Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 948/2019-T
Data da decisão: 2021-01-06  IVA  
Valor do pedido: € 82.311,02
Tema: IVA – Devoluções sujeitas a IVA superiores a transmissões; Embalagens retornáveis; Artigos 16.º e 35.º (atual 36.º) do CIVA.
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DECISÃO ARBITRAL

 

Acordam os Árbitros José Poças Falcão (Árbitro Presidente), Hélder Faustino e João Pedro Rodrigues, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem Tribunal Arbitral, no seguinte:

 

I – RELATÓRIO

 

1.            No dia 31-12-2019, A..., LDA., NIPC..., com sede social na Rua ..., ..., ...-... ... (doravante, abreviadamente designada Requerente), apresentou pedido de constituição de Tribunal Arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redação atual (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a anulação dos atos de liquidação adicional de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) dos anos de 2002, 2003, 2004 e 2005.

 

2.            Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, que as liquidações em apreço carecem de base legal que as sustente, porquanto, não havendo qualquer prejuízo para o Estado, não existe qualquer operação sujeita a imposto.

Acrescenta, ainda, que as liquidações da AT são ilegais, por manifesta falta de fundamentação.

 

3.            No dia 31-12-2019, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.

 

4.            A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do Tribunal Arbitral coletivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

5.            Em 17-02-2020, as partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar.

 

6.            Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral coletivo foi constituído em 13-03-2020.

 

7.            No dia 26-06-2020, a AT, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por impugnação.

 

8.            Alega a AT, em síntese, que:

 

a)            Pela análise da fatura n.º 00020884 emitida à B..., Lda., em 02-05-2005, infere-se, de modo inequívoco, não ser feita qualquer menção expressa a um prévio acordo de devolução das embalagens por parte do cliente.

 

b)           As embalagens são transacionadas como se de existências se tratassem, sendo a sua transmissão registada em contas da classe 7, pelo valor faturado e pago pelo cliente.

 

c)            A análise dos balancetes analíticos da classe 7 revela que as devoluções sujeitas à taxa normal excedem as transmissões à taxa normal.

 

d)           O valor das transmissões de embalagens isentas de IVA foi efetivamente superior ao das devoluções de embalagens isentas de IVA.

 

e)           Por força do disposto no artigo 74.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária (LGT), o ónus da prova dos factos impende sobre quem os invoque, sendo certo que a presunção de veracidade dos valores mencionados nas declarações apresentadas pelos sujeitos passivos depende sempre do fornecimento de informação e documentação de suporte que permita confirmá-la (artigo 75.º da LGT).

 

9.            Em 25-08-2020, a AT veio informar o Tribunal Arbitral coletivo não ser possível juntar o Processo Administrativo, uma vez que o mesmo se encontrava, ainda, no Tribunal Tributário, não tendo sido devolvido aos Serviços da AT.

 

10.          Por despacho arbitral de 26-10-2020, foi determinada a dispensa da reunião prevista no artigo 18.ºdo RJAT, tendo sido concedido a ambas as partes o prazo simultâneo de 20 (vinte) dias para apresentação de alegações finais escritas e fixado o dia 03-12-2020 como data limite previsível para a prolação e notificação da decisão final.

 

11.          Em 30-10-2020, a AT veio dar por integralmente reproduzido o aduzido em sede de resposta.

 

12.          A Requerente não apresentou alegações finais escritas.

 

13.          Por despacho arbitral de 30-11-2020, foi determinada a prorrogação por 2 (dois) meses do prazo de decisão e fixado o dia 15-01-2021 como data limite previsível para a prolação e notificação da decisão final.

 

14.          O Tribunal Arbitral coletivo é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

O processo não enferma de nulidades.

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.

 

II. DECISÃO

A. MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

 

a)            A Requerente é uma sociedade de agricultura de grupo cujo objeto social consiste no exercício da atividade do comércio por grosso de produtos hortícolas (CAE 046311).

 

b)           No exercício desta atividade, a Requerente comercializa os seus produtos para hipermercados e empresas de distribuição alimentar.

 

c)            A Requerente, enquadrada no regime normal de IVA de periodicidade trimestral até 31-12-2004 e de periodicidade mensal a partir de 01-01-2005, foi sujeita a um procedimento de inspeção tributária no âmbito da análise de um pedido de reembolso de IVA do período de Maio de 2005, no montante de € 65.000,00 (cfr. Ordens de Serviço n.º OI2006..., OI2006..., OI2006... e OI2006..., da Direção de Finanças de Lisboa).

 

d)           No âmbito do procedimento inspetivo, foram efetuadas correções técnicas ou aritméticas com referência a períodos de IVA dos anos de 2002, 2003, 2004 e 2005, tendo resultado liquidações adicionais de IVA, no montante de € 83.969,63.

 

e)           Nas vendas efetuadas aos hipermercados e empresas de distribuição alimentar, a Requerente utiliza embalagens retornáveis.

 

f)            Ao adquirir as referidas embalagens, a Requerente contabiliza-as na conta #316411 – Compras, registando o IVA deduzido na conta #2432114.

 

g)            Quando procede à transmissão, a Requerente adota dois procedimentos distintos:

 

i.             Contabiliza a venda das embalagens na conta #711113 ou na conta #711114, liquidando IVA à taxa normal, ou, em alternativa;

ii.            Contabiliza a venda das embalagens na conta #71113, considerando-as isentas sem direito à dedução.

 

h)           No exercício da sua atividade, a Requerente recebe, igualmente, embalagens devolvidas, relativamente às quais procede à regularização do IVA.

 

i)             Nos períodos de IVA dos anos de 2002, 2003, 2004 e 2005, as devoluções sujeitas a IVA à taxa normal são superiores às transmissões à taxa normal e as devoluções isentas de IVA sem direito à dedução são inferiores às transmissões isentas de IVA sem direito à dedução.

 

j)             A Requerente inscreveu valores nas Declarações Periódicas de IVA referentes a embalagens, não tendo considerado tributável o seu valor, nem tendo indicado nas faturas que as mesmas eram retornáveis.

 

k)            A AT considerou que as embalagens em causa foram transacionadas como se de existências se tratassem, considerando-as sujeitas a IVA e não isentas, tendo procedido ao apuramento do IVA não liquidado desde o ano de 2002, incidente sobre as vendas incluídas nas respetivas Declarações Periódicas de IVA, no montante total de € 82.311,02.

 

l)             A AT corrigiu, igualmente, o montante de € 1.378,61, relativo a 50% do valor do IVA incidente sobre gasóleo adquirido para consumo das viaturas com as matrículas ... e ..., com peso igual ou inferior a 3.500 Kg.

 

m)          As liquidações adicionais de IVA, no montante de € 83.969,63, foram objeto de impugnação judicial apresentada no Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, em 08-05-2007, cujos termos correram sob o n.º .../07...BESNT.

 

n)           A Requerente apresentou o pedido de constituição do Tribunal Arbitral nos termos do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 81/2018, de 15 de Outubro, com a extinção da instância e a “migração” do processo para o Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), com vista à declaração de ilegalidade das liquidações de IVA em causa, dando origem ao processo arbitral em apreço.

 

A.2. Factos dados como não provados

Com relevo para a decisão, não existem outros factos que devam considerar-se como não provados.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal Arbitral não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

 

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

 

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º, n.º 7, do CPPT e a prova documental apresentada [a AT não apresentou cópia do processo administrativo apesar de notificada para esse efeito], consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

 

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

 

B. DO DIREITO

 

1.            Questão prévia: da não contestação da totalidade das correções que subjazem às liquidações adicionais de IVA

 

Conforme referido acima, a Requerente deduziu o pedido de pronúncia arbitral em apreço no qual peticiona a anulação total das liquidações adicionais de IVA, as quais resultam de um procedimento inspetivo no âmbito da análise de um pedido de reembolso de IVA.

Contudo, a Requerente não contesta a totalidade das correções promovidas em sede de inspeção tributária e que fundamentam os atos de liquidação.

Com efeito, compulsados os fundamentos que a Requerente veio apresentar no pedido de pronúncia arbitral, verifica-se que apenas contesta as correções relativas às embalagens, de que resulta imposto em falta, no valor de € 82.311,02, valor este atribuído ao pedido de pronúncia arbitral.

Nota-se, conforme resulta da matéria de facto dada como provada, e referido da contestação do Representante da Fazenda Pública (RFP), foi igualmente corrigido o montante de € 1.378.61, relativo a 50% do valor do IVA incidente sobre gasóleo adquirido para consumo das viaturas com as matrículas ... e ..., com peso igual ou inferior a 3.500 Kg.

Contudo, esta correção não se encontra contestada, pelo que já se consolidou no plano jurídico.

 

2.            Da ilegalidade das liquidações adicionais de IVA

 

As questões fundamentais que se discutem nos presentes autos e alegadas pela Requerente prendem-se com a ilegalidade das liquidações adicionais por inexistência das operações tributáveis e por vício na fundamentação.

 

2.1.        Inexistência de operações tributáveis

 

A Requerente funda a sua pretensão de ilegalidade das liquidações impugnadas com base no entendimento de que inexiste transmissão das embalagens, e, consequentemente, sujeição a IVA, nos casos em que as mesmas são remetidas sem que tenha havido liquidação do imposto, sendo que, por essa vicissitude, não tem que proceder a qualquer regularização no momento em que aquelas embalagens são retornadas.

Adianta-se, desde já, que tal argumentação não procede. Vejamos porquê.

Como é consabido, o IVA é um imposto que incide sobre as transmissões de bens e as prestações de serviços, efetuadas, a título oneroso, em território nacional a um sujeito passivo aí residente e sobre as importações de bens e operações intracomunitárias realizadas em Portugal, nos termos do respetivo regime legal – v. artigos 1.º e 3.º a 5.º do Código do IVA.

Estruturalmente, o IVA pode considerar-se um imposto plurifásico, que incide sobre todas as fases do circuito económico, desde a produção ao consumo, sendo, porém, desprovido de efeitos cumulativos na medida em que é determinado através do método subtrativo indireto, como “técnica da liquidação e dedução do imposto em cada uma das fases do circuito económico, funcionando como tal quando as transações se processam entre sujeitos passivos do imposto com direito à dedução” – cf. CLOTILDE CELORICO PALMA, As entidades públicas e o Imposto sobre o Valor Acrescentado – Uma rutura no princípio da neutralidade, Coimbra, pp. 52-53. Por ser assim, o direito à dedução nos outputs do valor do imposto suportado nos inputs assume estruturalmente um carácter central na mecânica do imposto, impondo um largo espectro de obrigações e o cumprimento de um conjunto de formalidades que se justifica não apenas numa ótica de controlo, a jusante, das operações tributáveis, mas também como elemento determinante do correto apuramento do IVA devido considerando o crédito do imposto oponível pelo sujeito passivo.

                Trata-se, também, de um imposto geral sobre o consumo cuja incidência objetiva tem a pretensão de abarcar todos os atos enquadrados no exercício de uma atividade económica. Esta vocação de universalidade determina, inter alia, uma assimetria entre os conceitos de transmissão de bens e prestação de serviços relevantes para a incidência do imposto e o seu entendimento juscivilístico, considerando-se, designadamente, que exista transmissão de bens sem que se transmita a sua propriedade (cf. artigo 3.º, n.º 3, do Código do IVA) e que “qualquer tipo de atribuição patrimonial que não seja uma contrapartida de uma transmissão de bens tenha subjacente uma prestação de serviços tributável” (cf. artigo 4.º do Código do IVA; v., sobre o problema, CLOTILDE CELORICO PALMA, As entidades públicas e o Imposto sobre o Valor Acrescentado – Uma rutura no princípio da neutralidade, Coimbra, p. 59, PATRÍCIA NOIRET CUNHA, Imposto sobre o Valor Acrescentado – Anotações ao Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado e ao Regime do IVA nas Transações Intracomunitárias, Coimbra, p. 125 e JOSÉ XAVIER DE BASTO, A tributação do consumo e a sua coordenação internacional – Lições sobre harmonização fiscal na Comunidade Económica Europeia, Cadernos de CTF n.º 164, pp. 172-173).

                Essa mesma vocação não deixou de inspirar a definição de matéria tributável do imposto lavrada no artigo 11.º da Sexta Diretiva 77/388/CEE do Conselho, relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios – sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado, considerando aí abrangidas as despesas de embalagem (v. artigo 11.º, n.º 2, alínea b), da Sexta Diretiva). Não obstante, foi aí previsto um regime específico para as embalagens recuperáveis, estabelecendo-se que, quanto ao seu valor, os Estados-Membros podem: “- excluí-lo da matéria coletável, adotando as medidas necessárias para ajustar essa matéria coletável, sempre que as embalagens não sejam recuperadas; - ou incluí-lo na matéria coletável, adotando as medidas necessárias para ajustar essa matéria coletável, sempre que as embalagens sejam efetivamente recuperadas” – artigo 11.º, alínea c) Disposições diversas, n.º 3 –, regime que se manteve nos artigos 78.º e 92.º da Diretiva 2006/112/CE, de 28 de Novembro de 2006, relativa ao sistema comum do Imposto sobre o Valor Acrescentado.

                A lógica binária das disposições comunitárias mereceu, no plano do direito interno, o regime que, à data dos factos tributários, constava da redação do artigo 16.º, n.º 6, alínea b), e do artigo 35.º, n.º 5, alínea b), para o qual aquele remetia, ambos do Código do IVA. Nos termos da primeira disposição, excluía-se do valor tributável “as quantias referentes a embalagens, desde que as mesmas não tenham sido efetivamente transacionadas e da fatura ou documento equivalente constem os elementos referidos na parte final da alínea b) do n.º 5 do artigo 35.º”; já nessa norma exigia-se que “as embalagens não efetivamente transacionadas deverão ser objeto de indicação separada e com menção expressa de que foi acordada a sua devolução”. Nestes termos, no que se refere às embalagens “retornáveis” o legislador sujeita a sua exclusão do valor tributável dos produtos que acondicionam à dupla condição de “1) [o] fornecedor não as ter efetivamente transacionado, isto é, não as considerar vendidas e, por consequência, não relevar contabilisticamente tal operação como venda ou como adiantamento; 2) [n]a fatura ou documento equivalente, essas quantias forem objeto de uma indicação em separado e se mencionar expressamente que foi acordada a devolução das embalagens” – v. Acórdão do TCA Sul, de 20 de fevereiro de 2020, processo 1246/09.1BELRS, disponível em www.dgsi.pt, e, nesses mesmos exatos termos, o ponto 7 da informação vinculativa da AT, datada de 4 de abril de 2008 (processo L129 2007220).

                Nestes termos e tal como posto em realce na supra citada informação vinculativa, “nada obsta a que as importâncias pagas pelos adquirentes referentes à disponibilização de embalagens que acondicionam os produtos transacionados possam ser consideradas como simples caução de depósitos, cumpridos que sejam os pressupostos referidos na alínea d) do n.º 6 do art. 16.º e parte final da alínea b) do n.º 5 do art. 35.º (atual art. 36.º), ambos do CIVA”.

Não sendo, porém, cumpridos esses requisitos, essas embalagens devem considerar-se como tendo sido efetivamente transacionadas, liquidando-se o imposto correspondente, a regularizar nos termos do artigo 78.º do Código do IVA, na circunstância de eventualmente vir a ocorrer a devolução das embalagens.

                A razão de ser destas exigências de carácter formal é sublinhada em aresto do mesmo tribunal, de 19 de outubro de 2010, tirado no processo n.º 03490/09, nos termos que se passam a transcrever:

                “(...)

                Como se sabe, todo o mecanismo em que assenta a liquidação e modo de apuramento do IVA se funda em requisitos formais, que assim constituem verdadeiros requisitos substanciais em ordem ao apuramento do imposto devido pelo sujeito passivo, como as referidas normas citadas afloram, e que em princípio não podem ser substituídas por outros meios probatórios nos termos do disposto nos art.ºs 364.º, n.º1 do Código Civil e 655.º, n.º2 do CPC, indo-se ao ponto de, nos termos do mesmo Código, tornar devido um imposto mencionado indevidamente em fatura ou documento equivalente, como se devido fosse, nos termos do disposto no art.º 19.º, n.º1, alínea c) do mesmo Código, o que aliás, a nossa jurisprudência, designadamente a do STA, têm vindo a dar ênfase.

Relativamente às embalagens que não sejam efetivamente transacionadas, exige a citada norma da citada alínea b) do n.º 5 do art.º 35.º que, as embalagens não efetivamente transacionadas deverão ser objeto de indicação separada e com menção expressa de que foi acordada a sua devolução, ou seja, a respetiva fatura deve conter uma discriminação destas e bem assim a expressa menção de que houve acordo com o respetivo fornecedor quanto à sua devolução, ou seja, dessa fatura não podem restar dúvidas que tais embalagens não constituem objeto da transação e nem podem influenciar na base tributável do imposto a apurar, bem como o acordo existente da sua devolução, de molde a tornar clara essa base tributável, face a essa fatura, base de todo apuramento do imposto e, desta forma, também contribuir para evitar a fraude e a evasão fiscais, pela verificação clara e precisa que desta forma também permite efetuar no respetivo fornecedor, nos dados e registos da respetiva contabilidade”.

 

No caso sub juditio, a Requerente não invoca ter procedido de acordo com as referidas exigências normativas, nem, concomitantemente, faz prova da inexistência de transmissão das embalagens de acordo com o regime legal, sendo, por isso, de considerar sujeitas a imposto as transmissões controvertidas nos autos.

Não se olvida, em todo o caso, que, num contexto em que tais transmissões são tributadas, a posterior devolução das embalagens sempre abriria a possibilidade do sujeito passivo regulariza a seu favor o imposto liquidado, porquanto, nos termos do artigo 78.º, n.º 2, do Código do IVA, “[s]e, depois de efetuado o registo referido no artigo 45.º, for anulada a operação ou reduzido o valor tributável (...) pela devolução de mercadorias (...) o fornecedor do bem ou prestador do serviço pode efetuar a dedução do correspondente imposto até ao final do período de imposto seguinte àquele em que se verificaram as circunstâncias que determinaram a anulação ou a redução do seu valor tributável”.

                No entanto, tanto num caso, como no outro, o funcionamento estrutural do IVA sempre imporia o cumprimento de obrigações que permitissem comprovar a exclusão da abrangência do IVA relativo às embalagens e/ou a sua devolução documentada nos termos legais, sendo que, no caso em apreciação, a Requerente não apresenta essa prova, o que se impunha a partir do momento em que a AT evidenciou as discrepâncias entre as transmissões e as devoluções de embalagens, incorretamente relevadas pelo sujeito passivo.

                Ainda nesta sede impõe-se uma derradeira observação quanto à alegada inexistência de prejuízo para o Estado, argumento que a Requerente centra em larga medida a sua argumentação. Ora, num imposto como o IVA, o cumprimento de certas formalidades não tem uma natureza meramente prodómica, sendo aquelas assumidas, no seu desenho estrutural, como ratio essendi da respetiva liquidação – e, por isso, comummente consideradas como formalidades ad substantiam e não meramente ad probationem. Como se pode verificar, no caso das embalagens, mesmo quando não sejam verificadas as circunstâncias que afastam a existência de uma transmissão, e apesar de a mesma ser tributada nos termos gerais, a lei não deixa, porém, de permitir ao sujeito passivo proceder à regularização do imposto aquando da sua devolução. Porém, em ambas as circunstâncias, é necessário que a adoção dos procedimentos permita a clara e inequívoca identificação das operações e a sua adequada comprovação, sem as quais um juízo de (in)existência de prejuízo para o Estado apenas encontrará suporte numa insindicável, porque indemonstrada, subjetividade.

 

2.2.        Violação do dever de fundamentação

 

A necessidade de uma fundamentação expressa dos atos administrativos constitui, hoje, como é consabido, uma das garantias dos administrados reconhecidas constitucionalmente, de forma explícita a partir da revisão de 1982 (artigo 268.º, n.º 2).

                As necessidades de converter o direito de recurso contencioso − assumido pelo constituinte originário como uma garantia fundamental dos administrados − num instrumento jurídico funcionalmente adequado, sob o ponto de vista substancial, para reagir contra quaisquer atos administrativos apodados de ilegais e de conferir transparência e visibilidade à atividade administrativa e, não menos, à efetiva realização substancial do princípio da legalidade, conduziu o legislador a que, logo na primeira alteração à Constituição de 76, estabelecesse a exigência de fundamentação expressa dos atos administrativos quando estes afetem direitos e interesses legalmente protegidos, tendo o legislador fundamental, aprimorado as exigências quanto à densidade significante da fundamentação ao ter passado a impor que esta, além de expressa, tenha de ser também acessível.

                Neste quadro, cedo a jurisprudência do STA abandonou a sua inicial − e equívoca − postura de não ter por incluídos no tipo dos atos constitucionalmente sujeitos ao dever de fundamentação, os atos tributários, sob a argumentatio de que estes não seriam, em sentido estrito, atos administrativos e de que sempre seria possível ver cumpridas essas exigências de fundamentação expressa nos diversos atos de procedimento prévio à prática do ato de liquidação, que, então, estavam contemplados nos diferentes códigos fiscais vigentes, tendo passado a entender serem-lhes aplicáveis as regras constantes do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 256-A/77, de 17 de Junho. O CPT regulou a matéria em cinco dos seus preceitos  artigos 19.º alínea b), 21.º, 80.º, 81.º e 82.º, evidenciando, desse modo, uma peculiar intenção de dar cumprimento ao sentido prescritivo do comando constitucional. E o mesmo veio a fazer a LGT, que constitui, hoje, a sede em que a matéria se encontra regulada, exceção feita à fundamentação da decisão relativa à aplicação das normas anti-abuso cujas regras estão enunciadas no artigo 63.º, n.º 9, do CPPT.

                A fundamentação é consubstanciada pelo discurso verbalizado pela AT como suporte constituinte da decisão administrativa. Nesta perspetiva, a fundamentação consiste numa externação formal das razões de facto e de direito contemporâneas ou coetâneas da decisão administrativa e constituintes da mesma, não podendo considerar-se como legítima toda aquela que com um propósito integrador do sentido da sua anterior declaração, apenas seja produzida e invocada posteriormente.          

Numa formulação que traduz apenas a síntese do que a doutrina mais autorizada escreveu sobre a matéria, pode referir-se que a fundamentação se consubstancia num discurso funcional externado pela AT, expresso, formal, explícito, contextual, com capacidade para dar a um destinatário normal, colocado na situação concreta do destinatário do ato as razões “justificantes” e “justificativas”  sob o ponto de vista formal  da concreta decisão administrativa – cf. JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, O dever de fundamentação, Coimbra, pp. 24 e ss. e 227 e ss..

                Deste modo, quanto a este importante nódulo problemático, é forçoso reconhecer que, em todo o caso, o discurso normativo-racionalmente justificativo não poderá deixar de expressar, no mínimo exigível, os factos apreendidos, o modo como foi efetuada essa prognose, os critérios adotados e as valorações efetuadas, devendo ser apenas tido como suficiente naqueles casos onde se revele uma sustentada aptidão comunicativa ou compreensividade para revelar inteiramente o juízo do autor do ato administrativo, de modo que possa permitir ao seu destinatário e ao tribunal o controlo da sua validade substancial, aceitando-o, reclamando, recorrendo hierarquicamente ou sindicando-o contenciosamente.

                O discurso fundamentador administrativo não pode deixar, assim, de ter em conta o contexto jurídico-histórico-factual em que acontece o ato tributário, ainda que o mesmo possa assumir uma certa “geometria variável”. Quando o ato mais não seja do que uma mera conclusão ou síntese fáctico-jurídica do que foi declarado pelo contribuinte ou, então, quando o seu conteúdo é favorável ao sujeito passivo, acaba por decorrer dos mais elementares princípios procedimentais da simplicidade, celeridade e economia, que basta que o ato tributário seja fundamentado através de uma sucinta ou sumária exposição das razões de facto e de direito que os motivaram (artigo 77.º). No entanto, a densidade ou capacidade significante do discurso fundamentador da AT tem necessariamente subir de rigor sempre que o conteúdo do ato represente os termos da resolução de uma controvérsia que se haja instalado ou possa instalar entre a AT e o sujeito passivo, devendo tal fundamentação variar na razão direta da complexidade substancial dessa divergência − tendo em conta os termos em que a querela existente entre a AT e o sujeito passivo acaba por se exprimir, seja do ponto de vista factual, seja do ponto de vista jurídico.

                 Nestes casos, a decisão administrativa, despoletada, em via de regra, por um ato propulsor próprio ou oficioso, não pode deixar de revelar expressa, formal, clara, congruente e suficientemente todo o processo de conhecimento ou de prognose dos factos que a AT entende subsumirem os pressupostos que estão descritos nos diversos preceitos que fundam a pretensão impositiva, referindo particularmente a “matéria-fáctica” que suporta o seu juízo, os seus critérios de aferição ou de valoração inferativa, os meios probatórios que possibilitaram o seu conhecimento fáctico, e, finalmente, também a valoração jurídica que, em coroação de todo esse acervo racional, levou a AT a decidir nos termos em que concretamente o fez, sendo tais exigências postuladas pela ineliminável necessidade de transparência ao nível da atividade administrativa, pelo direito de reclamação administrativa e de impugnação judicial e, the last but not the least, pelo respeito pela legalidade administrativa.

                Perscrutando o acervo informativo constante dos autos, bem se vislumbra que a AT cumpriu as exigências de uma fundamentação formal, produzindo um discurso assente em factos – desde logo verificando que as devoluções sujeitas a IVA à taxa normal eram superiores ao número de transmissões de à taxa normal, verificando-se o inverso quanto às embalagens consideradas como isentas de IVA e que as embalagens foram transacionadas como se de existências se tratassem, considerando, ademais, a faturação da Requerente –, que integrou na norma de incidência do imposto.

                Tanto basta para que possa considerar-se satisfeito o mínimo exigível para fundamentar a pretensão impositiva, por se encontrarem referidos os factos e o direito que suportam a liquidação oficiosa, não havendo, ademais, base documental para se aventar a existência de realidade alternativa conducente à não tributação dos factos tributários. Por outro lado, as inferências que suportam a alegação da Requerente, principaliter no que concerne à inexistência de compreensão administrativa dos procedimentos adotados e à sua correção, são irrelevantes para a aferição do cumprimento do dever formal de fundamentação das liquidações, sendo que, mesmo a ultrapassar-se essa barreira dogmática, apenas colheriam razão de ser se tais procedimentos se revelasse em acordo com a lei, o que, como se referiu, não se verifica.

 

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C. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar integralmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral formulado e, em consequência:

a)            Absolver a Requerida do pedido; e

b)           Condenar a Requerente nas custas do processo, no montante abaixo fixado.     

 

D. VALOR DO PROCESSO

Fixa-se o valor do processo em € 82.311,02, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

E. CUSTAS

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 2.754,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 6 de janeiro de 2021

 

O Árbitro Presidente

(José Poças Falcão)

 

O Árbitro Vogal

(Hélder Faustino)

 

O Árbitro Vogal

(João Pedro Rodrigues)