Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 92/2015-T
Data da decisão: 2016-01-21  IRC  
Valor do pedido: € 1.255.405,23
Tema: IRC – Gastos; fusão inversa
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DECISÃO ARBITRAL

 

Acordam os Árbitros José Pedro Carvalho (Árbitro Presidente), Tomás Castro Tavares e João Menezes Leitão (que votou vencido a decisão principal, conforme declaração de voto junta), designados como árbitros no Centro de Arbitragem Administrativa, para formarem Tribunal Arbitral:

 

 

I – RELATÓRIO

 

  1. No dia 13 de Fevereiro de 2015, A…, S.A., NIF …, do Serviço de Finanças de …, com sede em ...,, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade dos seguintes actos tributários:
  2. Liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas ("IRC") n.º 2013 … e compensação n.º 2013 …, relativa ao exercício de 2009, com data de 31 de Outubro de 2013, dos quais resultou um valor global a pagar de € 597.067,43; e
  3. Autoliquidação de IRC referente ao exercício de 2010, correspondente à declaração Modelo 22 de substituição identificada pelo n.º …, submetida no dia 19 de Dezembro de 2013 e aceite, do qual resultou imposto a pagar no montante de € 718.441,36.

 

  1. Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, que, por meio de fusão por incorporação, a incorporante (Requerente) assumiu, por efeito da lei e de modo imediato, a globalidade do património das sociedades incorporadas, incluindo os gastos de financiamento incorridos pela sociedade incorporada para adquirir as suas participações sociais, pelo que a dedutibilidade dos gastos na esfera jurídica da Requerente não pode ser questionada, a menos que haja prova de fraude ou abuso.

 

  1. No dia 16-02-2015, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.

 

  1. A Requerente procedeu à nomeação de árbitro, tendo indicado o Exm.º Sr. Professor Doutor Tomás Castro Tavares, nos termos do artigo 11.º/2 do RJAT. Nos termos do n.º 3 do mesmo artigo, a Requerida indicou como árbitro o Exm.º Sr. Dr. João Menezes Leitão.

 

  1. Pela Requerente foi suscitado incidente de recusa da designação do árbitro indicado pela Requerida, incidente esse que foi indeferido por despacho do Exm.º Sr. Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, datado de 29-04-2015.

 

  1. Os árbitros indicados pelas partes foram nomeados e aceitaram os respectivos encargos. Nos termos do artigo 6.º, n.º 2, alínea b) do RJAT e do artigo 5.º do Regulamento de Seleção e de Designação de Árbitros em Matéria Tributária, foi nomeado para presidir a este Tribunal Arbitral o ora Relator, que, no prazo aplicável, também aceitou o encargo.

 

  1. Em 15-05-2015, as partes foram notificadas desta última designação, não tendo manifestado vontade de a recusar.

 

  1. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 01-06-2015.

 

  1. No dia 03-07-2015, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se unicamente por impugnação, alegando, em síntese, que a dedução pela Requerente de encargos de natureza financeira relacionados com a sua própria aquisição, decorrentes da fusão com a sociedade sua adquirente, não podem ser aceites fiscalmente, por não indispensáveis à realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 23.º do Código do IRC.

 

  1. No dia 25-09-2015, realizou-se a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, onde foram apresentadas alegações orais pelas partes, pronunciando-se sobre a prova produzida e reiterando e desenvolvendo as respectivas posições jurídicas.

 

  1. Foi fixado o prazo de 45 dias para a prolação de decisão final, que foi prorrogado, nos termos legais, disso se notificando as partes, atenta a complexidade e vastidão do tema. Pelos mesmos motivos foi prorrogado o prazo a que alude o artigo 21.º/1 do RJAT, por 60 dias.

 

  1. O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5º. e 6.º, n.º 1, do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

O processo não enferma de nulidades.

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.

 

Tudo visto, cumpre proferir

 

II. DECISÃO

A. MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

 

1-      Até 19 de Setembro de 2008 a Requerente integrou o Grupo B…, e o seu capital social era integralmente detido pela B…-Sociedade Gestora de Participações Sociais, S.A.

2-      Foi decidido pelo Fundo “C… - …” a aquisição da Requerente, na expectativa de que esta pudesse gerar cash-flow suficiente para saldar a dívida de financiamento e ainda remunerar os investidores, para o que foi constituída, em Setembro de 2008, a sociedade D…, SA.

3-      A sociedade D…, SA angariou meios financeiros junto da banca e da sua accionista única para adquirir a totalidade das acções da Requerente, concretizou esta aquisição em 2009 e passou a partilhar com a sociedade adquirida o objecto social e os administradores, tendo ainda uma interferência directa na gestão da target.

4-      No complexo de empresas envolvidas na operação, aquela que tinha os activos, o know-how, a clientela, a posição de mercado e que desenvolvia uma actividade susceptível de gerar cash-flow suficiente para cobrir os custos de investimento incorridos e servir de garantia aos credores era a Requerente, enquanto que a adquirente (D…) tinha como principal activo as acções da Requerente e os seus proveitos resultavam quase na totalidade dos serviços de gestão prestados a esta última, pelo que não reunia condições suficientes para servir de garantia ao credor bancário.

5-      Foi absolutamente determinante na realização da fusão por incorporação (fusão invertida) o facto de a entidade bancária que concedeu o empréstimo à D… ter imposto, como contrapartida do mútuo, que fosse a Requerente a beneficiária da fusão.

6-      Em cumprimento da Ordem de Serviço com o n.º OI2013…, complementada pelos Despachos externos nos DI2013…, DI2013… e DI2013…, foi promovida uma acção de inspecção à Requerente, em sede de IRC e IVA, posteriormente alargada para âmbito geral, por referência ao exercício de 2009.

7-      No âmbito do procedimento inspectivo, apurou-se, em síntese, o seguinte:

                                                              i.            Em 19-09-2008, através de contrato de compra e venda realizado para o efeito, as entidades "B… Sociedade Gestora de Participações Sociais SA'', na posição de vendedora, o Fundo C… - …, representado pela Sociedade Gestora E… - …, S.A, na posição de "promitente Comprador" e a "D…", na posição de "compradora", celebraram um contrato de compra e venda de ações.

                                                            ii.            De acordo com o referido contrato, o promitente comprador ("C…"), indicou a "D…", sociedade dominada pelo "C…'', que nela detém uma participação indireta de 100%, do seu capital social, como entidade compradora das ações representativas de 100% do capital social da "A…".

                                                          iii.            O referido contrato estabeleceu, também, a empresa "F…" sociedade integralmente detida pela "A…" como compradora de uma quota representativa de 0,003% do capital social da "G…" de que a "B…" era também detentora.

                                                          iv.            A "A…", à data do referido contrato, era detentora de quotas representativas de 99,997%, do capital social da "G…", de acções representativas de 100% da "H…, INC", sociedade Norte-Americana, de acções representativas da "I…, LTD'', sociedade inglesa e de acções representativas de 100 % do capital social da "F…", pelo que todas essas participações sociais foram dessa forma também adquiridas pela "D…" através do referido contrato.

                                                            v.            As empresas "J…", e "D…" foram constituídas em 2008, no mesmo ano em que a "A…" foi adquirida pelo Fundo de Capital de Risco- C…, por via da empresa "D…" (ver esquema de participações socais). Em consequência dessa aquisição resultou que:

•       A empresa "A…" passou a ser detida a 100% pela sociedade "D…";

• A empresa "D…" passou a ser detida a 100% pela sociedade denominada "J…" a qual, por sua vez, era detida também a 100% pelo "E…";

• Os administradores/gerentes eram comuns às várias empresas que, subsequentemente, participaram no processo de fusão que se veio a realizar.

                                                          vi.            No que respeita em concreto à empresa "A…", verificou-se que:

• A empresa sempre teve uma atividade operacional considerável no sector de produção e comercialização de produtos plásticos e transformados;

• As demonstrações financeiras reportadas a 31-12-2008, e as referentes a exercícios anteriores, reflectem essa realidade, já que apresentaram resultados líquidos positivos bastante significativos;

• O passivo de médio e longo prazo e as dívidas a instituições de crédito apresentavam um valor contrabalançado com ativos correntes.

                                                        vii.            No que se refere à empresa "D…", verificou-se o seguinte:

• A empresa foi constituída com o objecto "Produção e Comercialização de Produtos Químicos e Plásticos Transformados";

 • Na sua estrutura de resultados, em termos operacionais apenas apresentava operações ao nível das prestações de serviços, que correspondiam na totalidade a prestação de serviços de administração e gestão à "A…" e, sobretudo, ao nível financeiro;

• Foi apresentada a declaração Modelo 10, sendo que os custos com o pessoal apresentados não evidenciavam funcionários ao seu serviço relacionados com o seu objeto social;

• Nas demonstrações financeiras preparadas com referência a 31-12-2008, o activo era constituído essencialmente por "Investimentos financeiros'', correspondente ao valor de aquisição de 100% das acções da empresa "A…", por €56.086.000,00;

• O capital próprio incluía o valor de €4.750.000,00 de prestações suplementares e o passivo o valor do financiamento bancário, no valor total de €23.200.000,00 contraído junto do Banco … e dos contratos de suprimentos concedidos pela sua acionista "J…", no valor de € 19.200.000,00 e de € 10.500.000,00.

                                                      viii.            No que respeita à "J…'', verificou-se o seguinte:

• A entidade "J…" foi constituída, em 21-07-2008, na mesma altura da constituição da empresa "D…" (11-09-2008) e da compra das acções da "A…", pela "D…" (19-09-2008);

• O seu objeto social era também a "Produção e Comercialização de Produtos Químicos e Plásticos Transformados", não se evidenciando actividade operacional nem estrutura para o objecto social declarado;

• No activo constavam Investimentos Financeiros - empréstimos a empresas do grupo: € 34.450.000,00 (para financiamento de parte do preço das ações da "A…");

• No capital próprio constavam as Prestações suplementares de € 4.750.000,000;

• No Passivo constavam os empréstimos concedidos à "D…" no montante de € 19.200.000,00 e € 10.500.000,00.

                                                          ix.            No ano de 2009, verificou-se um processo de fusão por incorporação das sociedades "F…" e "D…" na "A…" em resultado do qual as sociedades incorporadas "F…" e "D…" se extinguiram.

                                                            x.            Decorrente deste processo, as demonstrações financeiras da "A…" passaram a espelhar os activos, passivos e resultados obtidos pelas diversas empresas ao longo de 2009, já que o projeto da operação de fusão foi registado na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa, em 22-12-2009, com efeitos, do ponto de vista contabilístico reportados a 01-01-2009.

                                                          xi.            Era o seguinte o esquema de participações, à data da referida fusão:

 

                                                        xii.            Do texto do "Projeto de fusão", consta que as sociedades intervenientes tinham, então, os seguintes objectos sociais:

• A empresa "F…", a gestão de participações sociais noutras sociedades, como forma indirecta de exercício de actividades económicas;

• As sociedades "A…" e "D…", a produção e comercialização de produtos plásticos e transformados.

                                                      xiii.            No texto do "Projeto de Fusão", foram apontados como motivos para a operação realizada os seguintes:

• As sociedades A… e D… tinham por objeto social a produção e comercialização de produtos plásticos e transformados;

• A F… era uma sociedade detida a 100% pela A…;

• A existência das três empresas distintas estava a implicar um conjunto de esforços (custos administrativos e de serviços), com despesas acrescidas;

• A gestão de sociedades com o mesmo objeto social e centralizada numa única sociedade iria gerar sinergias consideráveis, através de uma maior flexibilidade da gestão e planeamento;

• As sociedades intervenientes no processo de fusão eram, direta e indiretamente dependentes da sociedade denominada J…, SA, com sede na Avenida …, …, …, em Lisboa;

• A sociedade INCORPORANTE era detida a 100% pela sociedade incorporada D…, que por sua vez, detinha 100% do capital social da sociedade incorporada F….

                                                      xiv.            Face à contabilização da operação de fusão por incorporação, o balanço da empresa "A…", em 31-12-2009, passou a evidenciar "a soma dos activos e dos passivos", onde se verificou que:

• No Activo constava a rubrica de Imobilizações Incorpóreas “trespasse", no valor de € 37.395.166,00, a que corresponde a diferença de activos e passivos transferidos para a esfera jurídica da "A…" nas operações de fusão anteriormente referidas;

• No Passivo constava a rubrica dívidas a instituições de crédito (…), e dentro desta o montante de €23.200.000,00, dos quais €1.660.000,00, contabilizadas na rubrica empréstimos de Curto Prazo", conta "23114 Dívida Sénior Tranche A", e €21.540.000,00, na conta empréstimos de M/L Prazo "Conta 23124 - Dívida Sénior Tranche A", correspondente ao empréstimo bancário antes contraído pela "D…'', no valor total de €23.200.000,00. Constava, também, a dívida à acionista "J…", no valor de €19.200.000.000, relativa a suprimentos prestados.

                                                        xv.            A demonstração de resultados passou a evidenciar, para além do resultado operacional, que registou um incremento em cerca de 20% face ao ano anterior (RO de 2009 = € 2.013.640,00 e RO de 2008 = € 1.673.665,00), também um resultado financeiro negativo de (€-5.269.325,00), comparado com o obtido em 2008 (€-629.968,00), que resultou essencialmente dos custos financeiros relacionados com juros suportados, resultantes da contabilização pela empresa "D…", dos encargos financeiros decorrentes do empréstimo bancário, contraído junto do Banco… e dos contratos de suprimentos celebrados, em 2008, com a acionista ("J…"), nos montantes de €19.200.000,00 e €10.500.000,00.

                                                      xvi.            Das demonstrações financeiras da "A…" resultava que os custos com juros em 2009 ascenderam a €5.963.438,00, face a um montante de juros suportados no ano de 2008 de €1.433.111,00.

                                                    xvii.            Como resultado da operação de fusão, ocorrida em 2009, a ora Requerente passou a apresentar a partir daí e até 2011 prejuízos fiscais, cujo valor de prejuízo fiscal para o ano de 2009 ascendeu a €3.354.296,53, valor este que se afasta significativamente de um histórico de lucros fiscais apresentado pela empresa no triénio anterior a 2009, conforme ao seguinte quadro:

8-      No âmbito da fusão inversa, em que a Requerente foi a incorporante, as suas acções, que integravam o activo da D…, foram entregues, por troca das partes sociais desta sociedade, à sua sócia – a sociedade J….

9-      Concluiu, assim, a Inspecção que:

a.        “através da fusão, o que se verifica é que a "A…" passou a deter um passivo, correspondente à assunção da responsabilidade face a um financiamento bancário e respetivos contratos de cobertura de taxa de juro, e financiamento junto da sua acionista "J…", antes contraídos pela "D…", justamente para aquisição de um ativo que se consubstancia nas suas próprias participações sociais.”;

b.      “Deste modo e com base na análise dos elementos relacionados com a matéria em causa, verifica-se que a empresa "A…" é, desde a fusão, responsável pelo referido empréstimo bancário e respetivo contrato de cobertura de taxa de juro, e contrato de suprimentos disponibilizados pela "J…" e consequentemente pelo pagamento dos juros devidos, empréstimos estes que foram contraído pela "D…", em 2008, para aquisição de 100% das participações sociais da "A…", por €56.086.000.000.”;

10-  Foram, assim, efectuadas correcções de natureza meramente aritmética à matéria colectável no montante de €5.340.452,33, consubstanciadas na dedução pela Requerente de encargos de natureza financeira não aceites fiscalmente, por não indispensáveis à realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 23.º do Código do IRC.

11-  Na sequência daquela acção inspectiva, foi desencadeada uma outra, credenciada pelas Ordens de Serviço n.ºs OI2013…, OI2013… e OI2013…, de âmbito geral aos exercícios de 2010, 2011 e 2012.

12-  No âmbito da primeira das referidas no ponto anterior foram propostas correcções de natureza meramente aritmética à matéria colectável no montante de €4.351.420,28, por referência ao exercício de 2010, igualmente consubstanciadas na dedução pela Requerente de encargos de natureza financeira não aceites fiscalmente, por não indispensáveis à realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 23.º do Código do IRC, bem como a correcção, em conformidade, dos prejuízos fiscais declarados.

13-  Em ordem a beneficiar do regime do Decreto-Lei n.º 151-A/2013, de 31 de Outubro, a Requerente apresentou, em 2013-12-19, declaração periódica de IRC de substituição, relativa ao exercício em causa, onde procedeu à regularização e correcção dos valores declarados, de acordo com as correcções propostas.

14-  Relativamente ao ano de 2009 foi pago um total de €536.963,87, enquanto que relativamente ao ano de 2010 foi pago um total de €718.441,36.

15-  Os referidos pagamentos foram efectuados no dia 27 de Dezembro de 2009, pela sociedade J…, em regime de sub-rogação devidamente autorizado pelas entidades competentes.

16-  O acto tributário de liquidação referente ao ano de 2009, bem como a autoliquidação relativa ao exercício de 2010 foram objecto de reclamação graciosa, as quais foram indeferidas por despacho de 2014-11-14 da Senhora Chefe de Divisão de Justiça Administrativa e Contenciosa, por subdelegação do Director de Finanças ….

17-  Os referidos actos foram notificados à Requerente, via fax, pelos Ofício n.ºs …/0403 e …/0403, de 2014-11-17.

 

A.2. Factos dados como não provados

Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

 

 

B. DO DIREITO

 

            A situação em causa no presente processo é de relativamente simples configuração e poderá ser, sumariamente e nos seus traços essenciais, descrita da seguinte forma:

-          A Requerente, em 2009, foi a sociedade incorporante numa operação de fusão por incorporação (conhecida por fusão inversa), na qual foi incorporada, para além do mais, a sociedade que detinha 100% das suas participações sociais;

-          A referida sociedade incorporada detinha, no seu passivo, dívidas provenientes de financiamentos e contratos de suprimento, cujos montantes tinham sido aplicados na aquisição das participações sociais da sociedade incorporante;

-          Por efeito da operação de fusão, a sociedade resultante da mesma (ora Requerente) sucedeu à sociedade incorporada nas referidas obrigações (dívidas de financiamentos e suprimentos), e teve, nos anos (ora em causa) de 2009 e 2010, de suportar os correspondentes encargos, sendo certo que, por efeito daquela mesma operação, as participações da Requerente que integravam o activo da sociedade incorporada (sua participante), não passaram para a sua titularidade, e foram atribuídas participações da ora Requerente à entidade sócia daquela sociedade incorporada, por troca com as participações que detinha nesta, e que também por força da mesma operação, se extinguiram.

A questão que se coloca é, igualmente, de simples configuração, e prende-se unicamente com aferir se, como sustenta a AT, os gastos correspondentes aos encargos com os financiamentos e suprimentos suportados pela ora Requerente cumprem os requisitos do artigo 23.º/1 do CIRC, relativos à sua indispensabilidade para realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, e, consequentemente, se podem ser deduzidos na determinação do lucro tributável daquela.

É, no fundo, isto que se apresenta a este Tribunal para decidir.

Vejamos então.

 

*

De um ponto de vista geral, Requerente e Requerida confluem naquilo que tem sido o trajecto firmado pela doutrina e jurisprudência nacionais em matéria de indispensabilidade dos gastos, e cujos traços essenciais se podem sintetizar da seguinte forma:

-          o juízo sobre a indispensabilidade dos gastos suportados implica que seja verificado o seu contributo para a obtenção dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora (cfr. artigo 43. da Resposta da AT);

-          “A noção legal de indispensabilidade recorta-se, portanto, sobre uma perspectiva económico-empresarial, por preenchimento directo ou indirecto, da motivação última de contribuição para a obtenção do lucro” e “a dedutibilidade fiscal do custo depende, apenas, de uma relação causal e justificada com a actividade da empresa.” (Ac. STA, proferido a 30-11-2011, no processo n.º 0107/11, citado na Resposta da AT);

-          “os custos (...) não podem deixar de respeitar, desde logo, à própria sociedade contribuinte. Ou seja, para que determinada verba seja considerada custo daquela é necessário que a actividade respectiva seja por ela própria desenvolvida, que não por outras sociedades.” (Ac. STA, proferido a 30-05-2012, no processo n.º 0171/11, citado na Resposta da AT);

-          “um conceito de indispensabilidade que, afastando-se definitivamente da ideia de causalidade entre os gastos e rendimentos, põe a tónica na relação dos gastos com a actividade prosseguida pelo sujeito passivo, ou seja, considerando que o referido conceito de indispensabilidade se verifica sempre que os gastos sejam incorridos no interesse da empresa, na prossecução das respectivas actividades.” (Ac. STA, proferido a 04-09-2013, no processo n.º 0164/12, citado na Resposta da AT);

-          o conceito de indispensabilidade é de preenchimento casuístico, e o nexo de causalidade económica não pode estar desligado da factualidade do caso concreto (cfr. artigos 118.º do Requerimento Inicial, e 77. da Resposta);

-          “a A. Fiscal não pode avaliar a indispensabilidade dos custos à luz de critérios incidentes sobre a oportunidade e mérito da despesa. Um custo é indispensável quando se relacione com a actividade da empresa, sendo que os custos estranhos à actividade da empresa serão apenas aqueles em que não seja possível descortinar qualquer nexo causal com os proveitos ou ganhos (ou com o rendimento, na expressão actual do código - cfr. artº.23, nº.1, do C.I.R.C.), explicado em termos de normalidade, necessidade, congruência e racionalidade económica.” (Ac. TCA-Sul, proferido a 16-10-2014, processo n.º 06754/13, citado no Requerimento Inicial);

-           “A indispensabilidade do custo há-de resultar simplesmente da sua ligação à actividade empresarial. Se o custo não é estranho à actividade da empresa, isto é, se se relaciona com a actividade normal da empresa (independentemente de ser maior ou menor o grau de intensidade ou proximidade), e se se aceita a sua existência (não se está perante um custo aparente ou simulado), o custo é indispensável.” (Ac. TCA-Norte, proferido a 20-11-2011, processo n.º 01747/06.3BEVIS, citado no Requerimento Inicial);

-          “da noção legal de custo fornecida pelo art. 23° do CIRC não resulta que a AT possa pôr em causa o princípio da liberdade da gestão, sindicando a bondade e oportunidade das decisões económicas da gestão da empresa e considerando que apenas podem ser assumidos fiscalmente aqueles de que decorram, directamente, proveitos para a empresa ou que se revelem convenientes para a empresa. A indispensabilidade a que se refere o art. 23° do CIRC como condição para que um custo seja dedutível não se refere à necessidade (a despesa como uma condição sine qua non dos proveitos), nem sequer à conveniência (a despesa como conveniente para a organização empresarial), sob pena de intolerável intromissão da AT na autonomia e na liberdade de gestão do contribuinte, mas exige, tão-só, uma relação de causalidade económica, no sentido de que basta que o custo seja realizado no interesse da empresa, em ordem, directa ou indirectamente, à obtenção de lucros.

A noção legal de indispensabilidade recorta-se, portanto, sobre uma perspectiva económico-empresarial, por preenchimento directo ou indirecto, da motivação última de contribuição para a obtenção do lucro. Os custos indispensáveis equivalem aos gastos contraídos no interesse da empresa ou, por outras palavras, em todos os actos abstractamente subsumíveis num perfil lucrativo. Este desiderato aproxima, de forma propositada, as categorias económicas e fiscais, através de uma interpretação primordialmente lógica e económica da causalidade legal. O gasto imprescindível equivale a todo o custo realizado em ordem à obtenção de ingressos e que represente um decaimento económico para a empresa. Em regra, portanto, a dedutibilidade fiscal do custo depende, apenas, de uma relação causal e justificada com a actividade da empresa. E fora do conceito de indispensabilidade ficarão apenas os actos desconformes com o escopo social, aqueles que não se inserem no interesse da sociedade, sobretudo porque não visam o lucro.” (Ac. STA, proferido a 30-11-2011, processo n.º 0107/11, citado no Requerimento Inicial);

-          “A regra é que as despesas correctamente contabilizadas sejam custos fiscais; o critério da indispensabilidade foi criado pelo legislador, não para permitir à Administração intrometer-se na gestão da empresa, ditando como deve ela aplicar os seus meios, mas para impedir a consideração fiscal de gastos que, ainda que contabilizados como custos, não se inscrevem no âmbito da actividade da empresa, foram incorridos não para a sua prossecução mas para outros interesses alheios. Em rigor, não se trata de verdadeiros custos da empresa, mas de gastos que, tendo em vista o seu objecto, foram abusivamente contabilizadas como tal. Sem que a Administração possa avaliar a indispensabilidade dos custos à luz de critérios incidentes sobre a sua oportunidade e mérito.

O conceito de indispensabilidade não só não pode fazer-se equivaler a um juízo estrito de imperiosa necessidade, como já se disse, como também não pode assentar num juízo sobre a conveniência da despesa, feito, necessariamente, a posteriori. Por exemplo, os gastos feitos com uma campanha publicitária que se revelou infrutífera não podem, só em função desse resultado, afirmar-se dispensáveis.

O juízo sobre a oportunidade e conveniência dos gastos é exclusivo do empresário. Se ele decide fazer despesas tendo em vista prosseguir o objecto da empresa mas é mal sucedido e essas despesas se revelam, por último, improfícuas, não deixam de ser custos fiscais. Mas todo o gasto que contabilize como custo e se mostre estranho ao fim da empresa não é custo fiscal, porque não indispensável.

Entendemos (...) que, sob pena de violação do princípio da capacidade contributiva, a Administração só pode excluir gastos não directamente afastados pela lei debaixo de uma forte motivação que convença de que eles foram incorridos para além do objectivo social, ou seja, na prossecução de outro interesse que não o empresarial, ou, ao menos, com nítido excesso, desviante, face às necessidades e capacidades objectivas da empresa.” (Ac. STA, proferido a 29-03-2006, processo n.º 01236/05, disponível em www.dgsi.pt);

            Sendo, deste modo, consensuais os critérios de decisão, resta, unicamente, a operação de aplicação de tais critérios ao caso concreto, tarefa que, essa sim, se eleva já para outros patamares de dificuldade.

            Esta operação de aplicação dos referidos critérios ao tipo de situação em causa nos presentes autos foi já ensaiada nos processos arbitrais n.º 14/2011-T, 101/2013T, 87/2014-T e, mais recentemente, n.º 42/2015T, todos do Centro de Arbitragem Administrativa[1].

            Dado o particular interesse para a solução a dar nos presentes autos, passar-se-á de seguida à análise de cada uma daquelas referidas decisões.

 

*

            No processo 14/2011-T, o Tribunal, entre outras matérias, debruçou-se, então, sobre questão idêntica à que ora se coloca sub iudice[2].

            Do muito doutamente expendido na decisão em causa, ora destaca-se:

-          “para decidir sobre a dedutibilidade dos encargos financeiros advenientes do empréstimo em questão, o que importa, no ponto, é a objetividade da operação documentalmente provada nos autos e a sua relação com os tópicos constantes do n.º 1 do artigo 23.º do CIRC, não cabe aqui senão verificar, como refere a própria Requerente, se os fundos obtidos foram concretamente aplicados em fins estranhos à atividade da empresa que deles é devedora. Elementos hipotéticos, como são as opções, com muita frequência copiosas e diversas, que a empresa poderia ter tomado, ou as possibilidades de estruturação das operações de outras formas, também elas muitas vezes numerosas, não relevam para a apreciação da matéria sub judice, dado que não se cuida aqui de situações virtuais, de situações que poderiam ter acontecido mas não aconteceram, mas sim de ocorrências verificadas na realidade da vida, tal como se consideraram provadas. Efetivamente, o que cabe desenvolver por este Tribunal é a fiscalização da legalidade do ato tributário impugnado tendo em atenção os elementos concretos do caso submetido à sua apreciação e o complexo das avaliações feitas e das justificações apresentadas pela Administração Tributária.”;

-          “a dedutibilidade fiscal dos juros suportados depende de um juízo quanto à sua indispensabilidade para a realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora (corpo do n.º 1), explicitando mesmo a al. c) do n.º 1 desta disposição que esses juros de capitais alheios são “aplicados na exploração”.”;

-          “Deste modo, é estritamente em relação à entidade cujos custos estão em consideração, tendo em atenção à atividade empresarial que desenvolve, que importa apreciar a dedutibilidade fiscal dos encargos financeiros. Essa dedutibilidade fiscal supõe, então, que os custos incorridos com os encargos financeiros possuam uma conexão de causalidade com a atividade empresarial desenvolvida, maxime sirvam ao desenvolvimento da atividade da sociedade deles devedora. Consequentemente, como observa MARIA DOS PRAZERES LOUSA, “O problema da dedutibilidade dos juros para efeitos da determinação do lucro tributável” in Estudos em homenagem à Dr. Maria de Lourdes Correia e Vale, Lisboa, 1995, p. 349, não podem ser aceites como dedutíveis os juros suportados por uma empresa relativamente a empréstimos em que manifestamente se comprove que os fundos obtidos são “desviados da exploração e aplicados em fins estranhos à mesma”. Noutra fórmula que encontramos em RUI DUARTE MORAIS, Apontamentos ao IRC, Coimbra, 2007, p. 87, “se o encargo foi determinado por outras motivações (interesse pessoal dos sócios, administradores, credores, outras sociedades do mesmo grupo, parceiros comerciais, etc), então tal custo não deve ser havido por indispensável”;

-          “para proceder à aplicação ao caso em apreço do requisito da indispensabilidade dos custos, cabe verificar, na base de todos os factos e circunstâncias relevantes, a afetação efetiva e concreta do empréstimo de que os juros suportados são a remuneração, por outras palavras, importa ponderar o destino ou uso dos fundos obtidos em relação aos quais o sujeito passivo pretende deduzir fiscalmente, para efeitos do apuramento do seu lucro tributável, os juros e demais encargos associados que suportou.”;

-          “retira-se, com evidência, da matéria de facto dada como provada que os fundos em apreço possuem como finalidade, destino e uso a aquisição das próprias participações sociais da Requerente pela sociedade D... SGPS, pelo que a afetação do empréstimo não se prende com a atividade nem com ativos detidos pela sociedade que dele é devedora, a aqui Requerente, mas sim com ativos detidos pela sua própria sócia.”;

-          “As participações sociais em causa fazem, então, parte do património da D..., sócia da Requerente, e não da própria Requerente (caso em que constituiriam ações próprias), pelo que a titularidade e o aproveitamento de tal ativo, a cuja aquisição é imputável o financiamento ocorrido e os encargos financeiros com ele suportados pela Requerente, sem qualquer contrapartida, redunda exclusivamente em benefício da sócia D... e não da Requerente.”;

-          “Precisamente, verifica-se no caso que a entidade que pode aproveitar, no seu interesse próprio, como fonte de rendimentos este ativo não é a entidade que suporta, em exclusivo, os custos relativos ao financiamento da aquisição do ativo (a Requerente), mas sim uma entidade distinta, no caso a sua única sócia (a D...).

Ativo este que, importa frisar, é constituído pelas próprias ações da Requerente, incorrendo esta, assim, em custos com empréstimo que serviu para a própria aquisição do seu capital por outra entidade. Não é possível, por isso, deixar de lembrar aqui o desfavor com que o próprio legislador olha para este tipo de situações nos termos que decorrem do art. 322.º do Código das Sociedades Comercial, que dispõe, no seu n.º 1, que: “Uma sociedade não pode conceder empréstimos ou por qualquer outra forma fornecer fundos ou prestar garantias para que um terceiro subscreva ou por outro meio adquira ações representativas do seu capital”.

Temos, pois, que os custos incorridos com o empréstimo em apreciação não são aplicados na exploração da própria Requerente, na sua atividade empresarial, nem servem à manutenção da fonte produtora de rendimentos. Tais custos, embora inscritos na contabilidade da Requerente, não beneficiam a sua atividade nem o respetivo interesse empresarial, mas antes aproveitam a um terceiro, no caso a sua sócia única D... SGPS.

Inexiste, pois, aqui o “balanceamento ou matching” entre os custos suportados com os encargos financeiros e os respetivos proveitos, que se deve considerar como relevante em sede de exigência da indispensabilidade dos custos para efeitos fiscais conforme disposto pelo art. 23.º do CIRC”.

            Este aresto integra, ainda, um voto de vencido, do qual se destaca o seguinte:

-          “A primeira questão é a de saber se a indispensabilidade dos encargos financeiros deve ser julgada quanto à sociedade fundida ou quanto à sociedade beneficiária da fusão. Tal juízo tem que ser feito, num primeiro momento, na perspetiva da sociedade que contraiu o encargo financeiro e não pode ser feito na perspetiva individualizada da sociedade beneficiária da fusão. Não é questionado que os encargos assumidos pela sociedade fundida são dedutíveis por esta, nos termos do art.º 23.º n.º 1 alínea c) do CIRC (juros de capitais alheios aplicados na exploração).”;

-          “A partir do momento em que o património da sociedade fundida é globalmente transferido para a sociedade beneficiária da fusão (ex-art.º 67.º n.º 1 alínea a) do CIRC, aplicável ao caso) com extinção das sociedades fundidas, a dedutibilidade fiscal dos encargos financeiros assumidos devem ser avaliados, para efeitos jurídico-fiscais, no contexto da fusão.

A fusão implica a transferência de direitos e obrigações para a sociedade beneficiária (art.º 112.º a) do CSC), e, neste caso, temos duas linhas interpretativas possíveis para julgar o requisito de indispensabilidade de um custo: uma linha é considerar que desde que o custo tenha sido considerado dedutível na esfera da sociedade fundida, continua, em princípio, a ser dedutível na esfera da sociedade beneficiária da fusão, dado que a dívida é transferida para esta última sociedade e a sociedade fundida perdeu a sua existência; e só assim não acontecerá se tiver existido um comportamento abusivo ou uma transferência de dívida que viole a lei (por exemplo, porque não é observado o princípio da intangibilidade do capital da sociedade beneficiária). A outra linha interpretativa implica ponderar a perspetiva da exploração comercial do conjunto das entidades envolvidas, numa interpretação que valoriza a substância sobre a forma (art. 11.º n.º 3 da LGT). A relação de causalidade económica entre a assunção de um custo e a sua realização no interesse da empresa, deve ter em conta as finalidades conjuntas das entidades envolvidas na fusão.

Em casos de aquisição alavancada, ambas as linhas referidas têm sido seguidas noutros ordenamentos jurídicos: a primeira linha, a de aplicação em princípio do regime regra, seguida por correção com base em abuso, é adotada pela administração fiscal e a aplicação da cláusula geral antiabuso controlada pelos tribunais franceses (V. Casos com aquisição alavancada: veja-se por exemplo um caso de permuta de ações, com distribuição excecional de dividendos: Conseil D’État n. 320313, de 27.1.2011, Relatora Mme Cécile Isidoro; LBO et abus de droit, Procédures Fiscales, Revue de Droit Fiscal, n. 15, de 14.4.2011, pp. 36-42; cfr. Também, um caso de permutas de ações: Conseil D’État n. 301934, 08.10.2010, Relator M. Jean-Marc Anton; e um caso de entrada de ativos: Conseil D‘ État n. 313139, de 8.10.2010,Relator M. Patrick Quinqueton);

A segunda linha interpretativa é adotada no ordenamento jurídico alemão explicitamente para os casos de fusão inversa: desde que o capital social fique salvaguardado, entende-se que não há distribuição oculta de dividendos e a dívida é transferida para a sociedade beneficiária da fusão (a sociedade-afiliada): veja-se a este propósito Thomas Rödder/Peter Wochinger “Downstream Merger mit Schuldenübergang”, DStR, 2006, pp. 684-689, e a jurisprudência e doutrina aí citadas).

No caso dos autos, entendo que os juros suportados pelos sujeitos passivos de IRC como remuneração de empréstimos contraídos e demais encargos financeiros associados são, em princípio, dedutíveis como custos no apuramento do lucro tributável em conformidade com o disposto no art. 23.º do CIRC, n.º 1, al. c), segundo o qual, na redação em vigor em 2007, “consideram-se custos ou perdas os que comprovadamente forem indispensáveis para a realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora”, nomeadamente “encargos de natureza financeira, como juros de capitais alheios aplicados na exploração”. No caso dos autos, a “indispensabilidade“ e a “aplicação na exploração“, estiveram associadas à operação de fusão, dado que esta operação foi acordada com a banca financiadora do empréstimo (cfr. ns. VII. e VIII do acórdão dos factos dados como provados), pelo que a interpretação na perspetiva da exploração comercial do conjunto das entidades envolvidas, implica o reconhecimento da dívida e juros como custos fiscais da sociedade beneficiária da fusão.

Em geral, na fusão inversa, mesmo que a indispensabilidade dos juros relativos a um empréstimo tivessem sido originariamente avaliados só ao nível da sociedade-mãe (o que não foi o caso), devem passar a ser avaliados, para efeitos fiscais, no contexto do conjunto negocial da empresa (V. Thomas Rödder/Peter Wochinger “Downstream Merger mit Schuldenübergang”, DStR, 2006, p. 685).”;

-          “Admitindo então que o art.º 23.º n.º 1 alínea c) do CIRC tem que ter em conta a atividade do conjunto da empresa que participa na operação de fusão e não apenas a beneficiária da mesma (a Requerente), caberia de seguida averiguar se as motivações para a fusão inversa foram essencial ou principalmente fiscais, aplicando-se o art.º 38.º n.º 2 da LGT quanto à dedutibilidade dos juros.”.

No processo ora em causa, considerou-se que “a entidade que pode aproveitar, no seu interesse próprio, como fonte de rendimentos este ativo não é a entidade que suporta, em exclusivo, os custos relativos ao financiamento da aquisição do ativo (a Requerente), mas sim uma entidade distinta, no caso a sua única sócia (a D...).”, e que “os custos incorridos com o empréstimo em apreciação não são aplicados na exploração da própria Requerente, na sua atividade empresarial, nem servem à manutenção da fonte produtora de rendimentos. Tais custos, embora inscritos na contabilidade da Requerente, não beneficiam a sua atividade nem o respetivo interesse empresarial, mas antes aproveitam a um terceiro”.

Ressalvado o (muito) respeito, afigura-se que a posição que fez vencimento no aresto em análise, dá-se à crítica em alguns aspectos que lhe são estruturantes.

Assim, a consideração de que “os custos incorridos com o empréstimo em apreciação não são aplicados na exploração da própria Requerente, na sua atividade empresarial, nem servem à manutenção da fonte produtora de rendimentos”, enfermará, desde logo, de alguma imprecisão com consequências relevantes nas conclusões a retirar.

É que, salvo melhor opinião – e sempre ressalvado o muito respeito devido – os “custos” não são, ontologicamente, susceptíveis de “aplicação”. Aquilo que será, isso sim, passível de aplicação é a contrapartida desses custos, o que, no caso e na terminologia da al. c) do n.º 1 do CIRC, serão os “capitais alheios” obtidos por via dos financiamentos e suprimentos. Sucede que, no quadro argumentativo em que se situa o considerando em causa, a menção a “custos” não é – crê-se – fungível com a menção a “capitais alheios[3].

Efectivamente, os capitais alheios obtidos pela sociedade incorporada, a título de financiamentos e suprimentos, foram integralmente aplicados (exaurindo-se) aquando da aquisição das participações sociais da sociedade, posteriormente, sua incorporante. No(s) caso(s) é essa a realidade: os montantes obtidos através dos financiamentos e suprimentos, não perduraram até um momento pós-fusão, sendo, então, redirecionados na sua finalidade, mas, aquando daquela, estavam já integralmente aplicados.

Não obstará à conclusão formulada – julga-se, a constatação de que as obrigações pecuniárias de pagamento de juros pelo capital mutuado perduram no momento pós fusão, o que é uma evidência, estando em questão, justamente, da sua dedutibilidade. Com efeito, a aplicação a que se refere a al. c) do n.º 1 do artigo 23.º do CIRC, reporta-se aos “capitais alheios”, e não a quaisquer obrigações.

Assim, julga-se que, em qualquer das suas possíveis significações, a afirmação acima referida não é susceptível de acolhimento. Com efeito, no seu teor literal, não serão os custos susceptíveis de aplicação. Reportando-a aos “capitais alheios”, retribuídos pelas obrigações pecuniárias de pagamento de juros, os mesmos encontravam-se já integralmente aplicados, pelo que não pode ter como válida a afirmação de que os “capitais alheios” remunerados com “os custos incorridos com o empréstimo em apreciação não são aplicados na exploração da própria Requerente, na sua atividade empresarial, nem servem à manutenção da fonte produtora de rendimentos”, uma vez que não houve qualquer alteração na aplicação daqueles.

Deste modo, pensa-se, não será susceptível de validação o juízo segundo o qual houve um desvio na aplicação da contrapartida dos gastos cuja dedutibilidade é questionada, porquanto essa aplicação, no momento em que são contabilizados os gastos estava, como se vem de ver, totalmente consumada[4].

Poderia, então, ser questionado se o produto mediato dos gastos (as participações da sociedade subsequentemente incorporante) foram “desviadas”, sendo que de algum modo, a afirmação de que “a entidade que pode aproveitar, no seu interesse próprio, como fonte de rendimentos este ativo não é a entidade que suporta, em exclusivo, os custos relativos ao financiamento da aquisição do ativo”, poderá apontar para uma argumentação nesse sentido, que se deverá, todavia, ter por substancialmente distinta da anterior[5].

Não se subscreve, em todo caso, a supra-referida afirmação, desde logo, porquanto se considera que não existe uma identidade (embora exista uma semelhança) entre o “activo” que era detido, pré-fusão, pela sociedade fundida e o “activo” que passou, pós-fusão, para a sociedade accionista daquela, dado que o efeito da fusão por incorporação não é a transmissão das participações detidas pela sociedade incorporada para o(s) respectivo(s) accionista(s), mas a atribuição pela sociedade incorporante de acções suas ao(s) accionista(s) da sociedade incorporada[6].

Daí decorre então, para além do mais, que a aquisição das participações da sociedade incorporante pelo(s) accionista(s) da sociedade incorporada não é contrapartida do produto dos financiamentos contraídos por esta, mas – antes – das participações que detinha(m) naquela e da qual fica(m) privado(s) por força da sua extinção, efeito da fusão[7].

            A compreensão do que vem de se expor, aponta também para uma outra conclusão, com a qual o decidido no processo ora em análise será incompatível: a circunstância de a atribuição das acções da sociedade resultante da fusão ao(s) accionista(s) da sociedade fundida não ter como causa o produto dos financiamentos e suprimentos contraídos por esta, implica que não houve qualquer “desvio”, sequer, do produto mediato daqueles financiamentos e suprimentos para o(s) accionista(s) da fundida.

            Eventualmente, poderia ser questionado – e não o é - o montante de acções da sociedade incorporante, atribuído ao(s) accionista(s) da sociedade incorporada. Todavia, mesmo aí é possível detectar um equilíbrio de princípio, traduzido na circunstância de o valor atribuído àquele(s) ser, precisamente, o mesmo que detinha(m) antes. Com efeito, pré-fusão, as acções da sociedade incorporada teriam, grosso modo, o valor correspondente às acções da sociedade incorporante (que, na medida em que é detida a totalidade do capital social desta, se equipara, precisamente, ao seu valor)[8], deduzido do passivo constituído para a sua aquisição[9]. Pós-fusão, as participações atribuídas ao(s) accionista(s) da sociedade incorporada têm, portanto, precisamente o mesmo valor.

Não será então, por tudo o que se expôs, exacto afirmar-se, no fundo, que haverá uma empresa que possui e beneficia do activo e outra que suporta os gastos, pelo menos não em sentido distinto daquilo que já ocorria antes da fusão, em que o(s) accionista(s) da sociedade incorporada é que, em última análise, por via da valorização das suas participações, beneficiava(m) do pagamento, por aquela, do custo de aquisição da sociedade incorporante, sendo a sociedade incorporada quem suportava os gastos propiciadores de tal valorização. Será esta, precisamente, a situação pós-fusão, em que as participações atribuídas ao(s) accionista(s) da sociedade incorporante têm – exactamente, como se verá de seguida – o mesmo valor que tinham as participações que antes detinha(m) na sociedade incorporada, e serão valorizadas, tal como anteriormente à fusão, à medida que os financiamentos contraídos forem sendo reembolsados.

            Assim, em suma e pelo exposto, não se podem ratificar as conclusões do Acórdão em questão quanto a, nas situações que nos ocupam, verificar-se que:

-          a entidade que pode aproveitar, no seu interesse próprio, como fonte de rendimentos este activo não é a entidade que suporta, em exclusivo, os custos relativos ao financiamento da aquisição do ativo (a Requerente), mas sim uma entidade distinta, no caso a sua única sócia;

-          os custos incorridos com o empréstimo em apreciação não são aplicados na exploração da própria Requerente, na sua atividade empresarial, nem servem à manutenção da fonte produtora de rendimentos;

-           os custos incorridos com o empréstimo antes aproveitam a um terceiro.

Fica por abordar a consideração globalmente subjacente à decisão em causa, de a Requerente, quando neles incorre, não ter já na sua posse o produto mediato dos gastos que suporta, que é questão distinta daquela em que se fundamentou o aresto em análise, ao entender existir um terceiro o beneficiário desse produto (o que, como se vem de ver, não será o que ocorre), e que será apreciada mais adiante.

            No que concerne ao voto de vencido da vogal Ana Paula Dourado, assinala-se que o seu carácter sintético deixa, também ele, margem a crítica.

            Com efeito, referindo-se que “a dedutibilidade fiscal dos encargos financeiros assumidos devem ser avaliados, para efeitos jurídico-fiscais, no contexto da fusão.”, associando-a à necessidade de “ponderar a perspetiva da exploração comercial do conjunto das entidades envolvidas”, e concretizando que “a “indispensabilidade“ e a “aplicação na exploração“, estiveram associadas à operação de fusão, dado que esta operação foi acordada com a banca financiadora do empréstimo”, sugere que na avaliação que se haja de fazer se haja de abrir as portas à consideração de perspectivas que não se restrinjam à das empresas directamente participantes no processo de fusão (incorporantes ou incorporadas), o que, conforme também se verá, se entende não ser o caso.

 

*

            No processo 101/2013-T, ao Tribunal foi, igualmente, cometido proferir decisão sobre questão idêntica à que ora se coloca.

            Do também muito doutamente expendido na decisão em causa, ora destaca-se:

- “Não afasta uma conclusão no sentido dessa indispensabilidade a eventualidade de a empresa poder prosseguir a sua actividade sem realizar determinadas despesas, mas apenas um juízo no sentido de as despesas em causa não terem potencialidade para influenciar positivamente a obtenção de proveitos.

Uma conclusão no sentido da dispensabilidade das despesas para a obtenção do lucro tributável terá de assentar numa demonstração de que mesmo que não tivessem sido efectuadas as despesas em causa poderiam ser obtidos os proveitos ou ganhos que foram efectivamente obtidos.

O que significa que só é de afastar uma conclusão no sentido da indispensabilidade das despesas para a obtenção dos proveitos ou ganhos se se puder afirmar que essas despesas não tinham potencialidade para os influenciarem positivamente.

Assim, não é necessário para atribuir relevância fiscal aos encargos financeiros, demonstrar que eles produziram efectivamente um resultado positivo.

Basta que sejam actos que possam ser aceites como actos de gestão, actos do tipo dos que uma empresa realize com o objectivo de incrementar os proventos e com tendencial potencialidade para propiciar tal incremento.

Nesta matéria, o controle da Administração Tributária tem de ser um controle pela negativa, rejeitando como custos apenas os que claramente não tenham potencialidade para gerar incremento dos ganhos, não podendo «o agente administrativo competente para determinar a matéria colectável arvorar-se a gestor e qualificar a indispensabilidade ao nível da boa e da má gestão, segundo o seu sentimento ou sentido pessoal; basta que se trate de operação realizada como acto de gestão, sem se entrar na apreciação dos seus efeitos, positivos ou negativos, do gasto ou encargo assumido para os resultados da realização de proveitos ou para a manutenção da fonte produtora»”;

- “o que está em causa passa a ser apenas apurar se uma hipotética falta de indispensabilidade desses encargos para a realização da actividade de análises clínicas levada a cabo pela Requerente no ano de 2008, pode conduzir à irrelevância desses custos para a determinação da sociedade resultante da fusão.”;

- “a interpretação adoptada pela Autoridade Tributária e Aduaneira, ao efectuar a correcção da matéria tributável da Requerente, que se traduziu em apurar a relevância dos encargos financeiros para a actividade de análises clínicas que a Requerente levou a cabo no ano de 2008, reconduzir-se-ia a que fossem relevantes para a formação do lucro tributável da Requerente proveitos obtidos pela D ..., S.A, durante o ano de 2008, sem a correspondente relevância negativa dos custos suportados para os obter, o que está manifestamente ao arrepio do princípio da relevância do «resultado líquido do exercício».

Assim, desde logo se conclui, por esta via, que é errada a interpretação efectuada pela Autoridade Tributária e Aduaneira e materializada na determinação do lucro tributável da Requerente no sentido de a indispensabilidade dos encargos financeiros suportados pela D ..., S.A., ser de aferir à face da actividade da Requerente e não à daquela.”;

- “Esta transferência dos resultados é, por força do artigo 17.º do CIRC, a dos resultados líquidos da sociedade ou sociedades a fundir, pelo que é inequívoco que os custos que sejam de considerar indispensáveis para a sociedade incorporada obter os respectivos proveitos ou manter a sua fonte produtora são transferidos para a sociedade incorporante, sendo tratados com custos desta, para efeitos de determinação do lucro tributável desta no ano em que ocorre a fusão.

Diga-se, finalmente, que esta é a também a interpretação que impõem o princípio constitucional de que «a tributação das empresas incide fundamentalmente sobre o seu rendimento real» (artigo 104.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa) e o princípio de que os impostos sobre o rendimento assentam essencialmente na capacidade contributiva (artigo 4.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária), pelo que é esta a interpretação a adoptar numa perspectiva conforme à Constituição e que tenha em mente a unidade do sistema jurídico, que é o elemento primacial da interpretação jurídica (artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil).

Conclui-se, assim, que a correcção efectuada, ao entender que a relevância dos encargos financeiros suportados pela D ... S.A. relativamente ao ano de 2008, deveria ser aferida em face da sua relevância par a actividade de análises clínicas levada a cabo pela Requerente nesse ano e ao não considerar como custos da Requerente os custos da D ..., S.A. relevantes para determinação do seu próprio lucro tributável, enferma de vício de violação de lei, designadamente do artigo 23.º, n.º 1, do CIRC, que justifica a sua anulação [artigo 135.º do Código do Procedimento Administrativo, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 2.º, alínea c), da Lei Geral Tributária].”

            No que diz respeito ao decidido neste processo, haverá, desde logo, de ter em conta que a situação aqui em causa, se restringe ao ano em que ocorre a fusão, situação que explica o teor do critério decisório fundamental ali eleito, que se prende com o entendimento de que “a interpretação adoptada pela Autoridade Tributária e Aduaneira, (...) reconduzir-se-ia a que fossem relevantes para a formação do lucro tributável da Requerente proveitos obtidos pela D ..., S.A, durante o ano de 2008, sem a correspondente relevância negativa dos custos suportados para os obter, o que está manifestamente ao arrepio do princípio da relevância do «resultado líquido do exercício»” e que, como tal, “os custos que sejam de considerar indispensáveis para a sociedade incorporada obter os respectivos proveitos ou manter a sua fonte produtora são transferidos para a sociedade incorporante, sendo tratados com custos desta, para efeitos de determinação do lucro tributável desta no ano em que ocorre a fusão.”.

            Esta última conclusão, desligada do caso concreto, expõe-se à crítica, na medida em que parece perfilar-se numa linha simplista, posta de lado no voto de vencido do processo 14/2011-T, e que aqui se perfilha, segundo a qual assente a dedutibilidade de um gasto na esfera da sociedade incorporada, ter-se-á, automaticamente, de reconhecer essa dedutibilidade na esfera da sociedade incorporante.

            Para além disso, o referido critério decisório fundamental, apresenta, ele próprio, como penhor da sua coerência interna, limitações. Assim, e por um lado, a justificação da relevância dos gastos incorridos pela fundida, em função da paralela relevância dos ganhos por ela obtidos, na esfera da sociedade resultante da fusão, apenas será procedente até ao momento em que se executou a fusão; ou seja, justificam-se os gastos suportados pela fundida, ainda enquanto tal, com os ganhos por ela gerados, também ainda enquanto tal, não se podendo transpor directamente tal critério para a fase pós fusão (que, note-se, no processo em análise se limitava a pouco mais de uma semana), já que aí estão já em causa gastos que não têm correspondência em ganhos na esfera da sociedade resultante da fusão.

 

*

            No processo 87/2014-T, ao Tribunal foi, uma vez mais, chamado a emitir pronúncia sobre questão idêntica à que ora se coloca.

            Do também muito doutamente expendido na decisão em causa, ora destaca-se:

- “o facto de os financiamentos com os encargos e as responsabilidades correspondentes terem sido objecto de transmissão no âmbito de fusão por incorporação (...) não implica que o seu tratamento fiscal na sociedade incorporante tenha que ser, sem mais, o exato espelho do que ocorria na sociedade incorporada.

Note-se, desde logo, que para chegar a alguma conclusão sobre a dedutibilidade dos encargos financeiros na sociedade incorporante nenhum elemento se obtém da concepção que se adopte, em termos gerais, quanto à natureza jurídica da fusão, quer se considere que se trata de um fenómeno de sucessão universal da sociedade incorporada para a sociedade incorporante quer se considere que se trate da modificação das sociedades envolvidas mediante transformação. (...)

Mas também nenhuma conclusão se retira do próprio regime de neutralidade fiscal (...) porquanto este regime não contemplava, em momento algum, a transmissibilidade para a incorporante do tratamento fiscal conferido aos custos na sociedade incorporada”;

- “a dedução fiscal dos encargos financeiros incorridos no ano de 2009 tem que ser aferida no contexto empresarial próprio da Requerente, em atenção aos critérios normativos resultantes do n.º 1 do art. 23.º do CIRC, que é, efetivamente, o quadro legal decisivo em face do qual se tem de resolver a matéria dos autos.

Daí que, em cumprimento do disposto no n.º 1 do art. 23.º do CIRC, tenha perfeito cabimento verificar, como fez a AT na inspeção tributária ao exercício de 2009 a que procedeu e que aqui se encontra em apreciação, se os pressupostos de dedutibilidade fiscal dos custos com juros se mostravam satisfeitos em atenção à atividade da Requerente e ao período de tributação em causa (cfr. art. 18.º do CIRC), independentemente do que sucedia na sociedade incorporada.(...)

Conclui-se, pois, que o facto de certos encargos financeiros serem fiscalmente dedutíveis anteriormente no âmbito da determinação da matéria colectável de uma certa sociedade não significa, só por si, que o sejam necessariamente nos mesmos termos no âmbito da sociedade que, por fusão, incorporou aquela.

Aliás, tanto é assim que a própria Requerente reconhece que a manutenção da dedutibilidade dos juros de um certo financiamento inicialmente contraído depende do pressuposto de que “o financiamento se mantém alocado à mesma finalidade”(...)

Por isso, a matéria que efetivamente importa decidir para a solução do caso sub judice respeita à verificação no ano de 2009, em atenção à situação da Requerente, do nexo de causalidade económica entre a assunção dos custos financeiros em causa e a sua realização no interesse da empresa.”;

- “Tendo em conta esta diretriz, para proceder à aplicação ao caso em apreço do requisito da indispensabilidade dos custos, é decisivo averiguar, na base de todos os factos e circunstâncias relevantes, a afetação efetiva e concreta do financiamento de que os juros suportados são a remuneração ou, por outras palavras, importa verificar o destino ou uso dos fundos obtidos em relação aos quais o sujeito passivo pretende deduzir fiscalmente, para efeitos do apuramento do seu lucro tributável, os juros e demais encargos associados que suportou.(...)

Como tal, a Requerente suportou no ano de 2009 encargos financeiros em relação à totalidade dos financiamentos em causa (...), mas as participações sociais relativas ao capital da própria Requerente, a que esses financiamentos também se destinaram (...), não pertencem, naturalmente, à Requerente, mas são sim da titularidade da “B” BV, que não suporta os correspondentes custos desse financiamento (...).”

- “Significa isto que os encargos financeiros suportados no exercício de 2009 imputáveis à aquisição do capital do “A” não encontram nexo de causalidade económica com o interesse e a atividade da própria Requerente, não tendo potencialidade para geração de lucros na esfera jurídica desta.

Essas participações sociais, na verdade, só podem gerar rendimentos tributáveis (dividendos em face da distribuição de lucros pela empresa participada, mais-valias em face da alienação das participações) na esfera jurídica da sociedade titular das participações (a “B” BV), não na esfera jurídica da devedora dos encargos financeiros (a aqui Requerente). Como tal, os encargos financeiros em causa não têm como destino o financiamento da atividade empresarial da própria Requerente, designadamente o investimento em participações sociais da sua titularidade, mas respeitam antes a participações sociais em titularidade alheia.

Ora, como acima se referiu (n.º 14), a dedutibilidade fiscal dos custos, por força do princípio da indispensabilidade previsto pelo art. 23.º do CIRC, pressupõe um nexo de causalidade económica entre os custos em causa e a sua realização no interesse da empresa.

É, pois, necessário, para efeitos da respectiva relevância fiscal, que os gastos incorridos com encargos financeiros possuam uma conexão de causalidade com a atividade empresarial desenvolvida, maxime sirvam ao desenvolvimento da atividade da sociedade deles devedora, em ordem à obtenção de lucros. Consequentemente, como observa MARIA DOS PRAZERES LOUSA, [“O problema da dedutibilidade dos juros para efeitos da determinação do lucro tributável,” in Estudos em homenagem à Dr. Maria de Lourdes Correia e Vale, Lisboa, 1995, p. 349], não podem ser aceites como dedutíveis os juros suportados por uma empresa relativamente a empréstimos em que manifestamente se comprove que os fundos obtidos são “desviados da exploração e aplicados em fins estranhos à mesma”.

Nesta sequência, convoque-se igualmente o que se refere no acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 14.3.2013, proc. n.º 01393/06.1BEBRG: “só devem ser considerados custos do exercício os que comprovadamente foram indispensáveis para a realização dos proveitos ou ganhos ou para a manutenção da fonte produtora mas da própria sociedade e não de um terceiro. Ou seja, os custos têm que ser reportados à atividade desenvolvida pela sociedade em causa e não por outra sociedade”.”.

- “os encargos financeiros indicados possuem como finalidade, destino e uso a aquisição das próprias participações sociais da Requerente pela sociedade “C”, SGPS, pelo que, nessa parte, a afetação do empréstimo não se prende com a atividade nem com ativos detidos pela sociedade que é devedora desses encargos, a aqui Requerente, mas sim com ativos que passaram a ser detidos pela “B” BV, como sócia única da Requerente.”.

            Neste processo retomou-se a linha decisória do processo 14/2011-T, desenvolvendo-a.

            Assim, aditando ao ali expendido, refere-se na decisão ora em análise que “o facto de os financiamentos com os encargos e as responsabilidades correspondentes terem sido objecto de transmissão no âmbito de fusão por incorporação (...) não implica que o seu tratamento fiscal na sociedade incorporante tenha que ser, sem mais, o exato espelho do que ocorria na sociedade incorporada.”, que “para chegar a alguma conclusão sobre a dedutibilidade dos encargos financeiros na sociedade incorporante nenhum elemento se obtém da concepção que se adopte, em termos gerais, quanto à natureza jurídica da fusão” e que “também nenhuma conclusão se retira do próprio regime de neutralidade fiscal”, conclusões que se subscrevem inteiramente.

            Subscreve-se, igualmente, a conclusão de “que o facto de certos encargos financeiros serem fiscalmente dedutíveis anteriormente no âmbito da determinação da matéria colectável de uma certa sociedade não significa, só por si, que o sejam necessariamente nos mesmos termos no âmbito da sociedade que, por fusão, incorporou aquela”, não se subscrevendo, todavia, e como se verá mais adiante, os pressupostos em que a mesma assenta, não de um ponto de vista abstracto, concordando-se que “a dedução fiscal dos encargos financeiros incorridos (…) tem que ser aferida no contexto empresarial próprio da Requerente, em atenção aos critérios normativos resultantes do n.º 1 do art. 23.º do CIRC”, e que “para proceder à aplicação ao caso em apreço do requisito da indispensabilidade dos custos, é decisivo averiguar (…) a afetação efetiva e concreta do financiamento de que os juros suportados são a remuneração ou, por outras palavras, importa verificar o destino ou uso dos fundos obtidos em relação aos quais o sujeito passivo pretende deduzir fiscalmente, para efeitos do apuramento do seu lucro tributável, os juros e demais encargos associados que suportou”, mas de um ponto de vista da sua aplicação ao caso concreto, onde foi entendido que “a Requerente suportou no ano de 2009 encargos financeiros em relação à totalidade dos financiamentos em causa (...), mas as participações sociais relativas ao capital da própria Requerente, a que esses financiamentos também se destinaram (...), não pertencem, naturalmente, à Requerente, mas são sim da titularidade da “B” BV, que não suporta os correspondentes custos desse financiamento (...).” que “Essas participações sociais, na verdade, só podem gerar rendimentos tributáveis (dividendos em face da distribuição de lucros pela empresa participada, mais-valias em face da alienação das participações) na esfera jurídica da sociedade titular das participações (a “B” BV), não na esfera jurídica da devedora dos encargos financeiros (a aqui Requerente).”, que “os encargos financeiros em causa não têm como destino o financiamento da atividade empresarial da própria Requerente, (…) mas respeitam antes a participações sociais em titularidade alheia.”, e que “a afetação do empréstimo não se prende com a atividade nem com ativos detidos pela sociedade que é devedora desses encargos, a aqui Requerente, mas sim com ativos que passaram a ser detidos pela “B” BV, como sócia única da Requerente.”

            É que, como se viu já, a propósito do processo 14/2011-T, as participações da sociedade incorporante detidas, a final, pelo(s) sócio(s) da sociedade incorporada, não são contrapartida dos (não têm a sua causa nos) financiamentos por esta contraídos, mas, antes, são contrapartida das (têm a sua causa nas) participações sociais da sociedade incorporada, que se extinguem no processo de fusão.

            Pelo que não se pode subscrever, assim, o entendimento de que a sociedade resultante da fusão está a suportar os encargos de financiamentos que são contrapartida de benefícios obtidos por terceiros.

            Do mesmo modo, e conforme também já acima explicado, não se considera que a situação sub iudice seja caso de aplicação do critério citado a MARIA DOS PRAZERES LOUSA, segundo o qual “não podem ser aceites como dedutíveis os juros suportados por uma empresa relativamente a empréstimos em que manifestamente se comprove que os fundos obtidos são “desviados da exploração e aplicados em fins estranhos à mesma”, uma vez que – manifestamente – os fundos obtidos não foram “desviados” da esfera da sociedade resultante da fusão, uma vez que os mesmos estavam já integralmente aplicados (exauridos) quando se operou o processo de fusão.

            Resta, ainda, aqui como, anteriormente, a propósito do processo 14/2011-T, apurar da relevância decisória, à luz dos critérios já assentes, da constatação de que a Requerente não ter já na sua posse o produto mediato dos gastos financeiros que suporta, o que se fará adiante.

 

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            Por fim, foi o Tribunal arbitral constituído no processo 42-2015-T chamado a emitir pronúncia sobre a mesma questão que ora se coloca.

            Dali se destaca o seguinte:

-          “A interpretação legal do conceito de "indispensabilidade", ao tempo constante do artigo 23.º do CIRC, tem sido, como a doutrina e jurisprudência mostram, equiparada aos custos incorridos no interesse da empresa; aos gastos suportados no âmbito das atividades decorrentes do seu escopo societário. Só quando os gastos resultarem de decisões que não preencham tais requisitos deverão ser então desconsiderados.”;

-          “Ora o STA, no âmbito do Processo 0779/12, em Acórdão recente, de 24-09-2014, afasta a interpretação do artigo 23.º' do CIRC como tendo que implicar uma obrigatória conexão, um balanceamento ou conexão entre custos e proveitos.”;

-          “Julga-se ser visível que a tese da AT, segundo a qual apenas os encargos financeiros decorrentes de capitais aplicados na exploração seriam dedutíveis (e ainda assim faltaria definir o que se entende por "exploração") não resulta da lei. Os termos "nomeadamente" e "tais como", que sublinhámos, vincam que os encargos financeiros de capitais aplicados na exploração são dedutíveis, mas não esgotam o universo de encargos financeiros dedutíveis.

Estes sê-lo-ão, mesmo que não aplicados na dita exploração; desde que passem o teste geral da indispensabilidade, estejam comprovados e não sejam afastados por outra norma jurídico-fiscal.

Ora, o conceito de indispensabilidade, já se viu, é consensualmente interpretado como implicando que os gastos digam respeito à atividade ou interesse da empresa. Assim, os encargos financeiros que aqui se enquadrem, mesmo não sendo aplicados em atividades consideradas operacionais ou de "exploração", podem reunir condições de indispensabilidade.

E, como adiante se verá, os encargos aqui controvertidos, estão relacionados com a atividade da Requerente, pois resultam do financiamento de ativos por esta detidos e que até geram rendimentos de natureza operacional.”;

-          “Não tem razão a AT quando põe em causa a dedutibilidade dos encargos financeiros, em sede da Requerente, com o fundamento de que estes estão desligados da sua atividade, do seu interesse próprio, e que os fundos obtidos não foram aplicados na exploração.

Com efeito, em decorrência das operações de fusão, a mesma sociedade (a Requerente) passou a deter, como elementos patrimoniais contabilizados ou reconhecidos no seu balanço, os ativos e passivos da sociedades operativas (...) e continuou a inscrever, também no seu balanço, o capital próprio e os passivos financeiros que suportavam as participações sociais que antes representavam este conjunto de elementos patrimoniais.(...)

Em suma a fusão mantém na Requerente o financiamento pelo qual esta pagou juros, e teve como consequência patrimonial a junção, no mesmo balanço, dos ativos que tal dívida financiava e continuou a financiar. Não já ativos financeiros, mas a sua real tradução em ativos e passivos de cariz operacional.”;

-          “Mesmo numa perspetiva estrita de nexo económico entre rendimentos e gastos, ele existe. Os rendimentos derivados do negócio estão relacionados com os juros pagos para a sua aquisição. Numa ótica patrimonial há, até, maior aproximação entre ativos e capitais que os financiam, agora inscritos na mesma entidade.”.

            Este processo arbitral, não obstante coincidir com aquilo que se entende ser o adequado sentido da decisão, contém, na respectiva fundamentação, matéria que se dá, também ela, a crítica.

            Assim, quando se refere que “que a tese da AT, segundo a qual apenas os encargos financeiros decorrentes de capitais aplicados na exploração seriam dedutíveis (e ainda assim faltaria definir o que se entende por "exploração") não resulta da lei. Os termos "nomeadamente" e "tais como", que sublinhámos, vincam que os encargos financeiros de capitais aplicados na exploração são dedutíveis, mas não esgotam o universo de encargos financeiros dedutíveis.”, sugere-se que a justificação da dedutibilidade dos gastos em questão se obtém fora do âmbito da previsão da al. c) do n.º 1 do art.º 23.º do CIRC, na parte em que refere a dedutibilidade dos “juros de capitais alheios aplicados na exploração”, o que, como se verá adiante, não se nos afigura ser o caso.

            Por outro lado, o considerando de que “a fusão mantém na Requerente o financiamento pelo qual esta pagou juros, e teve como consequência patrimonial a junção, no mesmo balanço, dos ativos que tal dívida financiava e continuou a financiar. Não já ativos financeiros, mas a sua real tradução em ativos e passivos de cariz operacional”, parece igualmente ela permeável à circunstância – facticamente incontornável – de que o financiamento cujos custos são suportados na esfera da sociedade resultante da fusão, se destinou, imediatamente, à aquisição das participações sociais da sociedade que, na fusão, viria a ser incorporante e de que, na esfera jurídica da sociedade resultante daquele processo de reorganização societária, tais participações estão ausentes.

            Fundar-se-á, todavia, esta potencial crítica numa percepção superficial da realidade material (económica) subjacente ao processo de fusão por incorporação, como se verá de seguida.

 

*

Tendo presente tudo quanto se veio já dizendo, e não esquecendo que – consensualmente e como resulta da matéria de facto[10] – estão exclusivamente em causa juros de capitais alheios, considera-se, então que o ponto de partida do processo decisório do litígio que ora cumpre dirimir se situa no quadro do art.º 23.º/1/c) do CIRC.

            Tal norma dispõe, para além do mais e naquilo que diz respeito ao que ora importa, que “Consideram-se gastos (…) nomeadamente: c) juros de capitais alheios aplicados na exploração.”.

            Deste modo, e antes de avançar no sentido de apurar se do normativo em questão resulta, ou não, uma limitação da dedutibilidade dos juros de capitais alheios, à sua aplicação na exploração, ou se, como se concluiu no Ac. 42/2015T, serão no seu âmbito dedutíveis juros de capitais alheios aplicados noutros fins, cumpre aferir se, no caso, é essa, ou não, a situação que se verifica.

            Em tal juízo, e salvo melhor opinião, dever-se-á ter em conta, como referentes decisórios, para além do mais já devidamente tratado, quatro aspectos que se têm por fundamentais, a saber:

-          O primeiro – incontornável, como se disse já – é a circunstância de as participações sociais da sociedade incorporante, que integravam o activo da sociedade incorporada, não existirem no património da sociedade resultante do processo de fusão;

-          O segundo, julga-se que tão incontornável quanto o anterior, é o de que os “capitais alheios” a que se reportam os juros suportados e cuja dedutibilidade é questionada se encontrarem, em momento anterior à fusão, já integralmente aplicados;

-          O terceiro, bem menos evidente, mas igualmente incontornável e relevante, é o de que a sociedade resultante do processo de fusão não se identifica materialmente (sob o prisma da realidade económica) com a sociedade beneficiária da fusão, tal como se configurava previamente à mesma;

-          O quarto, julga-se que não será, do mesmo modo, contestável, é o de que as acções atribuídas, no processo de fusão, aos accionistas da sociedade incorporada, serão contrapartida, não dos capitais por aquela obtidos, por via dos financiamentos cujos juros têm a respectiva dedutibilidade em crise, mas, como se viu já, das acções daquela mesma sociedade incorporada e que, por força do processo de fusão, se extinguem.

            À luz destes referentes, tem-se por boa a conclusão de que, efectivamente, no caso se preenchem os pressupostos da supra-referida alínea c) do n.º 1 do art.º 23.º do CIRC, por os gastos com juros em questão, corresponderem a capitais alheios que foram aplicados na exploração da entidade que os suporta.

            Esta afirmação, que à primeira vista poderá constituir-se como contra-intuitiva, será assimilável se se tiver, devidamente, presente o terceiro dos critérios decisórios fundamentais acima elencados.

Com efeito, e como se escreveu no Ac. do STA de 13-04-2005, proferido no processo 01265/04[11]:

A fusão por incorporação, ainda que implique que só sobreviva, com personalidade jurídica própria, a sociedade na qual as demais se incorporam, não tem como consequência, no campo das realidades económicas e empresariais, o desaparecimento das empresas fundidas. Alguma doutrina comercialista – vd. PINTO FURTADO, PINTO COELHO e PUPO CORREIA nos lugares citados na sentença recorrida – aponta que a sociedade fundida, perdendo a sua personalidade jurídica, todavia persiste, modificada, formando um todo com outras, em condições diversas das que ocorriam antes da fusão. Mas não deixa de continuar a existir a mesma realidade económica, um mesmo conjunto (agora integrado noutro mais alargado) de meios afectos a uma actividade produtiva, que os sócios, aliás, quiseram potenciar com a fusão.

Ou seja, com a fusão por incorporação ocorre uma transformação da sociedade, mas não uma extinção, não decorrendo da integração o seu desaparecimento, mas a sua alteração, ainda que implique a perda de personalidade jurídica."

Também no Ac. do TCA-Sul de 17-04-2012, proferido no processo 04172/10[12] se escreveu que “a fusão de sociedades é o acto pelo qual duas ou mais sociedades reúnem as suas forças económicas para formarem, com os sócios de todas elas, uma só personalidade colectiva, um novo sujeito económico e jurídico.

Daí que se possa afirmar, como parece tê-lo feito a A., que a fusão é, regra geral, e a situação em análise não constitui excepção, recomendada por interesses comuns às sociedades nela intervenientes, e não apenas a uma delas.

E mais adiante: “É certo que se poderia argumentar que a sociedade fundida, perdendo a sua personalidade jurídica, todavia persiste, modificada, formando um todo com outras, em condições diversas das que ocorriam antes da fusão; todavia, também o certo é que não deixa de continuar a existir a mesma realidade económica, um mesmo conjunto (agora integrado noutro mais alargado) de meios afectos a uma actividade produtiva, que os sócios, aliás, quiseram potenciar com a fusão.

Numa outra formulação, põe afirmar-se que com a fusão por incorporação ocorre uma transformação da sociedade, mas não uma extinção, não decorrendo da integração o seu desaparecimento, mas a sua alteração, ainda que implique a perda de personalidade jurídica.”.

            Compreendido isto, será compreensível então, a afirmação de que os gastos com juros em questão, correspondem a capitais alheios que foram aplicados na exploração da entidade que os suporta. Com efeito, compreendida devidamente a realidade pós-fusão (não fraudulenta), dever-se-á aceitar que a entidade daí resultante, embora contida na “casca” jurídica da sociedade incorporante, não corresponde mais a esta, tal como se configurava antes do referido processo de reorganização societária, sendo antes uma síntese entre a sociedade incorporada e a incorporante.

            Citando a jurisprudência que antecede, continua “a existir a mesma realidade económica”, o “mesmo conjunto (agora integrado noutro mais alargado) de meios afectos a uma actividade produtiva”, em cuja exploração foram aplicados os capitais alheios cujos gastos em juros vêm a sua dedutibilidade questionada, uma vez que não decorreu da integração o seu desaparecimento, mas a sua alteração, ainda que com a perda de personalidade jurídica.

            Assim, à luz desta compreensão dos efeitos da fusão por incorporação – incluindo a inversa – não se poderá concluir de outra forma que não pelo preenchimento dos pressupostos da supra-referida al. c) do n.º 1 do art.º 23.º do CIRC.

Torna-se, assim, compreensível a passagem do Ac. 42/2015T acima citada, segundo a qual “a fusão mantém na Requerente o financiamento pelo qual esta pagou juros, e teve como consequência patrimonial a junção, no mesmo balanço, dos ativos que tal dívida financiava e continuou a financiar. Não já ativos financeiros, mas a sua real tradução em ativos e passivos de cariz operacional”. Com efeito, a perspectiva do acórdão em questão, que será inquestionável nos casos de fusão por incorporação “ordinária” (não inversa ou upstream), onde é evidente que a sociedade incorporante troca as participações que detém pela realidade económica em que se traduz a sociedade participada, dever-se-á considerar igualmente válida nos casos de fusão inversa, uma vez que a realidade material pós-fusão (a “realidade económica”, o “conjunto (...) de meios afectos a uma actividade produtiva”), será, pelo menos no que constituam aspectos relevantes para a problemática em discussão, precisamente a mesma[13].

            Não invalida, diga-se, esta conclusão que, como se afirma no Acórdão arbitral 87/2014T, “a dedução fiscal dos encargos financeiros incorridos (…) tem que ser aferida no contexto empresarial próprio da Requerente, em atenção aos critérios normativos resultantes do n.º 1 do art. 23.º do CIRC”, e que “para proceder à aplicação ao caso em apreço do requisito da indispensabilidade dos custos, é decisivo averiguar (…) a afetação efetiva e concreta do financiamento de que os juros suportados são a remuneração ou, por outras palavras, importa verificar o destino ou uso dos fundos obtidos em relação aos quais o sujeito passivo pretende deduzir fiscalmente, para efeitos do apuramento do seu lucro tributável, os juros e demais encargos associados que suportou”.

            Antes pelo contrário. Compreendido que a Requerente, tal como se apresenta pós-fusão, não é já o mesmo centro de interesses que existia antes daquele processo, mas um outro diferente que se sintetizou com a sociedade incorporada e que, portanto, o contexto empresarial da Requerente incorpora, também, a realidade económica antes corporizada autonomamente pela sociedade nela incorporada, estar-se-á então – verdadeiramente – a aferir os “critérios normativos resultantes do n.º 1 do art. 23.º do CIRC” “no contexto empresarial próprio da Requerente”.

            Por outro lado, e como se referiu já, também não se verifica que tenha ocorrido qualquer alteração na “(…) afetação efetiva e concreta do financiamento de que os juros suportados são a remuneração”, ou desvio “no destino ou uso dos fundos obtidos em relação aos quais o sujeito passivo pretende deduzir fiscalmente, para efeitos do apuramento do seu lucro tributável, os juros e demais encargos associados que suportou”, porquanto, por um lado e como se viu, o financiamento foi integralmente aplicado em momento prévio à fusão, e, por outro e como igualmente se viu já, não foi, sequer, o produto dessa aplicação desviado para um terceiro, mormente para a accionista (antes da incorporada e, depois, da incorporante), na medida em que as acções da incorporante de que aquela se tornou titular derivam, não dos financiamentos cujos juros estão em questão, mas das acções da sociedade incorporada que detinha, e que foram extintas pelo processo de fusão.

            A posição adoptada é igualmente compatível com a asserção que se pode ler no mesmo acórdão que se vem de referir, segundo a qual “o facto de certos encargos financeiros serem fiscalmente dedutíveis anteriormente no âmbito da determinação da matéria colectável de uma certa sociedade não significa, só por si, que o sejam necessariamente nos mesmos termos no âmbito da sociedade que, por fusão, incorporou aquela”.

            Com efeito, e como referia já o Prof. Teixeira Ribeiro, à luz do CCI[14], as alíneas do n.º 1 do art.º 23.º do CIRC não poderão ser entendidas de outra maneira que não a de que quando os custos ou perdas estão especificamente elencados no artigo 23.º, presume-se a sua essencialidade, dispensando-se, consequentemente, o contribuinte da correspondente prova, sendo, precisamente esse o propósito da enumeração (retirado, para além do mais, da utilização da expressão «nomeadamente»).

            Não quer dizer o preenchimento, no caso, da al. c) do n.º do art.º 23.º do CIRC, que a AT não possa questionar o requisito geral da dedutibilidade dos gastos, constante do corpo do artigo, demonstrando que, apesar de preenchida uma alínea do mesmo (no caso a al. c)), a fusão foi realizada por interesses não empresariais próprios das sociedades parte naquela[15].

            Do mesmo modo que, poderia a AT demonstrar que, apesar de preenchida uma alínea do n.º 1 do art.º 23.º, e que a fusão foi determinada por interesses próprios das sociedades parte naquela, a mesma foi realizada num contexto fraudulento, em termos de não produzir efeitos fiscais, tal como prescrito pelo art.º 38.º/2 da LGT[16].

            Sucede que, no caso, nem uma nem outra das vias foi encetada pela AT, pelo que não cumprirá ao Tribunal aferir da sua bondade.

            Não se considera, por fim, que assuma relevância a circunstância, também acima individualizada, de, no momento em que são suportados os juros, os activos nos quais foram aplicados os capitais alheios, a que se reportam aqueles, não integrarem já a esfera jurídica da sociedade resultante da fusão.

            Efectivamente, aplicados os capitais alheios na exploração (situação diferente do “desvio” de parte dos capitais para aplicações estranhas ao interesse empresarial, que, como se viu já, não se verifica nos autos), considera-se que seria, ainda assim, possível recusar a dedutibilidade fiscal dos correspondentes encargos financeiros, demonstrando-se (e, assim, elidindo a presunção de dedutibilidade decorrente da al. c) do n.º 1 do artigo 23.º do CIRC, detectada na senda do Prof. Teixeira Ribeiro), que o produto daquela aplicação – e já não os capitais alheios - teriam sido desviados para finalidades extra-empresariais.

O que vem de se afirmar será de fácil compreensão com recurso ao exemplo de uma sociedade que, com recurso a capitais alheios adquira uma viatura, a qual afecta, desde logo, à exploração no âmbito da respectiva actividade, mas que, a partir de dado momento, passa a permitir a utilização da mesma exclusivamente no interesse de terceiros (v.g.: sócios; outras empresas).

Nesta situação, julga-se, a presunção de indispensabilidade dos encargos financeiros suportados com a aquisição da viatura, decorrente da aplicação dos capitais alheios na exploração da sociedade em causa, ver-se-á afastada[17], pelo que a dedutibilidade daqueles encargos deverá ser recusada. Não é, contudo, uma vez mais, essa a situação dos autos.

Antes, o que acontece na situação que nos ocupa, é que por, por via da operação de fusão realizada, houve um desaparecimento do objecto da aplicação dos capitais alheios. Ou seja: tal objecto, que existia, deixou de existir (o que é diferente e, repete-se uma vez mais, não é o que acontece na situação sub iudice, de continuar a existir na esfera de terceiros).

Retomando o exemplo da viatura, a situação será a mesma que ocorreria no caso de, por via de uma decisão empresarial, aquela ficar inutilizada antes de terminar o período de pagamento dos encargos financeiros relacionados com a sua aquisição (p. ex.: a utilização da mesma numa campanha publicitária que a destrua). Ainda assim, crê-se, aqueles encargos manter-se-ão dedutíveis, não obstante o desaparecimento – por via de uma decisão empresarial – do objecto em que os capitais alheios que remuneram foram aplicados. Tal só não aconteceria, na sequência do que vem de se dizer, se se demonstrasse que a decisão que deu causa ao desaparecimento de tal objecto foi motivada por interesses alheios à empresa ou, então, que foi abusiva. O que – uma vez mais – não é o que está em causa no presente processo.

 

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            Diga-se, por fim, que se considera que não invalidará nem os referentes decisórios de que se partiu, nem as conclusões que se vêm de retirar, o regime relativo à proibição de assistência financeira à aquisição de participações próprias essencialmente regulado nos artigos 322.º/1 do CSC, e 23.º da Segunda Directiva 77/91/CEE do Conselho, de 13 de Dezembro de 1976.

            Não obstante tal questão não ter sido nem fundamento do acto tributário objecto da presente acção arbitral[18], nem suscitada pelas próprias partes[19], sempre se dirá, em abono da integridade da decisão, que não se descortina que tenha sido praticado qualquer acto que, concretamente, se possa apontar como ocorrido em violação da referida proibição.

            De facto, o próprio n.º 1 do artigo 23.º da Segunda Directiva 77/91/CEE do Conselho, de 13 de Dezembro de 1976, vigente à data do facto tributário[20], e à luz do qual deverá, no caso, ser lida a norma do artigo 322.º/1 do CSC[21], considera assistência financeira o adiantamento de fundos, a concessão de empréstimos ou a prestação de garantias, sendo certo que, no caso, não se apura que tenha ocorrido qualquer dessas situações.

            Com efeito, os fundos utilizados para a aquisição das participações sociais da Requerente foram fornecidos por entidades bancárias, e não adiantados ou concedidos a crédito pela Requerente, e esta, tanto quanto se apura, não prestou qualquer garantia a favor dos credores do financiamento utilizado para a aquisição das referidas participações, pelo que, ressalvada a ocorrência de fraude, não se poderá considerar que, no caso, a Requerente tenha prestado assistência financeira, proscrita pelas normas referidas.

            Ou seja e em suma: não se tem dúvidas que não foram adiantados fundos, concedidos créditos ou prestadas garantias pela Requerente, com vista à aquisição de acções próprias. Se – e no caso, julga-se, esta é uma discussão que não caberá prosseguir, pelo que não interessará se tal é questionável ou inquestionável – os mesmos resultados foram obtidos por outras vias não proibidas, estaremos então perante uma actuação fraudulenta, a tratar como tal.

            É que, para considerar-se verificada qualquer violação da proibição de assistência financeira, sempre a mesma ter-se-ia que retirar da conjugação da globalidade dos actos jurídicos praticados pela Requerente, e da intenção – nesse caso, fraudulenta - de, por essa via, obter um resultado que a lei proíbe.

            Com efeito, uma conclusão de violação da proibição de assistência financeira pela Requerente terá – crê-se – sempre de assentar na conjugação do complexo de actos praticados, desde a organização societária grupal inicialmente instituída, até à realização da fusão por incorporação invertida, passando pela operação de financiamento realizada, sendo certo que todos esses actos, em si considerados, se apresentarão como lícitos e próprios da diversas entidades empresariais envolvidas nos mesmos, e apenas um propósito e um resultado fraudulentos efectivamente demonstrados serão susceptíveis de fazer cair o manto de legalidade que os cobre.

            Ora, salvo melhor opinião, sendo então cada um dos diversos actos jurídicos praticados pelos diferentes intervenientes na actuação complexa em causa no presentes processo, lícitos e empresariais, o meio próprio de realizar a referida demonstração, e dela retirar os efeitos próprios em sede fiscal, será por meio da cláusula anti-abuso[22].

            Esta conclusão não será, julga-se, susceptível de ser afectada, por meio da consideração – de resto não efectuada pela própria AT – da proibição de assistência financeira em sede de densificação do critério geral da indispensabilidade do artigo 23.º/1 do CIRS, desde logo porquanto se entende que não só seria necessário, previamente, que se demonstrasse uma efectiva (e não meramente genérica ou potencial) violação da referida proibição, como que, estando em causa – no caso concreto, como se disse – uma actuação global de fraude à lei, a utilização da cláusula geral da indispensabilidade constituiria – salvo o devido respeito e, passe a expressão – ela própria uma “fraude à lei”, na medida em que se trataria de um meio expedito de subtrair as garantias que lei pretendeu conferir ao contribuinte, nos casos em que a AT entende que as formas jurídicas utilizadas por aquele não têm correspondência na realidade económica prosseguida.

            Em todo o caso, nota-se ainda que não restando dúvidas que no caso se processou uma, chamada, “fusão alavancada” (“merger leveraged buy-out”, mLBO), menos certo não será que tal figura é conhecida, de data que se pode considerar já longa, do legislador, que – até à data – entendeu não retirar desse conhecimento nem a sua ilegalização em geral (não se tendo notícia, de resto, que tal haja ocorrido em qualquer ordenamento comunitário), nem quaisquer outros efeitos no plano fiscal.

            De resto, nos regimes, como o italiano, onde se regularam já as operações de mLBO, a regulação instituída insiste especialmente nas obrigações de comunicação e auditoria, evidenciando-se, assim, que a operação em si não é intrinsecamente ilícita e/ou fraudulenta, mas que, unicamente, encerra em si um potencial de ilicitude/fraude, superior ao normal. Assim sendo, considera-se que a simples ocorrência de uma operação de fusão alavancada, não será, só por si, susceptível de ser considerada fraudulenta e, menos ainda, antiempresarial.

            Por fim, sempre se dirá que a aplicação ao caso, por via do critério geral da indispensabilidade dos gastos, da proibição de assistência financeira à aquisição de acções próprias, sob o argumento de que todos os actos e contratos realizados se caracterizaram pela finalidade de que fosse o património da Requerente a suportar os custo da aquisição das suas próprias participações sociais, esbarrará igualmente contra a constatação de que esse mesmo resultado seria obtido caso a fusão por incorporação se tivesse realizado em sentido oposto.

 

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            Concluindo, e como referia o Prof. Saldanha Sanches[23], se “As operações de cisão e fusão são uma área onde se verificam com muita frequência tentativas de obter economias fiscais mediante práticas abusivas, o que motiva as legítimas preocupações do legislador.”, não se pode é partir de uma “insanável desconfiança (...) em relação à fusão inversa, como se esta operação só pudesse ser realizada para contornar a lei fiscal ou fosse, em si própria, uma operação abusiva”.

Deste modo, considerando-se que, no caso, se verificam os pressupostos do artigo 23.º/1/c), maxime, que os capitais alheios a que se referem os encargos financeiros cuja dedutibilidade é questionada pela AT, foram efectivamente aplicados na exploração da Requerente, tal como ela se apresentava à data em que suportou aqueles encargos (pós-fusão), em questão no presente processo, e que não se demonstra (nem tal facto constituiu, sequer, fundamento dos actos tributários objecto do presente processo arbitral) que a operação de fusão, da qual resultou o desaparecimento das participações sociais em que haviam sido aplicados os referidos capitais alheios, tenha sido exclusiva ou principalmente motivada por interesses extra-empresariais, ou fraudulenta, deverão proceder integralmente os pedidos arbitrais anulatórios formulados.

 

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            Com os pedidos anulatórios, peticiona, ainda, a Requerente a condenação da AT no pagamento de juros à taxa legal, desde a data dos pagamentos indevidos até à data do processamento da respectiva nota de crédito.

            Compulsados os factos dados como provados, verifica-se que os referidos pagamentos foram efectuados no dia 27 de Dezembro de 2009, pela sociedade J…, em regime de sub-rogação devidamente autorizado pelas entidades competentes.

            Assim, não tendo sido a Requerente a suportar os pagamentos em questão, não tem a mesma direito a quaisquer juros, devidos em função desses pagamentos, motivo pelo qual não pode proceder tal pedido.

 

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C. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência anular os seguintes actos tributários:

                                                                          i.      Liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas ("IRC") n.º 2013 … e compensação n.º 2013 …, relativa ao exercício de 2009, com data de 31 de Outubro de 2013, dos quais resultou um valor global a pagar de € 597.067,43; e

                                                                        ii.      Autoliquidação de IRC referente ao exercício de 2010, correspondente à declaração Modelo 22 de substituição identificada pelo n.º …, submetida no dia 19 de Dezembro de 2013 e aceite, do qual resultou imposto a pagar no montante de € 718.441,36.

 

D. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em €1.255.405.23, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

Notifique-se.

 

Lisboa

 

25 de Janeiro de 2015

 

O Árbitro Presidente

 

 

(José Pedro Carvalho - Relator)

 

 

 

O Árbitro Vogal

 

 

(Tomás Castro Tavares)

 

 

 

O Árbitro Vogal

 

 

(João Menezes Leitão – vencido, conforme declaração)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Declaração de voto

Processo n.º 92/2015-T

 

1. Dissinto da decisão arbitral proferida nos presentes autos por considerar desconforme com a correcta aplicação do Direito ao caso o julgamento realizado de que são fiscalmente dedutíveis os gastos assumidos pela Requerente em 2009 e em 2010 com juros e outros encargos financeiros respeitantes a empréstimos destinados ao pagamento do preço da aquisição das próprias participações sociais da Requerente, encargos financeiros esses que a Requerente assumiu ope legis por efeito de fusão em que incorporou a sociedade originariamente devedora dos empréstimos e adquirente da totalidade das suas participações sociais.

 

2. Tendo em conta que a fundamentação da decisão que fez vencimento assenta, em grande medida, em críticas ao conteúdo – real ou meramente suposto – de decisões arbitrais proferidas no âmbito deste CAAD, as razões para o meu dissentimento alcançam-se logo das citações que são efectuadas dos acórdãos proferidos nos processos arbitrais n.ºs 14/2011-T e 87/2014-T, em que tive intervenção como árbitro e cujos julgamentos, a esse respeito, inteiramente subscrevi. Na verdade, continuo a ter como inteiramente adequadas ao quadro jurídico-fiscal pertinente as orientações dogmáticas que presidiram, no âmbito em causa, à resolução dos litígios objecto dos indicados arestos.

 

3. Não obstante o que já se retira, assim, daqueles acórdãos, amplamente transcritos na decisão que fez vencimento, impõe-se, em qualquer caso, proceder aqui à indicação específica das razões subjacentes ao voto de vencido (cfr. n.º 5 do artigo 22.º do RJAT), explicitando os fundamentos pelos quais entendo que o juízo correcto, em face dos critérios de decisão jurídico-normativos aplicáveis, constituía a não dedutibilidade fiscal dos gastos financeiros assumidos pela Requerente nos anos de 2009 e de 2010, conforme foi promovido com as correcções ao lucro tributável efectuadas ou propostas que se encontram na base da liquidação adicional de IRC referente ao exercício de 2009 e da autoliquidação de IRC referente a 2010, que, na sequência do indeferimento das reclamações graciosas deduzidas, são objecto de impugnação nos presentes autos.

 

4. Dado que está em causa no presente processo, como se escreve na decisão que fez vencimento, aferir se “os gastos correspondentes aos encargos com os financiamentos e suprimentos suportados pela ora Requerente cumprem os requisitos do artigo 23.º/1 do CIRC, relativos à sua indispensabilidade para realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, e, consequentemente, se podem ser deduzidos na determinação do lucro tributável daquela”, impõe-se, preliminarmente, destacar que, no seu significado performativo, a proposição normativa constante do art. 23.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (CIRC), possui, como a jurisprudência, na sequência de SALDANHA SANCHES[24], tem destacado (cfr., ex plurimis, os recentes acórdãos do TCA Sul de 05.3.2015, proc. n.º 05680/12 e de 07.05.2015, proc. n.º 08534/15), “finalidade claramente fiscal”, que consiste em “distinguir entre os custos que podem ser aceites para fins fiscais e que, por isso, vão influenciar o cálculo do lucro tributável e os que não podem ser aceites para tal efeito”. A dedução fiscal dos gastos é dominada pela preocupação, especificamente tributária, da determinação correcta da matéria colectável do imposto, de modo a que se possa associar, por qualquer modo, ao desenvolvimento da actividade empresarial a possibilidade de uma tributação do lucro e que não se ponha em crise a justa e adequada arrecadação fiscal mediante a erosão da base tributável – afinal, a determinação do lucro tributável não tem como finalidade senão o pagamento de um imposto. Deste modo, “[o] problema da dedutibilidade dos custos fiscais traduz-se em saber se determinada despesa efectuada pelo contribuinte deverá ou não relevar como componente negativo para a determinação da matéria colectável, tendo em conta as opções feitas pelo legislador em sede de IRC e os particulares interesses que o Direito Fiscal visa tutelar[25].

 

5. O requisito da indispensabilidade para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora estabelecido no art. 23.º do CIRC (nas redacções aplicáveis ratione temporis – 2009 e 2010[26]), constitui, justamente, factor essencial circunscritor da dedutibilidade fiscal dos gastos, o que implica a insuficiência, para tal efeito, da mera conexão formal e relevação contabilística do gasto. A indispensabilidade, como condição delimitativa do enquadramento como gasto fiscal nos termos do art. 23.º do CIRC, impõe aferir, no mínimo, se, no período de tributação em causa (arts. 17.º e 18.º do CIRC), o gasto se mostra suportado no interesse da sociedade contribuinte, exigindo, pois, como se consignou no acórdão do STA de 30.05.2012, proc. n.º 0171/11, “um juízo positivo de subsunção na actividade societária: os custos indispensáveis equivalerão aos gastos contraídos no interesse da empresa”.

 

6. Como bem se dá conta na decisão que fez vencimento, constituem critérios de decisão adoptados pela jurisprudência para efeitos do preenchimento casuístico do requisito de indispensabilidade dos gastos os que resultam das seguintes proposições: “os custos (...) não podem deixar de respeitar, desde logo, à própria sociedade contribuinte. Ou seja, para que determinada verba seja considerada custo daquela é necessário que a actividade respectiva seja por ela própria desenvolvida, que não por outras sociedades” (acórdão do STA de 30.05.2012, proc. n.º 0171/11); “um conceito de indispensabilidade que, afastando-se definitivamente da ideia de causalidade entre os gastos e rendimentos, põe a tónica na relação dos gastos com a actividade prosseguida pelo sujeito passivo, ou seja, considerando que o referido conceito de indispensabilidade se verifica sempre que os gastos sejam incorridos no interesse da empresa, na prossecução das respectivas actividades” (acórdão do STA de 04.09.2013, proc. n.º 0164/12); “Um custo é indispensável quando se relacione com a actividade da empresa, sendo que os custos estranhos à actividade da empresa serão apenas aqueles em que não seja possível descortinar qualquer nexo causal com os proveitos ou ganhos (ou com o rendimento, na expressão actual do código - cfr. artº. 23, nº. 1, do C.I.R.C.), explicado em termos de normalidade, necessidade, congruência e racionalidade económica” (acórdão do TCA Sul de 16.10.2014, proc. n.º 06754/13); “a Administração só pode excluir gastos não directamente afastados pela lei debaixo de uma forte motivação que convença de que eles foram incorridos para além do objectivo social, ou seja, na prossecução de outro interesse que não o empresarial, ou, ao menos, com nítido excesso, desviante, face às necessidades e capacidades objectivas da empresa” (acórdão do STA de 29.03.2006, proc. n.º 01236/05).

 

7. Na base destas proposições, deve entender-se que o âmbito operativo do requisito da indispensabilidade, na sua quintessência, tem como vectores fulcrais os seguintes: para que o gasto seja indispensável ele tem que se referir e respeitar à própria actividade da sociedade contribuinte e tem que ser incorrido no interesse da empresa para a prossecução das respectivas actividades em ordem à obtenção do lucro. Em consequência, gastos que não se reportam ao desenvolvimento da actividade empresarial do sujeito passivo, como sejam os gastos que importam exclusivamente à esfera pessoal própria dos sócios, não são fiscalmente dedutíveis por carência do requisito essencial da indispensabilidade. Por isso, no conceito de indispensabilidade “repousa um dos principais pontos de distinção entre o custo efectivamente feito no interesse colectivo da empresa e o que pode resultar apenas do interesse individual do sócio, de um grupo de sócios ou do seu conjunto[27].

 

8. Pois bem, como se observou nos acórdãos proferidos nos referidos procs. n.ºs 14/2011-T (n.º 66) e 87/2014-T (n.º 14), em atenção ao disposto no art. 23.º, n.º 1, corpo do número e al. c) do CIRC, “a dedutibilidade fiscal dos juros suportados, tal como qualquer outro gasto, depende de um juízo quanto à sua indispensabilidade para a realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora (corpo do n.º 1), explicitando mesmo a al. c) do n.º 1 desta disposição que esses juros de capitais alheios são “aplicados na exploração”. Reitere-se aqui, com efeito, que o requisito da indispensabilidade dos juros suportados por um sujeito passivo de IRC como remuneração de empréstimos e demais encargos financeiros associados exige a atenção à finalidade que presidiu ao empréstimo e a aplicação conferida aos fundos disponibilizados. Na verdade, o nexo entre os juros suportados e a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou a manutenção da fonte produtora, de que depende a indispensabilidade de tais gastos de natureza financeira e, logo, a respectiva dedutibilidade fiscal, é aferível mediante a inquirição sobre o propósito ou objectivo para o qual o empréstimo a que respeitam foi contratado e para que destino os fundos mutuados foram usados[28]. Como se escreveu no acórdão proferido no indicado proc. n.º 14/2011-T (n.º 67), para proceder à concretização em tais casos do requisito da indispensabilidade dos custos, “cabe verificar, na base de todos os factos e circunstâncias relevantes, a afectação efectiva e concreta do empréstimo de que os juros suportados são a remuneração, por outras palavras, importa ponderar o destino ou uso dos fundos obtidos em relação aos quais o sujeito passivo pretende deduzir fiscalmente, para efeitos do apuramento do seu lucro tributável, os juros e demais encargos associados que suportou[29].

 

9. Como o juro é a retribuição paga para adquirir o direito ao uso de dinheiro emprestado e como o dinheiro é um meio de troca, o uso do dinheiro emprestado são os bens ou serviços recebidos em contrapartida. Sendo assim, então é o uso dos bens e serviços recebidos mediante o pagamento com os fundos disponibilizados pelos empréstimos que determina se os juros, remuneração desses empréstimos, são dedutíveis na determinação do lucro tributável da sociedade que os suporta[30]. Quando os fundos emprestados são utilizados na aquisição de uma particular propriedade, então “a dedução do juro é determinada por referência ao uso dessa propriedade, a qual é igualmente determinada numa base factual[31].

 

10. Bem se compreende, em atenção à necessidade deste exame factual, que a nossa jurisprudência, de modo uniforme (cfr., por exemplo, o acórdão do STA de 15.6.2011, proc. n.º 049/11, n.º III e, recentemente, os acórdãos do TCA Sul de 19.2.2015, proc. n.º 08137/14 e de 22.1.2015, proc. n.º 05327/12; cfr. também os indicados acórdãos proferidos nos procs. n.ºs 14/2011-T, n.º 66 e 87/2014-T, n.º 14), tenha estabelecido que o funcionamento do requisito da indispensabilidade dos custos para efeitos fiscais assenta no seguinte: “o requisito de indispensabilidade de um custo tem de ser interpretado como um conceito indeterminado de necessário preenchimento casuístico, em resultado de uma análise de perspectiva económica empresarial, na percepção de uma relação de causalidade económica entre a assunção de um custo e a sua realização no interesse da empresa, atento o objecto societário do ente comercial em causa”.

 

11. Pois bem, olhando a factualidade pertinente e examinando, na sua objectividade, destino e aplicação, os gastos financeiros em causa suportados pela Requerente nos exercícios em apreciação de 2009 e de 2010, observa-se que respeitam a financiamentos contratados para a aquisição da totalidade das participações no capital social da própria Requerente (cfr. os factos dados como provados n.ºs 3, 7.i, 7.ii, 7.vii), isto é, concernem exclusivamente a dívida contraída para a própria aquisição da Requerente, sendo que a titularidade da totalidade das participações sociais da Requerente, num primeiro momento, foi adquirida pela sociedade D…, SA (cfr. os factos dados como provados n.ºs 3, 7.i, 7.ii, 7.v, 7.vii) e, num segundo momento, por força de operação de fusão inversa em que a D… foi incorporada pela Requerente, foi atribuída à J…, sócia única da sociedade incorporada (cfr. os factos dados como provados n.ºs 4, 5, 7.v, 7.ix, 7.x, 7.xi e 8).

 

12. Resulta, então, daqui que os gastos sub judice suportados pela Requerente nos exercícios de 2009 e de 2010 reportam-se, por para isso terem servido os financiamentos a que estão associados, a um activo de que a Requerente não é titular ou beneficiária (nem podia ser por constituir total auto-participação), mas antes a entidade que é titular do activo e que, como tal, tem direito a receber os proventos económicos eventuais que ele possa proporcionar é exclusivamente a sua sócia J…, pelo que são estritamente os seus interesses específicos que são realizados ou assegurados com tais gastos suportados pela Requerente. Deste modo, entende-se terem inteira aplicação no caso sub judice as seguintes considerações constantes do acórdão proferido no proc. n.º 14/2011-T (aliás citadas no texto da decisão que fez vencimento): “As participações sociais em causa fazem, então, parte do património da (...), sócia da Requerente, e não da própria Requerente (caso em que constituiriam acções próprias), pelo que a titularidade e o aproveitamento de tal activo, a cuja aquisição é imputável o financiamento ocorrido e os encargos financeiros com ele suportados pela Requerente, sem qualquer contrapartida, redunda exclusivamente em benefício da sócia (...) e não da Requerente”; “(...) o activo financeiro consistente numa participação social representa, como regra, uma fonte susceptível de produzir rendimentos tributáveis (dividendos em face da distribuição de lucros pela empresa participada, mais-valias em face da alienação das participações, o que constitui proveitos do pertinente exercício). Precisamente, verifica-se no caso que a entidade que pode aproveitar, no seu interesse próprio, como fonte de rendimentos este activo não é a entidade que suporta, em exclusivo, os custos relativos ao financiamento da aquisição do ativo (a Requerente), mas sim uma entidade distinta, no caso a sua única sócia (...)”.

 

13. Precisamente, como os empréstimos em causa, a que se reportam os gastos financeiros em apreciação, concernem às participações sociais da Requerente na titularidade da sua sócia J…, tais gastos não se reportam à própria Requerente, não possuem qualquer conexão com a actividade empresarial por ela desenvolvida e não servem à realização do seu objecto social, mas antes satisfazem apenas o interesse individual da sua sócia, pelo que, por não serem indispensáveis para a obtenção dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora da Requerente, cujo lucro tributável se tratava de determinar, não são fiscalmente dedutíveis nos exercícios em causa em conformidade com o disposto no n.º 1 do art. 23.º do CIRC. Na verdade, os financiamentos que esses gastos remuneram, e cuja dedutibilidade fiscal nos anos de 2009 e de 2010 se apreciava nestes autos, não servem nem se destinam, assim como nunca serviram ou se destinaram, a prosseguir a actividade e o negócio da Requerente – o que vale por dizer, aplicando as proposições jurisprudenciais acima citadas (n.º 6), que esses gastos não respeitam à actividade desenvolvida pela própria sociedade contribuinte, carecem de relação com a actividade prosseguida pelo sujeito passivo, não foram incorridos no interesse da empresa, na prossecução das respectivas actividades, são estranhos à actividade da empresa, não é possível descortinar neles qualquer nexo causal com os proveitos ou ganhos, explicado em termos de normalidade, necessidade, congruência e racionalidade económica, foram incorridos para além do objectivo social, ou seja, na prossecução de outro interesse que não o empresarial.

 

14. Contra o que se acaba de concluir não me parece que possua relevo aquilo que penso ser a ratio decidendi primordial da posição que fez vencimento, a saber: “os capitais alheios obtidos pela sociedade incorporada, a título de financiamentos e suprimentos, foram integralmente aplicados (exaurindo-se) aquando da aquisição das participações sociais da sociedade, posteriormente, sua incorporante” e que: “os montantes obtidos através dos financiamentos e suprimentos, não perduraram até um momento pós-fusão, sendo, então, redirecionados na sua finalidade, mas, aquando daquela, estavam já integralmente aplicados”.

 

15. A este propósito, começo por destacar a evidência de que aquilo que se trata nos gastos em causa é do cumprimento pela Requerente de obrigações pecuniárias de pagamento de juros como retribuição pelo capital mutuado, nos termos resultantes dos mútuos onerosos celebrados, obrigações pecuniárias essas que, evidentemente, não estão “consumidas” ou “exauridas” e perduram no momento pós-fusão, pelo que é relevante apurar a sua aplicação em atenção aos requisitos estabelecidos pelo art. 23.º, n.º 1 do CIRC. A obrigação do mutuário para com o mutuante no mútuo oneroso é a restituição da quantia mutuada e o pagamento da retribuição acordada pela cedência do dinheiro, os juros estabelecidos (arts. 1142.º e 1145.º do Código Civil e 395.º do Código Comercial) – é, precisamente, a dedutibilidade dos gastos em causa que foram assumidos pela Requerente, tendo em atenção a actividade empresarial por ela desenvolvida, de que se trata na aplicação do n.º 1 do art. 23.º do CIRC.

 

16. Pois bem, dizer que os fundos obtidos com os empréstimos celebrados foram integralmente aplicados na aquisição das participações sociais da Requerente é simplesmente referir que se cumpriu o destino para que se obtiveram os fundos mutuados, sendo certo, porém, que não foram exauridas e se mantêm inteiramente as obrigações contratuais emergentes dos financiamentos aplicados nessa aquisição – só que, agora, a cargo da esfera jurídica de entidade que não é (nem podia ser) titular das participações sociais e que, portanto, não aproveita da aplicação que foi efectuada dos fundos obtidos. Ora, como acima se referiu (n.º 9), quando os fundos emprestados foram utilizados na aquisição de um certo bem, então a dedução do juro respeitante a esses fundos é determinada por referência ao uso do bem – precisamente, a Requerente não tem qualquer uso ou aproveitamento das suas próprias participações sociais pois isso cabe exclusivamente à sua sócia J…, pelo que nos períodos em causa os juros suportados não respeitam nem servem à própria actividade da Requerente.

 

17. Daí que não possa aceitar a pertinência deste argumento da integral aplicação dos fundos mutuados na aquisição das participações sociais da Requerente, que me parece alheio ao requisito jurídico-fiscal da indispensabilidade dos gastos para a obtenção dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora[32].

 

18. Por outro lado, muito embora a discussão possa respeitar mais ao horizonte pragmático de formulações linguísticas do que à substância das soluções, esclareço que me parece perfeitamente admissível invocar a ideia de “desvio” na assunção pela Requerente dos gastos em causa, porquanto a correspondente obrigação de juros não se destina, como em teoria sucedia na sociedade que originariamente a contraiu, a remunerar um financiamento que serviu para a aquisição de activos próprios, mas sim para remunerar um financiamento que serviu para a aquisição de activos de outrem[33]. Numa fórmula simplista: o gasto suportado com os financiamentos desviou-se, por força da operação de fusão realizada, de uma conexão com activos na titularidade da entidade que os suporta pois passou a respeitar a activos na titularidade de outrem – por isso, os gastos de financiamento incorridos pela Requerente nos exercícios de 2009 e de 2010 não possuem conexão económica com a actividade desenvolvida pela Requerente, isto é, estão “desviados” desta actividade. Acrescento ainda que, numa situação como a presente, se pode falar ainda em “desvio” num outro sentido bem constringente: ao assumir os indicados gastos de financiamento a Requerente fica obrigada a desviar recursos extraídos do seu património, que deveriam ser destinados à prossecução da sua actividade e à realização do seu objecto social, para o pagamento da dívida e dos encargos financeiros respeitantes à aquisição das participações sociais no seu capital por outrem.

 

19. Não acompanho igualmente a análise constante da decisão que fez vencimento de que não é exacto afirmar-se – como acima também se fez – que a entidade que pode aproveitar, no seu interesse próprio, como fonte de rendimentos o activo não é a entidade que suporta, em exclusivo, os custos relativos ao financiamento da sua aquisição, porquanto “não existe uma identidade (embora exista uma semelhança) entre o “activo” que era detido, pré-fusão, pela sociedade fundida e o “activo” que passou, pós-fusão, para a sociedade accionista daquela, dado que o efeito da fusão por incorporação não é a transmissão das participações detidas pela sociedade incorporada para o(s) respectivo(s) accionista(s), mas a atribuição pela sociedade incorporante de acções suas ao(s) accionista(s) da sociedade incorporada”, do que decorre que “a aquisição das participações da sociedade incorporante pelo(s) accionista(s) da sociedade incorporada não é contrapartida do produto dos financiamentos contraídos por esta, mas – antes – das participações que detinha(m) naquela e da qual fica(m) privado(s) por força da sua extinção, efeito da fusão”.

 

20. Desde logo, não subscrevo a construção dogmática apresentada, porquanto o activo detido pré-fusão pela sociedade fundida e o activo que passou a ser detido pós-fusão pela sociedade accionista daquela é exactamente o mesmo, independentemente do modo como se processou a sua aquisição derivada e dos títulos das acções que foram eventualmente entregues: a participação social na Requerente, que se caracteriza como o conjunto unitário de direitos e obrigações actuais e potenciais do sócio enquanto tal, sendo à aquisição deste “produto” que se dirigiram os empréstimos cujos gastos associados aqui se apreciam. Destaque-se, com efeito, que acção “é participação social, cujo valor é fracção do capital social, e que normalmente será representada por título ou escrituralmente” e que participação social constitui “unitária posição jurídica (feita de direitos e obrigações do sócio (enquanto tal)”[34].

 

21. Mas, sobretudo, observo que nada naquelas considerações constantes da decisão que fez vencimento põe em causa o que tenho por decisivo na perspectiva da concretização no caso do art. 23.º do CIRC em atenção à sua “finalidade fiscal” de determinação apropriada do lucro tributável: os gastos de financiamento em causa assumidos pela Requerente nos exercícios de 2009 e de 2010 não se inserem no âmbito do desenvolvimento da sua actividade ou da prossecução do seu escopo social, sejam lá quais os termos em que se analise o modo como a sociedade sua accionista J… passou a deter o produto dos financiamentos e suprimentos contraídos originariamente pela sociedade incorporada D…. Mais, afigura-se que tais considerações se mostram mesmo incompatíveis com o sentido prescritivo próprio do requisito da indispensabilidade dos gastos e da sua função na determinação do lucro tributável do sujeito passivo: é que atribuir proeminência argumentativa à situação do accionista da sociedade, ao modo de aquisição das participações, à “valorização das suas participações” ou à alegação, seja qual for a sua abstracta viabilidade, de que “os accionistas da sociedade incorporada teriam que abdicar das suas participações nesta, a troco de nada” consiste afinal em admitir a dedutibilidade fiscal de um gasto em razão do “interesse individual do sócio” contra o “interesse colectivo da empresa” pois é esta que suporta um gasto de financiamento a troco de nada.

 

22. Nos exercícios de 2009 e de 2010 não existe qualquer possível nexo de relação entre a actividade da Requerente e a suportação dos gastos de financiamento em apreço, assim como nunca o escopo ou o produto dos financiamentos contraídos possuiu qualquer conexão com essa actividade. Ora, é este o ponto que julgo fulcral para a admissibilidade fiscal dos gastos nos termos do requisito da indispensabilidade objecto do art. 23.º do CIRC: a sua inserção no âmbito da actividade ou do escopo societário da sociedade sujeito passivo de IRC que pretende a respectiva dedução como componente negativa na determinação do seu lucro tributável.

 

23. Afiguram-se, por isso, fundadas as asserções constantes do Relatório de Inspecção Tributária (RIT) relativo a 2009, respectiva p. 20, a p. 208 do procedimento de reclamação graciosa n.º …2014…, relativo ao exercício de 2009 (PA 2009) (cfr. igualmente RIT 2010, 2011 e 2012, respectiva p. 4, constante do procedimento de reclamação graciosa n.º …2014…, relativo ao exercício de 2010 (PA 2010)), segundo as quais “a empresa que gera fluxos financeiros positivos, a ‘A…’ suporta custos financeiros com financiamentos que não respeitam à actividade normal que desenvolve, e por outro lado, ao longo dos tempos ficará descapitalizada dos valores que pagará pelos financiamentos (amortização da dívida e pagamento de juros) cujo beneficiário é tão só accionista ‘J…', por via directa e o ‘Fundo C…’ por via indirecta, que fica, assim, titular de 100% do capital da ‘A…’” e “Sendo assim, os referidos custos financeiras não têm enquadramento na definição de custos e perdas (gastos) para efeitos de determinação do lucro tributável, uma vez que a assunção dos encargos em causa foi determinada por motivações empresariais no âmbito de uma política de interesses particulares ditada pelos responsáveis das sociedades interligadas e que só a eles diz respeito, e, nessa conformidade, tais custos não devem ser havidos por indispensáveis, em harmonia com o estatuído no art. 23° do CIRC”.

 

24. Em suma, quando um certo financiamento possui uma aplicação ou uso que é alheio ao exercício da empresa que suporta os respectivos encargos financeiros não é possível considerar que os gastos correspondentes preenchem, no exercício em que são suportados, o requisito da indispensabilidade estabelecido pelo n.º 1 do art. 23.º do CIRC pois não servem para a obtenção dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora.

 

25. A resolução jurídica do caso sub judice que, assim, tenho como correcta fica mais perfeitamente iluminada quando se dá relevo à apreciação da operação realizada, na pluralidade dos seus elementos componentes, como um manifesto caso de fusão alavancada (merger leveraged buy-out), que é, afinal, a fenomenologia que se encontra subjacente ao endividamento na base do qual a Requerente suporta os gastos financeiros respectivos. Esse endividamento e a sua localização na Requerente constitui precisamente o objectivo e âmago essencial da concretização da operação sub judice, pelo que se afigura que, na própria perspectiva específica do Direito Fiscal, uma conclusão fundada sobre o caso carece da ponderação específica das questões envolvidas nessa figura da fusão alavancada[35].

 

26. A fusão alavancada consiste, consabidamente, na operação dirigida à aquisição de uma participação totalitária ou de controlo numa certa sociedade alvo (target company) com base na assunção de endividamento muito considerável (aquisição alavancada ou leveraged buy out – LBO), em que se recorre à utilização de uma sociedade veículo (habitualmente de constituição ad hocnew corporation, newco), dotada de capital e recursos pouco significativos, para obter o financiamento para a aquisição da participação no capital social (stock acquisition) da sociedade operacional (dita sociedade alvo ou adquirida), após o que a sociedade veículo se funde com a sociedade adquirida, em ordem a que os activos e o cash flow da sociedade adquirida passem a suportar e a garantir o pagamento da dívida e respectivos encargos financeiros contraídos para a sua aquisição, acabando, assim, o custo financeiro da aquisição da participação na sociedade adquirida por recair sobre o património desta própria sociedade adquirida.

 

27. É essa operação de engenharia societária e financeira de fusão alavancada, no caso na modalidade de fusão inversa da sociedade veículo adquirente e devedora do financiamento (a D…) na sociedade operacional adquirida (a Requerente), que se observa na factualidade dada como provada, já que: i) verificou-se, numa primeira fase (11.9.2008), a formação da sociedade veículo D…, SA (cfr. factos provados 2, 7.v e 7.vii), integralmente detida pela sociedade J…, constituída em 21.7.2008, por seu turno integralmente detida pelo Fundo C… (cfr. factos provados 7.ii, 7.v, 7.viii); ii) a sociedade veículo D… recorreu a financiamento alheio, designadamente financiamento bancário junto do BES no valor total de €23.200.000,00 e suprimentos da sua accionista no valor de €19.200.000,00 e de €10.500.000,00 (cfr. factos provados 3 e 7.vii.), para a aquisição da totalidade do capital social da sociedade operacional A…, aqui Requerente, sociedade constituída em 22.1.1997 (cfr. RIT relativo a 2009, p. 2, a fls. 190 do PA 2009, bem como RIT 2010, 2011 e 2012, p. 2, a fls. 47 v. do PA 2010), com actividade operacional considerável no sector de produção e comercialização de produtos plásticos e transformados (cfr. facto provado 7.vi), aquisição essa que teve lugar mediante contrato de compra e venda das participações sociais da A… celebrado em 19.9.2008 pela D… com a B… - Sociedade Gestora de Participações Sociais, SA pelo preço de €56.086.000,00 (cfr. factos provados 1, 2, 7.i, 7.ii e 7.v); iii) em 22.12.2009 concretizou-se a fusão por incorporação da D… na Requerente, com efeitos a 1.1.2009 (cfr. factos provados 7.ix., 7.x. e RIT 2009, p. 2, a fls. 190 do PA 2009 e RIT 2010, 2011 e 2012, p. 3, a fls. 48 do PA 2010); iv) em consequência da fusão, o balanço da A… passou a evidenciar no passivo a dívida ao Banco… no montante de €23.200.000,00, correspondente ao empréstimo bancário contraído pela D… e a dívida à J… por suprimentos efectuados no valor de €19.200.000,00 (cfr. facto provado 7.xiv).

 

28. A caracterização da operação realizada como um caso de fusão alavancada mostra-se, aliás, inteiramente reconhecida pela Requerente e aceite pela Requerida, conforme se passa a evocar:

- Na PI, declara-se a este respeito o seguinte: “Entre os anos de 2008 e 2009, a Requerente participou numa operação de reorganização societária (“operação'') que se traduziu na realização de um conjunto de actos, entre os quais a entrada de um novo accionista, a inserção num novo grupo societário, a contratação de financiamentos e a fusão, por incorporação na Requerente, de outras entidades” (n.º 17 da PI), fusão por incorporação essa que “deve ser interpretada no contexto específico em que se insere e perspectivada na operação como um todo, sendo, aliás, um procedimento típico nas transacções de capital de risco que envolvem compras alavancadas (leveraged buy-out ou simplesmente LBO)” (n.º 58 da PI), sendo que: “Dentre as várias formas que a compra alavancada pode revestir, aquela que releva no caso concreto é a fusão alavancada ou merger LBO” (n.º 60 da PI), de modo que: “Vista a operação na sua globalidade, o financiamento ou alavancagem não pode ser desligado do negócio principal que suporta, que é a aquisição da sociedade target, pois da mesma forma que o empréstimo é condição essencial para a aquisição, o êxito do negócio adquirido é determinante para o pagamento do montante mutuado” (n.º 67 da PI);

- A Requerida, pelo seu lado, acolhe inteiramente a descrição e qualificação da operação que assim foi assumida pela Requerente, conforme se conclui de, na sua resposta (R.), concordar que está em causa uma “fusão no quadro de leveraged buy-out ou merger LBO, caracterizada pela aquisição financiada predominantemente com dívida, em regra, por intermédio de uma sociedade-veículo, de uma participação total (ou maioritária) no capital de uma sociedade operativa (target), seguida de uma transferência – por fusão – do endividamento contraído para a própria sociedade adquirida, por forma a que seja esta sociedade “a suportar o custo económico-financeiro da sua aquisição”, daí resultando um aumento significativo do seu coeficiente de endividamento com o consequente resultado de alavancagem financeira sobre o seu património social” (n.º 25 da R.), operação que “tem uma natureza quase exclusivamente financeira porquanto os adquirentes da sociedade target recorrem a uma parte pouco expressiva de capitais próprios, empenhando, assim, na operação essencialmente fundos obtidos de financiamento alheio, cujo custo acaba por ser suportado pela sociedade que foi objecto da operação” (n.º 26 da R.) e que “são designadas por “fusão alavancada”, pois o seu desenvolvimento processa-se em duas fases”: “[n]um primeiro momento, uma sociedade existente ou criada de novo (sociedade veículo) contrai endividamento para adquirir o controlo de outra, realizando uma aquisição alavancada ou leveraged buy out (LBO); e num segundo momento, tem lugar a fusão entre a sociedade adquirida e a sociedade adquirente, tendo em vista que o custo financeiro da operação recaia, no todo em parte, sobre o património da sociedade adquirida” (n.º 31 da R.).

 

29. Pois bem, em presença de uma operação de fusão alavancada e, assim, perante a necessidade de “interpretar a fusão no quadro de uma transação de leveraged buy-out” (para recorrer à própria afirmação da Requerente no n.º 59 da PI), julga-se indispensável convocar para a resolução jurídica do caso a proibição da assistência financeira que é determinada pelo art. 322.º do Código das Sociedades Comerciais (CSC), porquanto isso é útil para a concretização dos requisitos sobre a dedutibilidade fiscal dos gastos financeiros resultantes do corpo do n.º 1 do art. 23.º do CIRC, bem como para apreciar a legitimidade de certos fundamentos e argumentos que, a respeito desta disposição e das correcções promovidas, são discutidos nos autos[36].

 

30. Na verdade, uma fusão alavancada coloca sempre a problemática fulcral da assistência financeira, ou seja, da fenomenologia que se traduz em uma sociedade, dita assistente, financiar ou garantir, por qualquer forma, no todo ou em parte, um terceiro, sócio ou não, dito assistido, para que este adquira participações sociais naquela mesma sociedade[37]. Destaque-se, então, que o Direito nacional consagra no art. 322.º do CSC, sob a epígrafe “Empréstimos e garantias para aquisição de ações próprias”, a proibição da assistência financeira, ao dispor que: “Uma sociedade não pode conceder empréstimos ou por qualquer forma fornecer fundos ou prestar garantias para que um terceiro subscreva ou por outro meio adquira acções representativas do seu capital” (n.º 1), ressalvando-se, muito embora, que o assim disposto “não se aplica às transacções que se enquadrem nas operações correntes dos bancos ou de outras instituições financeiras, nem às operações efectuadas com vista à aquisição de acções pelo ou para o pessoal da sociedade ou de uma sociedade com ela coligada; todavia, de tais transacções e operações não pode resultar que o ativo líquido da sociedade se torne inferior ao montante do capital subscrito acrescido das reservas que a lei ou o contrato de sociedade não permitam distribuir” (n.º 2), sendo que os “contratos ou actos unilaterais da sociedade que violem o disposto no n.º 1 ou na parte final do n.º 2 são nulos”. A importância que o legislador atribui a esta proibição evidencia-se pela tutela penal que lhe confere no n.º 1 do art. 510.º do CSC[38], para além, evidentemente, da responsabilidade civil resultante do disposto no art. 72.º do CSC.

 

31. Saliente-se que esta disposição nacional proibitiva da assistência financeira constitui regulação inteiramente vigente, operativa e conforme ao Direito Europeu[39]. Em particular, elucide-se que, se é certo que a proibição da assistência financeira consagrada pela 2.ª Directiva das Sociedades[40] (cfr. respectivo art. 23.º), na qual assentou o art. 322.º do CSC, foi substituída, por força da Directiva 2006/68/CE, por uma permissão condicionada de assistência financeira, por se ter entendido que uma proibição taxativa poderia ser excessiva ao impedir as aquisições alavancadas que possam envolver adequada justificação empresarial e ser concretizadas em termos que assegurem a realização dos múltiplos interesses em jogo, isso, porém, foi feito em termos facultativos para os Estados-Membros[41], pois trata-se simplesmente de uma possibilidade que lhes é reconhecida de admitirem, no seu ordenamento jurídico, as operações de assistência financeira, desde que, todavia, sejam impostos certos requisitos e condições. Precisamente, o legislador nacional optou por não adoptar a permissão condicionada actualmente facultada pelo Direito Europeu, mantendo antes inteiramente a proibição da assistência financeira constante do art. 322.º do CSC. Como tal, é o sentido prescritivo e a intenção normativo-axiológica que assim são assumidos pelo ordenamento nacional que cumpre ao intérprete-aplicador concretizar nas tarefas de realização do Direito – tudo o oposto de hoc volo, sic jubeo, sit pro ratione voluntas.

 

32. Pois bem, a proibição nacional – de “forma extremamente severa”[42] – da assistência financeira que é determinada pelo n.º 1 do art. 322.º do CSC compreende, no seu  âmbito de aplicabilidade, a fusão alavancada[43]. Efectivamente, a fusão alavancada redunda num caso de assistência financeira quando produz o resultado intencionado da assunção do custo da aquisição das suas participações sociais pela própria sociedade adquirida, mediante conclusão da fusão entre a sociedade veículo e a sociedade adquirida (art. 112.º do CSC), com vista a que esta última fique a suportar a dívida e os encargos financeiros associados que foram contratados para a referida aquisição das suas participações sociais.

 

33. Justamente, o art. 322.º do CSC, como acima se citou (n.º 30), determina que uma sociedade não pode por qualquer forma fornecer fundos para que um terceiro adquira acções representativas do seu capital. Ora, mediante a fusão alavancada pode visar-se que a sociedade adquirida assegure com o seu próprio património e liquidez os fundos necessários para pagar o financiamento e respectivos encargos contratuais que foram contraídos com a finalidade de aquisição das suas próprias participações sociais. Deste modo, a mera interpretação literal da disposição do art. 322.º, n.º 1 do CSC legitima a recondução da fusão alavancada à figura da assistência financeira, conclusão esta que se sustenta ainda numa ponderação teleológica dos fundamentos da proibição[44]. A doutrina mais esclarecida tem, por isso, devidamente afirmado a subsunção da fusão alavancada à proibição do art. 322.º do CSC, considerando que “é inegável que o resultado material da operação se reconduz ao efeito pernicioso a que o legislador pretendeu, precisamente, obviar: o de ser a sociedade adquirida a suportar, com o seu património social, o custo da sua própria aquisição”, pelo que “não podemos deixar de subordinar os casos de fusão alavancada à proibição de assistência financeira – seja directamente, por via da sua inclusão na cláusula geral que, em Portugal, se consubstancia na expressão “ou por qualquer outra forma fornecer fundos”, seja indirectamente, por via da figura da fraude à lei (“fraus omnia corrumpit”)”[45].

 

34. Dito isto, mais do que ponderações dogmáticas globais, o que monta para os presentes autos é uma apreciação casuística da operação sub judice. Regressando assim aos contornos do caso em exame, julga-se que é inquestionável a recondução da operação em apreço ao circunstancialismo próprio da assistência financeira.

 

35. Efectivamente, todos os actos e contratos que foram realizados para a aquisição das participações sociais da Requerente, maxime a fusão alavancada executada (vd. supra n.º 27), caracterizaram-se pela finalidade comum e determinante da aquisição da Requerente em termos que conduzam a que o custo respectivo seja suportado pelo seu próprio património. Observa-se, assim, uma manifesta unidade na operação realizada, que se afere por se intencionar ab origine que sejam os bens e fundos da Requerente que constituam a garantia e base de liquidação dos financiamentos obtidos e respectivos encargos financeiros, designadamente junto da entidade bancária interveniente, motivação pela qual se procedeu à fusão por incorporação da sociedade D…, devedora originária dos financiamentos, na Requerente, de modo a que o endividamento incorrido pela sociedade veículo, adquirente da totalidade das acções da Requerente, seja assumido e liquidado pela própria Requerente.

 

36. Esta factualidade é explicitamente reconhecida pela Requerente, dado que se declara na PI que a operação deve ser perspectivada “como um todo” (n.º 58), vista “na sua globalidade” (n.º 67), “compreendida no contexto mais amplo” “na qual o financiamento é uma componente fundamental para, de um lado, permitir a aquisição da target e, do outro, optimizar a actividade da target com vista à geração de receitas que permitam amortizar o mútuo e remunerar os investidores do Fundo” (n.º 93), e se admite expressamente que: “Tendo sido decidida pelo Fundo a aquisição da Requerente, na expectativa de que esta pudesse gerar cash-flow suficiente para saldar a dívida de financiamento e ainda remunerar os investidores, foi constituída, em Setembro de 2008, a sociedade D…” (n.º 54, alegação esta com correspondência no facto provado n.º 2) e que: “foi absolutamente determinante na realização da fusão por incorporação (fusão invertida) o facto de a entidade bancária que concedeu o empréstimo à D… ter imposto, como contrapartida do mútuo, que fosse a Requerente a beneficiária da fusão, pois, como facilmente se compreende, só esta sociedade dava garantias efectivas de cumprimento” (n.º 66, alegação esta com correspondência no facto provado n.º 5). Aliás, o reconhecimento do objectivo comum e determinante de fazer suportar pela Requerente os custos dos financiamentos para aquisição das suas participações sociais mostra-se igualmente reconhecido nos requerimentos de reclamação graciosa, como se conclui das seguintes afirmações (n.ºs 24, 48 e 49, a pp. 5 e 5 v. e 7 v. do PA de 2009; n.ºs 35, 58 e 59 a p. 6 v. e 8 v. do PA 2010): “A escolha do mecanismo de concretização dessa reestruturação – fusão por incorporação – resultou de uma imposição das instituições bancárias envolvidas no financiamento concedido à D…, pois pretendiam que a garantia desse financiamento estivesse directamente relacionada com a fonte produtora dos lucros, ou seja, com o negócio da A… em si e com os respectivos activos, e não com a mera detenção das participações sociais da sociedade target”; “o credor bancário impôs que as garantias fossem oferecidas ao nível da entidade com actividade operacional e proprietária dos activos geradores de rendimentos, que era a Reclamante, e não no mero penhor das participações da A… que eram detidas pela D…”; “Nessa lógica, a solução que reuniu o consenso dos bancos e cuja execução foi por estes imposta foi concentrar na A… – sociedade com actividade operacional e geradora de proveitos com uma posição consolidada no mercado e vasta expertise na área – mediante fusão por incorporação da D… e da F…, as actividades desenvolvidas no ramo do fabrico e comercialização de produtos plásticos”[46].

 

37. Emerge, assim, dos autos que a operação de fusão alavancada sub judice foi organizada e desenvolvida global e sistematizadamente com o fito de facultar à J…, integralmente detida pelo Fundo C… (vd. factos provados 2, 3, 4, 5, 7.v, 7.ix, 7.xi, 8), a aquisição da Requerente, fazendo cair sobre o património desta o endividamento assumido com vista a essa aquisição.

 

38. Por outro lado, não se observa da factualidade provada que o endividamento que, por força da fusão, se fez incidir sobre a Requerente tenha tido outra finalidade ou resultado que não seja a concessão de assistência financeira (vd. factos provados 2, 3, 4, 5, 7.xiv), em nada respeitando os financiamentos obtidos às actividades ou operações próprias da Requerente, assim como nada se mostra demonstrado sobre quaisquer possíveis consequências desses financiamentos quanto a optimização da gestão ou à reestruturação económica da Requerente ou do seu processo produtivo (vd. factos provados 7.vii, 7.xv e 7.xvii).

 

39. Por fim, note-se que o facto de, na base última da aquisição da Requerente (que não na intervenção na própria operação, pois a adquirente foi a D… e depois, com a fusão, a titularidade ficou na J…– cfr. factos provados 3, 7.i, 7.ii, 7.v. e 8), se encontrar um fundo de capital de risco não altera os dados jurídicos da situação. Com excepção das entidades que se referem no n.º 2 do art. 322.º do CSC, é relativamente indiferente, para efeitos da aplicação da proibição da assistência financeira, a tipologia dos sujeitos (v. g. sociedades ou fundos de capital de risco, sociedades gestoras de participações sociais ou sociedades operacionais) que surgem como adquirentes. Acresce que a valia significativa da actividade de capital de risco depende da natureza do investimento e da finalidade estratégica que lhe preside[47]: se não estiver em causa a obtenção de retorno do investimento de risco pela optimização ou expansão da capacidade produtiva da sociedade adquirida para fornecer bens e serviços na economia[48] não se promove nenhum interesse geral expressivo[49].

 

40. Cabe, então, concluir que a operação de fusão alavancada realizada defronta a proibição da assistência financeira, o que importa aqui na perspectiva da resolução do específico litígio em judicium, o qual concerne à legalidade das correcções à matéria colectável dos exercícios de 2009 e 2010 da Requerente promovidas com base na desconsideração como gastos fiscalmente dedutíveis dos encargos financeiros respeitantes ao financiamento bancário e respectivos contratos de cobertura de taxa de juro e ao financiamento da J… que visaram a aquisição das participações sociais da Requerente, os quais foram originariamente contraídos pela sociedade incorporada D…, mas passaram a ser suportados pela Requerente por força da fusão realizada.

 

41. Não se trata, portanto, neste contexto processual, de aplicar o n.º 3 do art. 322.º do CSC, que determina a nulidade dos contratos ou actos que violem a proibição da assistência financeira, mas sim de verificar a adequação jurídica, no âmbito das correcções promovidas pela AT, da concretização do requisito da indispensabilidade dos custos previsto pelo n.º 1 do art. 23.º do CIRC (na redacção aplicável). Desta forma, a detecção, no quadro fáctico da fusão alavancada em causa, de uma operação de assistência financeira é relevante para a decisão da lide na medida em que isso envolve mais uma conexão de sentido capaz de iluminar a apreciação jurídico-fiscal da concretização do disposto no referido art. 23.º do CIRC.

 

42. Aproveite-se para dizer, nesta sequência, que, diferentemente do que se sustenta na decisão que fez vencimento, parece inviável qualquer ligação e/ou sobreposição entre as previsões normativas do n.º 2 do art. 38.º da LGT e do art. 322.º do CSC, pois o n.º 3 do art. 322.º do CSC prescreve uma nulidade (civil) directa dos actos e contratos que violem a proibição da assistência financeira, o que se diferencia inteiramente – e é logicamente antecedente (cfr. n.º 1 do art. 38.º da LGT) – da ineficácia no âmbito tributário que é estatuída pelo n.º 2 do art. 38.º da LGT[50].

 

43. Insiste-se, pois, que, num caso, como o presente, em que se trata da verificação da legalidade das correcções promovidas com base na recusa da dedução fiscal dos gastos financeiros por não satisfação dos critérios do n.º 1 do art. 23.º do CIRC (o que constitui manifestação da competência da AT, de exercício obrigatório, de fiscalização da conformidade da situação tributária dos contribuintes com as regras fiscais aplicáveis – cfr. art. 44.º, n.º 1, al. a) do CPPT e art. 2.º, n.ºs 1 e 2 do RCPIT), a relevância da consideração da figura da assistência financeira reside no facto de os fundamentos materiais que constituem a ratio[51] da sua proibição deporem igualmente para a transposição concretizadora para a situação dos autos do sentido normativo objectivado naquela disposição do n.º 1 do art. 23.º do CIRC – o que, reconheça-se, não é senão o chamamento hermenêutico do elemento sistemático da interpretação determinado pela necessidade de atender à “unidade do sistema jurídico” (art. 9.º, n.º 1 do Código Civil), o que “impõe que se passe do preceito para o texto legal que o contém, deste para o respectivo subsistema e, finalmente, deste para o sistema jurídico”, com o que se possibilita “evitar contradições valorativas dentro do sistema, pois que através dele consegue obviar-se a que os mesmos factos ou as mesmas situações sejam valoradas de forma desigual em duas leis distintas”[52].

 

44. Pois bem, a invocação, neste âmbito, da proibição da assistência financeira implica, desde logo, excluir as alegações assentes nos princípios da liberdade de empresa e de gestão fiscal que se apresentam nos autos, em que se pretende que as “vias de financiamento como o esquema de organização e reestruturação empresarial” “se inserem nas manifestações típicas da liberdade de gestão empresarial e, consequentemente, da liberdade de gestão fiscal das empresas” e que a aplicação do art. 23.º do CIRC efectuada no procedimento tributário obsta “a vias de financiamento e a esquemas de organização e reestruturação empresarial que, à partida e em abstracto, não podem ter-se por vias ou esquemas excluídos do universo das opções empresariais”[53]. A utilização do esquema de financiamento em causa para a aquisição alavancada da Requerente, por ser vedado pela proibição da assistência financeira, pressupõe a obtenção de objectivos que não correspondem a um interesse digno de tutela jurídica no nosso ordenamento, o que envolve um limite externo à autonomia privada, pelo que não se pode dizer em abstrato coberto por qualquer princípio da liberdade de gestão empresarial ou fiscal[54], seja qual for a respetiva consistência. Julga-se, antes, mais apropriada a apreciação de MENEZES CORDEIRO[55], que, reportando-se às técnicas de Leveraged Buyouts cuja “ideia básica consiste em obter créditos a curto prazo, dando como garantia os próprios bens da empresa a adquirir; consumado o takeover, as dívidas são satisfeitas à custa do cash-flow, das reservas ou dos próprios bens da empresa tomada”, observa que “[e]m termos económicos, tal prática envolverá no mínimo, uma descapitalização da sociedade visada” e conclui: “Com uma estrutura marcadamente especulativa, ela merece a desconfiança do Direito e dos organismos reguladores do mercado”.

 

45. Mas, sobretudo, a ponderação das razões subjacentes à proibição da assistência financeira possibilita iluminar os juízos exigidos pelo art. 23.º, n.º 1 do CIRC, para efeitos da dedutibilidade fiscal dos gastos financeiros, de indispensabilidade e de aplicação na exploração, dos quais estava dependente a resolução da lide.

 

46. Assinala a doutrina, a este respeito, que os fundamentos na base da proibição da assistência financeira são complexos e variados, podendo reconduzir-se às seguintes razões fulcrais, que devem ser tidas todas, em conjunto, como relevantes nos termos de uma ratio complexa[56]: reforçar o regime limitativo da aquisição de acções próprias, de modo a obviar à sua defraudação; prevenir abusos por parte da administração no que concerne à composição da estrutura accionista da sociedade, bem como quanto à possível afectação da igualdade entre os sócios por tratamentos de favor; evitar a manipulação do mercado bolsista, pelo aumento falseado da procura de acções em ordem à subida artificial da respectiva cotação; defender o património social, para salvaguarda da sua função produtiva e protecção do regime do capital social, em ordem à tutela do interesse dos credores. Em função desta pluralidade de razões, que manifestam que a assistência financeira “comporta ou contém, de forma latente, o risco de uma possível distorção da realidade societária, tanto na sua vertente patrimonial, como administrativa ou política”, afirma-se mesmo que está subjacente ao regime respectivo “uma presunção iuris et de iure da ilicitude da assistência financeira, uma presunção abstracta da lesividade da operação que levou o legislador a determinar a proibição de todos os negócios de financiamento para a aquisição de acções da sociedade[57].

 

47. Para o presente processo interessa salientar, na “ratio complexa” subjacente à norma proibitiva, o objectivo de protecção do património societário em ordem ao desenvolvimento da sua função produtiva, o qual radica no facto de as operações de assistência financeira e, portanto, a assunção do custo de aquisição das suas próprias participações sociais pela sociedade adquirida, conduzirem a que sejam extraídos do património da sociedade adquirida bens ou fundos que deveriam ser destinados à prossecução da sua actividade e à realização do seu objecto social e que, em vez disso, são afectos ao pagamento da dívida e dos encargos financeiros respeitantes à aquisição das suas próprias participações sociais. A função de produção desenvolvida pelo capital respeita à actividade empresarial “no seu aspecto positivo, dinâmico, propulsor, enquanto representativo do conjunto dos meios disponíveis para o exercício da empresa”, o que pressupõe que “a sociedade surja e opere dotada de meios próprios em alguma medida proporcionados à dimensão da empresa, adequados à actividade programada ou exercida[58]. Ora, como já se escreveu, “[a]dmitir a assistência financeira prestada pela sociedade para permitir ou facilitar a compra das suas acções por um terceiro é aceitar que os recursos sejam desviados – do exercício, no comum interesse de todos os sócios, da actividade que constitui o objecto social da sociedade – para outros fins que não se prendem com a função produtiva do capital, aptos a beneficiar os interesses de alguns indivíduos (sócios ou terceiros), que pretendem adquirir ou aumentar a sua participação na sociedade ou mesmo da administração[59]. Deste modo, com a proibição da assistência financeira “pretende-se evitar a instrumentalização do património social a favor daqueles que pretendem aceder à condição de accionistas, instrumentalização essa que, em função do conteúdo económico específico do acto de financiamento constitutivo da assistência, pode conduzir a eventuais prejuízos para a situação económica da sociedade[60].

 

48. A proibição da assistência financeira envolve, pois, a protecção da empresa e da sua solvência, porquanto nessa operação pode estar implicada a utilização do património da sociedade em termos contrários ao interesse social, dado o desvio dos fundos e meios societários para escopos alheios à actividade social. A necessidade de despender recursos para o serviço da dívida relacionada com a aquisição das participações sociais da própria sociedade adquirida consubstancia uma obrigação alheia às operações normais da sociedade, que obsta ao uso alternativo dos meios societários para os negócios próprios da prossecução do objecto social.

 

49. Pois bem, sabido que no cerne da desconsideração fiscal dos gastos se encontra a sua dispensabilidade para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, é evidente o contributo que a ratio indicada da proibição da assistência financeira possui para a concretização do n.º 1 do art. 23.º do CIRC: a assunção de endividamento e dos respectivos encargos contratuais para possibilitar ou assegurar a propriedade da sociedade a terceiros constitui afectação do respectivo património social para finalidades ou actuações alheias à actividade empresarial ou à realização do objecto social, pelo que os gastos financeiros em causa não se podem considerar indispensáveis para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora.

 

50. Deste modo, dissentindo da posição que fez vencimento, concluo, atendendo igualmente à configuração como assistência financeira da operação de fusão alavancada sub judice, que não são fiscalmente dedutíveis os gastos financeiros associados aos financiamentos em causa: quando uma sociedade afecta o seu património para serviço de vicissitudes que não respeitam à gestão e ao desenvolvimento dos seus negócios, mas sim à aquisição por outrem de participação no seu capital social, portanto, em vicissitudes relativas à atribuição da sua titularidade a outrem, os gastos que nisso estejam envolvidos não satisfazem o requisito da indispensabilidade para a obtenção dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora que é imposto pelo n.º 1 do art. 23.º do CIRC.

 

51. Eis as razões essenciais pelas quais não posso subscrever a solução que fez vencimento de que são fiscalmente dedutíveis os gastos de financiamento suportados nos exercícios de 2009 e de 2010 pela Requerente respeitantes à aquisição das suas próprias participações sociais.

 

52. Numa afirmação famosa MICHAEL J. MCINTYRE escreveu o seguinte: “From the perspective of the tax collector, the deduction for interest is the most dangerous of all the deductions. Unless properly curbed, it will allow taxpayers to deplete their current taxable income by accelerating their deductions for capital costs into the current period, by generating artificial losses, by converting personal expenditures into deductible costs of earning, and by pushing their income offshore. In the long run, a country that does not impose appropriate limitations on the interest deduction is out of the tax collection business. It may have a tax system in form, but in reality it is making a plea for voluntary contributions to the fisc”. Não posso deixar de dizer que receio bem que a posição que fez vencimento constitua uma via aberta para este resultado, o qual, justamente, a disposição do art. 23.º do CIRC (nas redacções aplicáveis) visou obviar com a consagração do requisito da indispensabilidade.

 

 

Lisboa, 21 de Janeiro de 2016.

 

 

 

 

 

João Menezes Leitão

 

 

 

 



[1] E disponíveis para consulta em www.caad.org.pt.

[2] Cfr. alínea f) da fundamentação de direito (pontos 64 e ss.).

[3] Não estará aqui em causa, julga-se, uma mera imprecisão conceitual ou vocabular, já que o termo empregue decorre de um entendimento de direito – que não se subscreve – segundo o qual a al. c) do n.º 1 do artigo 23.º do CIRC explicitaria a exigência de “que esses juros de capitais alheios são “aplicados na exploração””, pelo que se deverá ter por deliberada a utilização do termo “custos”, na frase transcrita, reportando-se aos juros suportados pela Requerente. De resto, da própria decisão em análise, previamente, consta que “não cabe aqui senão verificar, como refere a própria Requerente, se os fundos obtidos foram concretamente aplicados em fins estranhos à atividade da empresa que deles é devedora.”, bem como que “cabe verificar, na base de todos os factos e circunstâncias relevantes, a afetação efetiva e concreta do empréstimo de que os juros suportados são a remuneração”. Contudo, objectivamente, não houve qualquer alteração na aplicação/afectação dos “fundos obtidos”/“empréstimo”/“capitais alheios” (termo utilizado pela al. c) do n.º 1 do artigo 23.º do CIRC que se poderá considerar equivalente àqueles) entre a altura em que, na própria lógica do texto, os custos eram dedutíveis (na esfera da fundida), e a data do facto tributário (período pós-fusão). Daí que, no processo argumentativo se transmutem as expressões inicialmente utilizadas (“fundos obtidos”; “empréstimo”) na expressão “custos” (que não tem com aquelas qualquer equivalência), de modo a estabelecer uma ligação fenomenológica com o presente (tempo utilizado na proposição transcrita) do facto tributário, onde o único evento relacionável com o problema decidendo é a dedução dos custos/juros. Esta transmutação é perfeitamente perceptível na ligação estabelecida entre a proposição de que a “dedutibilidade fiscal supõe, então, que os custos incorridos com os encargos financeiros possuam uma conexão de causalidade com a atividade empresarial desenvolvida” (sublinhado nosso), e a citação de MARIA DOS PRAZERES LOUSA, segundo a qual “não podem ser aceites como dedutíveis os juros suportados por uma empresa relativamente a empréstimos em que manifestamente se comprove que os fundos obtidos são “desviados da exploração e aplicados em fins estranhos à mesma”” (sublinhado nosso). Face à evidência factual de que os “fundos obtidos”/“empréstimo”/“capitais alheios” tinham já sido aplicados, foi então empregue a expressão “custos”, referindo-se aos juros suportados, em lugar daquelas.

[4] Note-se contudo que, como infra se verá, considera-se distinta a questão da aplicação dos "capitais alheios" (que relevará ao nível da al. c) do n.º 1 do artigo 23.º do CIRC), da questão do desvio do produto de tal aplicação (que relevará ao nível do corpo do n.º 1 do artigo 23.º do CIRC).

[5] Cfr. a este propósito, a nota 17, infra.

[6] Não é, pelo exposto, exacto o afirmado pela AT, quando refere que “no âmbito da fusão inversa, em que a Requerente foi a incorporante, as suas acções, que integravam o activo da D…, foram entregues, por troca das partes sociais desta sociedade, à sua sócia – a sociedade J….” (artigo 87. da resposta), e que “os activos nucleares desta sociedade [D…] foram transferidos para outra sociedade (J…).” (artigo 90. da resposta). De facto (e a tal não obstará a eventual circunstância de, fisicamente, ter existido uma transferência de acções da D… para a J…), as acções da Requerente não são entregues à J… por troca com as que eram detidas pela D…, mas por troca com as acções da própria D…, que a J… detinha, e as quais, por via do processo de fusão, viu extinguirem-se.

[7] Do critério operativo elegido no acórdão em análise decorre que assim que para ser aceitável, à luz daquele, a dedutibilidade dos gastos em causa, os accionistas da sociedade incorporada teriam de abdicar das suas participações nesta, a troco de nada.

[8] Mais o valor próprio da sociedade incorporada, se o houver.

[9] E de outros passivos, igualmente se os houverem.

[10] Cfr. pontos 7-xv. e ss.

[11] Disponível para consulta em www.dgsi.pt.

[12] Idem.

[13] Note-se que não se está aqui a trabalhar um cenário hipotético em que a operação de fusão teria de ser realizada noutros termos. O que se está é a afirmar uma identidade de situações, na óptica dos tópicos relevantes para a abordagem da questão decidenda, entre a situação verificada e uma outra, relativamente à qual não se colocam dúvidas sobre a resposta a dar à mesma questão.

[14] Comentário ao acórdão do Supremo de 9 de Outubro de 1985, RLJ n.º3743, p. 39-43.

[15] Não obstante a circunstância de não constituir fundamento dos actos tributários em crise a motivação não empresarial da fusão, sempre se dirá que não é exacto o afirmado pela AT, em sede arbitral, ao referir que “A realidade dos factos, porém, não permite descortinar os efeitos positivos advenientes da fusão para a exploração da sua actividade. Antes, pelo contrário, é certo que os fundos não foram utilizados na exploração.” (cfr. artigo 33.º da resposta). Com efeito, resulta dos factos que, previamente à fusão, a Requerente suportava despesas de gestão, a favor da sociedade que veio a incoroporar, despesas essas que, com a fusão, deixou de suportar. Questão diferente, mas que, nos termos da jurisprudência já elencada, escapará ao crivo da AT, será a de saber se a decisão de proceder à fusão foi boa ou má.

[16] Onde, salvo melhor opinião, se situaria a sede própria para considerações relativas a uma possível situação de, em fraude à lei, se estar a colocar uma sociedade a financiar a sua própria aquisição, em violação do disposto no art.º 322.º/1 do CSC, e na Segunda Directiva 77/91/CEE do Conselho, de 13 de Dezembro de 1976 (art.º 23.º), vigente à data do facto tributário, conforme, a final, se desenvolverá.

[17] Considera-se, assim, que a questão do desvio do produto da aplicação dos capitais alheios mutuados, será distinta da questão de tal aplicação. Uma coisa será, então, a aplicação dos capitais alheios na exploração da entidade que contraiu o financiamento, que, verificada, determinará o preenchimento da alínea c) do n.º 1 do artigo 23.º do CIRC, que produzirá os respectivos efeitos, nomeadamente no que diz respeito à presunção de indispensabilidade dos gastos “para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora”. Outra coisa será o desvio do produto da aplicação dos capitais alheios mutuados, para fins não empresariais, que poderá relevar, não já ao nível da al. c) referida, mas – antes – ao nível do corpo do n.º 1 da mesma norma, enquanto infirmação da presunção decorrente daquela al. c).

O que desencadeia a presunção de indispensabilidade é a aplicação dos capitais; mas o juízo de dedutibilidade reporta-se aos juros suportados. Assim, estes presumir-se-ão dedutíveis se os capitais alheios a que respeitam tiverem sido aplicados na exploração. Esta aplicação, contudo, não equivale nem se identifica com a indispensabilidade daqueles; trata-se, antes, de um facto conhecido do qual se retira um facto desconhecido (presumido): o de que os encargos financeiros, no momento em que o são, são suportados no interesse da empresa. Daí que a demonstração de que o produto da aplicação dos capitais alheios foi “desviado”, na sua utilização, para fins extra-empresa, não signifique que, afinal, aqueles (os capitais alheios) foram aplicados fora da exploração. Aquela demonstração significa, isso sim, que, não obstante os capitais alheios terem sido aplicados na exploração, os encargos suportados, no momento em que o são, não o são no interesse da empresa, pelo que a (presumida) indispensabilidade, no caso e nesse período, então, não se verifica. Assim se demonstra, igualmente, que, na perspectiva adoptada, o “teste da indispensabilidade dos gastos”, como propugna a AT, é efectuado em “cada período de tributação (...) não sendo este exercício apenas efectuado no momento em que o empréstimo é contraído” (cfr. artigo 69.º e ss. da Resposta). Com efeito, o referido teste, é efectuado em todos os exercícios, não obstante o facto conhecido em que assenta a presunção que responde, em primeira linha, a tal teste, se reporte ao momento em que o empréstimo foi contraído.

[18] De onde decorrerá, desde logo, salvo melhor opinião, estar vedado ao Tribunal considerá-la. Com efeito, como tem sido repetidamente afirmado pelo STA, “É exclusivamente à luz da fundamentação externada pela AT quando da prática da liquidação adicional de IVA que deve aferir-se a legalidade desse acto tributário.” (Ac. do STA de 23-09-2015, proferido no processo 01034/11), pelo que o Tribunal se terá de ater, na apreciação da legalidade do acto em causa, aos fundamentos, quer de facto, quer de direito, externados naquele.

[19] E, como tal, não sujeita a contraditório.

[20] Correspondente ao n.º 1 do artigo 25.º da actual Directiva 2012/30/EU do Conselho, de 25 de Outubro de 2012.

[21] Que, de resto, contém-se na epígrafe “Empréstimos e garantias para aquisição de acções próprias”, e proscreve a concessão de empréstimos ou a prestação de garantias.

[22] Estando-se a falar de fraude, aqui, como na nota 16, supra, não haverá, julga-se, qualquer sobreposição entre a norma, no caso, do artigo 322.º do CSC e do artigo 38.º/2 da LGT, na medida em que por meio desta se visará realizar a proibição consagrada no primeiro, que por um meio de actuação fraudulenta possa ter sido formalmente evitada. Com efeito, uma coisa será a prática de um acto de assistência financeira proibida, que será nulo nos termos do artigo 322.º/3 do CSC e, como tal, não convocará a aplicação da cláusula geral antiabuso. Outra coisa serão situações em que, sem que haja qualquer acto praticado em violação daquela norma, fraudulentamente, são obtidos os mesmos resultados económicos que a mesma visa proibir. Evitada, dessa forma a proibição legal, e a nulidade daquela decorrente, será, crê-se, a CGA o meio próprio de realizar a legalidade tributária.

[23]Fusão Inversa e Neutralidade (Da Administração) Fiscal”, Fiscalidade N.º 34 – Revista de Direito e Gestão Fiscal.

[24] A quantificação da obrigação tributária. Deveres de cooperação, autoavaliação e avaliação administrativa, 2.ª ed., Lisboa, 2000, p. 238.

[25] MOURA PORTUGAL, “A dedutibilidade dos custos na recente jurisprudência fiscal” in AAVV, Reestruturação de empresa e limites do planeamento fiscal, Coimbra, 2009, p. 213.

[26] Recorde-se que, em relação ao ano de 2009, o n.º 1 do art. 23.º do CIRC, no que aqui importa, dispunha o seguinte:

1 — Consideram-se custos ou perdas os que comprovadamente forem indispensáveis para a realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, nomeadamente: (...)

c) Encargos de natureza financeira, como juros de capitais alheios aplicados na exploração, descontos, ágios, transferências, diferenças de câmbio, gastos com operações de crédito, cobrança de dívidas e emissão de acções, obrigações e outros títulos e prémios de reembolso; (...)”.

Com o Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13.07, aplicável aos períodos de tributação iniciados em ou após 1.1.2010 (cfr. respectivo art. 9.º), que republicou o CIRC e adaptou a terminologia fiscal à contabilística adoptada nas normas internacionais de contabilidade e no sistema de normalização contabilística (cfr. respectivo art. 8.º), o n.º 1 do art. 23.º passou a ter a seguinte redacção:

1 — Consideram-se gastos os que comprovadamente sejam indispensáveis para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, nomeadamente: (...)

c) De natureza financeira, tais como juros de capitais alheios aplicados na exploração, descontos, ágios, transferências, diferenças de câmbio, gastos com operações de crédito, cobrança de dívidas e emissão de obrigações e outros títulos, prémios de reembolso e os resultantes da aplicação do método do juro efectivo aos instrumentos financeiros valorizados pelo custo amortizado; (...)”.

[27] SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, 3.ª ed., Coimbra, 2007, p. 384.

[28] Este último elemento assume particular significado nos empréstimos cash on hands que não possuem finalidade contratualmente especificada (como sucede com os mútuos de escopo). Bem se compreende sobretudo em atenção a tais empréstimos que a al. c) do n.º 1 do art. 23.º exija que os juros respeitem a “capitais alheios aplicados na exploração”.

[29] Assinale-se, a este respeito, que no texto da decisão que fez vencimento o enunciado conclusivo constante do acórdão proferido no indicado proc. n.º 14/2011-T, nos termos do qual “os custos incorridos com o empréstimo em apreciação não são aplicados na exploração da própria Requerente, na sua actividade empresarial, nem servem à manutenção da fonte produtora de rendimentos”, é sujeito à crítica de “imprecisão com consequências relevantes nas conclusões a retirar”, porquanto: “os “custos” não são, ontologicamente, susceptíveis de “aplicação”. Aquilo que será, isso sim, passível de aplicação é a contrapartida desses custos, o que, no caso e na terminologia da al. c) do n.º 1 do CIRC, serão os “capitais alheios” obtidos por via dos financiamentos e suprimentos. Sucede que, no quadro argumentativo em que se situa o considerando em causa, a menção a “custos” não é (...) fungível com a menção a “capitais alheios””. Julga-se que esta crítica respeita mais a elementos vocabulares do que às soluções substantivas que se pretenderam comunicar linguisticamente naquele aresto. Por isso, deixando de lado a invocação da polissemia do vocábulo “aplicação” (que abrange significados como “acomodação”, “destino”, “execução”, “emprego”, “investimento”, “serventia” - cfr., por exemplo, o verbete pertinente no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa e no Dicionário Cândido de Figueiredo) ou da figura da elipse, explicita-se aqui, simplesmente, que, com a formulação “os custos incorridos com o empréstimo em apreciação não são aplicados na exploração da própria Requerente, na sua atividade empresarial, nem servem à manutenção da fonte produtora de rendimentos”, se está a asseverar, como se declara na proposição subsequente desse mesmo acórdão, que: “Tais custos, embora inscritos na contabilidade da Requerente, não beneficiam a sua atividade nem o respetivo interesse empresarial, mas antes aproveitam a um terceiro, no caso a sua sócia única D... SGPS”, o que se deve, pensa-se que claro pareceria, ao facto de as quantias mutuadas, de cuja disponibilização tais gastos com juros são retribuição, terem tido como destino e aplicação a aquisição de uma participação de controlo na própria sociedade contribuinte, de que esta, pois, não é titular e de que não beneficia nem pode beneficiar para o desenvolvimento da sua atividade e a prossecução do seu objecto e, consequentemente, para a obtenção de rendimentos. Elemento diferente – e que, portanto, é um non sequitur da crítica antecedente – é o argumento de que “os capitais alheios obtidos pela sociedade incorporada, a título de financiamentos e suprimentos, foram integralmente aplicados (exaurindo-se) aquando da aquisição das participações sociais da sociedade, posteriormente, sua incorporante”, argumento este que é considerado autonomamente infra no texto.

[30] Vd. a este respeito, os clássicos MICHAEL J. MCINTYRE, “An Inquiry Into the Special Status of Interest Payments” in Duke Law Journal 1981, p. 771; MICHAEL J. MCINTYRE, “Tracing Rules and the Deduction for Interest Payments: A Justification for Tracing and a Critique of U.S. Tracing Rules” originariamente em Wayne Law Review 39 (1992), pp. 67 e segs., que citamos de JOHN G. HEAD/RICHARD KREVER (eds.), Taxation Towards 2000, Sydney 1997, excerto do cap. 17, pp. 7 e segs.; ARNOLD, “General Report” in Cahiers de Droit Fiscal International, vol. 79a (1994), Deductibility of interest and other financing charges in computing income, p. 500.

[31] ARNOLD, ob. cit., p. 500.

[32] Afigura-se-me ainda, se bem aprecio este argumento, que o mesmo suscita inconsistências na sua concretização: se os capitais alheios obtidos não tiverem sido logo integralmente aplicados na aquisição de um bem, porquanto, por exemplo, o preço foi objecto de pagamento em prestações, a dedutibilidade fiscal dos juros pagos em relação ao endividamento global parece que já poderá ser questionada em relação às prestações vincendas; se os bens tiverem sido alienados com reserva de propriedade, em atenção a um qualquer evento relevante (art. 409.º do Cód. Civil), ainda que os fundos obtidos tenham sido integralmente exauridos, parece que já poderá ser questionada a dedutibilidade fiscal dos juros correspondentes.

[33] Recorde-se que activos, nos termos da Estrutura Conceptual do Sistema de Normalização Contabilística (§ 49) “é um recurso controlado por uma entidade como resultado de acontecimentos passados e do qual se espera que fluam benefícios económicos futuros para a entidade”.

[34] As citações pertencem a COUTINHO DE ABREU, Curso de Direito Comercial, vol. II, 4.ª ed., Coimbra, 2013, respectivamente p. 226 e p. 222.

[35] Isto mesmo é perfilhado em parecer junto aos autos pela Requerente, pois nele se escreve o seguinte (p. 14): “esta fusão não pode ser analisada como se estivéssemos perante um mero esquema de reestruturação empresarial, devendo, em vez disso, sublinhar-se a operação financeira especial que lhe está subjacente, a qual nos permitirá ainda analisar o critério da “indispensabilidade” dos custos com a operação para efeitos da admissibilidade da respectiva dedução (...)”.

[36] Na decisão que fez vencimento declara-se que tal questão não constitui fundamento do acto tributário objecto da presente acção arbitral e que não foi suscitada pelas próprias partes. Tal declaração não pode ser acolhida: do que se trata com a consideração da figura da assistência financeira é apenas da integração e adequada aplicação do fundamento atinente à não dedutibilidade fiscal de juros por ausência do requisito da indispensabilidade, que constitui a fundamentação do acto tributário relativo a 2009 e a base da autoliquidação relativa a 2010; por outro lado, a Requerente invoca a licitude da operação realizada, com citação (ainda que nem sempre correcta) de doutrina sobre a matéria, juntando ainda dois pareceres em que a temática surge referenciada. Em qualquer caso, deve-se notar que, na missão de fiscalização jurídico-material da actuação administrativa, cabe ao Tribunal interpretar, segundo os critérios hermenêuticos relevantes, as normas ou princípios jurídicos aplicáveis, com total independência das posições das partes, pois iura novit curia. Como tal, no âmbito da apreciação das questões suscitadas, o Tribunal pode utilizar os argumentos que julgue adequados ou relevantes, não estando, de modo nenhum, limitado pelo discurso retórico apresentado pelas partes. Aliás, não foi senão isto que se fez na decisão que teve vencimento, que desenvolveu um discurso perfeitamente autónomo em relação às posições das partes.

[37] Vd. MARIANA DUARTE SILVA, “Assistência financeira – no âmbito das sociedades comerciais” in RDS, II (2010), n.ºs 1/2, pp. 145-146; PAULO DE TARSO DOMINGUES, “Proibição de “assistência financeira” no contexto dos mecanismos de proteção de credores” in Ab Instantia, ano I (2013), n.º 2, p. 53; ISABEL PINHEIRO TORRES, “Da aplicação da proibição de assistência financeira às sociedades por quotas” in Estudos Instituto do Conhecimento AB, n.º 3 (2015), p. 137.

[38] Onde se determina que: “O gerente ou administrador de sociedade que, em violação da lei, subscrever ou adquirir para a sociedade quotas ou ações próprias desta, ou encarregar outrem de as subscrever ou adquirir por conta da sociedade, ainda que em nome próprio, ou por qualquer título facultar fundos ou prestar garantias da sociedade para que outrem subscreva ou adquira quotas ou ações representativas do seu capital, é punido com multa até 120 dias”.

[39] Impõe-se fazer aqui esta menção em atenção ao facto de nos pareceres juntos aos autos pela Requerida esta regulação nacional surgir ou inteiramente desprezada ou dogmaticamente desamparada, em termos que, como resulta do texto, se julga não poderem ser acolhidos.multiplos邽﷽﷽﷽﷽﷽﷽﷽﷽dos.nsiderada em termos que, como resulta do texto, se julga n

[40] Segunda Directiva 77/91/CEE do Conselho, de 13 de Dezembro de 1976, tendente a coordenar as garantias que, para protecção dos interesses dos sócios e de terceiros, são exigidas nos Estados-Membros às sociedades, na acepção do segundo parágrafo do artigo 58.º do Tratado, no que respeita à constituição da sociedade anónima, bem como à conservação e às modificações do seu capital social, a fim de tornar equivalentes essas garantias em toda a Comunidade. Esta Directiva foi revogada pela Directiva 2012/30/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Outubro de 2012, tendente a coordenar as garantias que, para protecção dos interesses dos sócios e de terceiros, são exigidas nos Estados-Membros às sociedades, na acepção do segundo parágrafo do artigo 54.° do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, no que respeita à constituição da sociedade anónima, bem como à conservação e às modificações do seu capital social, a fim de tornar equivalentes essas garantias em toda a Comunidade (reformulação), a qual, como resulta da sua designação, procedeu à reformulação da Segunda Directiva, incluindo, pois, as alterações que tinha sofrido, designadamente por força da Directiva 2006/68/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de Setembro de 2006, que altera a Directiva 77/91/CEE do Conselho, no que respeita à constituição da sociedade anónima, bem como à conservação e às modificações do seu capital social.

[41] Cite-se o Considerando (5) da Directiva 2006/68/CE: “Os Estados-Membros deverão ter a faculdade de permitir que as sociedades anónimas concedam assistência financeira tendo em vista a aquisição das suas acções por terceiros até ao limite das reservas passíveis de distribuição da sociedade, de forma a reforçar a flexibilidade no que diz respeito aos direitos que acompanham a participação no capital das sociedades. Esta possibilidade deverá ser objecto de garantias, tendo em conta o objectivo de protecção dos accionistas e terceiros prosseguido pela presente directiva”.

[42] Para citar a expressão de PAULO DE TARSO DOMINGUES, ob. cit., p. 59.

[43] Não se deixe de assinalar que esta conclusão se mostra reforçada com a comparação com ordenamentos próximos do nosso, como o espanhol e o italiano, que consagraram a permissão condicionada da assistência financeira e regularam, em termos específicos, a fusão alavancada. É que tais ordenamentos jurídicos (cfr. em Espanha o art. 35 da Ley 3/2009, de 3 de Abril, de Modificaciones Estructurales de las Sociedades Mercantiles, epigrafado “Fusión posterior a una adquisición de sociedad con endeudamiento de la adquirente”, e em Itália o art. 2501-bis do Codice Civile, epigrafado “Fusione a seguito di acquisizione con indebitamento”), ao regulamentarem a fusão alavancada, sujeitaram-na a uma disciplina exigente, com condições e garantias específicas, designadamente uma tramitação particular, com satisfação de específicas obrigações informativas e de tutela do património social, de modo a reforçar a responsabilidade dos administradores e a assegurar a situação financeira da sociedade. Cite-se, a título exemplificativo, o referido art. 35 da Ley 3/2009: “En caso de fusión entre dos o más sociedades, si alguna de ellas hubiera contraído deudas en los tres años inmediatamente anteriores para adquirir el control de otra que participe en la operación de fusión o para adquirir activos de la misma esenciales para su normal explotación o que sean de importancia por su valor patrimonial, serán de aplicación las siguientes reglas: 1.ª El proyecto de fusión deberá indicar los recursos y los plazos previstos para la satisfacción por la sociedad resultante de las deudas contraídas para la adquisición del control o de los activos. 2.ª El informe de los administradores sobre el proyecto de fusión debe indicar las razones que hubieran justificado la adquisición del control o de los activos y que justifiquen, en su caso, la operación de fusión y contener un plan económico y financiero, con expresión de los recursos y la descripción de los objetivos que se pretenden conseguir. 3.ª El informe de los expertos sobre el proyecto de fusión debe contener un juicio sobre la razonabilidad de las indicaciones a que se refieren los dos números anteriores, determinando además si existe asistencia financiera. En estos supuestos será necesario el informe de expertos, incluso cuando se trate de acuerdo unánime de fusión”.

A imposição destas condições específicas nestes sistemas jurídicos revela bem a consciência de que estão envolvidos na fusão alavancada os perigos patrimoniais típicos da assistência financeira, a carecer de requisitos particulares de proteção dos interesses em causa, por não serem suficientes os esquemas normais aplicáveis em termos gerais às fusões. Por isso, num sistema como o nosso, de rígida proibição da assistência financeira, afiguram-se inviáveis as posições que procuram encastelar uma pretensa benignidade da fusão alavancada com a invocação da aplicação dos requisitos gerais das fusões.

[44] Vd. o que se refere à frente no texto sobre a ratio da proibição da assistência financeira.

[45] Vd. INÊS PINTO LEITE, “Da proibição de assistência financeira: o caso particular dos leveraged buy-outs” in DSR, ano 3, vol. 5 (Mar. 2011), pp. 163 e 164. Com a mesma posição, vd. também PAULO DE TARSO DOMINGUES, ob. cit., pp. 70-71.

[46] Assinale-se ainda que, na situação dos autos, foram também prestadas garantias específicas sobre os activos da sociedade adquirida em relação ao financiamento atinente à aquisição das suas participações, pois lê-se no Anexo às Demonstrações Financeiras em 31 de Dezembro de 2009 da Requerente (a fls. 165 e segs. do PA 2009), respectivo ponto n.º 32, epigrafado “Garantias Prestadas”, o seguinte (p. 173 do PA 2009): “No âmbito do contrato de garantias firmado entre o Banco…, a J… (como accionista), a A… (como mutuária), decorrente do contrato de facilidades de créditos (facilidade A: 23.200.000 euros; facilidade B: 8.500.000 euros e facilidade C: 1.500.000 euros), celebrado com as mesmas entidades, a A… constituiu a favor do Banco…: - Hipoteca sobre os imóveis de que é proprietária, - Promessa de hipoteca sobre imóveis de que venha a ser proprietária, - Penhor financeiro sobre as participações das suas subsidiárias (com entrega dos títulos respectivos quando aplicável), - Promessa de penhor financeiro sobre quaisquer novas participações em subsidiárias, - Penhor financeiro sobre os saldos das contas de que seja titular, - Promessa de penhor sobre novas contas e investimentos autorizados, - Cessão de créditos com “escopo de garantia” de todos os créditos de que seja ou venha a ser titular”.

[47] Define-se hoje no art. 3.º, n.º 1 do Regime Jurídico do Capital de Risco, Empreendedorismo Social e Investimento Especializado (aprovado pela Lei n.º 18/2015, de 4.3) “investimento em capital de risco a aquisição, por período de tempo limitado, de instrumentos de capital próprio e de instrumentos de capital alheio em sociedades com elevado potencial de desenvolvimento, como forma de beneficiar da respetiva valorização”.

[48] Não se pode deixar de assinalar que no Relatório Anual da Atividade de Capital de Risco 2014 do Gabinete de Estudos da CMVM, p. 15, se observa, em atenção ao tipo dos investimentos do sector de capital de risco nacional, que a rubrica “empréstimos” “indicia que a actuação dos operadores nacionais é, frequentemente, mais próxima da actividade bancária (concessão de crédito) do que é característica do capital de risco (titularidade de direitos residuais de controlo e assunção de riscos accionistas)”.

[49] Por isto mesmo, a actividade de financiamento empresarial desenvolvida através do recurso a capital de risco só tem “alto significado” no nosso sistema fiscal quando se dirige à “realização de investimentos em sociedades com potencial de crescimento e valorização” em que o valor investido consiste na “entrada de capitais em dinheiro destinados à subscrição ou aquisição de quotas ou acções ou à realização de prestações acessórias ou suplementares de capital em sociedades que usem efectivamente essas entradas de capital na realização de investimentos com potencial de crescimento e valorização” (cfr. à data dos factos o art. 32.º, n.ºs 4 e 8 do Estatuto dos Benefícios Fiscais, actuais n.ºs 3 e 7 do art. 32.º-A do EBF), não quando está em causa uma operação de fusão alavancada como aquela que exibe o concretum decidendo. Não é por acaso que é possível dizer que tais operações de “capital de risco” assentes em endividamento significativo incidente sobre a sociedade alvo se caracterizam por serem “sem capital” e “sem risco”. A doutrina, na sequência dos relatórios da CMVM, tem, aliás, notado que “em Portugal, a actividade de capital de risco não é, na realidade, uma actividade de risco” (ANA PERESTRELO DE OLIVEIRA, Manual de Corporate Finance, 2ª ed., Coimbra, 2015, p. 82).

[50] Matéria diferente que, essa sim, se poderia suscitar por força da aplicação do n.º 1 do art. 322.º do CSC é a configuração dos gastos associados à assistência financeira como “despesas ilícitas” nos termos do n.º 2 do art. 23.º do CIRC, mas este possível fundamento autónomo de recusa da dedutibilidade fiscal não constitui objeto do processo.

[51] Como a seguir se expõe.

[52] TEIXEIRA DE SOUSA, Introdução ao Direito, Coimbra, 2012, pp. 360-361.

[53] Cita-se p. 19 e p. 4 de parecer junto aos autos.

[54] Em face do exposto no texto, carecem de justificação bastante as afirmações conclusivas que constam em diversos locais da PI de que a legalidade desta fusão por incorporação “é aceite pela doutrina e jurisprudência” (n.º 58) e que se conexiona “com interesses privados de carácter económico e contratual dos intervenientes (i.e. investidores, Fundo, banca) que são legítimos e merecedores de tutela legal” (n.º 70).

[55] MENEZES CORDEIRO, “Da Tomada de Sociedades (Takeover): Efectivação, Valoração e Técnicas de Defesa” in ROA, Ano 54, Vol. III (Dezembro 1994), pp. 769-770.

[56] Vd. MARIA VICTÓRIA FERREIRA DA ROCHA, Aquisição de acções próprias no Código das Sociedades Comerciais, Coimbra, 1994, pp. 311-314, que destaca a tutela da organização social; MARGARIDA COSTA ANDRADE, Código das Sociedades Comerciais em comentário, vol. V, p. 450; INÊS PINTO LEITE, ob. cit., pp. 133 e segs; MARIANA DUARTE SILVA, ob. cit., pp. 163 e segs., que dá maior peso à razão atinente à tutela dos accionistas (pp. 187-188); PAULO DE TARSO DOMINGUES, ob. cit., pp. 54 e segs.; ISABEL PINHEIRO TORRES, ob. cit., pp. 140 e segs.; de modo distinto, centrando o fundamento da proibição directamente na tutela do capital social, vd. ANA PERESTRELO DE OLIVEIRA, ob. cit., pp. 225 e segs..

[57] PAULO DE TARSO DOMINGUES, ob. cit., p. 57. Vd. igualmente já nestes termos INÊS PINTO LEITE, ob. cit., pp. 141.

[58] Vd. MARIA VICTÓRIA FERREIRA DA ROCHA, Aquisição... cit., pp. 90-91 e p. 312.

[59] MARIANA DUARTE SILVA, pp. 183-184.

[60] INÊS PINTO LEITE, ob. cit., pp. 142.