Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 561/2020-T
Data da decisão: 2022-01-24  ISV  
Valor do pedido: € 45.211,17
Tema: ISV – Circulação de veículo com matrícula estrangeira sem introdução no consumo.
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DECISÃO ARBITRAL

 

 

I. Relatório

A..., contribuinte nº..., residente na Rua ..., n.º..., ..., ...-... Pombal, adiante designado por “Demandante”, apresentou, no dia 19-10-2020, ao abrigo do disposto no art.º 5º , n.º 1, al. a) e no art. 10º do DL nº 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante “RJAT”), pedido de pronúncia arbitral com vista a:

  1. A título principal, a declaração da ilegalidade e anulação total da liquidação de ISV – Imposto sobre Veículos nº 2020/... (Declaração Aduaneira de Veículos nº 2020/...), por inexistência do facto tributário;
  2. A título subsidiário, a declaração da ilegalidade e anulação parcial da mesma liquidação, com base em erro na aplicação da taxa de imposto.

É demandada a AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante também identificada por “Demandada”, “Autoridade Tributária” ou simplesmente “AT”).

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD em 20-10-2020 e automaticamente notificado à AT na mesma data.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular a signatária, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 14-12-2020, foram as Partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a mesma, nos termos conjugados das alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral singular foi constituído em 14-01-2021.

A Autoridade Tributária e Aduaneira, notificada para o efeito, apresentou resposta em que defendeu a improcedência da impugnação.

Quanto às posições das Partes, elas podem sintetizar-se como segue:

A Autoridade Tributária considera que o Demandante, na qualidade de proprietário, efetuou a introdução no consumo em território nacional, para efeitos e nos termos do art.º 6.º, n.ºs 1 e 2 do Código do ISV, do veículo com a matrícula francesa ..., em final de março de 2018, o qual se encontrava, em 12.02.2019, a circular em território nacional.

O Demandante sustenta que o veículo em causa nunca foi introduzido no consumo em território nacional, para efeitos e nos termos do art.º 6.º, n.ºs 1 e 2 do Código do ISV.

Por despacho do Tribunal Arbitral de 12-08-2021, foi agendada para o dia 28.09.2021 a reunião prevista no art.º 18.º do RJAT, para audição das testemunhas arroladas pelo Demandante.

Devido a impedimento da Ilustre Mandatária do Demandante, a mesma reunião foi reagendada para o dia 21-10-2021, por despacho do Tribunal de 17.09.2021, tendo na mesma data sido prorrogado, por dois meses, o prazo para prolação da decisão arbitral.

No dia 19.10.2021, o Demandante requereu a presença, na reunião referida, de um tradutor de língua francesa, a fim de proceder à tradução simultânea do depoimento da testemunha B... .

Em face deste requerimento e da necessidade de se proceder à nomeação de tradutor, foi novamente alterada, por despacho de Tribunal de 06.11.2021, a data da reunião indicada no art.º 18.º do RJAT, para o dia 03.12.2021.

Por despacho do Tribunal de 10.11.2021, foi prorrogado por novo período de dois meses a data da prolação da decisão arbitral.

No dia 03.12.2021, foi realizada a reunião prevista no art.º 18.º do RJAT, tendo sido nela efetuada a inquirição das testemunhas arroladas pelo Demandante.

O Demandante apresentou alegações, em 21-12-2021, tendo nelas reiterado toda a argumentação de facto e de direito já expendida na petição inicial.

Também a Demandada, na mesma data, apresentou por seu turno alegações finais, em que, além de reiterar toda a argumentação já expendida na sua resposta, alegou ainda o seguinte, em termos resumidos:

  • Ainda que os períodos de permanência em Portugal do veículo em causa sejam ou fossem os indicados pelo Demandante, este nunca poderia beneficiar do regime de admissão temporária, já que nem o proprietário tem residência normal em França, nem o veículo estaria a ser usado para uso privado, porquanto, atentas as declarações prestadas, o veículo seria usado na atividade da empresa que tem naquele Estado-membro;
  • A Alfândega emitente da liquidação procedeu, entretanto, à revogação parcial da mesma;
  •  Quanto ao montante peticionado pelo Demandante, não está correto, sendo o cálculo do montante do imposto da competência da alfândega, à qual incumbirá também a execução da decisão arbitral.

De acordo com documento cuja junção ao processo foi requerida pela AT em 12-01-2022, verifica-se que foi proferido despacho pela Direção de Serviços de Consultoria Jurídica e Contencioso da AT, em 10-12-2021, em que se determinou que o Setor da Fiscalidade Automóvel, também da AT, proceda à revisão oficiosa da liquidação de ISV nº 2020/...efetuada com base na DAV nº 2020/..., considerando no cálculo do ISV a desvalorização da componente ambiental, tendo em consideração o número de anos de uso, nos termos e em conformidade com o Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 02-09-2021, processo C-196/20.

II. Saneamento

O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 2.º, e do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do RJAT e é materialmente competente.

As Partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

Não existem exceções a apreciar.

O processo não enferma de nulidades.

 

III. Questões a apreciar

Constitui questão a apreciar no presente processo a de saber se se deve considerar introduzido no consumo, nos termos e para os efeitos dos artigos 6º e 20.º do CISV, um veículo de matrícula estrangeira introduzido no território nacional com a finalidade de permanência em domínio exclusivamente privado (nos termos do art.º 24.º, n.º 1 do CISV), ao ser posto a circular na via pública, no dia 12-02-2019, em contravenção das disposições legais aplicáveis.

 

IV. Fundamentação

Matéria de facto

Consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

  1. O Demandante é gerente da empresa C... Lda., sociedade de direito português;
  2. A sociedade realizou em França várias obras de construção civil;
  3. Para se poder deslocar em França, o Demandante adquiriu, nesse país, um veículo automóvel de passageiros da marca ..., modelo ..., com a matrícula francesa...;
  4. O Demandante usa o veículo em França, nomeadamente, para visitar os clientes e fornecedores e para se deslocar às obras que tinha em curso;
  5. O veículo circula normalmente em França, sendo nesse país efetuadas as revisões, as inspeções, e os abastecimentos de combustível;
  6. O Demandante deslocou-se a Portugal, a partir de França, neste veículo, em fevereiro de 2019;
  7. Nessa mesma ocasião, o Demandante regressou a França de avião, tendo o veículo ficado em Portugal, estacionado numa garagem propriedade do Demandante;
  8. No dia 12.02.2019 a Sra. D..., à data namorada do Demandante, utilizou o veículo, circulando com ele na localidade de ..., Pombal;
  9. Nesse dia, o veículo, enquanto conduzido pela Sra. D..., foi alvo de uma fiscalização levada a cabo por militares da GNR;
  10. Na sequência dessa fiscalização, foi emitida, por despacho do Diretor da Alfândega de Peniche de 27.11.2019, a ordem de serviço n.º OI2019..., pela qual foi instaurado um procedimento de fiscalização ao veículo;
  11. Dessa ação de fiscalização foi elaborado um relatório no qual consta o seguinte:

“(...)

IV – DESENVOLVIMENTO DA AÇÃO – CONTROLOS EFETUADOS

Após consulta à visão do contribuinte (síntese cadastral e visão integrada do contribuinte) constatou-se que o Sr. A...:

  • É residente em Portugal, com domicílio fiscal na Rua ..., ..., ..., ...-... Ilha Pombal;
  • Apresenta regularmente o modelo 3 do IRS como residente no continente;
  • É gerente da sociedade “C..., Lda”, NIPC ... desde 2013;
  • É gerente da sociedade “E..., Lda.”, NIPC ... desde 2017.

Após consulta à base de dados do sistema de fiscalidade automóvel – SFA2, verificou-se que o quadro/chassis desta viatura não constava como declarada.

Compulsados os elementos atrás recolhidos, conclui-se que no âmbito da presente ação de natureza fiscalizadora verificou-se que a viatura tem permanecido em Portugal com suspensão de ISV mais de 6 meses, seguidos ou interpolados, em cada período de 12 meses, a que acresce o facto de o seu proprietário ter residência normal em Portugal, e portanto fora das condições que permitam a sua permanência no regime fiscal de admissão temporária de veículos  automóveis, nos termos do disposto no n.º 1 do art.º 30.º do CISV, ao ser introduzida em território nacional sem cumprimento de todas as condições cumulativas para beneficiar deste regime suspensivo. Assim, pode-se concluir que existiu uma utilização indevida deste automóvel, fora das condições impostas por lei ao violar o regime de admissão temporária para permanecer temporariamente em território nacional;

Relativamente à introdução no consumo constata-se que o Sr A... não cumpriu com os prazos nem preencheu as formalidades previstas na alínea a) do n.º 1 do art.º 20.º do CISV pata este veículo. Nestas situações o proprietário em causa deveria ter apresentado a DAV, no prazo máximo de 20 dias úteis, após a entrada do veículo tributável em território nacional.

Neste sentido também se verificou que a viatura entrou em território nacional sem cumprir com os prazos e as formalidades da introdução no consumo após a entrada do veículo em Território Nacional, nos termos do disposto na alínea a) d n.º 1 do Art.º 20º do CISV.

Sendo portanto exigível o Imposto sobre Veículos (ISV) pela aplicação do disposto no n.º 2 do art.º 6.º e alínea d) do n.º 2 do art.º 5.º ambos do CISV. A taxa de ISV em vigor será a do ano 2018, aplicada nos termos do n.º 2 e do n.º 3 do art.º 6.º do mesmo diploma legal, em função da componente ambiental e da componente cilindrada da viatura em causa, apurando-se uma dívida em sede de ISV, conforme se demonstra no campo VI – DEMONSTRAÇÃO DOS MONTANTES (DÍVIDA) APURADOS do presente relatório.

V – DESCRIÇÃO DAS IRREGULARIDADES DETETADAS

O Sr. A... não cumpriu os prazos nem preencheu as formalidades previstas na alínea a) do n.º 1 do art.º 20.º do CISV neste veículo destinado a ser introduzido no consumo em território nacional, bem como utilizou indevidamente esta viatura automóvel, fora das condições impostas por lei ao violar o regime de admissão temporária para permanecer temporariamente em território nacional, nos termos do disposto no art.º 30.º do CISV, o que consubstancia a prática de introdução irregular no consumo nos termos da alínea b) do n.º 3 do art.º 109.º do RGIT.

(...)”

  1. Na sequência da ação de fiscalização, foi emitida a Declaração Aduaneira de Veículo (DAV) n.º 2020/... e a liquidação de ISV n.º 2020/..., na qual foi liquidado imposto a pagar no montante de 42.015,68 euros, acrescido de juros compensatórios no montante de 3.195,49 euros;
  2. Em 28.08.2020, o Requerente apresentou reclamação graciosa, junto da alfândega, requerendo a anulação parcial da liquidação reclamada;
  3. A referida reclamação graciosa foi indeferida, tendo o indeferimento sido notificado ao Demandante pelos ofícios n.ºs..., de 30.12.2020, 876, de 20.01.2021, e 329, de 21.01.2021;
  4. À data do alegado facto tributário, no ano de 2019, o Demandante era residente em Portugal, na Rua ..., ..., ..., ..., Pombal, tendo aí o seu domicílio fiscal;
  5. O Demandante possuía, à data do alegado facto tributário, dois veículos em Portugal, que usava para se deslocar no território nacional;
  6. Em 10-12-2021, foi proferido despacho pela Direção de Serviços de Consultoria Jurídica e Contencioso da AT, em que se determinou que o Setor da Fiscalidade Automóvel proceda à revisão oficiosa da liquidação de ISV nº 2020/... efetuada com base na DAV nº 2020/..., considerando no cálculo do ISV a desvalorização da componente ambiental, tendo em consideração o número de anos de uso, nos termos e em conformidade com o Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 02-09-2021, processo C-196/20.

 

Não se considera provado:

  1. Que o veículo em causa tenha permanecido no território português desde final de março de 2018 até 12-02-2019.

 

Não existem outros factos alegados e não provados com relevância para a decisão do mérito da causa.

A fixação da matéria de facto baseia-se nos documentos juntos pelo Demandante, no processo administrativo junto pela Demandada e nos depoimentos das testemunhas inquiridas.

 

Discussão da matéria de direito

Constitui matéria de facto dada como provada que o veículo de marca ..., com a matrícula francesa ..., pertencente ao Demandante, se encontrava a circular em território português, conduzido pela Sra. D..., no dia 12.02.2019, e que não se encontrava, nessa data, “declarado” em Portugal. Por “declarado”, neste contexto, entende-se ter sido efetuado o procedimento de apresentação de “declaração aduaneira de veículo” (DAV) nos termos do art.º 20.º do CISV.

A Autoridade Tributária considera que o Demandante introduziu o veículo em causa no consumo, em território português, o que consubstancia o facto gerador do imposto previsto na alínea d) do n.º 2 do art.º 5.º do Código do ISV (de ora em diante CISV).

Vejamos se assim é.

O art. 5º do Código do ISV dispõe, na alínea d) do seu n.º 2, que “constitui ainda facto gerador do imposto, a permanência do veículo no território nacional em violação das obrigações previstas no presente código.”

Verifica-se assim que a “permanência” em território nacional de um veículo com matrícula estrangeira, ie. de um veículo sem matrícula portuguesa, pode constituir um facto gerador de imposto, desde que essa circunstância – permanência do veículo não matriculado em território nacional – seja acompanhado da “violação das obrigações previstas no presente código”.

Cumpre assim indagar quais são as obrigações que o CISV estabelece quanto a veículos de matrícula estrangeira que “permanecem em território português.”

Em primeiro lugar, há que referir que a “permanência” em território português de veículos com matrícula estrangeira terá um regime diferente consoante o veículo esteja matriculado em nome de pessoa residente ou não residente em Portugal.

No caso de o titular da matrícula do veículo não ter residência em Portugal, e quando o veículo seja introduzido em território português pelo seu titular para seu uso privado, o veículo ficará, sem necessidade de formalidades, sujeito ao regime de “admissão temporária”.

Ao abrigo do regime da admissão temporária, o veículo poderá permanecer e circular em território português, sem sujeição a imposto, por um período máximo de seis meses seguidos ou interpolados em cada período de 12 meses, podendo apenas ser conduzido pelos seus proprietários, cônjuges ou unidos de facto, ascendentes e descendentes em primeiro grau ou pelos seus legítimos detentores, na condição de estas pessoas não terem residência normal em Portugal.

No caso vertente, ao veículo em causa não poderia ser aplicado este regime, porquanto o titular da matrícula, o Demandante nos autos, tinha, ao tempo, residência em Portugal.

Deste modo, o veículo não poderia em circunstância alguma beneficiar do regime da “admissão temporária.”

 Não podendo o veículo ficar sujeito ao regime de admissão temporária, vejamos qual ou quais são os regimes previstos no CISV que se poderão aplicar ao caso.

São dois os regimes aplicáveis a um veículo com matrícula estrangeira matriculados em nome de um residente nacional: o regime da “introdução no consumo por particulares”, previsto no art.º 20º do do CISV e o regime dos “veículos não destinados a matrícula”, previsto no art.º 24.º do mesmo código.

Vejamos cada um deles.

O regime dos “veículos não destinados a matrícula” aplica-se a veículos de matrícula estrangeira que sejam introduzidos em território nacional e que se destinem a desmantelamento, a circulação ou permanência em domínio exclusivamente privado, ie. fora das vias públicas, a colecionismo ou a qualquer outra razão que dispense a atribuição de matrícula.

Sem entrar em detalhe sobre todas e cada uma das circunstâncias previstas na disposição transcrita, é possível concluir, desta disposição legal, que aí se prevê a possibilidade de permanência de um veículo de matrícula estrangeira em território português, sem se verificarem os pressupostos do regime de admissão temporária, e sem que isso implique a sua “introdução no consumo,” para os efeitos dos art.ºs 3.º e 6.º do CISV.

Nomeadamente, prevê-se a possibilidade de permanência em território nacional de veículo com matrícula estrangeira, sem que essa permanência implique “introdução no consumo”, quando o destino que se pretende dar ao veículo seja “a circulação ou permanência em domínio exclusivamente privado”, ou seja, quando o veículo não se encontre em Portugal para circular na via pública.

Já o regime da “introdução no consumo” previsto no art.º 20.º define-se por exclusão: considera-se introduzido no consumo qualquer veículo com matrícula estrangeira que, não se encontrando na situação de admissão temporária, não se encontre também em nenhuma das situações previstas no art.º 24.º. Ou seja, considera-se “introduzido no consumo” um veículo de matrícula estrangeira que seja propriedade de um residente e que se destine a circular na via pública.

Da matéria de facto dada como provada, conclui-se que o veículo em causa não se encontrava no território português com a finalidade de ser introduzido no consumo.

As testemunhas inquiridas afirmaram com espontaneidade e com convicção que o Demandante permanece a maior parte do tempo em França, onde trabalha na sua atividade de gerir uma empresa de pavimentos industriais em betão (testemunhas F..., G... e B...); que costumava usar o veículo em causa para circular nesse país, no âmbito da sua atividade profissional, nomeadamente para visitar as obras que a sua empresa tinha em curso (testemunhas D... e B...); e que dispunha e dispõe em Portugal de outros veículos que utiliza para se deslocar no território português (testemunhas F..., G... e B...), razão por que não necessitava, normalmente, de utilizar o veículo de matrícula francesa em território português.

As quatro testemunhas F..., G..., H... e B..., quando inquiridas sobre essa específica questão, declararam não ter conhecimento de que o Demandante circulasse habitualmente com o veículo em causa em Portugal.

Desta forma, as testemunhas corroboraram a tese do Demandante de que o veículo em causa não circulava usualmente em território nacional e nem tinha como destino essa utilização.

Há que concluir, assim, que o veículo não se encontrava em Portugal com a finalidade de circular na via pública, o que se reconduz à hipótese prevista no art.º 24.º, n.º 1, de permanência em domínio exclusivamente privado, até ser reconduzido ao território francês. A questão a dilucidar é, por conseguinte, a de saber se o facto de o veículo – cujo regime era o de veículo “não destinado a matrícula”, nos termos do art.º 24.º, n.º 1 – se encontrar a circular na via pública no dia 12-02-2019, tem como efeito que o veículo se deva considerar “introduzido no consumo” nessa data.

Não há dúvida de que o facto de o veículo circular na via pública – conduzido ou não por um residente, no caso não é relevante, visto que não está em causa o regime da admissão temporária prevista e regulada no art.º 30.º CISV – constitui uma infração, pois não foram cumpridas em relação ao veículo as obrigações relativas à sua introdução no consumo. Esse facto é suscetível de ser punido a título de contraordenação, pela conjugação do art.º 24º, n.º 1 do CISV com o disposto no art.º 109.º, n.º 3, al. b) do RGIT.

Já considerar que tal facto indicia, sem possibilidade de prova em contrário, uma introdução no consumo, obrigando ao pagamento do imposto correspondente, como se efetivamente o veículo se destinasse a permanecer e a circular na via pública em território nacional, quando se prova que não é essa a intenção do seu proprietário, parece acarretar uma manifesta violação do princípio da proporcionalidade, consagrado no artigo 266º, n.º 2 da Constituição Portuguesa, como princípio geral reitor da atividade da administração pública.

Do mesmo modo, numa situação muito semelhante à dos autos, que é a de veículo com matrícula estrangeira, em regime de admissão temporária, ser conduzido por residente em território português, constituiria uma sanção desproporcionadamente gravosa considerar o veículo como introduzido no consumo, em vez de considerar a ocorrência de uma infração de utilização do veículo “fora das condições prescritas por lei”, ao abrigo, precisamente, da al. b) do n.º 3 do art.º 109º do RGIT.

Tanto num caso como noutro, em que a AT tem ao seu dispor tipos contraordenacionais em que as situações podem ser enquadradas, com a consequência da aplicação das correspondentes sanções pecuniárias, considerar os veículos introduzidos no consumo, sem indícios seguros de que a introdução no consumo corresponda à realidade fáctica, afigura-se manifestamente violador do princípio da proporcionalidade.

Por outro lado, verifica-se que o relatório de inspeção conclui que o veículo foi introduzido no consumo em Portugal, mas a fundamentação dessa conclusão não é concordante com a lei.

O relatório de inspeção diz que se verificou “que a viatura tem permanecido em Portugal com suspensão de ISV mais de seis meses, seguidos ou interpolados.” A “permanência por seis meses seguidos” e a “permanência por seis meses interpolados” são factos distintos e reciprocamente excludentes: ou se verificou a primeira situação, ou se verificou a segunda situação. Ao formular a afirmação deste modo, portanto, o relatório não afirma um facto, em que se possa firmar qualquer conclusão.

O relatório prossegue dizendo: “(...) a que acresce o facto de o seu proprietário ter residência normal em Portugal, portanto fora das condições que permitam a sua permanência no regime fiscal de admissão temporária de veículos automóveis, nos termos do disposto no nº 1 do art.º 30.º do CISV, ao ser introduzida em território nacional sem cumprimento de todas as condições cumulativas para beneficiar deste regime suspensivo. Assim, pode-se concluir que existiu uma utilização indevida deste automóvel, fora das condições impostas por lei ao violar o regime de admissão temporária para permanecer temporariamente em território nacional”.

Ou seja, o relatório extrai a conclusão de que o veículo foi introduzido no consumo a partir da constatação de que o veículo se encontrava a circular em território português sem se enquadrar no regime de admissão temporária e de que existiu uma utilização indevida do automóvel.

Ora, a primeira constatação – “o veículo encontrava-se a circular em território português sem se enquadrar no regime de admissão temporária” – não permite a conclusão de que o veículo foi introduzido no consumo, pois existe, como já se demonstrou, um terceiro regime, para além da permanência temporária e da introdução no consumo.

A segunda constatação – “existiu uma utilização indevida do automóvel” – também não permite a conclusão de que o veículo foi introduzido no consumo, pois nada na lei autoriza afirmar que, sempre que haja uma utilização indevida, no território português, de um veículo com matrícula estrangeira, ocorre automaticamente uma introdução no consumo.

O juízo do tribunal é, assim, o de considerar não provada a introdução do veículo no consumo em território português, e, portanto, não verificado o facto tributário que deu origem à liquidação.

Em face do anteriormente exposto, fica prejudicada a apreciação do pedido subsidiário, de anulação parcial da liquidação por vício de violação de lei, em virtude de o art.º 11º do CISV, que serviu de base à liquidação, ser alegadamente incompatível com o art.º 110º do Tratado FUE.

 

VI. Decisão

Assim, nos termos anteriormente expostos, decide-se julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade, por vício de violação de lei, e consequentemente anular o ato de liquidação impugnado, concretamente a liquidação de ISV – Imposto sobre Veículos nº 2020/....

 

VII. Valor do processo

Nos termos do art. 97.º-A nº 1, al. a) do CPPT do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor do processo em 45.211,17 euros (quarenta e cinco mil, duzentos e onze euros e dezassete cêntimos).

 

 

VIII. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em 2.142,00 euros, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Demandada.

 

Notifique-se.


Porto, 24 de janeiro de 2022.

 

O Árbitro

 

 

 

 

 

(Nina Aguiar)