Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 89/2018-T
Data da decisão: 2018-10-25  IRC  
Valor do pedido: € 552.136,53
Tema: IRC – Prova do Preço Efectivo.
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            Os árbitros Dr. José Pedro Carvalho (árbitro-presidente), Dra. Magda Feliciano e Professor Doutor Manuel Pires, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 23 de Maio de 2018, acordam no seguinte:

 

  1. RELATÓRIO

 

A..., LDA, NIPC..., com sede em Rua ..., ..., ..., ...-..., em ..., doravante Requerente, apresentou, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, alínea a), artigo 10.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, e dos artigos 96.º e seguintes do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), pedido de constituição de tribunal arbitral e de pronúncia arbitral, com vista a obter a declaração de ilegalidade do acto de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2017... e a consequente anulação do acto de liquidação adicional de IRC n.º 2017..., no montante de €552.136,53.

 

A Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante AT, respondeu defendendo-se por excepção e por impugnação.

 

Por despacho de 12.09.2018, decidiu-se pela não suspensão da presente instância, tendo sido dado às Partes prazo para alegações e dispensando-se a realização da reunião prevista no artigo 18.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT),

 

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março) e estão devidamente representadas.

 

O processo não enferma de nulidades.

 

  1. MATÉRIA DE FACTO

 

1. Factos provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos:

 

  1. A Requerente foi sujeita a uma acção inspectiva interna autuada com o n.º OI2016... .
  2. À data dos factos a Requerente exercia a actividade de" Construção de Edifícios".
  3. No ano de 2013 a Requerente procedeu à transmissão onerosa de direitos reais sobre os imóveis mencionados no relatório da inspecção, no valor total de € 9.251.481,40
  4. À data da alienação verificou-se uma diferença positiva entre o valor das escrituras e o valor patrimonial tributário – VPT – dos imóveis, que era superior em € 1.823.719,44 comparativamente com aquele.
  5. A Requerente foi notificada a 02-06-2016 para proceder à entrega da declaração de substituição da declaração modelo 22 de IRC, fazendo constar aquele valor no campo 765 do quadro 07.
  6. Em resposta àquela notificação, a ora Requerente declarou que outorgou uma escritura de compra e venda através da qual vendeu os mencionados imóveis pelo valor total de € 7.148.090,47, e que havia procedido à apresentação perante a AT de prova do preço praticado das referidas transmissões de imóveis, ao abrigo do n.º 3 do artigo 139.º do CIRC.
  7. A Requerente não apresentou qualquer comprovativo de apresentação à AT, de pedido do procedimento previsto naquele artigo.
  8. Pela Inspecção Tributária foi solicitado aos Serviços de Apoio ao Procedimento de Revisão (SAPR) informação sobre a instauração de procedimento de prova do preço efectivamente praticado na transmissão dos imóveis em nome da ora Requerente.
  9. Aqueles Serviços informaram que, em nome da Reclamante, não existia autuado qualquer processo instaurado nos termos do n.º 3 do artigo 139.º do CIRC.
  10. No âmbito do direito de audição prévia a A. apresentou documentos comprovativos de que os imóveis foram entregues à B... para extinguir uma hipoteca existente sobre os mesmos.
  11. A Requerente solicitou junto da B... um pedido de informação sobre o preço das transacções nas operações de transmissão/aquisição dos imóveis em causa.
  12. Foram entregues declarações à AT para levantamento do sigilo bancário, tanto relativamente à Sociedade Requerente, como aos seus gerentes.
  13. No direito de audição a ora Requerente insistiu com o pedido para lhe ser autorizada a demonstração de que o gerente à data dos factos entregou no Serviço de Finanças de ... um requerimento para abrir o procedimento previsto no art.º 139.º do CIRC.
  14. Através do ofício n.º..., datado de 22.05.2017, dos Serviços de Inspecção Tributária da Direcção de Finanças de Lisboa, a Requerente foi notificada das correcções à matéria tributável em sede de imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas (IRC), referente ao ano de 2013, no montante €1.823.719,44 (Documento n.º 1);
  15. O referido montante de €1.823.719,44 constitui a diferença entre o preço declarado total de €7.449.845,47 e o valor patrimonial tributário total de €9.251.481,40 de um conjunto de fracções autónomas alienadas pela Requerente no ano de 2013 (Documento n.º 1);
  16. A 7 de Junho de 2017, a Requerente foi notificada do acto de liquidação adicional de IRC n.º 2017..., no montante de €552.136,53, cuja data limite de pagamento foi fixada em 02.08.2017;
  17. A Requerente procedeu ao pagamento do acto de liquidação adicional acima identificado, no prazo legal (Documento n.º 2);
  18. Em 28 de Julho de 2017, a Requerente apresentou reclamação graciosa do acto de liquidação adicional de IRC acima identificado;
  19. A 26 de Dezembro de 2017, a Requerente foi notificada da decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada (Documento n.º 3);
  20. O objecto do presente pedido arbitral é o acto de liquidação adicional de IRC supra identificado.

 

 

2. Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos com o pedido de pronúncia arbitral e com o processo administrativo.

 

Não ficou provado que a Requerente tenha apresentado requerimento para abertura do procedimento para prova do preço efectivo nas transmissões de imóveis, nos termos previstos no artigo 139.º do Código do IRC.

 

  1. MATÉRIA DE DIREITO

 

  1. Da matéria de excepção

 

  1. Da incompetência material do tribunal arbitral

Após suscitar, como questão prévia, a necessidade de suspensão da instância, matéria que foi já decidida por despacho, a Requerida põe em causa a competência material do tribunal arbitral constituído neste processo, para apreciar o pedido arbitral, porquanto “por um lado, a lei consagra expressamente que se trata de um procedimento administrativo – e não objecto de apreciação em sede de processo tributário –, e por outro, a competência é exclusiva do director de finanças.”, de onde decorre, do ponto de vista da Requerida, que “que o Tribunal Arbitral constituído é materialmente incompetente para apreciar e decidir o pedido formulado pela Requerente atinente à demonstração do preço efectivo, atendendo a que o mesmo apenas poderá ser apreciado em sede de procedimento e pelo Director de Finanças, o que consubstancia uma exceção dilatória impeditiva do conhecimento do mérito da causa, nos termos do disposto no n.º 1 e 2 do art.º 576.º do CPC ex vi alínea e) do art.º 2.º do CPPT e alíneas a) e e) do n.º 1 do art.º 29.º do RJAT”.

Ressalvado o respeito devido, e como se verá adiante, crê-se que a Requerida labora num erro de enquadramento, relativamente ao objecto da presente acção arbitral.

Com efeito, aqui em causa não está, ao contrário do que parece assumir a Requerida, a aferição da demonstração do preço efectivo, mas, antes, a aferição da legalidade do acto de liquidação, à luz das invalidades que lhes são apontadas pela Requerente, maxime, à luz de saber se lhe foi vedado o direito àquela demonstração, e quais as consequências, ao nível da legalidade daquele acto, daí decorrentes.

Daí que, sendo incontestavelmente o presente Tribunal arbitral competente para sindicar a legalidade do acto de liquidação contra o qual se insurge a Requerente, deverá improceder a excepção ora em apreço.

 

  1. Da violação do disposto no art.º 139.º/7 do CIRC

Suscita ainda a Requerida, a título prévio do conhecimento do mérito da causa, a questão de que “não tendo a Requerente apresentado, em tempo, o requerimento a que alude o disposto no art.º 139.º do CIRC, fica agora coarctada a possibilidade de apreciação da prova do preço efectivo, sob pena de fraude à lei por violação do disposto no n.º 7 do art.º 139.º n.º 7 do CIRC.”.

Ora, como se apontou já, não está em causa na presente acção arbitral a realização e apreciação da prova do preço efectivo das operações que estão na base da liquidação contra a qual a Requerente se insurge, mas, antes, a questão de saber se tinha de ser facultado à Requerente, nos termos por si configurados, a faculdade de prova daquele preço, se o não foi, e quais as consequências daí decorrentes.

Vistas as coisas deste modo, não restarão dúvidas, crê-se, que a apreciação da legalidade da liquidação objecto da presente acção arbitral, à luz de tais fundamentos, não encerra qualquer violação, sequer aparente, dos normativos invocados pela Requerida.

Deste modo, e pelo exposto, deverá improceder também esta excepção por aquela invocada, nada obstando ao conhecimento do fundo da causa.

 

 

  1. Do fundo da causa

 

A principal questão que se coloca nos presentes autos prende-se com saber se o acto de liquidação adicional de IRC, objecto da presente petição, é ou não legal, considerando a violação, ou não, do direito à prova do preço efectivo nas transmissões de imóveis.

 

A - Posição da Requerente

 

A este propósito, a Requerente alega no seu pedido de constituição do Tribunal Arbitral, em síntese, o seguinte:

 

  1. O n.º 3 do artigo 139.º do Código do IRC determina que “a prova referida no n.º 1 deve ser efectuada em procedimento instaurado mediante requerimento dirigido ao director de finanças competente e apresentado em Janeiro do ano seguinte àquele em que ocorreram as transmissões, caso o valor patrimonial tributário já se encontre definitivamente fixado, ou nos 30 dias posteriores à data em que a avaliação se tornou definitiva, nos restantes casos”, sendo que o n.º 4 do mesmo artigo determina que a apresentação do requerimento suspende a liquidação, e o n.º 5 determina que as ilegalidades cometidas no procedimento devem ser invocadas na impugnação do acto tributário dessa mesma liquidação;
  2. E, em linha com a norma transcrita, o n.º 7 do artigo 139.º determina que “A impugnação judicial da liquidação do imposto que resultar de correcções efectuadas por aplicação do disposto no nº 2 do artigo 64.º, ou, se não houver lugar a liquidação, das correcções ao lucro tributável ao abrigo do mesmo preceito, depende de prévia apresentação do pedido previsto no nº 3, não havendo lugar a reclamação graciosa”;
  3. Face às normas transcritas, tem entendido a jurisprudência que não é legalmente possível aceder à via judicial, seja para arguir as ilegalidades cometidas no procedimento previsto no citado n.º 3 do artigo 139.º, seja para arguir as ilegalidades da liquidação conexas com tal procedimento, sem que o mesmo procedimento tenha sido instaurado e tramitado (neste sentido ver, entre outros, acórdão do STA de 09.03.2016, proc. 820/15, e acórdão do TCAN de 27.10.2016, proc. 735/12.5BEPRT);
  4. A Requerente peticionou várias vezes que lhe fosse dada oportunidade de provar que cumpriu o ónus conexo com a necessidade de se instaurar o procedimento próprio para ilidir a presunção de prevalência do VPT sobre o preço declarado, tendo tal sido negado pela AT;
  5. A própria reclamação graciosa visou esse objectivo, tendo aí sido requerida prova documental e prova testemunhal para demonstrar que o requerimento foi apresentado;
  6. Se, por absurdo, se considerasse que a reclamação graciosa que a requerente utilizou não era o meio próprio para cumprir o requisito previsto no citado n.º 3 do artigo 139.º, nada impedia que fosse aceite o pedido aí formulado, mesmo que fosse necessário convolar a petição, para que essa dupla prova fosse produzida e, em função do resultado, para manter ou anular a liquidação;
  7. O interesse da AT não foi, afinal, apurar a verdade material da situação em causa como lhe ordena o artigo 58.º da LGT, a AT desprezou os princípios pelos quais o artigo 55.º da LGT manda reger a sua actividade, o seu único interesse, o seu único objectivo, foi tentar a todo o custo tentar legitimar a cobrança desta liquidação;
  8. Quanto ao objecto do presente pedido arbitral, que é limitado ao conhecimento da ilegalidade da liquidação, assume-se que esta restrição se prende com a competência material do tribunal arbitral e, por outro lado, com a competência dos outros órgãos judiciais ou administrativos, sendo que a matéria do procedimento previsto no n.º 3 do artigo 139.º do CIRC está atribuída à Autoridade Tributária (director de finanças);
  9. Assim, o objecto do presente pedido arbitral fica limitado à apreciação da legalidade da liquidação não visando produzir a prova que deveria ter sido objecto de um meio procedimental próprio, prévio e anterior à liquidação, nem visa obter qualquer decisão para que a AT seja obrigada à prática do acto devido, para o que este tribunal não tem competência e para o que o pedido arbitral não é meio próprio;
  10. O que o presente pedido visa é, pois, obter o reconhecimento de que a liquidação foi emitida sem que tivesse sido dada oportunidade à Requerente para provar que o ónus de requerer a instauração do procedimento em causa foi atempadamente cumprido e que, desse modo, foram violadas normas e princípios do sistema fiscal conexos com a delimitação da incidência tributária que nenhum tribunal poderá admitir;
  11. Uma vez que a liquidação de IRC ora impugnada foi emitida sem que tivesse sido dada oportunidade à ora Requerente de provar que cumpriu o seu ónus de requerer o procedimento para demonstrar que a matéria tributável dessa liquidação não poderia ser o valor patrimonial tributário dos prédios transmitidos mas sim o seu preço, a AT considerou objectivamente que a presunção prevista no n.º 2 do artigo 164.º é absoluta e inilidível, sendo este o vício de que padece a liquidação adicional impugnada;
  12. A liquidação adicional impugnada terá, pois, que ser anulada, para que tudo volte ao princípio dando oportunidade para que a AT, se assim o entender, reinicie o processo tendente a uma nova liquidação cumprindo os requisitos legais que a habilitem a proceder ao seu lançamento.

 

B - Posição da AT

 

A AT defende, em síntese, o seguinte:

 

  1. A Requerente apresentou acção administrativa especial no Tribunal Administrativo e Fiscal de ... distribuída sob o n.º de processo .../18......, onde se discute da (i)legalidade da decisão que indeferiu a reclamação graciosa apresentada e do pedido de preço efectivo
  2. Esta acção constitui um antecedente lógico-jurídico da liquidação supostamente controvertida nos presentes autos arbitrais, ou seja, a discussão da legalidade da liquidação de IRC constitui uma questão que depende do entendimento que, a montante, vier a ser fixado e que está a ser apreciada em sede de acção administrativa no Tribunal Administrativo e Fiscal de ... distribuída sob o n.º de processo .../18......
  3. Como tal, impõe-se ao Tribunal Arbitral a suspensão da presente instância até que a questão da discussão da legalidade do indeferimento da reclamação graciosa aqui em análise seja dirimida na acção administrativa distribuída sob o n.º .../18...... e consolidada na ordem jurídica, uma vez que, em face da questão de fundo, tal como foi estruturada pela Requerente nos presentes autos, se corre o sério risco de não ser garantida a coerência entre julgados, ou melhor, o princípio da homogeneidade das decisões
  4. Termos em que se requer que seja suspensa a presente instância arbitral, com todos os efeitos legais, sobrestando na decisão até que sejam decidida e consolidada na ordem jurídica a acção administrativa distribuída sob o n.º .../18......
  5. Ora, conforme prescreve a alínea a) do n.º 1 do art.º 2.º do RJAT, compete aos tribunais arbitrais a declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta.
  6. Logo, o Tribunal Arbitral é materialmente incompetente para aferir no âmbito do processo da prova do preço efectivo atendendo a que o mesmo apenas poderá ser apreciado em sede de procedimento e pelo Director de Finanças, o que consubstancia uma excepção dilatória impeditiva do conhecimento do mérito da causa, nos termos do disposto no n.º 1 e 2 do art.º 576.º do CPC ex vi alínea e) do art.º 2.º do CPPT e alíneas a) e e) do n.º 1 do art.º  29.º do RJAT
  7. Prescreve o n.º 7 do art.º 139.º do Código do IRC que a impugnação judicial da liquidação do imposto que resultar de correcções efectuadas por aplicação do disposto no n.º 2 do artigo 64.º, ou, se não houver lugar a liquidação, das correcções ao lucro tributável ao abrigo do mesmo preceito, depende de prévia apresentação do pedido previsto no n.º 3, não havendo lugar a reclamação graciosa;
  8. Assim, o legislador consagrou um mecanismo para a elisão da presunção através da apresentação de requerimento junto do director de finanças, regendo-se tal procedimento de acordo com os art.ºs 91.º e 92.º da Lei Geral Tributária, com as necessárias adaptações, sendo igualmente aplicável o disposto no n.º 4 do artigo 86.º da mesma lei;
  9. O legislador consagrou que a dedução de impugnação judicial – com vista à discussão da prova do preço efectivo – depende previamente da apreciação, discussão e demonstração, num procedimento próprio, que o valor da transmissão corresponde ao valor do contrato;
  10. À luz do consignado no n.º 3 do Artigo 86.º da LGT a demonstração da prova do preço efectivo não é susceptível de impugnação contenciosa autónoma, sem que para o efeito exista um esgotamento de todos os meios graciosos expressamente previstos na lei;
  11. Ou seja, o legislador concebeu como condição para impugnar judicialmente a prévia discussão e demonstração, em sede de procedimento próprio, que o valor do contrato corresponde ao preço efectivo, ou seja, tal procedimento constitui uma condição de procedibilidade quando se pretenda discutir o preço efectivamente praticado nas transmissões de direito reais sobre imóveis;
  12. Logo, não tendo a Requerente apresentado em tempo o procedimento consignado no disposto no artigo 139.º do Código do IRC fica irremediavelmente precludida a demonstração (agora) em sede impugnação judicial;
  13. Sem conceder ainda se dirá que a A. alega - sem nunca lobrigar provar, aliás, sem nunca sequer tentar provar – que entregou o requerimento previsto no n.º 7 do artigo 139.º do CIRC tempestivamente.;

 

  1. APRECIAÇÃO

 

Considerando o direito à prova do preço efectivo nas transmissões de imóveis consagrado no artigo 139.º do Código do IRC importa no caso concreto, em análise, esclarecer o seguinte:

 

  1. Se, não tendo sido instaurado o procedimento para ilidir a presunção da prevalência do valor patrimonial tributário, a ora Requerente estava impedida de reclamar e de deduzir a presente petição arbitral?

 

  1. Se é possível ultrapassar o formalismo previsto no n.º 3 do artigo 139.º do Código do IRC, isto é, se é possível fazer a prova da verdade do preço declarado em sede judicial, mormente no âmbito do processo arbitral?

 

  1. Se, em caso de resposta afirmativa às duas questões anteriores, no caso, e nas palavras da Requerente “a ora requerida impediu a ora requerente de fazer prova da verdade do preço declarado, prevista no n.º 1 do art.º 139.º do CIRC, e, objectivamente, considerou absoluta a inilidível a presunção prevista no n.º 2 do art.º 64.º do mesmo Código.”.

 

Vejamos.

 

 

No capítulo VIII do Código do IRC, em sede de garantias dos contribuintes, estabelece-se, no artigo 137.º, a propósito do direito de reclamação e impugnação judicial o seguinte:

 

1 — Os sujeitos passivos de IRC, os seus representantes e as pessoas solidária ou subsidiariamente responsáveis pelo pagamento do imposto podem reclamar ou impugnar a respectiva liquidação, efectuada pelos serviços da administração fiscal, com os fundamentos e nos termos estabelecidos no Código de Procedimento e de Processo Tributário.

2 — A faculdade referida no número anterior é igualmente conferida relativamente à autoliquidação, à retenção na fonte e aos pagamentos por conta, nos termos e prazos previstos nos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, sem prejuízo do disposto nos números seguintes.

3 — A reclamação, pelo titular dos rendimentos ou seu representante, da retenção na fonte de importâncias total ou parcialmente indevidas só tem lugar quando essa retenção tenha carácter definitivo e deve ser apresentada no prazo de dois anos a contar do termo do prazo de entrega, pelo substituto, do imposto retido na fonte ou da data do pagamento ou colocação à disposição dos rendimentos, se posterior.

4 — A impugnação dos actos mencionados no n.º 2 é obrigatoriamente precedida de reclamação para o director de finanças competente, nos casos previstos no Código de Procedimento e de Processo Tributário.

5 — As entidades referidas no n.º 1 podem ainda reclamar e impugnar a matéria colectável que for determinada e que não dê origem a liquidação de IRC, com os fundamentos e nos termos estabelecidos no Código de Procedimento e de Processo Tributário para a reclamação e impugnação dos actos tributários.

6 — Sempre que, estando pago o imposto, se determine, em processo gracioso ou judicial, que na liquidação houve erro imputável aos serviços, são liquidados juros indemnizatórios nos termos do artigo 43.º da Lei Geral Tributária.

7 — A faculdade referida no n.º 1 é igualmente aplicável ao pagamento especial por conta previsto no artigo 106.º, nos termos e com os fundamentos estabelecidos no artigo 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário.”

 

Resulta, assim, do normativo acima citado que, por princípio, os sujeitos passivos podem reclamar ou impugnar qualquer liquidação de IRC efectuada pela AT. Não obstante, prevê-se no artigo 139.º do Código do IRC, sob a epígrafe Prova do preço efectivo na transmissão de imóveis, o seguinte:

 

Prova do preço efectivo na transmissão de imóveis

1 — O disposto no n.º 2 do artigo 64.º não é aplicável se o sujeito passivo fizer prova de que o preço efectivamente praticado nas transmissões de direitos reais sobre bens imóveis foi inferior ao valor patrimonial tributário que serviu de base à liquidação do imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis.

2 — Para efeitos do disposto no número anterior, o sujeito passivo pode, designadamente, demonstrar que os custos de construção foram inferiores aos fixados na portaria a que se refere o n.º 3 do artigo 62.º do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis, caso em que ao montante dos custos de construção deverão acrescer os demais indicadores objectivos previstos no referido Código para determinação do valor patrimonial tributário.

3 — A prova referida no n.º 1 deve ser efectuada em procedimento instaurado mediante requerimento dirigido ao director de finanças competente e apresentado em Janeiro do ano seguinte àquele em que ocorreram as transmissões, caso o valor patrimonial tributário já se encontre definitivamente fixado, ou nos 30 dias posteriores à data em que a avaliação se tornou definitiva, nos restantes casos.

4 — O pedido referido no número anterior tem efeito suspensivo da liquidação, na parte correspondente ao valor da diferença positiva prevista no n.º 2 do artigo 64.º, a qual, no caso de indeferimento total ou parcial do pedido, é da competência da Direcção-Geral dos Impostos.

5 — O procedimento previsto no n.º 3 rege-se pelo disposto nos artigos 91.º e 92.º da Lei Geral Tributária, com as necessárias adaptações, sendo igualmente aplicável o disposto no n.º 4 do artigo 86.º da mesma lei.

6 — Em caso de apresentação do pedido de demonstração previsto no presente artigo, a administração fiscal pode aceder à informação bancária do requerente e dos respectivos administradores ou gerentes referente ao período de tributação em que ocorreu a transmissão e ao período de tributação anterior, devendo para o efeito ser anexados os correspondentes documentos de autorização.

7 — A impugnação judicial da liquidação do imposto que resultar de correcções efectuadas por aplicação do disposto no n.º 2 do artigo 64.º, ou, se não houver lugar a liquidação, das correcções ao lucro tributável ao abrigo do mesmo preceito, depende de prévia apresentação do pedido previsto no n.º 3, não havendo lugar a reclamação graciosa.

8 — A impugnação do acto de fixação do valor patrimonial tributário, prevista no artigo 77.º do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis e no artigo 134.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, não tem efeito suspensivo quanto à liquidação do IRC nem suspende o prazo para dedução do pedido de demonstração previsto no presente artigo.”

 

Assim, resulta do n.º 1 e 5 do artigo 139.º do Código do IRC que, para efeitos de ilisão da presunção estabelecida no artigo 64.º, n.º 2 do Código do IRC[1], tem de ser instaurado o procedimento de prova do preço efectivo, que se rege pelos artigos 91.º e 92.º da LGT.

 

Deste modo, não obstante o consagrado direito à reclamação e impugnação de qualquer acto de liquidação, a ilisão da presunção do preço efectivo de imóveis transmitidos e, portanto, a prova do valor real da transmissão de imóveis só pode ser efectuada através do procedimento identificado. Sendo obrigatória a apresentação daquele procedimento de prova[2], é dispensada a apresentação de reclamação graciosa.

 

Face ao exposto, entende-se que sendo a desconformidade apontada ao acto de liquidação de IRC sub judice relativa ao preço dos imóveis transmitidos, o ónus da prova da Requerente só pode ser cumprido, no âmbito do procedimento de demonstração do preço previsto no artigo 139.º do Código do IRC, especialmente concebido para a avaliação do preço dos imóveis. Atendendo à especificidade da matéria – preço de imóveis – e à necessidade de recurso a peritos ou outros técnicos da área, fixou-se que o recurso a este procedimento constitui condição do direito à sua posterior impugnação judicial.

 

Conclui-se, por isso, que não tendo sido feita prova de ter sido requerida pela Requerente a instauração do procedimento para ilidir a presunção do valor patrimonial tributário, a ora Requerente não estava impedida de reclamar e de deduzir a presente petição arbitral, mas a legalidade do acto de liquidação em crise com fundamento no erro na fixação do preço de venda dos imóveis não é sindicável, conquanto, não foi previamente instaurado o procedimento de prova do preço já identificado.

 

Aqui chegados, cumpre então aferir se, como afirma a Requerente, “a ora requerida impediu a ora requerente de fazer prova da verdade do preço declarado, prevista no n.º 1 do art.º 139.º do CIRC, e, objectivamente, considerou absoluta a inilidível a presunção prevista no n.º 2 do art.º 64.º do mesmo Código.”.

 

Como se viu já, a instauração do procedimento previsto no art.º 139.º do CPC é a forma legal da ilisão da presunção consagrada no art.º 64.º/2 do mesmo Código.

Tal procedimento, é uma garantia da conformidade desta presunção com o disposto no art.º 73.º da LGT, na medida em que faculta aos interessados um meio adequado e suficiente para, sentindo-se prejudicados pela presunção em questão, demonstrarem, sem procedimento próprio, a falta de aderência à realidade do facto por aquela presumido.

 

O referido procedimento, previsto no art.º 139.º do CPC, é um direito potestativo do contribuinte que, dentro do prazo previsto para o efeito, pode apresentar o seu pedido para que o mesmo seja levado a cabo, impondo-se, a realização do mesmo, nos termos legais, à AT.

 

Desta constatação, retira-se, desde logo, que, ao contrário do que a Requerente parece entender, a AT não tem de facultar ao contribuinte a possibilidade de apresentação de prova do preço efectivo. Antes, a AT é parte passiva da sujeição correspondente ao referido direito potestativo do contribuinte, estando obrigada à realização, nos termos legais, do referido procedimento, assim que instada para tal, em prazo, pelo contribuinte.

 

Deste modo, dentro do quadro legal aplicável, nenhuma notificação ou interpelação da AT é legalmente necessária ou exigível, no sentido de o contribuinte efectuar a prova do preço efectivo. Antes, é àquele que, face à presunção do art.º 64.º/2 do CIRC – que deve conhecer (cfr. Art.º 6.º do Código Civil) – que incumbe o ónus de interpelar a AT para a realização do referido procedimento, mediante a apresentação do correspondente pedido.

 

Tendo em conta o exposto, as possibilidades de a AT impedir os contribuintes de fazerem prova da verdade do preço declarado, prevista no n.º 1 do art.º 139.º do CIRC, restringem-se a situações em que a referida autoridade rejeite, injustificadamente, a instauração do procedimento previsto para o efeito, o que desde logo pressupõe a apresentação tempestiva do correspondente pedido pelo contribuinte, ou em que, instaurando-o, não cumpra as normas legais que o disciplinam.

 

Ora, no caso, nem uma nem outra das referidas situações se demonstra.

 

Assim, no que diz respeito à inobservância pela AT dos normativos que regulam o procedimento em causa, e passando por cima da questão da competência do Tribunal arbitral para conhecer das correspondentes ilegalidades, trata-se de uma questão que não se coloca, uma vez que, reconhecidamente, o referido procedimento não foi instaurado.

 

Deste modo, apenas poderia estar em causa nos presentes autos a eventual censura da AT por, confrontada por um pedido para instauração do procedimento para prova da verdade do preço declarado, previsto no n.º 1 do art.º 139.º do CIRC, apresentado pelo contribuinte nos termos legais e em tempo, não ter instaurado tal procedimento, impedindo, consequentemente e aí sim, o contribuinte de fazer a referida prova e infirmar a presunção consagrada no art.º 64.º/2 do CIRC, em que assenta o acto tributário objecto da presente acção arbitral.

 

Ora, in casu, a Requerente não demonstra a apresentação, nos termos referidos, de um pedido para para instauração do procedimento para prova da verdade do preço declarado, previsto no n.º 1 do art.º 139.º do CIRC.

 

É certo que, desde o direito de audição em sede inspectiva, que a Requerente alega ter prova da apresentação de tal pedido. Não obstante, menos certo é que, até à presente data, não apresenta a Requerente qualquer prova de tal ocorrência, sendo que, por força do art.º 364.º/1 do Código Civil, a prova da apresentação do pedido de instauração do procedimento para prova da verdade do preço declarado, previsto no n.º 1 do art.º 139.º do CIRC deverá ser efectuada por meio de documento escrito, uma vez que essa é a forma que deve revestir o referido pedido (cfr. Art.º 54.º/3 da LGT e 26.º do CPPT).

 

Deste modo, a demonstração de que a Requerente apresentou pedido para instauração procedimento para prova da verdade do preço declarado, previsto no n.º 1 do art.º 139.º do CIRC teria de ser feita através de documento, o que, como se referiu, até à data não foi feito.

 

Não o tendo feito, e não poderá este Tribunal concluir, como pretende a Requerente, que “a ora requerida impediu a ora requerente de fazer prova da verdade do preço declarado, prevista no n.º 1 do art.º 139.º do CIRC, e, objectivamente, considerou absoluta a inilidível a presunção prevista no n.º 2 do art.º 64.º do mesmo Código.”.

 

Não obsta a tal conclusão a circunstância de, nos procedimentos prévios à liquidação a Requerente ter feito menção de que possuía tal prova, e de pretendia apresentá-la, e de que tenha reiterado tal afirmação em sede de reclamação graciosa.

 

Com efeito, o procedimento tributário rege-se por princípios de praticabilidade e celeridade (cfr. art.ºs 46.º do CPPT e 55.º da LGT), que não se compadecem com o acolhimento de posturas do contribuinte que se reconduzem à afirmação de que possuem meios de prova, mas que aguardam notificação para o fazer, sem que se justifique com qualquer obstáculo ou impedimento a não apresentação imediata do meio de prova em questão.

 

Deste modo, e face ao exposto, não se julga demonstrado que “a ora requerida impediu a ora requerente de fazer prova da verdade do preço declarado, prevista no n.º 1 do art.º 139.º do CIRC, e, objectivamente, considerou absoluta a inilidível a presunção prevista no n.º 2 do art.º 64.º do mesmo Código.”, não sendo tal juízo desconforme, pelo contrário, a qualquer preceito legal ou constitucional.

 

Assim, e face a todo o exposto, deverá improceder o pedido arbitral, absolvendo-se a Requerida do mesmo.

 

IV. DECISÃO

 

Termos em que acordam os árbitros neste Tribunal Arbitral em julgar improcedente o pedido de declaração de ilegalidade do acto de liquidação de IRC identificado no processo, no valor de €552.136,53, absolvendo a Requerida do mesmo, e condenando a Requerente nas custas, tendo em conta o já pago.

 

V. VALOR DO PROCESSO

 

De harmonia com o disposto no artigo 315.º n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de €552.136,53.

 

VI. CUSTAS

 

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em €8.568,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente.

 

 

 

Lisboa, 25 de Outubro 2018

 

 

 

 

Os Árbitros

 

 

 

(José Pedro Carvalho)

 

 

 

(Magda Feliciano)

 

 

 

 

(Manuel Pires)

 

 

 

 

 

 

 

(O texto da presente decisão foi elaborado em computador, nos termos do artigo 131.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, da alínea e) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT) regendo-se a sua redacção pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.)

 

 



[1] “Sempre que, nas transmissões onerosas previstas no número anterior, o valor constante do contrato seja inferior ao valor patrimonial tributário definitivo do imóvel, é este o valor a considerar pelo alienante e adquirente, para determinação do lucro tributável.”

[2] Cfr. Acórdão do STA, processo 820/15, de 9.03.2016, Acórdão do STA, processo n.º 881/12, de 3.12.2014.