Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 9/2018-T
Data da decisão: 2018-10-03  IRC  
Valor do pedido: € 156.205,88
Tema: IRC – Tributações Autónomas; SIFIDE.
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DECISÃO ARBITRAL

 

Acordam os Árbitros José Poças Falcão (Árbitro Presidente), João Taborda da Gama e Carla Castelo Trindade, designados no Centro de Arbitragem Administrativa para formarem Tribunal Arbitral:

 

 

I – RELATÓRIO

 

  1. A..., S.A., contribuinte fiscal n.º ..., com sede na rua ... n.º..., ...-..., ..., apresentou um pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º e segs. do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, para apreciar a legalidade do indeferimento tácito da reclamação graciosa deduzida contra o acto de autoliquidação de IRC, relativo ao exercício de 2015, na parte em que não admite a dedução à colecta do IRC produzida pelas taxas de tributação autónoma dos benefícios fiscais apurados no âmbito do Sistema de Incentivos Fiscais à Investigação e Desenvolvimento Empresarial (SIFIDE) e dos pagamentos especiais por conta (PEC), no montante de € 156.205,88.

 

  1. Fundamenta o pedido nos seguintes termos.

 

  1. A Requerente dispõe de créditos fiscais referentes aos exercícios de 2009, 2014 e 2015 no âmbito do SIFIDE, no valor total de € 362.839,61 e efectuou pagamentos especiais por conta em todos os exercícios desde 2010, no valor total de € 418.746,00, que nunca foram deduzidos por ter tido resultados fiscais negativos entre 2010 e 2013.

 

  1. No exercício de 2015, a Requerente apurou um montante de imposto a pagar no total de € 129.775,82 ao qual não foi possível deduzir os créditos fiscais na parte referente à colecta de IRC produzida pelas tributações autónomas, redundando no pagamento indevido de € 156.205,88.

 

  1. No entanto, as tributações autónomas, embora sujeitas a uma distinta forma de apuramento no que se refere à base tributável e às taxas aplicáveis, seguem, no entender da Requerente, um idêntico procedimento de liquidação de imposto nos termos do artigo 90.º do CIRC.

 

  1. Defende então a Requerente que o artigo 90.º do Código do IRC não se aplica às tributações autónomas, pelo que deverá ser declarada a ilegalidade da liquidação de tributações autónomas por ausência de base legal para a sua efectivação, atento o disposto no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição.

 

  1. Defende ainda a Requerente que a finalidade anti-abusiva das tributações autónomas não afasta o procedimento de liquidação de IRC nem frustra o efeito legal pretendido, visto que o sujeito passivo efectua o pagamento das tributações autónomas através da compensação dos créditos fiscais de que dispõe a título de benefícios fiscais ou de pagamentos especiais por conta. De outro modo, diz a Requerente, a norma do artigo 90.º, n.º 2, do CIRC seria contrária ao princípio da igualdade fiscal na medida em que introduz limites às deduções em IRC que não são aplicáveis a todos os contribuintes.

 

  1. A Requerente defende ainda que a norma do artigo 88.º, n.º 21, do CIRC, introduzida pela Lei n.º 7-A/20216, de 30 de Março, não obsta à dedução à colecta de IRC das tributações autónomas, visto que dela apenas decorre que não poderão ser efectuadas deduções específicas à colecta das tributações autónomas, e, em qualquer caso, a norma, pela sua natureza interpretativa, seria contrária ao princípio da proibição da retroactividade da lei fiscal quando se entenda aplicável ao exercício fiscal de 2014.

 

  1. Deste modo conclui a Requerente que poderá ser deduzido à colecta do IRC resultante das tributações autónomas os montantes desembolsados a título de pagamentos especiais por conta por se tratar de créditos fiscais que poderão permitir a compensação do imposto devido.

 

  1. Pede em consequência a declaração de ilegalidade da decisão de indeferimento da reclamação graciosa e a anulação parcial da autoliquidação de IRC referente a 2015, na parte em que não permitiu a dedução à colecta produzida pelas tributações autónomas do benefício fiscal e dos pagamentos especiais por conta.

 

  1. A Autoridade Tributária, na sua resposta, considera que a inclusão das tributações autónomas no Código de IRC, pela sua natureza e finalidade, tem como corolário lógico a aplicação das normas gerais próprias desse imposto que não contendam com a sua especial forma de incidência, conferindo uma natureza dualista ao sistema normativo do imposto que se corporiza no apuramento separado das respectivas colectas de acordo com diferentes regras, concluindo pela improcedência do pedido.

 

  1. Em alegações, as partes reiteraram as suas anteriores posições.

 

  1. No dia 5 de Janeiro de 2018, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à Autoridade Tributária.

 

  1. A Requerente procedeu à nomeação de árbitro, tendo indicado o Exm.º Sr. Dr. João Taborda da Gama, nos termos do artigo 11.º n.º 2 do RJAT.

 

  1. Nos termos do n.º 3 do mesmo artigo a Requerida indicou como árbitra a Exm.ª Sr.ª Dr.ª Carla Castelo Trindade.

 

  1. Os árbitros indicados pelas partes foram nomeados e aceitaram os respectivos encargos.

 

  1. Por despacho de 20 de Fevereiro de 2018, e na sequência do requerimento apresentado pelos árbitros designados pelas partes para que o árbitro-presidente fosse designado pelo Conselho Deontológico, foi designado árbitro-presidente, nos termos do artigo 6.º, n.º 2, alínea b), do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, o Senhor Juiz José Poças Falcão, que, em prazo aplicável, também aceitou o encargo.

 

  1. No mesmo dia as partes foram notificadas das referidas designações, não tendo manifestado vontade de apresentar pedido de recusa para nenhuma delas.

 

  1. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 12 de Março de 2018.

 

  1. No dia 30 de Abril de 2018, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por impugnação.

 

  1. Atendendo a que no processo arbitral vigoram os princípios processuais gerais da economia processual e da proibição da prática de actos inúteis, ao abrigo do disposto nas alíneas c) e e) do artigo 16.º do RJAT, dispensou-se a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, bem como a apresentação pelas partes.

 

  1. No dia 31 de Agosto de 2018 foi proferido despacho de prorrogação da decisão para dia 3 de Outubro de 2018.

 

  1. O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 1, do RJAT.

 

  1. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

O processo não enferma de nulidades.

 

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.

 

Tudo visto, cumpre proferir

 

II. DECISÃO

A. MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

 

  1. A Requerente apresentou declaração Modelo 22 de IRC, referente ao exercício de 2015, procedendo à autoliquidação de tributações autónomas no montante de € 156.205,88;

 

  1. O montante de imposto apurado a pagar foi de € 129.775,82;

 

  1. A Requerente dispõe de créditos fiscais referentes aos exercícios de 2009, 2014 e 2015 no âmbito do SIFIDE no valor total de € 362.839,61;

 

  1. E efectuou pagamentos especiais por conta em todos os exercícios desde 2010 no valor total de € 418.746,00 que não foram deduzidos por ter apurado resultados fiscais negativos entre 2010 e 2013;

 

  1. O sistema informático não permitiu a dedução à colecta de IRC, incluindo a resultante das tributações autónomas, dos montantes de benefício fiscal reconhecido ao abrigo do SIFIDE e dos pagamentos especiais por conta;

 

  1. A Requerente apresentou reclamação graciosa contra a autoliquidação de tributações autónomas do referido exercício de 2015, que não foi objecto de apreciação pela Autoridade Tributária dentro do prazo legalmente previsto;

 

A.2. Factos dados como não provados

Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de seleccionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º, n.º 7 do CPPT, a prova documental e o processo administrativo juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

 

B. DO DIREITO

 

A questão principal a decidir nos presentes autos, sendo, sem dúvida, de alguma complexidade na sua resolução, é, todavia, simples na sua formulação, e prende-se com a questão de saber se tem ou não a Requerente o direito de proceder à dedução dos créditos de SIFIDE e de pagamentos especiais por conta aos valores devidos a título de tributações autónomas.

A questão é eminentemente de entendimento do substrato constitucional subjacente aos quatro institutos: IRC, SIFIDE, Pagamentos por conta e Tributações Autónomas. É isto que se tentará fazer de seguida.

A tese sustentada pela Requerente redunda na atribuição às normas do SIFIDE e do RFAI ou, arrisca-se, a quaisquer outras normas de benefício fiscal que funcionem através de dedução à colecta, de um alcance que não é compatível com a sua natureza excepcional.

Comece-se desde já por afirmar que este Tribunal considera que as normas que disciplinam benefícios como o SIFIDE e o RFAI possuem natureza excepcional e só podem reconhecer-se como válidas quando a derrogação que tragam ao princípio da igualdade seja necessária, adequada e proporcionada ao fim extrafiscal que lhes está subjacente. E é isso que se verá de seguida. É que segundo o entendimento deste Tribunal uma leitura como a que resulta da orientação defendida pela Requerente poderá redundar, no limite, na inconstitucionalidade dos próprios regimes de benefícios fiscais SIFIDE e do RFAI. Isto porque da tese defendida pela Requerente decorre então que a finalidade destes benefícios fiscais é de tal modo intensa que justifica o afastamento das finalidades das tributações autónomas, o que é perturbante designadamente quando pensamos em casos em que a finalidade da tributação autónoma é a prevenção da fraude e evasões fiscais. Não é seguramente esta a intenção do legislador quando cria (ou criou) benefícios fiscais. Pelo contrário: a utilização de benefícios fiscais deve trazer consigo uma responsabilização reforçada dos contribuintes que os gozam.

Com o vencimento de uma tese como a sufragada pela Requerente a comunidade perderia duplamente: pela despesa fiscal incorrida com os benefícios fiscais e com a receita que se perde em práticas evasivas.

A leitura que faz a Requerente é insustentável por isso no plano constitucional, onde talvez mereça ser dilucidada.

A leitura que faz a Requerente é ainda insustentável no plano constitucional quando ao permitir deduções às tributações autónomas sejam elas resultantes de créditos do SIFIDE sejam elas resultantes de créditos de pagamentos especiais por conta, se está a violar o princípio da igualdade tributária. De facto, admitem-se deduções gerais à colecta do imposto (IRC), permitidas por lei por força (e imposição) do princípio da tributação do rendimento real e efectivo enquanto elemento revelador da capacidade contributiva.

 

***

 

Olhemos então à estrutura do IRC:

Segundo entende este Tribunal a dedução à colecta é uma realidade do IRC (e do IRS) enquanto imposto legitimado pelo princípio da capacidade contributiva. Ora o mesmo não acontece em relação à colecta devida por tributações autónomas. Nas tributações autónomas admitir-se uma dedução à sua colecta contrariaria o princípio da igualdade tributária, essa dedução geral deixa mesmo de fazer sentido porque, não tributando os rendimentos mas despesas e se se quiser comportamentos, não se coloca, quanto a estes, qualquer questão de justiça na repartição do encargo geral do imposto a que apela o n.º 1 do artigo 103.º da CRP. Não são estas as preocupações e os elementos enformadores do imposto. Muito pelo contrário. Seria mesmo ilógico permitir a dedução de encargos às tributações autónomas quando tal dedução, na prática, destruiria o sentido anti abusivo que as caracteriza e que se resume ao desincentivo de comportamentos desviantes que a sua instituição reprime ou dirime.

Não entende este Tribunal que as tributações autónomas são autónomas porque o legislador entendeu que os objectivos que lhes estão subjacentes só podiam ser concretizados através da criação de agravamentos fiscais sobre as empresas que ficassem imunes às contingências da liquidação do IRC. Que ficassem imunes às contingências necessárias ao cumprimento do princípio da tributação pelo lucro real que caracteriza o IRC.

Esses objectivos da tributação autónoma são, segundo o entendimento deste Tribunal, essencialmente de duas ordens: por um lado, o combate à evasão e fraude fiscal, interna ou internacional; por outro lado, o desincentivo de certos comportamentos por razões de ordem social, como o ambiente. Num e noutro casos, a tributação autónoma e a protecção destes bens jurídicos concretiza-se por um agravamento fiscal. Este Tribunal não acompanha, portanto, uma orientação que aponte que o grande objectivo da tributação autónoma seja a obtenção de receita fiscal. A obtenção de receita fiscal há-de ser o resultado de qualquer intenção de sujeição de uma determinada realidade a tributos, não o objectivo ou o fundamento.

Em substância, nas tributações autónomas, está-se perante um mecanismo de estímulos negativos, que pretende alterar o comportamento das empresas com vista à tutela de interesses e valores com dignidade constitucional. Não se pode conceber que sobre estes se façam prevalecer sem reserva os interesses e valores que estão por trás de normas de benefícios fiscais como SIFIDE ou o RFAI, que não possuem com certeza dignidade maior.

Desta feita, não se acompanha a tese defendida pela Requerente também e desde logo, porque esta conclusão resulta de uma interpretação jurídica que não leva em linha de conta os elementos teleológico e racional das figuras da tributação autónoma e do IRC ao admitir que decorre do artigo 4.º, n.º 1 do respectivo diploma do SIFIDE e RFAI, conjugado com o artigo 90.° do Código do IRC, que ao cálculo das tributações autónomas se efectua nos termos do artigo 90.º do Código do IRC e portanto podem ser deduzidos benefícios fiscais ao montante a pagar de tributações autónomas.

Para compreendermos o que se diz e, consequentemente, o porquê da negação do pedido da Requerente, começar-se-á então por explicar de forma resumida a distinção estrutural e dogmática entre as figuras do IRC e da tributação autónoma. Tudo para depois concluir que no cálculo das tributações autónomas não cabem quaisquer deduções sendo a liquidação das tributações autónomas efectuada nos termos do artigo 88.º e 89.º do Código do IRC recorrendo-se unicamente ao n.º 1 do artigo 90.º do Código para efeitos de procedimento da liquidação. Nunca ao n.º 2 e seguintes do artigo 90.º do Código porquanto estes encerram instrumentos aplicáveis unicamente ao IRC.

Isto para de seguida olhar à figura dos pagamentos especiais por conta e ao seu substrato teórico para concluir que também o PEC tem uma natureza anti-abusiva que não se compadece com a interpretação eu a Requerente dele faz.

Depois avançar-se-á para a análise de regime do SIFIDE e RFAI para concluir então o que acima se deixou dito. Que regimes de apoio ao investimento que são concretizados em deduções à colecta do IRC se reportam à colecta de IRC stricto sensu para cujo apuramento não concorrem as tributações autónomas. Não concorrem nem poderiam concorrer porque o regime premeia e quer premiar a rendibilidade do investimento. Quanto mais lucro tiver a empresa mais esta pode deduzir ao seu lucro as despesas com investimento. Não premeia nem quer premiar empresas que não tendo lucro e tendo tributações autónomas, por exemplo, decorrentes de despesas com representação, possam deduzir a este valor as despesas com investimento. Ora é também o próprio fundamento do regime do SIFIDE e RFAI que nega a possibilidade de deduções das despesas com investimento aos montantes da tributação autónoma. É que admitir-se isto, como decorre da posição defendida pela Requerente, estar-se-á a admitir que a finalidade destes benefícios fiscais é de tal modo intensa que justifica o afastamento das finalidades das tributações autónomas e uma leitura como esta poderá redundar, no limite, na inconstitucionalidade dos próprios regimes de benefícios fiscais SIFIDE e do RFAI. Admitir-se isto está ainda a subverter-se todo o mecanismo de funcionamento dos dois impostos – IRC e tributações autónomas – trazendo a um imposto que se quer penalizador por imposição do princípio da igualdade tributária (tributações autónomas) instrumentos como as deduções à colecta ou de pagamentos especiais por conta característicos do IRC por imposição do princípio da tributação pelo lucro real.

Posto isto olhemos então a cada questão em concreto.

 

***

 

Tudo começa pela divergência (fundamental) relativa à natureza das tributações autónomas.

Aqui este Tribunal acompanha a posição uniforme e reiterada quer da jurisprudência do Tribunal Constitucional e do Supremo Tribunal Administrativo quer da Doutrina.

As tributações autónomas são um imposto sobre a despesa diferente e distinto do IRC que, indiscutivelmente, é um imposto sobre o rendimento. Isto sem se discutir se as tributações autónomas têm ou não natureza – semelhanças – com o IRC. É que independentemente das possíveis semelhanças não há dúvida que são impostos diferentes.

Esta jurisprudência foi iniciada há já 7 anos no tribunal constitucional com o voto de vencido do Exmo. Conselheiro Vítor Gomes, aposto no Acórdão n.º 204/2010. Em Acórdão n.º 310/12, de 20 de Junho, o Tribunal Constitucional reformulou a doutrina do Acórdão n.º 18/11 aproximando-se do então voto de vencido do Conselheiro Vítor Gomes.

Esta jurisprudência foi mais tarde reafirmada pelo Plenário, no Acórdão n.º 617/2012, processo n.º 150/12, de 31/1/2013 e, recentemente, no Acórdão n.º 197/2016, proferido no âmbito do processo n.º 465/2015.

No mesmo sentido tem andado o Supremo Tribunal Administrativo como se confirmará, entre outros, no Acórdão de 21/3/2012, processo 830/11, de 21/3/2012.

A doutrina também acompanha esta posição.

De Sérgio Vasques, em nota de rodapé 60, página 342, do seu Manual de Direito Fiscal Almedina, 2015, a Rui Morais nos Apontamentos ao IRC, Almedina, 2009, pp. 202-203, passando pelo Professor Casalta Nabais no seu Direito Fiscal, 8.ª ed., Almedina, Coimbra, 2015, p. 542 e pela Professora Ana Paula Dourado nas Direito Fiscal, Lições, 2015, pp. 237 ss. Todos reiteram a posição já sufragada pelos tribunais portugueses. A tributação autónoma e o IRC são impostos diferentes.

Esta tese foi transposta para a lei, de forma inequívoca, pelo próprio legislador quando na redacção introduzida ao artigo 23.º-A, n.º 1, alínea a), do Código do IRC pela Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, se passa a dizer que “não são dedutíveis para efeitos da determinação do lucro tributável» «o IRC, incluindo as tributações autónomas”. Que sentido faria deixar claro na lei que a tributação autónoma e o IRC não são dedutíveis ao lucro tributável se as tributações autónomas fizessem parte do IRC? Se assim fosse os Acordos para Evitar a Dupla Tributação teriam as tributações autónomas incluídas onde se refere o IRC o que, como se sabe, não sucede. Essa é de resto a razão pela qual Portugal tem vindo a incluir as tributações autónomas na lista de impostos abrangidos. Assim, em face do exposto pode desde já concluir-se, de forma singela, que se o legislador fiscal entendesse que o IRC incluía as tributações autónomas não teria tido necessidade de distinguir as duas realidades, pois esse IRC já incluiria necessariamente as tributações autónomas.

E não é pelo facto de a tributação autónoma estar inserida no Código do IRC que as duas realidades se devem confundir.

Recorde-se que a tributação autónoma foi introduzida pelo artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 192/90, de 9 de Junho, não tendo sido imediatamente inserida no Código IRC. O legislador só 10 anos depois do surgimento da tributação autónoma decidiu introduzi-la no Código IRC através da Lei n.º 30-G/2000 de 29 de Dezembro. O que o legislador procurou com esta sistemática foi um efeito anestesiador, já que, não obstante as tributações autónomas serem liquidadas independentemente do IRC, são autoliquidadas juntamente com a declaração do IRC, através do modelo 22. Quanto a esta questão o Tribunal Constitucional considerou, nos Acórdãos n.ºs 18/2009 e 85/2010, que a tributação autónoma poderia estar inserida em qualquer outro código ou diploma autónomo.

E as realidades são diferentes desde logo porque os objectivos são diferentes.

No IRC visa-se a tributação do rendimento sob o escrutínio da capacidade contributiva.

Já a tributação autónoma teve, pelo menos originariamente, dois objectivos bem diferentes sempre sob a legitimação do princípio da igualdade tributária.

O primeiro o de tributar na esfera das empresas o que não se consegue tributar em sede de IRS e o segundo o de desincentivar a realização de certas despesas ou de certos comportamentos. A este propósito o professor Saldanha Sanches chegou mesmo a afirmar que “Neste tipo de tributação, o legislador procura responder à questão reconhecidamente difícil do regime fiscal que se encontra na zona de intersecção da esfera pessoal e da esfera empresarial” acrescentando ainda que na “«(...) designação de “tributações autónomas", escondem-se realidades muito diversas (...)»” (Manual de Direito Fiscal, 3.“ edição (2007), Coimbra Editora, pág. 406/7). O Professor Guilherme de Oliveira Martins afirma que as tributações autónomas “(…) cumprem, no essencial, duas funções: por um lado, evitar a erosão da base tributável em sede de IRC, fazendo incidir tributação sobre encargos que podem ser deduzidos pelos sujeitos passivos de IRC, mas que, sendo-o, se transformam num agravamento da tributação, pretendendo, portanto, servir como desincentivo à despesa com tais encargos; outros tipos de tributações autónomas visam, pura e simplesmente, penalizar comportamentos presuntivamente evasivos ou fraudulentos dos sujeitos passivos, consubstanciando um mecanismo antiabusivo.”.

A tributação autónoma visa então tributar uma vantagem patrimonial obtida, via de regra, através da realização de uma despesa e que se traduz, consequentemente, na diminuição do lucro tributável. O IRC visa por seu turno tributar o rendimento real do sujeito passivo atendendo à sua capacidade contributiva.

Há que lembrar que é unanimemente aceite quer pela jurisprudência quer pela doutrina que as taxas autónomas de IRC (e IRS) são um tributo de obrigação única distinto dos próprios IRC e IRS, impostos de formação sucessiva. Há também que relembrar que a autonomia das taxas autónomas resulta de possuírem um facto gerador radicalmente distinto do IRS/IRC, de obedecerem a regras de liquidação próprias e de servirem finalidades muito específicas.

Com efeito, as finalidades das tributações autónomas são hoje variadas mas, no que têm de mais importante, insista-se, elas servem para garantir a igualdade tributária garantindo a sujeição a imposto de valores que, sendo despesa na esfera das empresas, prefiguram rendimento na esfera de terceiros e prevenindo o planeamento abusivo pelo recurso a paraísos fiscais. Estes objectivos são de superlativa importância para garantir a justa distribuição dos rendimentos e da riqueza a que apela o artigo 103.º, n.º 1, CRP.

Em face do exposto relembra-se o que deixou acima dito: se há razões que justificam a admissão de deduções gerais à colecta do imposto (IRC), permitidas por lei por força do princípio da tributação do rendimento real e efectivo enquanto elemento revelador da capacidade contributiva, o mesmo não acontece em relação à colecta devida por tributações autónomas. A dedução à colecta é uma realidade do IRC (e do IRS) enquanto imposto legitimado pelo princípio da capacidade contributiva. Nas tributações autónomas, não são estas as preocupações e os elementos enformadores do imposto. Seria mesmo ilógico e, arrisca-se, contrário ao princípio da igualdade tributária, permitir a dedução de encargos quando tal dedução, na prática, destruiria o sentido anti abusivo que as caracteriza e que se resume ao desincentivo de comportamentos desviantes que a sua instituição reprime ou dirime.

Em suma, as tributações autónomas, que incidem sobre certas despesas, funcionam de modo diferente do que constitui o escopo essencial do IRC, que tributa rendimentos, e, não obstante a inserção sistemática e a ligação funcional ao IRC, a verdade é que são cobradas no âmbito do processo de liquidação deste imposto sem, no entanto, se descaracterizarem e perderem sua raiz dogmática próprias.

Visitado o substrato teórico olhemos agora à lei.

Nada se diz na lei se o que está no artigo 90.º do Código do IRC, sob a epígrafe “Procedimento e Forma de liquidação” se aplica às duas realidades – IRC e tributação autónoma – ou a uma só e a qual. Porém, no entender deste Tribunal, duma interpretação teleológica e sistemática da lei resulta claro que o n.º 1 do artigo 90.º - que encerra o procedimento de liquidação – se aplica quer ao IRC quer às tributações autónomas. Já o n.º 2 do mesmo artigo – que encerra a forma de liquidação – reporta-se aos casos da matéria colectável referida no artigo 15.º do CIRC ou seja ao IRC.

Para melhor compreender esta conclusão será necessário perceber que foi estabelecido no então n.° 6 do artigo 109.° do Código do IRC, actual artigo 117.°, que a obrigação de apresentar a declaração periódica de rendimentos abrange as entidades isentas de IRC, quando estejam sujeitas a tributação autónoma. E para determinados efeitos – designadamente para efeitos das deduções previstas no n.° 2 do artigo 90.° do Código do IRC ou do cálculo dos pagamentos por conta ou ainda do Resultado da Liquidação (artigo 92.°) - ficou, então, ao cuidado do intérprete e do aplicador da lei a tarefa de identificar a parte relevante de colecta do IRC. Isto extraindo dos normativos aplicáveis um sentido útil, literalmente possível, que permita uma solução coerente e conforme com a natureza e funções atribuídas a cada componente do imposto. Pois bem, é aqui que há que ter cautela.

Quando se trata das deduções previstas no n.° 2 do artigo 90.° do Código IRC, parece defender a Requerente que a expressão “montante apurado nos termos do número anterior” deva ser entendida como abrangendo o somatório do montante do IRC, apurado sobre a matéria colectável determinada segundo as regras do capítulo III e às taxas previstas no artigo 87.° do mesmo Código, e o montante das tributações autónomas, calculado com base nas regras previstas no artigo 88.°. Ora, o resultado desta interpretação implicaria desde logo e de uma forma muito singela que na base de cálculo dos pagamentos por conta definida no n.° 1 do artigo 105.º do Código do IRC, e em termos idênticos aos utilizados no n.° 2 do artigo 90.°, fossem incluídas as tributações autónomas. Com efeito, para a base de cálculo dos pagamentos por conta apenas é considerado o IRC apurado com base na matéria colectável determinada segundo as regras do capítulo III e as taxas do artigo 87.º do respectivo Código. E aqui não há qualquer diferendo nem na Doutrina nem na jurisprudência. Pois que, é de salientar que a coerência e adequação deste entendimento alicerça-se na própria natureza dos pagamentos por conta do imposto devido a final, os quais, de acordo com a definição do artigo 33.° da LGT são “as entregas pecuniárias antecipadas que sejam efectuadas pelos sujeitos passivos no período de formação do facto tributário”, constituindo uma “(...) forma de aproximação do momento da cobrança ao do da percepção do rendimento de modo a colmatar as situações em que essa aproximação não pode efectivar-se através das retenções na fonte”. Portanto, só faz sentido concluir que a respectiva base de cálculo corresponda ao montante da colecta do IRC resultante da matéria colectável que se identifica com o lucro/rendimento do exercício do sujeito passivo.

Aqui, este Tribunal acompanha o que defende a Requerida insistindo-se de que a única (e consistente) interpretação da expressão “montante apurado nos termos do número anterior” com a natureza das deduções referidas nas alíneas nas alíneas do n.° 2 do artigo 90.° do Código do IRC, relativas a:

  • créditos de imposto por dupla tributação internacional jurídica e económica (actuais alíneas a) e b));
  • benefícios fiscais (actual alínea c));
  • pagamento especial por conta (actual alínea d));
  • e retenções na fonte (actual alínea e)).

Na realidade, faz-se notar que o traço comum a todas as realidades reflectidas nas deduções referidas no n.° 2 do artigo 90.° do Código do IRC reside no facto de respeitarem a rendimentos ou gastos incorporados na matéria colectável determinada com base no lucro do sujeito passivo ou pagamentos antecipados do imposto, sendo, por isso, inteiramente alheios às realidades que integram os factos geradores das tributações autónomas.

E diz-se assim porque para este Tribunal é claro que a liquidação a que o legislador se quis reportar no n.º 2 é à matéria colectável referida no artigo 15.º do Código do IRC. Ou dito de outro modo, o “pecado original”, nunca bem resolvido é verdade, está no facto de (ter de) se entender, interpretando teleológica e sistematicamente a lei, que o n.º 1 do artigo 90.º se aplica às tributações autónomas, situação que se mantém mesmo com a mais recente alteração que veio apenas estabelecer que não existirá qualquer dedução ao montante da liquidação que resultar das tributações autónomas. A solução mais adequada teria sido ab initio o legislador ter afastado a aplicação do n.º 2 do artigo 90.º do Código do IRC, aos casos da tributação autónoma, mas como tal não sucedeu acabou por ir fazendo remendos cabendo ao interprete chegar à solução mais adequada através de uma interpretação teleológica e sistemática como a que se deixou atrás.

Assim, no cálculo das tributações autónomas não cabem quaisquer deduções sendo a liquidação das tributações autónomas efectuadas nos termos do artigo 88.º e 89.º do Código do IRC e do n.º 1 do artigo 90.º do Código. Nunca nos termos do n.º 2. O disposto no n.º 2 do artigo 90.º aplica-se ao único imposto cujo funcionamento e substrato teórico-constitucional permite a sua aplicação – IRC. O procedimento de liquidação previsto no n.º 1 do artigo 90.º do Código do IRC se aplica também às tributações autónomas. Porém dizer isto não significa aceitar que o mesmo se aplica ao n.º 2 do mesmo artigo. Não. Este preceito aplica-se unicamente ao IRC.

 

***

 

Ora como se viu, a Requerente sustenta ainda a ilegalidade da autoliquidação do imposto na parte em que não admite a dedução dos pagamentos especiais por conta à colecta das tributações autónomas. O pagamento especial por conta constitui – segundo afirma – um empréstimo forçado ou um imposto autónomo e a finalidade anti-abusiva das tributações autónomas não afasta a possibilidade de dedução desses pagamentos à colecta do IRC, incluindo a resultante das tributações autónomas, através da compensação dos créditos fiscais que tais pagamentos antecipados representam.

Quanto a esta questão uma nota para remeter na íntegra para a argumentação deduzida a este propósito no Processo 7/2018 no qual o árbitro Relator foi o Senhor Conselheiro Carlos Cadilha e onde se pode ler que:

  “Também neste caso interessa começar por caracterizar a figura do pagamento especial por conta, seguindo a orientação consolidada da jurisprudência arbitral.

 

  O pagamento especial por conta foi instituído pelo Decreto-Lei n.º 44/98, de 3 de Março, mediante o aditamento do artigo 83.º-A ao CIRC, mostrando-se justificado através da respectiva nota preambular como uma medida de combate às “práticas evasivas de ocultação de rendimentos ou de empolamento de custos” entendidas como “manifestamente geradoras de graves distorções dos princípios da equidade e da justiça tributárias e da própria eficiência económica e lesivas da estabilidade das receitas fiscais” e das quais “resulta uma injusta repartição da carga tributária”.

 

  A provisoriedade do pagamento do imposto residia na possibilidade de deduzir as quantias pagas como PEC ao IRC, apurado nos termos gerais, fixados no artigo 71.º do CIRC então vigente, embora essa dedução só fosse possível se, apesar dessa operação, o valor do imposto a pagar fosse positivo (artigo 71º, n.º 6 do CIRC/1998).

Não havendo imposto a pagar nos termos gerais, o valor do PEC satisfeito podia ser reportado para o exercício seguinte (artigo 74º-A, n.º 1) ou reembolsado mais tarde (artigo 74º-A, n.º 2). Procurava-se garantir que a generalidade dos sujeitos passivos satisfizesse valor por conta do IRC, calculado provisoriamente sobre o volume de negócios do exercício anterior (artigo 83º-A).

No fundo, ficcionava-se que todas as empresas teriam por tendência um lucro tributável, calculado de acordo com os parâmetros gerais, equivalente a 1% do seu volume de negócios do ano anterior, acertando-se posteriormente a conta se assim não fosse.

A reforma do IRC operada em 2000-2001, através da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro, reduziu o carácter de pagamento por conta que o imposto tinha, impedindo o seu reembolso enquanto o contribuinte se mantivesse em actividade e impôs que o reporte das quantias satisfeitas fosse feito apenas até ao quarto exercício subsequente (artigo 74º-A, n.º 1, do CIRC/2001).

Desta norma restritiva resulta, pela primeira vez, a possibilidade do PEC se transformar em colecta mínima quando não fosse possível deduzir as quantias satisfeitas, por se esgotar o período de reporte (neste sentido, Teresa Gil, “Pagamento Especial por Conta”, Revista Fisco, Ano XIV (Março 2003) n.º 107-108, pág. 12).

Em síntese, é possível afirmar que as alterações introduzidas nesta reforma não só mantiveram como acentuaram a tónica de combate à evasão fiscal que tinha motivado a introdução do PEC. Contudo, apesar de nessa ocasião já subsistirem as tributações autónomas não foi previsto qualquer mecanismo de articulação entre os dois instrumentos.

A terceira configuração do PEC foi introduzida pela Lei n.º 32-B/2002, de 30 de Dezembro, que no seu artigo 27.º estabeleceu um novo regime da dedutibilidade do PEC no artigo 87.º, n.º 3, do CIRC, repondo a possibilidade de reembolso das quantias entregues a título de PEC e não abatidas na liquidação anual de IRC. Manteve-se ainda aqui o carácter de medida de combate da evasão fiscal, embora se tenha aligeirado, sem o abolir completamente, o cunho de colecta mínima, face aos apertados condicionalismos impostos para o reembolso.

No regime vigente, o artigo 106.º do CIRC, na redacção resultante da Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, com efeitos desde 1 de janeiro de 2014, dispõe que “sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 104.º, os sujeitos passivos aí mencionados ficam sujeitos a um pagamento especial por conta, a efectuar durante o mês de Março ou em duas prestações, durante os meses de Março e Outubro do ano a que respeita ou, no caso de adoptarem um período de tributação não coincidente com o ano civil, nos 3.º e 10.º meses do período de tributação respetivo”.

A ressalva contida no segmento inicial do preceito pretende referir-se às regras do pagamento do imposto aplicáveis às entidades que exerçam, a título principal, actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola, bem como as não residentes com estabelecimento estável em território português, e que, nos termos desse artigo 104.º, n.º 1, alínea a), devem proceder ao pagamento do imposto (…) em três pagamentos por conta, com vencimento em Julho, Setembro e 15 de Dezembro do próprio ano a que respeita o lucro tributável ou, nos casos dos nºs 2 e 3 do artigo 8.º, no 7.º mês, no 9.º mês e no dia 15 do 12.º mês do respectivo período de tributação (…)”.

Referindo-se ainda ao pagamento especial por conta, o artigo 93.º, esclarece que a “dedução a que se refere a alínea d) do n.º 2 do artigo 90.º é efetuada ao montante apurado na declaração a que se refere o artigo 120.º do próprio período de tributação a que respeita ou, se insuficiente, até ao 6.º período de tributação seguinte, depois de efetuadas as deduções referidas nas alíneas a) a c) do n.º 2 e com observância do n.º 9, ambos do artigo 90.º”

Isto é, a dedução relativa ao pagamento especial por conta – tal como a dedução relativa a benefícios fiscais – é efectuada sobre o montante de IRC apurado nos termos desse artigo 90.º, tendo por base a declaração de rendimentos do sujeito passivo. E, por outro lado, as deduções relativas ao pagamento especial por conta apenas são consideradas após as deduções correspondentes à dupla tributação jurídica internacional, à dupla tributação económica internacional e aos beneficios fiscais, e, em qualquer caso, delas não pode resultar um resultado negativo, sendo essa a ressalva que justamente resulta do n.º 9 do artigo 90.º do CIRC.

Como se vê, no regime actual – aplicável à situação em presença - o pagamento especial por conta mantém a sua função anti-abusiva. Não só a dedução é efectuada subsidiariamente, como também só é considerada – depois de descontadas outras deduções - até ao limite da colecta de IRC apurada no período de tributação, implicando que as deduções possam ocorrer até aos seis exercícios económicos seguintes.

Em última análise, o pagamento especial por conta pode não ser reembolsado ou porque o sujeito passivo demonstra resultados fiscais negativos ou porque apresenta sucessivamente resultados insuficientes para absorver a dedução, isto porque – como foi dito – a dedução não pode dispensar o contribuinte de um pagamento de imposto que, no mínimo, se consubstancia no próprio pagamento especial por conta.”

 

Assim, ainda que os pagamentos por conta correspondam a uma técnica tributária de antecipação de receita fiscal, não restam dúvidas a este tribunal que a sua finalidade específica é também anti-abusiva sendo então um meio de evitar a evasão fiscal e garantir o pagamento do imposto pelas empresas em actividade.

Esse propósito foi assinalado no acórdão do Tribunal n.º 494/2009, onde se pode ler que:

 

Não obstante essa matriz genérica, uma leitura do regime jurídico do PEC que esteja atenta à sua génese e evolução leva a concluir que ele não obedece prioritariamente à lógica típica de um pagamento por conta – ou seja, primariamente, a de assegurar ao erário público entradas regulares de tesouraria e, em segunda linha, acautelar o Fisco contra variações de fortuna do devedor e produzir uma certa "anestesia" fiscal –, antes estando indissociavelmente ligado à luta contra a evasão e fraude fiscais.

 

Nesse mesmo sentido, aponta a doutrina que neste acórdão surge amplamente referenciada: Teresa Gil, “Pagamento especial por conta”, Fisco, n.º 107-108, Ano XIV, Março, 2003, pág. 11; Luís Marques, “O pagamento especial por conta no âmbito do regime especial de tributação dos grupos de sociedades”, Fisco, n.º 107-108, Ano XIV, Março, 2003, pág. 3; José João de Avillez Ogando, “A constitucionalidade do regime do pagamento especial por conta”, Revista da Ordem dos Advogados, vol. 62, Tomo III, 2002, pp. 806 e ainda 821); Saldanha Sanches/ André Salgado de Matos, “O pagamento especial por conta de IRC: questões de conformidade constitucional, Revista de Direito e Gestão Fiscal, Julho, 2003, pág. 10.

 

Por tudo, o pedido arbitral mostra-se improcedente nesta parte.

 

***

 

Agora haverá que olhar aos regimes do SIFIDE e RFAI para concluir então o que acima se deixou dito, isto é, que os regimes de apoio ao investimento que são concretizados em deduções à colecta do IRC se reportam à colecta de IRC stricto sensu para cujo apuramento não concorrem as tributações autónomas. Não concorrem nem poderiam concorrer porque ainda que o artigo 4.º, n.º 1 do respectivo diploma, remeta para o montante de imposto apurado nos termos do artigo 90.º do Código do IRC está a referir-se aos montantes apurados nos termos do n.º 2 do artigo 90.º do Código do IRC. E nestes temos, como sabemos os casos da matéria colectável referida no artigo 15.º do mesmo Código, i.e. IRC.

Para reforçar esta posição há que olhar ao Relatório do Grupo de Trabalho constituído pelo Despacho n.° 130/97-XIII do Ministério das Finanças onde se pode ler que o crédito de imposto ou dedução à colecta configura uma das modalidades, de entre as previstas no n.° 2 do artigo 2.° do EBF, que têm sido adoptadas sobretudo nas medidas de incentivos fiscais ao investimento. E são fundamentalmente duas as razões: uma, ligada à operacionalidade do benefício pela transparência e simplicidade do cálculo da despesa fiscal associada que, como é sabido, representa a receita fiscal (do IRC) cessante; e outra, que se prende com a filosofia subjacente aos benefícios, ou seja, a sua indexação à rendibilidade do investimento segundo a qual “a dedução de uma certa percentagem de um investimento à colecta de um imposto sobre lucros só se efectiva se houver lucro, o que premeia a rendibilidade do investimento” (Reavaliação dos Benefícios Fiscais in Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, n.° 180, 1998, pp. 46-47).

Ora em face de tudo o que se deixou dito, e ao contrário do defendido pela Requerente, não subsiste, assim, qualquer erro conceptual nem tão pouco qualquer contradição entre o acabado de expor e o facto de os regimes do SIFIDE e do RFAI estabelecerem que os mesmos são concretizados em deduções à colecta do IRC do montante apurado nos termos do artigo 90.º. É que apesar do artigo do SIFIDE se referir ao artigo 90.º como um todo refere-se ao montante apurado nos termos do n.º 2 do artigo 90.º, e este só se aplica, como já se sabe, ao IRC.

A dedução relativa a benefícios fiscais (alínea b) do n.° 2 do artigo 90.°), quando se trata de benefícios ao investimento - como é o caso do SIFIDE -, tem subjacente a filosofia de que o benefício constitui um prémio cuja amplitude varia com rendibilidade dos investimentos, pois quanto mais elevado foi o lucro/matéria colectável do IRC maior será a capacidade para efectuar a dedução. E é esta a lógica do benefício fiscal do SIFIDE que justifica e legitima a derrogação ao princípio da igualdade tributária.

O SIFIDE II permite às empresas a obtenção de um benefício fiscal, em sede de IRC, proporcional à despesa de investimento em investigação e desenvolvimento (ao nível dos processos, produtos e organizacional) que consigam evidenciar, na parte que não tenha sido objecto de comparticipação financeira do Estado a fundo perdido (Cfr Lei n.° 55- A/2010 de 31 de Dezembro, Decreto-Lei n.° 82/2013 de 17 de Junho e Lei n.° 83-C/2013 de 31 de Dezembro). Concretamente, o benefício a obter com o SIFIDE II traduz-se na possibilidade de deduzir à colecta de IRC apurada no exercício, um montante de crédito fiscal que resulta do somatório das seguintes parcelas: Taxa base: 32,5% das despesas realizadas no exercício; Taxa incremental: 50% do acréscimo das despesas realizadas no exercício face à média aritmética simples das despesas realizadas nos dois exercícios anteriores, até ao limite de € 1.500.000. Ou seja e em síntese: os valores que traduzam o benefício fiscal em sede de SIFIDE são deduzidos “aos montantes apurados nos termos do artigo 90.º do Código do IRC, e até à sua concorrência” e na liquidação respeitante ao período de tributação em que se realizem as despesas para o efeito elegíveis e que, na falta ou insuficiência de colecta apurada nesses termos, as despesas que não possam ser deduzidas no exercício em que forem realizadas “poderão ser deduzidas até ao 6.° exercício imediato”.

Ou seja, o legislador do regime do SIFIDE, ao fazer essa referência expressa ao montante apurado nos termos do artigo 90.° do Código do IRC, está a reportar-se à colecta de IRC propriamente dita para cujo apuramento não concorrem as tributações autónomas precisamente porque não entram no apuramento nem do lucro tributável, nem da matéria colectável, e, como consequência, não concorrem para o IRC liquidado.

Assim, não subsiste qualquer erro conceptual nem tão pouco qualquer contradição entre o acabado de expor e o facto de os regimes do SIFIDE e do RFAI estabelecerem que os mesmos são concretizados em deduções à colecta dos montantes apurados nos termos do artigo 90.º do Código do IRC, i.e. do IRC. É porque, no entender do Tribunal, quer as tributações autónomas quer o IRC são liquidados nos termos do n.° 1 do artigo 90.° do Código do IRC. Porém das duas realidades a única que é passível de dedução à colecta – isto é de concretização do benefício é, quer por razões literais (porque o n.º 2 do artigo 90.º se aplica unicamente ao IRC) quer por razões materiais (o benefício só se efectiva se houver lucro de modo a premiar a rendibilidade do investimento), é a colecta do IRC que como vimos é diferente e distinta da tributação autónoma. O resultado das tributações autónomas, apurado de forma autónoma/independente/separada não concorre para a colecta do IRC, pelo contrário, há-de acrescer ao IRC liquidado para efeitos de apuramento do valor a pagar ou a recuperar, o que consubstancia um resultado bem diferente. Note-se a este propósito que são desde logo devidas tributações autónomas (agravadas) no caso de sujeitos passivos que apresentem prejuízos fiscais.

Em face de tudo o exposto, e atenta em especial a natureza e a razão de ser das tributações autónomas, não é possível admitir a dedução de benefícios fiscais à colecta de tributação autónoma, sob pena de violação do princípio da igualdade tributária.

Admitir esta possibilidade leva a que um sujeito passivo pudesse efectuar a dedução a título de SIFIDE ou outros benefícios fiscais como RFAI ao montante de tributações autónomas incidentes sobre despesas não documentadas subvertendo por completo a função dessas tributações na prevenção ou evitação de comportamentos fiscal e socialmente indesejados.

Com efeito, tendo o regime das tributações autónomas maxime uma função desincentivadora de comportamentos abusivos, não vê este Tribunal por que motivo lógico esse desincentivo poderia, depois, desvanecer-se em prol de um benefício fiscal. Não se vê como é que comportamentos como os de relações com paraísos fiscais possam ser desconsiderados e aproveitados em função de benefícios fiscais ao investimento o que sucederá ao possibilitar-se a dedução à colecta das tributações autónomas incentivos fiscais como aponta a presente decisão: Este resultado é no mínimo paradoxal.

É que aqui, há ainda que relembrar que os benefícios fiscais são normas absolutamente excepcionais no sistema fiscal, na medida em que encerram uma derrogação ao princípio da igualdade tributária, resultante do artigo 13.º CRP. Só podem sobreviver portanto a um juízo de inconstitucionalidade se a derrogação que trazem ao princípio da igualdade se mostrar necessária, adequada e proporcionada à tutela dos fins extrafiscais em jogo. Assim, para que se admita a dedução à colecta do IRC de créditos gerados por benefícios fiscais SIFIDE é necessário que se lhes reconheça intensidade suficiente para derrogar a igualdade que deve valer na tributação das empresas. Este exercício já de si não é fácil nem pode ser tomado com ligeireza, visto que a igualdade é o mais importante princípio material da Constituição Fiscal. Ora, se se admitir, porém, que benefícios fiscais como os do SIFIDE podem ser deduzidos não apenas à colecta do IRC mas também às taxas de tributação autónoma este controlo de proporcionalidade toma contornos muito diferentes. Com efeito, admitir que os contribuintes de IRC possam neutralizar as taxas de tributação autónoma de que são devedores mobilizando benefícios fiscais como o SIFIDE redundaria em reconhecer que a promoção do investimento em ciência por parte das empresas deveria prevalecer sobre o princípio da igualdade tributária mesmo quando estão em causa pagamentos e operações que indiciam as mais graves práticas de planeamento abusivo e evasão fiscal. A interpretação da lei que sustenta a Requerente degrada o princípio da igualdade tributária num princípio menor do sistema e permite que empresas que realizam despesas confidenciais, práticas remuneratórias evasivas ou operações com territórios offshore se furtem por inteiro às consequências que a lei lhes associa, desde que a sua actividade envolva despesas relevantes de investigação e desenvolvimento (R&D). Na verdade, esta a interpretação da lei tem consequência mais gravosa ainda, pois que a qualificação das taxas de tributação autónoma como colecta de IRC para efeitos da dedução de benefícios fiscais é doutrina que necessariamente valerá para quaisquer outros benefícios fiscais que operem por dedução à colecta e é doutrina que valerá necessariamente também em sede de IRS e não apenas de IRC.

Uma tal interpretação das normas do Código do IRC não apenas escamoteia o facto gerador e procedimento de liquidação muito próprios das taxas de tributação autónoma, mas sobretudo, uma tal interpretação das normas do Código do IRC atribui às regras do SIFIDE e aos benefícios fiscais em geral uma dignidade constitucional que não possuem no confronto com o princípio da igualdade tributária. Interpretadas as normas do Código do IRC e do SIFIDE deste modo, parece manifesto que a lesão que trazem ao artigo 13.º da CRP não se mostra necessária, adequada nem proporcionada ao objectivo de promoção da ciência que está subjacente ao SIFIDE.

Assim, o Tribunal realiza não uma interpretação restritiva do artigo 4.º do SIFIDE II mas tão só uma interpretação teleológica e sistemática do previsto quer no SIFIDE quer no Código do IRC de forma a salvar o regime do teste de conformidade constitucional designadamente no que em concreto respeita à violação do princípio da igualdade tributária. É que não nos podemos nunca olvidar que as normas que disciplinam benefícios como o SIFIDE e o RFAI possuem natureza excepcional e só podem reconhecer-se como válidas quando a derrogação que tragam ao princípio da igualdade seja necessária, adequada e proporcionada ao fim extrafiscal que lhes está subjacente.

Não vale, portanto, a pena entrar na discussão, por despicienda, de saber se estamos ou não perante um benefício fiscal cuja justificação é legislativamente considerada mais relevante que a obtenção de receitas fiscais. Claro que sim, caso contrário não se teria aprovado o regime do SIFIDE ou do RFAI. A questão é a de saber que receita fiscal é que foi cedida em função de investimento? Receitas decorrentes de um imposto que admite deduções e que obedece ao princípio de capacidade contributiva e que premeia quem investe mas quem gera imposto admitindo que quem mais lucro obtiver mais pode investir. Ou o que se quis (e se admitiu) foi ceder receita decorrente de um imposto sobre a despesa que sob a alçada do princípio da igualdade tributária obriga a quem tem comportamentos desviantes – como pagamento com ajudas de custo ou despesas de representação, ou mesmo pagamentos a entidades residentes em paraísos fiscais – deixe de pagar esse imposto em virtude de ter despesas de investimento?

Não restam dúvidas que foi o primeiro.

Tanto assim é que a alteração introduzida pela Lei do Orçamento do Estado para 2018 alterou a redacção do artigo 88.º do Código do IRC no sentido de que não são efectuadas quaisquer deduções ao montante devido das tributações autónomas ainda que estas provenham de legislação especial como o SIFIDE e do RFAI. Ora, mesmo sem se lançar mão do carácter interpretativo dado pelo legislador novamente ao n.º 21 do artigo 88.º do Código do IRC é claro que o legislador – que relembre-se, é sempre o mesmo, a Assembleia da República –, quis elucidar o que de resto já resultava da lei.

E até aqui, se não havia qualquer sinal, nem na Lei n.º 7-A/2016, nem no Relatório do Orçamento para 2016, nem na sua discussão, de que com o aditamento no artigo 88.º do CIRC de uma norma geral proibindo deduções ao montante global apurado de tributações autónomas, se pretendesse interpretar restritivamente a expressão «deduzir ao montante apurado nos termos do artigo 90.º do Código do IRC» que consta de uma norma especial de um diploma avulso, como é o SIFIDE II, é agora claro com a nova redacção do n.º 21 do artigo que não são permitidas quaisquer deduções à colecta das tributações autónomas mesmo que estas provenham de legislação especial.

Na tese que este Tribunal sufraga, o legislador, ao aditar este n.º 21 ao artigo 88.º do CIRC com o conteúdo mencionado limitou-se a acolher e a reforçar o sentido interpretativo que já resultava das normas vigentes. Acolheu, portanto, a única leitura possível em face do acervo constitucional aplicável às realidades aqui em jogo: distinção entre as figuras da tributação autónoma e o IRC; aplicação do n.º 1 do artigo 90.º a ambas as realidades; aplicação do artigo 90.º n.º 2 unicamente ao IRC; remissão do regime do SIFIDE para o artigo 90.º refere-se aos montantes apurados no artigo 90.º n.º 2.

 

Por tudo, o pedido arbitral mostra-se improcedente também nesta parte.

 

***

 

Assim, pelas razões expostas, este Tribunal nega provimento ao pedido arbitral de declaração de ilegalidade da autoliquidação de IRC, na parte produzida pelas tributações autónomas com a sua consequente manutenção na ordem jurídica. Improcedendo o pedido de declaração de ilegalidade dos actos de liquidação que são objecto de impugnação, ficam prejudicados os pedidos deduzidos pela Requerente em vista ao reembolso das quantias pagas e ao pagamento de juros indemnizatórios.

 

C. DECISÃO

 

Termos em que se decide:

- Julgar totalmente improcedente o pedido arbitral de declaração de ilegalidade da autoliquidação de IRC, relativa ao exercício de 2015 e

- Julgar prejudicados os pedidos de reembolso dos montantes requeridos e do pagamento de juros indemnizatórios

 

D. VALOR DA CAUSA

A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 156.205,88, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.

 

 

Notifique-se.

 

 

Lisboa, 3 de Outubro de 2018

 

 

O Árbitro Presidente do Tribunal

 

(José Poças Falcão)

 

O Árbitro Vogal

 

(João Taborda da Gama –

vencido, nos termos da fundamentação, entre outros, do Processo n.º 428/2017-T por mim subscrito)

 

 

O Árbitro vogal

 

 

Carla Castelo Trindade