, apenas é devidamente compreensível e aceitável no quadro do regime legal do IRC.

As tributações autónomas ora em análise, pertencem, sistematicamente, ao IRC, e não ao IVA, ao IRS, ou a um qualquer novo imposto.

É que, embora se aceite que o facto tributário impositivo será cada um dos singulares encargos legalmente tipificados, o certo é que não são estes, qua tale, o objeto final da tributação, a realidade que se pretende gravar com o imposto.

Ou seja, as tributações autónomas do género que ora nos ocupa estão fortemente ligadas aos sujeitos do imposto sobre o rendimento respetivo, e, mais especificamente, à atividade económica e empresarial por eles levada a cabo.

Este aspeto torna-se ainda mais evidente, porquanto tais tributações autónomas incidem sobre gastos dedutíveis para efeitos de IRC.

Esta circunstância, crê-se, é elucidativa da imbricação existente entre aquelas e o IRC (no caso), e justificativa não só da sua inclusão no Código do IRC, mas, igualmente, da sua integração sistemática no regime jurídico do IRC.

De facto, não só apenas os encargos realizados por sujeitos passivos de IRC é que estão sujeitas à imposição de tributação autónoma em tal quadro, como tais encargos apenas o estarão se aqueles sujeitos os elegerem como gastos dedutíveis no apuramento da matéria tributável de tal imposto.

O quadro deste modo traçado é, considera-se, substancialmente distinto do que seria um imposto que incidisse sobre determinadas despesas, objetivamente consideradas, afigurando-se que a qualidade e a opção do sujeito passivo têm aqui uma relevância, senão maior, pelo menos idêntica ao encargo que despoleta a imposição tributária.

De resto, sempre se poderá dizer que se o sujeito passivo de IRC optar por não deduzir ao lucro tributável para efeitos daquele imposto os encargos correspondentes às despesas sujeitas a tributação autónoma, não terá de suportar esta, o que será demonstrativo do que acima se apontou, ou seja, de que a causa das tributações autónomas radicará, ainda e em última análise, no próprio regime do IRC.

 

Neste quadro - voltando-se à questão decidenda - determinar qual a intenção do legislador, expressa no texto legislativo, compreendido no seu todo, ou seja, na conjugação do teor do artigo 12.º do Código do IRC com o artigo 45.º, n.º 1, aliena a) do mesmo, não deixará grandes dúvidas, quanto ao entendimento legislativo de que as tributações autónomas, se não constituem IRC stricto sensu, o que o Tribunal admite, sempre integrarão seguramente o regime daquele imposto, e serão devidas a esse título.

Considera-se, assim, que o pensamento legislativo, com um mínimo de correspondência verbal na letra da lei, ainda que imperfeitamente expresso, era, à data do facto tributário em questão nos autos, no sentido de que as quantias pagas no quadro das tributações autónomas sobre gastos dedutíveis por um sujeito passivo de IRC não deviam ser consideradas um encargo dedutível para efeitos do apuramento do lucro tributável sujeito àquele imposto.

A correspondência de tal intenção no texto legislativo é bem patente no teor daquele artigo 12º do CIRC, vigente já à data do facto tributário, que vem prever que:

“As sociedades e outras entidades a que, nos termos do artigo 6.º, seja aplicável o regime de transparência fiscal não são tributadas em IRC, salvo quanto às tributações autónomas.” (sublinhado nosso).

Ou seja, na perspetiva do sistema legal, refletido no respetivo texto, as tributações autónomas integram o regime do, e são devidas a título de, IRC, razão pela qual na sobredita norma [artigo 12º, do CIRC], o legislador ressalvou expressamente a sua aplicação. Daí que, paralelamente, se fosse intenção do legislador excluir as tributações autónomas do âmbito da alínea a) do n.º 1 do artigo 45.º do CIRC, o teria dito expressamente, já que não faria sentido (não seria razoável) que numa norma do Código (o artigo 12.º) o legislador entendesse que a tributação em IRC abrange as tributações autónomas e noutra (o artigo 45.º) entendesse o contrário.

Por outro lado, e reforçando estas considerações, o artigo 3.º da Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, aprovada no contexto da Reforma do IRC, veio aditar o artigo 23.º-A do CIRC (que sucede ao anterior artigo 45.º) e ao qual, pelo exposto, deve ser conferido, na matéria que nos ocupa, carácter interpretativo, veio estatuir que:

“1 — Não são dedutíveis para efeitos da determinação do lucro tributável os seguintes encargos, mesmo quando contabilizados como gastos do período de tributação:

a)      O IRC, incluindo as tributações autónomas, e quaisquer outros impostos que direta ou indiretamente incidam sobre os lucros;”

(sublinhado nosso).

Esta alteração veio, segundo se entende, clarificar que, relativamente aos períodos a que a norma em causa se aplica, os gastos com tributações autónomas não são dedutíveis para efeitos fiscais, tornando assim expresso na letra da lei algo que este Tribunal entende que correspondia já a uma das interpretações possíveis sobre esta temática.

Como afirma Oliveira Ascensão, para que uma lei seja interpretativa é necessário que (1) exista uma dúvida na doutrina e/ou jurisprudência quanto ao sentido da lei anterior; (2) que a lei posterior venha a optar por uma das interpretações em contenda, e que (3) a lei posterior tenha por fim interpretar a lei antiga, devendo esse fim resultar inequivocamente do seu texto (cf. Oliveira Ascensão, O Direito. Introdução e Teoria Geral, Almedina, 10.ª ed., 1999, 560-561).

Requisitos que no caso sub iudice se encontram preenchidos.

Ou seja, o Tribunal entende que esta clarificação do legislador tem uma natureza de interpretação autêntica, na medida em que o legislador vem acolher um dos sentidos interpretativos possíveis face à norma anterior (aplicável ao caso dos autos) ao excluir, expressamente, a dedutibilidade das tributações autónomas e fazendo inclusivamente equiparar a natureza deste tributo a IRC. E optou por um dos sentidos possíveis com o fito de esclarecer uma situação duvidosa pré-existente.

O intuito esclarecedor decorre do próprio mandato que foi conferido à Comissão para a Reforma do IRC no sentido de contribuir ativamente para a redução das áreas suscetíveis de litigiosidade, como nos dá conta este trecho do Relatório da Comissão para a Reforma do IRC: “Não obstante se denote alguma melhoria, os dados recentemente disponibilizados acerca do estado da Justiça Fiscal em Portugal permitem concluir que o grau de conflitualidade registado se mantém desajustado às capacidades de resposta da organização judiciária nacional em matéria tributária. A Comissão entende necessário, pois, empreender um esforço de diminuição da litigância fiscal através da introdução de alterações legislativas nas matérias que, muito embora mereçam já um enquadramento jurisdicional estável e sólido, continuam sistematicamente a gerar conflitos nos tribunais fiscais nacionais.”.

A Comissão, sufragada pela vontade do legislador, veio, assim, clarificar o próprio regime da dedutibilidade dos gastos fiscais, dando uma nova redação ao artigo 23.º-A do Código do IRC (o qual veio substituir o anterior artigo 45.º do mesmo Código).

É certo que o legislador optou por não fazer inscrever no diploma que aprovou o regime atualmente em vigor uma declaração expressa no texto ou no preâmbulo do diploma, dizendo que se tratava de uma norma interpretativa.

Mas o facto de não o ter feito não conduz diretamente ao entendimento de que à norma em causa não deve, por isso, ser conferido carácter interpretativo.

Na verdade, na falta de uma declaração expressa da própria lei, o carácter interpretativo poderá ainda resultar “do texto, quando for flagrante a tácita referência da nova fonte a uma situação normativa duvidosa preexistente” (cf. Oliveira Ascensão, O Direito. Introdução e Teoria Geral, Almedina, 10.ª ed., 1999, p. 561).

O que manifestamente é o caso dos autos.

Ou seja e em suma: da consideração do texto legislativo, estaticamente e na sua evolução histórica, resulta que o legislador entendia, e continua a entender, que as tributações autónomas integram o IRC, seja enquanto imposto stricto sensu, seja, pelo menos, em termos de fazerem parte do mesmo regime fiscal unitário, devendo ter o mesmo tratamento em sede de dedutibilidade para efeitos de cômputo do lucro tributável.

De facto, o legislador fiscal tem, num passado recente, alterado o tratamento fiscal relacionado com as tributações autónomas, sem nunca ter alterado a perspetiva de as incluir na tributação sobre o rendimento.

Em todo o caso, como se disse, na perspetiva do legislador, as tributações autónomas em questão nos autos integrarão, efetiva e inequivocamente o regime do IRC, sendo devidas a título deste imposto.

E não compete ao julgador alterar por sua iniciativa a opção política e técnica do legislador em configurar este tipo de tributo como IRC, ainda que possa não concordar tecnicamente com a solução encontrada pelo legislador. Tal constituiria uma interpretação corretiva, consabidamente vedada pelo imperativo de obediência à lei.

Tudo aquilo que se tem vindo a dizer evidencia que a evolução do regime legal do IRC o transmutou numa realidade complexa e multifacetada, aos mais diversos níveis.

Em jeito de conclusão, e em favor de um rigor conceptual, dir-se-á ainda que se pende para o entendimento de que as tributações autónomas, tal como existem atualmente, se poderão configurar como um imposto “híbrido”, incidindo mais sobre determinado tipo de gastos, e não sobre o consumo ou a despesa, genericamente considerados, pois não apresentarão as principais características desta forma de tributação.

Considerando-se, então, que as tributações autónomas que incidem sobre encargos dedutíveis em IRC integram o regime, e são devidas a título, deste imposto [e, como tal estão abrangidas pela disposição da alínea a) do n.º 1 do artigo 45.º do CIRC], não constituirão as despesas com o pagamento daquelas tributações encargos dedutíveis para efeitos da determinação do lucro tributável, devendo, em consequência de tudo o que se expendeu supra, improceder totalmente a presente ação arbitral, ficando prejudicado o pedido de juros indemnizatórios.

 

III DECISÃO

 

De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em julgar totalmente improcedente o pedido e, em consequência, dele absolver a Autoridade Tributária e Aduaneira.

*

Valor do processo

De harmonia com o disposto no art. 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC,  97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 209.933,24.

Custas

Nos termos do art. 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 4.284,00 nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a suportar pela Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

Notifique-se.

Lisboa, 12 de novembro de 2014

 

Os Árbitros

 

 

José Poças Falcão

(Presidente)

 

 

Jorge Carita

(Vogal)

 

 

Ana Teixeira de Sousa

(Vogal)

 

 

***

Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 131.º do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20/01.

A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia antiga.

 

 

 



[1] Todas as referências a documentos sem outra menção respeitam a documentos junto pela requerente com a apresentação do seu pedido de pronúncia arbitral.

[2] Segue-se de perto e em parte as decisões arbitrais dos Tribunais constituídos no âmbito do CAAD, proferidas nos processos nºs 210/2013-T e 187/2013-T, publicadas in https://caad.org.pt/tributario/decisoes/

 

[3] Admitindo nas suas alegações a possibilidade de qualificação como IRS, casos não seja qualificada como despesa.