Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 558/2022-T
Data da decisão: 2023-04-11  IVA  
Valor do pedido: € 798.410,69
Tema: IVA - Locação financeira e ALD. Métodos de dedução parcial: afectação real e pro rata. Ofício circulado n.º 30108, de 30.01.2009
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SUMÁRIO: A norma do artigo 23.º, n.º 2, do CIVA, ao permitir que Administração Tributária imponha condições especiais no caso de se verificarem distorções significativas na tributação, reproduz, em substância, a regra de determinação do direito à dedução enunciada no artigo 173.º, n.º 2, alínea c), da Directiva 2006/112/CE, correspondendo à sua transposição para o direito interno.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

RELATÓRIO

 

A..., S.A., número único de pessoa colectiva, matrícula e contribuinte fiscal  ..., com sede na Rua..., n.º ..., ...-... Lisboa (doravante, a Requerente), veio, aos 21.09.2022 e ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e dos n.os 1 e 2 do artigo 10.º, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária ou “RJAMT”) e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, requerer a constituição do tribunal arbitral.

 

É Requerida nos autos a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA, doravante “a Requerida”.

O Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) designou os signatários para formarem o Tribunal Arbitral Colectivo, disso notificando as partes, e o Tribunal foi constituído a  28.11.2022

O pedido de pronúncia arbitral tem por objecto imediato o indeferimento da reclamação graciosa apresentada pela Requerente com vista à anulação do acto tributário de liquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado referente ao ano 2020, materializado na declaração periódica de imposto com referência a Dezembro de 2020, no montante de € 798.410,69, decisão com a qual não se conforma, e por objecto mediato aquele acto tributário de liquidação de IVA.

A AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA apresentou Resposta aos 13.01.2023. defendendo-se por impugnação.

Apesar de ter, na sua resposta, protestado juntar o processo administrativo, não chegou a fazê-lo.

Na sua resposta, a Requerida sustentou a inutilidade da prova testemunhal

Aos 24.01.2023 a Requerente apresentou nos autos um requerimento pugnando pela pertinência da inquirição da prova testemunhal.

O Tribunal proferiu despacho, aos 25.01.2023 designando dia e hora para a inquirição das testemunhas arroladas pela Requerente.

A Requerida veio aos autos, aos 03.02.2023, pugnar pelo aproveitamento da prova produzida no processo 808/2021-T, referente à mesma matéria e para o que foram arroladas as mesmas testemunhas, requerimento que o Tribunal indeferiu por despacho da mesma data.

A inquirição teve lugar no dia 09 de Fevereiro de 2023, na sede do CAAD em Lisboa e, com a anuência de todos, com utilização dos meios de comunicação à distância disponibilizados pelo CAAD, via CISCO WEBEX MEETINGS, e foi gravada.

No final da inquirição, as partes acordaram em dispensar a produção de alegações e o Tribunal designou a data para a prolação do acórdão e convidou a Requerente a proceder ao pagamento da taxa de justiça subsequente e comunicar o pagamento ao CAAD nos termos do n.º 3 do artigo 4.º do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária. Foi exarada a acta da inquirição que consta dos autos.

 

POSIÇÃO DA REQUERENTE

 

Resumidamente, a Requerente alega que:

É uma instituição de crédito do tipo caixa económica bancária, cujo objecto social consiste na realização das operações descritas no artigo 4.º, n.º 1 do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro.

Realiza operações financeiras enquadráveis na isenção constante da alínea 27 do artigo 9.º do Código do IVA, que não conferem o direito à dedução deste imposto, como é o caso das operações de financiamento/concessão de crédito, e das operações relativas a pagamentos.

 

Simultaneamente, realiza também operações que conferem o direito à dedução deste imposto (cf. a alínea b) do n.º 1 do artigo 20.º do Código do IVA), concretamente, operações de locação financeira mobiliária, locação de cofres e custódia de títulos.

 

Uma vez que, simultaneamente, realiza operações que conferem o direito à dedução e operações que não conferem tal direito, a actividade prosseguida pela Requerente encontra-se abrangida por distintos regimes de dedução do IVA incorrido

 

Relativamente às situações em que a Requerente identificou uma conexão directa e exclusiva entre determinadas aquisições de bens e serviços (inputs) e operações activas (outputs) por si realizadas, aplicou, para efeitos de exercício do direito à dedução, o método da imputação directa, ao abrigo do preceituado no n.º 1 do artigo 20.º do Código do IVA. Foi o que sucedeu no âmbito da aquisição de bens objecto dos contratos de locação financeira, relativamente aos quais foi integralmente deduzido o IVA, em virtude de tais bens estarem directamente ligados a operações tributadas realizadas a jusante pela Requerente – a locação financeira –, que conferem o direito à dedução.

 

Nas aquisições de bens e serviços utilizados exclusivamente na realização de operações que não conferem o direito à dedução, a ora Requerente não deduziu qualquer montante de IVA.

 

Por fim, não sendo viável determinar um ou vários critérios objectivos passíveis de permitir, de forma rigorosa e segura, o montante do IVA dedutível através do método da afectação real, a Requerente,  para determinar o quantum de IVA dedutível relativamente às demais aquisições de bens e serviços afectos indistintamente às diversas operações por si desenvolvidas (recursos de “utilização mista”), aplicou o método geral e supletivo da percentagem de dedução, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º do Código do IVA.

 

A supra referida percentagem de dedução foi determinada tendo em consideração as orientações genéricas emanadas pela AT, i.e., a Requerente adoptou, em observância do preceituado no referido Ofício, o coeficiente de imputação específico como método de dedução do imposto incorrido nos recursos de utilização mista. Para o ano 2020, o coeficiente de imputação específico (definitivo) apurado pela Requerente cifrou-se em 3%.

 

Contudo, a Requerente sustenta que a utilização do coeficiente de imputação específico para a determinação da capacidade de dedução do IVA incorrido nos recursos que são utilizados pela actividade de gestão dos contratos e de disponibilização dos bens locados não se afigura adequado por, objectivamente, não permitir demonstrar a real utilização dos referidos recursos em cada uma das tipologias de operações desenvolvidas pela Requerente.

 

Entende que, se no cálculo da referida percentagem de dedução tivesse, simultaneamente:

 

  1. incluído os montantes respeitantes às amortizações financeiras do leasing – em sentido oposto ao sustentado pela AT; e
  2. desconsiderado os rendimentos relativos à actividade de gestão de gestão dos contratos e de disponibilização dos bens locados (mediante a adopção do método da afectação real integral nesta actividade),

 

a percentagem de dedução definitiva apurada para o ano em causa seria de 9% e o IVA dedutível, de € 1.223.368,93, pelo que, entende, cumprindo as determinações da AT, a Requerente deduziu imposto a menos do que aquele que poderia ter deduzido, de acordo com as regras do CIVA e em respeito pelo princípio da neutralidade que rege o sistema comum deste imposto, no valor de € 798.410,69.

 

A posição da Requerente é que a imposição, pela AT ao sujeito passivo, do método da afectação real, nos termos previstos no artigo 23.º, n.º 3 do Código do IVA, depende da demonstração, por parte da AT, de que a utilização do método do pro rata conduz a distorções significativas na tributação.

Pelo contrário, entende, os critérios e a metodologia de dedução determinados pela AT no Ofício em análise são totalmente desajustados da realidade das actividades em causa, conduzindo, estes sim, a distorções da tributação.

Sustenta que o método da afectação real implica a aferição do imposto (parcialmente) dedutível com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização dos bens e serviços adquiridos nas actividades/operações sujeitas a distintos regimes de IVA, com e sem direito à dedução

A Requerente considera, assim, ilegais as instruções da AT vertidas Ofício-Circulado n.º 30108 ao , por duas ordens de razões:

A primeira consiste na imposição do método da afectação real quando não se verificam os pressupostos que a legislação portuguesa elege como determinantes para que tal imposição autoritária possa verificar-se (conforme previstos no n.º 3 do artigo 23.º do Código do IVA: serem exercidas actividades económicas distintas e o pro rata conduzir a distorções significativas na tributação).

 

A segunda prende-se com o facto de, perante a impossibilidade de aplicação concreta do método da afectação (real) aos recursos de utilização mista (dado que, como atrás referido, é inviável identificar critérios objectivos que com um mínimo de rigor e segurança conduzam a uma correcta concretização/mensuração da mencionada afectação ou utilização efectiva), determinar a aplicação de uma percentagem de dedução calculada com exclusão de uma parte do valor (relevante) das operações de locação financeira para efeitos de IVA, contraria a fórmula única e injuntiva prevista no artigo 174.º da Directiva IVA e nos n.os 4 e 5 do artigo 23.º do Código do IVA.

 

Conclui sustentando que a solução preconizada pelo referido Ofício-Circulado n.º 30108 não tem fundamento legal face ao disposto nos n.os 1 a 5 do artigo 23.º do Código do IVA, que tal imposição viola o princípio da legalidade e a reserva relativa de competência da Assembleia da República [artigos 103.º, n.º 2, e 165.º, n 1, alínea i), da CRP] e que sempre seria inválida porque incompatível com o disposto nos artigos 173.º e 174.º da Directiva IVA, que não confere qualquer margem de discricionariedade aos Estados-Membros no que respeita às condições para a sua transposição

 

Em defesa da sua posição, a requerente invoca um conjunto de decisões arbitrais proferidas no âmbito do CAAD sobre o tema em apreço, bem como a decisão do TJUE no Acórdão Volkswagen Financial Services (processo C-153/17).

 

Entende que se encontra ainda dentro do prazo para proceder à dedução do IVA por si incorrido, no montante de € 798.410,69 para o ano 2020, que, por erro relativamente ao regime jurídico aplicável à dedução de imposto relativo a recursos de utilização mista, não deduziu e peticiona o respectivo reembolso, acrescida de juros indemnizatórios contados desde a data do pagamento indevido da prestação tributária até ao seu reembolso (nos termos e para os efeitos dos artigos 43.º, n.ºs 1 e 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, do artigo 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril).

A título subsidiário, na medida em que não seja claro para o presente Tribunal o alcance das normas da Directiva IVA que possam, em seu juízo, interferir com a boa solução deste caso, requer que o Tribunal arbitral promova o reenvio prejudicial para o TJUE das questões que entenda suscitar relativamente à consideração do valor das amortizações financeiras relativas aos contratos de locação financeira do cálculo da percentagem de dedução aplicada ao IVA incorrido nos recursos de utilização mista.

 

POSIÇÃO DA REQUERIDA

 

 

Sumariamente, a Requerida considera que:

As instruções vertidas no Ofício-Circulado n.º 30108, de 30 de Janeiro de 2009 não são ilegais e são obrigatoriamente aplicáveis ao cálculo do IVA dedutível da Requerente, por força do disposto no artigo 23, n.º 3, alínea b), do Código do IVA, que permite à Administração Tributária afastar a aplicação do regime de pro rata quando o mesmo conduza a distorções significativas no apuramento do imposto a deduzir. O coeficiente de imputação específico é, sustenta, adequado, salvaguarda a neutralidade e está de acordo como as normas de direito europeu, nomeadamente os artigos 173.º a 175.º da Directiva IVA, e de direito interno (artigos 16.º e 23.º do Código do IVA).

No seu entender, o artigo 23.º, n.º 3, alínea b) do Código do IVA confere à AT o poder de obrigar o sujeito passivo a adoptar o método previsto no Ofício-circulado n.º 30108, tendo em vista afastar distorções significativas na tributação.

Sustenta que a locação financeira mobiliária é, na substância, uma modalidade de financiamento e que a renda se decompõe em duas partes, uma, correspondente ao capital ou amortização financeira que traduz, grosso modo, o “reembolso da quantia emprestada” (quantia que constitui o preço de aquisição do bem dado em locação), e a outra, correspondente a juros e encargos, que constitui a remuneração do locador. Em consequência, entende,, tendo o locador, no momento de aquisição do bem objecto da locação, exercido o direito à dedução integral do IVA que onerou essa aquisição, por via do método da imputação directa, deve ser expurgada do cálculo da percentagem de dedução a parte da renda que corresponde ao valor de amortização financeira, já que esta consubstancia a restituição do capital financiado/investido para a aquisição do bem locado.

Deste modo, entende, é apenas o diferencial (genericamente, de juros) que se encontra conexo com a aquisição de recursos de utilização mista (indistintamente em operações com e sem direito à dedução) e entendimento diverso permitiria um aumento artificial da percentagem de dedução do IVA incorrido nos inputs de utilização mista.

Invoca em abono da sua posição o acórdão do Tribunal de Justiça no processo Banco Mais, C-183/13, de 10 de Julho de 2014, e defende que a interpretação deste tribunal europeu vincula os tribunais nacionais, nos termos do artigo 8.º, n.º 4 da Constituição;

Invoca, bem assim, o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, proferido no processo n.º 052/19.0BALSB, de 4 de Março de 2020, que vem confirmar que a norma do artigo 23.º, n.º 2  do Código do IVA reproduz, em substância, a regra da Sexta Directiva que estabelece que os Estados-Membros podem autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na utilização da totalidade ou parte dos bens ou serviços, em linha com a jurisprudência anterior daquele Supremo Tribunal (arestos proferidos nos processos n.º 081/13, de 4 de Março de 2015, n.º 0970/13, de 3 de Junho de 2015, n.º 01874/13, de 17 de Junho de 2015, n.º 0330/14, de 27 de Janeiro de 2016, e n.º 0485/17, de 15 de Novembro de 2017, entre muitos outros) e uniformizada no Acórdão Uniformizador de 24 de Março de 2021, no processo 87/20.0BALSB.

Desta forma, conclui, não ocorre violação do princípio da legalidade, da neutralidade e da reserva de lei, pois o artigo 23.º do Código do IVA determina expressamente nos seus n.ºs 3 e 2 que a AT pode impor condições especiais (incluindo um método pro rata mitigado), pelo que não só o conteúdo das normas que constam do Ofício-circulado é conforme ao direito (Directiva IVA), como o seu estabelecimento através desse processo está de acordo com as instruções do legislador.

Mais defende que a utilização de bens e serviços de utilização mista por parte da Requerente não foi sobretudo determinada pela disponibilização dos bens locados. Em relação à disponibilização destes, os custos em que o locador incorre circunscrevem-se essencialmente à aquisição desses veículos e os restantes custos que emergem na vigência do contrato de locação, decorrem das vicissitudes deste e situam-se ao nível do financiamento e da gestão do contrato. Todos os custos em que a Requerente incorre inerentes à gestão do contrato se encontram reflectidos na parte da renda que corresponde aos juros e que constitui a remuneração do locador.

Em qualquer caso, termina, cabe exclusivamente à Requerente provar que as despesas com a aquisição de bens ou serviços de utilização mista são, na parte em que se ligam ao negócio da locação financeira, “sobretudo” determinadas pela disponibilização dos veículos e não pelo financiamento e gestão dos contratos de locação financeira, prova que, no seu entender, se cinge a documentos e não pode ser feita por testemunha e que, portanto, a Requerente não fez nestes autos.

Conclui pela improcedência do pedido de pronúncia arbitral.

 

SANEAMENTO

 

O Tribunal foi regularmente constituído e é competente para conhecer do pedido de anulação do acto de liquidação de IVA controvertido e da decisão da reclamação graciosa que o confirmou.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas.

O processo não sofre de quaisquer vícios que o invalidem.

 

***

 

Fixa-se o valor do processo em € 798.410,69 (setecentos e noventa e oito mil quatrocentos e dez euros e sessenta e nove cêntimos) de harmonia com o disposto nos artigos 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT) e 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT

 

MATÉRIA DE FACTO

 

Factos provados

 

Com relevância para a decisão de mérito, o Tribunal considera provada a seguinte factualidade:

  1. A Requerente é uma instituição de crédito do tipo caixa económica bancária, cujo objecto social consiste na realização das operações descritas no artigo 4.º, n.º 1 do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro.
  2. No âmbito da sua actividade, a Requerente realiza operações financeiras que não conferem direito à dedução de IVA por serem enquadráveis na norma de isenção constante do n.º 27 do artigo 9.º do CIVA.
  3. Realiza, também, operações que conferem o direito à dedução deste imposto, como locação financeira mobiliária, locação de cofres e custódia de títulos, entre outras (artigo 20.º n.º 1 al. b) do CIVA).
  4. Relativamente às situações em que a Requerente identificou uma conexão directa e exclusiva entre determinadas aquisições de bens e serviços (inputs) e operações activas (outputs) por si realizadas, aplicou, para efeitos do exercício do direito à dedução, o método da imputação directa, nos termos do artigo 20.º, n.º 1, do CIVA.
  5. No âmbito da aquisição dos bens objecto dos contratos de locação financeira – v.g. a aquisição de uma viatura/máquina para subsequente locação financeira –, relativamente aos quais foi deduzido, na íntegra, o IVA suportado, como resultado de tais bens estarem directamente ligados a operações tributadas, realizadas a jusante pela Requerente – a locação financeira –, que conferem o direito à dedução.
  6. Nas aquisições de bens e serviços utilizados exclusivamente na realização de operações que não conferem o direito à dedução, a Requerente não deduziu qualquer montante de IVA.
  7. Nas situações em que a Requerente identificou uma conexão directa, mas não exclusiva, entre determinadas aquisições de bens e serviços (inputs) e operações activas (outputs) por si realizadas, e logrou determinar critérios objectivos do nível de utilização efectiva, aplicou o método da afectação real, nos termos do artigo 23.º, n.º 2, do CIVA.
  8. Para determinar o quantum do IVA dedutível relativamente às demais aquisições de bens e serviços – afectos indistintamente às diversas operações por si desenvolvidas, isto é, aos recursos de utilização mista –, a Requerente aplicou o método previsto no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30108, de 30 de Janeiro de 2009.

 

  1. A Requerente adotou um manual de procedimentos para o leasing automóvel e para o leasing de equipamentos, a observar obrigatoriamente por todos os seus colaboradores, que estabelecem standards para as várias ações da Requerente durante a “ vida do leasing” como sejam a confirmação de que o cliente possui um seguro válido para a viatura e que o respectivo pagamento se encontra em dia, a legalização da viatura;  interacções com a contabilidade, com as autoridades, com os clientes, com a seguradora; emissão de recibos e de facturas das rendas cobradas mensalmente pela Requerente; alterações dos titulares dos contratos, a pedido dos clientes; apresentação dos valores de liquidação; tratamento dos IUC’s ;i dentificação do cliente quando haja lugar a pagamento de multas;

 

  1.  No âmbito da atividade de aquisição de bens a locar, da sua transmissão e/ou disponibilização aos seus clientes, a Requerente dispõe de vários balcões físicos, aos quais os clientes podem dirigir-se com vista a espoletar a celebração de um contrato de locação financeira;
  2. A actividade de locação financeira é composta por dois tipos de subactividades: i) aquisição dos bens que são locados e à sua transmissão e disponibilização aos clientes; ii) financiamento propriamente dito e nomeadamente, no que toca à subactividade i), implica a intervenção de várias áreas internas da Requerente: áreas de negócio, direcção de risco, área de desenvolvimento de negócio, direcção de compras, direcção de operações, assessoria jurídica e direcção financeira.
  3. Em a Requerente submeteu a sua declaração periódica de IVA relativa ao período tributário de 2020;
  4. Naquela declaração periódica, a Requerente aplicou uma percentagem de dedução de IVA sobre os gastos comuns de 3% para 2020, cumprindo as instruções genéricas fixadas pela Administração Tributária no Ofício-Circulado n.º 30108, de 30 de Janeiro de 2009, que aplicada ao total do IVA incorrido nos recursos de utilização mista adquiridos nesse ano (no montante de € 14.165.274,74), se materializou no valor de € 424.958,24 de IVA dedutível.
  5. Sustentando o entendimento de que a percentagem de dedução definitiva apurada para o ano em causa deveria de 9% e o IVA dedutível, de € 1.223.368,93, e, portanto, ao cumprir as determinações da AT deduziu imposto a menos do que aquele que poderia ter deduzido, de acordo com as regras do CIVA e em respeito pelo princípio da neutralidade que rege o sistema comum deste imposto, no valor de € 798.410,69, a Requerente apresentou à Administração Tributária uma reclamação graciosa, pedindo a correcção pro rata de dedução apurado no ano 2020;
  6. No dia 23 de Junho de 2020, a Requerente foi notificada por via da decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa (entretanto autuada com o n.º ...2022...), proferida pelo Senhor Chefe de Divisão de Justiça Tributária da Unidade dos Grandes Contribuintes da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

Factos não provados

 

 

Não se provou que a utilização de bens ou serviços de utilização mista por parte da instituição bancária foi sobretudo determinada pela gestão dos contratos e disponibilização os bens locados.

Não foram alegados pelas partes quaisquer outros factos, com relevo para a apreciação do mérito da causa, que não se tenham provado.

Fundamentação da decisão sobre a matéria de facto

 

A convicção sobre os factos dados como provados fundou-se nas alegações da Requerente e da Requerida não contraditadas pela parte contrária, sustentadas na prova documental, cuja autenticidade e correspondência à realidade também não foram questionadas.

No que respeita ao facto julgado não provado, a convicção do Tribunal fundou-se no depoimento das testemunhas B... e C... que não só não provaram como contrariaram até a tese da Requerente. Designadamente, afirmaram que os gastos gerais se encontram englobados na taxa de juro que é suportada pelos clientes no pagamento da renda,  que o juro é calculado de forma a cobrir o risco, os custos directos e indirecto; que a Requerente emite uma factura inicial com despesas de abertura/iniciais de contrato, após a celebração do contrato de locação financeira, em que é liquidado IVA, a suportar pelo cliente, com a nomenclatura de despesas administrativas e que tais despesas englobam os custos iniciais de contrato, incluindo com a disponibilização de veículos.

As testemunhas confirmaram ainda o que afirma a Requerida na sua Resposta, relativamente ao facto de a Requerente se fazer reembolsar, através de prestações autónomas da renda, que designa de comissões -  contratualizadas e tabeladas –  de um conjunto de despesas em que incorre com vicissitudes do contrato, como sejam recuperação de valores em dívida, alterações contratuais, emissão de documentos, tratamento de multas ou amortizações antecipadas. Existe mesmo na tabela da Requerente uma comissão de gestão do contrato.

Tudo isto contaria a tese de que a utilização dos recursos de mistos é sobretudo determinada pela gestão dos contratos e disponibilização dos bens locados e que o reembolso desta utilização está incluída na renda cobrada.

MATÉRIA DE DIREITO:

A questão decidenda prende-se com o método de dedução (parcial) do IVA nos recursos de utilização mista das instituições de crédito que desenvolvem as actividades de leasing e ALD em simultâneo com as actividades de concessão de crédito, é sobretudo uma questão de Direito e não é uma questão nova, tendo sido já amplamente debatida em Tribunais, arbitrais e judiciais, e objecto de pronúncia por parte do TJUE, jurisprudência que, aliás, quer a Requerente quer a Requerida citam, pretendendo ambas que vai no sentido que propugnam.

É considerável o lastro já adquirido sobre este tema, tendo em conta que a questão foi objecto de duas pronúncias no Tribunal de Justiça, nos processos Banco Mais, C-183/13, de 10 de Julho de 2014, e Volkswagen Financial Services, C-153/17, de 18 de Outubro de 2018, a que acresce o profuso debate na jurisprudência nacional da última década.

No que respeita ao Acórdão Volkswagen Financial Services (UK) Ltd., porém, há que fazer notar que estava em causa uma sociedade financeira do Reino Unido – que também realizava operações de leasing automóvel –, mas cujo direito do Reino Unido, diferentemente do que acontece em Portugal, obrigava à desagregação das rendas de leasing em duas operações para efeitos de IVA.

A componente do juro estava isenta de imposto e apenas a componente da amortização era tributada, sendo que, a somar a isto, as autoridades fiscais locais também excluíam a componente de amortização do pro rata, por entenderem que os custos mistos estavam predominantemente associados à componente juro do financiamento, que era o cerne da actividade.

Assim, estando a componente de juros isenta enquanto operação de crédito, o método aplicado pelo Reino Unido tinha um resultado mais gravoso para os contribuintes e não tão rigoroso quanto o assumido a nível nacional, uma vez que, para efeitos de dedução, não eram tidas em conta as despesas com os bens e serviços repercutidos na componente juros. Os inputs incorridos não eram aí sequer considerados para efeitos do exercício do direito à dedução (o que o Tribunal de Justiça não aceitou), diversamente do que ocorre na situação vertente, em que o IVA incorrido com os gastos mistos é efectivamente deduzido em parte, sendo a respectiva medida determinada de forma aproximada à realidade, através do método de imputação específica concretizado no ponto 9 do citado Ofício-circulado n.º 30108.

O raciocínio do Acórdão Volkswagen não pode, pois, ser transposto de forma directa para a situação concreta, já que, no caso português, o IVA incide sobre a totalidade da renda, abarcando a componente do juro; componente que, de acordo com o Acórdão do TJUE C-183/13, constitui a contrapartida dos custos (bens e serviços) incorridos no financiamento e na gestão dos contratos de locação financeira suportados pelo locador financeiro, uma vez que constituem o essencial da utilização dos bens e serviços de utilização mista destinada à realização das operações de locação financeira para o sector automóvel – ponto 34 do Acórdão TJUE C-183/13.

A questão em causa nos presentes autos já se colocou por diversas vezes ao Supremo Tribunal Administrativo, que respondeu de forma uniforme nos diversos Acórdãos proferidos a seu respeito – veja-se, a título de exemplo, os Acórdãos proferidos pela Secção de Contencioso Tributário do STA a 4 de Março de 2015 no Processo n.º 081/13, a 3 de Junho de 2015 no Processo n.º 0970/13, a 17 de Junho de 2015 no Processo n.º 01874/13, a 27 de Janeiro de 2016 no Processo n.º 0331/14 e a 15 de Novembro de 2017 no Processo n.º 0485/17 e, mais recentemente, em dois Acórdãos do pleno da Secção de Contencioso Tributário, proferidos nos processos n.ºs 084/19.8BALSB e 0101/19.1BALSB, de 24 de Fevereiro de 2021 e de 20 de Janeiro de 2021, respectivamente, foi no sentido da admissibilidade do critério de imputação específica consagrado no n.º 9 do Ofício-circulado n.º 30108, à luz do direito da União Europeia e da legislação nacional.

Diversamente, a jurisprudência arbitral que se pronunciou inicialmente sobre esta matéria propendia para a inadmissibilidade do mencionado critério de imputação específica, em linha com a argumentação da Requerente, por entender que se estaria perante um terceiro método, sem cabimento no artigo 23.º do Código do IVA, resultando, desse modo, violado o princípio da legalidade tributária.

Porém, na sequência do Acórdão do STA de 4 de Março de 2020, no processo n.º 07/19, assistiu-se a uma inflexão no sentido das decisões arbitrais, de que são exemplos as proferidas nos processos n.º 759/2019-T, de 5 de Setembro de 2020, n.º 927/2019-T, de 21 de Setembro de 2020, e n.º 276/2020, de 27 de Abril de 2021, concluindo-se, ao contrário da Requerente, que “a norma do artigo 23.º, n.º 2, do CIVA, ao permitir que a Administração Tributária imponha condições especiais no caso de se verificarem distorções significativas na tributação, reproduz, em substância, a regra de determinação do direito à dedução enunciada no artigo 173.º, n.º 2, alínea c) da Directiva 2006/112/CE, correspondendo à sua transposição para o direito interno”.

O Acórdão do STA de 24 de Março de 2021, proferido no processo 087/20.0BALSB, veio uniformizar jurisprudência no sentido de que:

Nos termos do disposto no artº. 23.º, n.º 2, do CIVA, conjugado com a alínea b) do seu n.º 3, a AT pode obrigar o sujeito passivo que efectua operações que conferem o direito a dedução e operações que não conferem esse direito, a estruturar a dedução do imposto suportado na aquisição de bens e serviços que sejam utilizados na realização de ambos os tipos de operações (inputs promíscuos) através da afectação real de todos ou parte dos bens ou serviços, quando a aplicação do processo referido no n.º 1 conduza ou possa conduzir a distorções significativas na tributação”.

Na tese da Requerente, o artigo 23.º do Código do IVA só prevê dois métodos de dedução, o pro rata e a afectação real, constituindo o coeficiente de imputação específico um terceiro método, desprovido de base legal, pois, em seu entender, não constitui um critério objectivo que permita determinar o grau de utilização dos recursos mistos e, por essa razão, não tem assento no mencionado preceito, nem em qualquer outro previsto na lei interna.

Assim, sem prejuízo de reconhecer que o artigo 173.º, n.º 2 alínea c) da Directiva IVA contempla tal possibilidade, atribuindo essa prerrogativa aos Estados-Membros, sustenta que a norma comunitária não foi em parte transposta pelo legislador português, que não previu a possibilidade de um pro rata mitigado.

 Afigura-se-nos, todavia, que sem razão.

Desde logo, no processo C-183/13, o Tribunal de Justiça considerou que os n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 23.º do Código do IVA constituem a transposição do artigo 173.º, n.º 2, alínea c) da Directiva IVA, correspondente ao anterior artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c) da Sexta Directiva, posição que foi sucessivamente reafirmada pelo Supremo Tribunal Administrativo em múltiplos acórdãos. Neste âmbito, referimos, a título ilustrativo, além dos supracitados, os acórdãos de 29 de Outubro de 2014, processo n.º 1075/13; de 4 de Março de 2015, processo n.º 1017/12; de 3 de Junho de 2015, processo n.º 0970/13; de 17 de Junho de 2015, processo n.º 0956/13; e de 15 de Novembro de 2017, processo n.º 0485/17.

Com efeito, o legislador português reproduziu no artigo 23.º do Código do IVA o essencial do regime de dedução parcial, i.e., aplicável aos recursos de utilização mista, previsto nos artigos 173.º a 175.º da Directiva IVA.

Tal como na Directiva, o método do pro rata é consagrado como método supletivo de dedução do IVA (artigo 23.º, n.º 1, alínea b) do Código). Alternativamente, os sujeitos passivos podem optar pelo método da afectação real, sem prejuízo de a AT poder “impor condições especiais ou […] fazer cessar esse procedimento” se verificar que o mesmo provoca ou pode provocar [em função dos critérios objectivos empregues] distorções significativas na tributação (artigo 23.º, n.º 2 do Código). Por fim, pode ser a própria AT a impor a afectação real em detrimento do pro rata quando o sujeito passivo exerça actividades distintas ou este método seja passível de causar distorções significativas na tributação (artigo 23.º, n.º 3 do Código).

Como é salientado no acórdão do Tribunal de Justiça C-183/13, inexistindo, na Directiva, regras que concretizem o método da afectação real, cabe aos Estados-Membros estabelecê-las, tendo em conta “a finalidade e a sistemática da referida directiva e os princípios em que assenta o sistema comum do IVA”, nomeadamente o da “neutralidade quanto à carga fiscal de todas as actividades económicas”.

Importa, para tanto, ter em conta as características específicas próprias às actividades dos sujeitos passivos, a fim de se obterem resultados mais precisos na determinação do alcance do direito à dedução, pois o princípio da neutralidade fiscal, inerente ao sistema comum do IVA, exige que as modalidades do cálculo da dedução reflictam objectivamente a parte real das despesas efectuadas com a aquisição de bens e serviços de utilização mista que pode ser imputada a operações que conferem direito à dedução.

Declara a este propósito o Pleno do Supremo Tribunal Administrativo (processo n.º 084/19.8BALSB) que a norma do artigo 23.º, n.º 2 do Código do IVA “ao permitir que a AT imponha condições especiais no caso de se verificarem distorções significativas na tributação, reproduz, em substância, aquela regra de determinação do direito à dedução enunciada na Directiva do IVA”, que estabelece que os Estados-Membros podem autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na afectação da totalidade ou parte dos bens ou serviços, nos exactos termos do disposto no artigo 173.º, n.º 2, alínea c) da Directiva IVA.

Assim, não se verifica o vício de ilegalidade que a Requerente sindica em relação ao ponto 9 do Ofício-circulado n.º 30108, que funda a liquidação controvertida, esclarecendo o Pleno do do Supremo Tribunal Administrativo, em acórdão proferido no processo n.º 101/19.1BALSB, que a expressão «afectação real» empregue pelo artigo 23.º do Código do IVA corresponde à expressão «utilização» adoptada na Sexta Directiva, a qual, “por sua vez «não pode deixar de ser entendida como imputação do uso real e efectivo que cada bem ou serviço adquirido tenha em cada um dos tipos de operações em que é usado conjuntamente» (cit. José Guilherme Xavier de Basto e Maria Odete Oliveira, in «Desfazendo  mal-entendidos em matéria do direito à dedução…», Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, Ano 1, número 1, pág. 50). Interpretação que a alteração introduzida pela Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Janeiro, veio de alguma forma confirmar, ao aditar a frase «…com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito à dedução e em operações que não conferem esse direito»”.

E agora, acrescentamos nós, menos dúvidas existirão, pois, a própria Directiva passou a mencionar, em vez da expressão «utilização», outra coincidente com a empregue no Código do IVA: a “afectação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços”.

Seguindo ainda este aresto,

«[…a] questão que ficava era a de saber se o método previsto no ponto 9 do ofício circulado n.º 30108 [...] era ainda um método adequado a atender à intensidade real e efectiva da utilização dos bens ou serviços em cada um dos tipos de operações para os efeitos da Sexta Directiva e da alínea c) do n.º 3 do artigo 17.º em particular.

E foi a esta questão que, no fundo, o Tribunal de Justiça respondeu afirmativamente.

Desde que fosse apurado que a utilização de bens ou serviços de utilização mista pelo sujeito passivo era sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos de locação financeira (parágrafo 33 do acórdão). […].

Não é verdade, por isso, que o Tribunal de Justiça tivesse interpretado o direito interno português. Na parte em que se referiu ao artigo 23.º do Código do IVA, limitou-se a reconhecer a semelhança e a quase sobreposição entre a redacção do seu n.º 2 (no segmento acima assinalado) e a disposição comunitária correspondente.

Todavia, ao decidir que o método proposto pela Administração Tributária do Estado português se conformava com a lei comunitária, também permitiu que se concluísse que se conformava com aquele segmento do dispositivo nacional sem necessidade de considerandos adicionais. Precisamente porque essa parte do dispositivo nacional constituía a transposição para o direito interno da disposição comunitária.».

Acerca da posição de que um pro rata mitigado não constitui um método de afectação real, a que a aqui Requerente também adere, o Supremo Tribunal Administrativo sustenta que não é assim, porque não existe apenas uma forma de proceder à afectação de bens e serviços:

«A confirmar que o sistema de afectação real comporta diferentes modalidades e apresenta, por isso, uma certa plasticidade que permita ajustar o sistema de dedução às especificidades da actividade prosseguida pelo sujeito passivo vem a segunda parte do preceito, segundo a qual a Administração Tributária pode impor «condições especiais». Isto é, condições que permitam o «afinamento» (a expressão é do artigo que acima citamos, pág. 62) do método de dedução. Pelo que a Recorrente tem razão nesta parte: o método a que alude o ponto 9 do ofício-circulado supra aludido não tem apenas cabimento na lei comunitária; também tem cabimento na lei interna.».

            E conclui o STA que, sob este prisma, as referências à violação do princípio da legalidade e da reserva de lei não têm cabimento. Posição que, pelas razões acima expostas, aqui se acompanha.

Sérgio Vasques vai mais além e conclui que “aquilo que, no contexto do sistema IVA, consubstancia o método da afectação real, é questão que não está na disponibilidade dos tribunais nacionais determinar.”, numa remissão implícita para a competência do Tribunal de Justiça para dirimir tal questão, conforme este a exerceu no caso Banco Mais [1].

Assente o pressuposto de que o critério de imputação específica é enquadrável no método da afectação real, uma segunda questão que daí deriva prende-se com saber se esse método constitui um critério objectivo e é ajustado, no sentido de constituir “uma modalidade do cálculo de dedução que reflicta objectivamente a parte real das despesas efectuadas com bens ou serviços de utilização mista que é imputada a operações que conferem o direito à dedução.”

            Com efeito, de acordo com o TJUE, importa que o critério adoptado seja mais preciso do que o resultante do método residual do pro rata, considerando as especificidades do sujeito passivo, o que acontece se a utilização dos bens e serviços for sobretudo determinada pelo financiamento e gestão dos contratos, interpretação que o Supremo Tribunal Administrativo entende também dever ser extraída das disposições nacionais.

O citado Ofício-circulado n.º 30108 sustenta que se trata de um método menos susceptível de provocar vantagens ou prejuízos injustificados e de conduzir a distorções significativas na tributação. O que, de uma forma geral, é uma asserção válida, atentas as características-padrão da actividade de locação financeira.

De facto, a remuneração da actividade de leasing e ALD, apesar de juridicamente configurada como uma renda unitária, do ponto de vista da substância económica corresponde tendencialmente a apenas uma das duas componentes compreendidas nesta renda, “os juros e outros encargos”, o que é reflectido no tratamento contabilístico conferido às locações, nos termos da IFRS 16, que as equipara às operações de financiamento ou concessão de crédito. 

 O valor do capital que é “amortizado” (no sentido de reembolsado ou pago), representa, na substância, o valor do bem escolhido pelo locatário e que a este foi cedido. Ou seja, quando essa quantia é paga pelo locatário, nomeadamente via rendas, não constitui a remuneração da actividade do locador, mas o pagamento parcelar do custo de aquisição do bem locado, in casu, viaturas automóveis, ou, dito de outro modo, o reembolso gradual e progressivo do preço da viatura que findo o contrato, e se este se executar e desenvolver dentro da normalidade, passará para a esfera jurídica do locatário.

 Assim, a actividade do locador, que disponibiliza a viatura ao locatário porque despendeu os meios financeiros para o efeito, é remunerada pela componente da renda, aqui denominada de “juros e outros encargos”, que excede o valor do reembolso do capital usado para adquirir a viatura.

Do ponto de vista do IVA, o valor do imposto liquidado na renda (output) referente à componente de reembolso do capital (originariamente usado para adquirir a viatura) está afecto por imputação directa, à dedução, na sua esfera, do IVA incorrido na aquisição dessa viatura (input). O valor do capital debitado ao locatário e do IVA liquidado corresponderá ao do custo de aquisição da viatura e do respectivo IVA deduzido, em virtude dessa imputação/afectação directa, e em razão de tal componente, não contemplar, à partida, qualquer margem para acomodar ou prever outros inputs, como os de utilização mista em causa nesta acção, nem o “lucro” da operação.

Deste modo, é a componente da renda remanescente ao capital (este exclusivamente afecto ao input da viatura adquirida para locação) que, em princípio, reflecte a ponderação por parte do sujeito passivo dos gastos (inputs) que estima incorrer na operação e da sua margem financeira. É esta componente dos juros e outros encargos que representa, em regra, a (única) remuneração económica dos gastos da actividade de leasing e ALD, pois a outra, a do capital, esgota-se com o input da aquisição da viatura, não sobrando qualquer valor para imputar a outros gastos/inputs.

Assim sendo, para efeitos de determinação da dedutibilidade dos gastos mistos, a comparação entre as diversas contraprestações da actividade financeira da Requerente apenas será a priori proporcional e equilibrada se tiver em conta a componente de juros e outros encargos e já não a do capital, que, em princípio, não apresenta conexão com esses gastos mistos e apenas com o input de aquisição do veículo, já deduzido integralmente pelo método da imputação directa.

            De outra forma estaríamos a comparar realidades diversas, nomeadamente juros de financiamentos concedidos no contexto da actividade geral, com juros e capital do leasing. Nesta situação, a comparação apenas será paritária se incluirmos na fracção que apura a proporção do IVA dedutível, para além do capital e juros do leasing, o valor dos empréstimos e dos juros recebidos na restante actividade.

O método pro rata que a Requerente pretende aplicar traduzir-se-ia no incremento significativo da percentagem de dedução sem que o mesmo tivesse qualquer conexão com um presumível consumo equivalente de IVA nos gastos mistos pela actividade de leasing. Pelo que se verifica a condição de que o método do pro rata é, em abstracto, passível de causar na situação em análise um acréscimo injustificado do nível de dedução do IVA nos recursos de utilização mista, derivado da consideração da componente de capital da renda de leasing (que, em princípio, não tem conexão directa com esses gastos) no cômputo da percentagem de dedução acompanhada, em simultâneo, da não consideração do capital mutuado, relativo à restante actividade financeira, por forma a que as realidades sejam comparáveis/equivalentes.

            Ao contrário do afirmado pela Requerente, o critério em análise é um critério de natureza objectiva embora aproximativo, característica que é, aliás, comum aos outros critérios objectivos comummente aceites e aplicados no método da afectação real, como o número de pessoas afectas às actividades, o número de horas homem incorridas, ou os metros quadrados ocupados, entre outros. Todos estes critérios, apesar de objectivos, não podem deixar de ser encarados como aproximativos da realidade e não como um espelho rigoroso.

            Uma exigência de rigor milimétrico representaria a impossibilidade de aplicar a afectação real, pois nenhum dos referidos critérios garante a exacta medida de consumo dos recursos por cada uma das actividades/operações, com e sem direito à dedução, e traduziria uma interpretação de um rigor formalista incompatível com o princípio da neutralidade do imposto. A pretexto de um alegado incumprimento de requisitos dificilmente alcançáveis, viabilizaria a dedução de imposto em montante consideravelmente superior ao que corresponde ao consumo (aproximado) dos bens e serviços pelas operações que conferem direito à dedução, transformando imposto não dedutível em imposto efectivamente deduzido pelo sujeito passivo (ou vice-versa).

No que respeita, finalmente, à questão da prova dos factos constitutivos do direito à dedução, é de aplicar o entendimento sedimentado na jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, reiterado nos dois recentes acórdãos do Pleno acima identificados (de 2021), de que quando o acto de liquidação adicional do IVA se fundamenta no não reconhecimento das deduções declaradas pelo sujeito passivo, cabe a este a prova dos factos constitutivos do direito à dedução.

Desta forma, caberia “ao sujeito passivo alegar e demonstrar que, no seu caso concreto, a utilização os bens ou serviços mistos não era sobretudo determinada pela gestão e financiamento dos contratos. Solução que reputamos adequada também porque o sujeito passivo, dada a sua proximidade com a fonte produtora, está mais bem posicionado para expor as especificidades do seu negócio.”

Prova que a Requerente não só não logrou fazer como foi, aliás, contrariada pela testemunhas por ela arroladas, nos termos já explicitados na motivação da decisão sore a matéria de facto.

EM SUMA

 

  1.  O citado Ofício-circulado n.º 30108 não constitui uma mera interpretação administrativa do artigo 23.º do Código do IVA. Como resulta dos seus próprios termos, contém uma normação prescritiva, legalmente habilitada no n.º 2 do artigo 23.º daquele Código, impondo, com os fundamentos contemplados no n.º 8 do Ofício, a adopção do coeficiente de imputação específico atrás descrito. Trata-se, pois, do exercício da faculdade ou prerrogativa de determinar “condições especiais” atribuída pelo citado n.º 2 do artigo 23.º do Código do IVA à Autoridade Tributária;
  2. A imposição da referida metodologia de dedução parcial não é arbitrária, fundamentando o ponto 8 do Ofício-circulado n.º 30108 o seguinte: o método da percentagem de dedução (pro rata) “é susceptível de provocar vantagens ou prejuízos injustificados pela falta de coerência das variáveis nele utilizadas, ou seja, pode conduzir a «distorções significativas na tributação»”. Variáveis que, como antes se explicitou, têm de ter comparabilidade económica, indissociável da neutralidade do IVA, não se podendo retirar um rácio válido ou proporção que represente uma presunção do consumo de recursos pelas diversas actividades, quando as realidades que constituem o termo de comparação são objecto de métricas distintas, a saber:
    1. Actividade financeira – juros provenientes da concessão de crédito;
    2. Actividade de leasing e de ALD – juros + capital;
  3. Nos moldes preconizados na orientação administrativa, para que a comparação das operações tenha “coerência” e traduza uma proporção adequada, quer a actividade financeira, quer a actividade de leasing, substancialmente equiparadas/áveis numa perspectiva económica, devem considerar a remuneração, i.e., os juros;
  4.  A aplicação da directriz administrativa contida no Ofício-circulado n.º 30108 não carece da mediação de um acto administrativo em matéria tributária, cabendo a demonstração de não estarem preenchidos os respectivos pressupostos (a mencionada falta de coerência das variáveis utilizadas condutora de distorções significativas na tributação) aos sujeitos passivos que invocam o direito à dedução, nos termos do disposto no artigo 74.º, n.º 1 da LGT;
  5. Não se verifica uma exigência de “prova diabólica”, circunscrevendo-se a questão de facto essencial à demonstração (de um facto positivo) de que a utilização mista dos bens e serviços foi também e manifestamente determinada pela disponibilização dos bens;
  6. O ónus da prova impendia sobre a Requerente, que não o satisfez;
  7. Nos termos da jurisprudência dos Tribunais superiores, não resulta violado o princípio da legalidade (artigos 103.º, n.ºs 2 e 3 e 165.º, n.º 1, alínea i) da Constituição), desde logo, porque o método aplicado e as circunstâncias em que o foi constam de norma legal permissiva;
  8. Não se constata que a situação em apreço se afaste dos pressupostos e critérios subjacentes à interpretação do Tribunal de Justiça no processo C-183/13. Pelo contrário, afigura-se estarem em discussão circunstâncias de facto similares (nas suas propriedades essenciais) e as mesmas questões de direito;
  9. Nestes termos, não procede a alegada violação do princípio da tutela jurisdicional efectiva (v. artigo 20.º, n.º 5 da Constituição), nem a suscitação de questão prejudicial ao Tribunal de Justiça constitui um meio processual ao dispor dos sujeitos passivos ou um direito subjectivo que lhes assista. O reenvio prejudicial é um mecanismo colaborativo entre os tribunais nacionais e o Tribunal de Justiça, para assegurar a correcta e uniforme interpretação do Direito Europeu;
  10. Improcede a arguida violação dos princípios da neutralidade do IVA e da igualdade de tratamento.

 

EM CONCLUSÃO

 

 

Pelos motivos expostos, entende-se que o acto de liquidação e a decisão da reclamação, que constituem o objecto mediato e imediato do presente pedido de pronúncia arbitral, não enfermam da ilegalidade alegada pela Requerente.

Conclui-se, assim, pela manutenção dos actos que constituem o objecto imediato e mediato do presente pedido de pronúncia arbitral.

DOS JUROS INDEMNIZATÓRIOS

 

Peticionou a Requerente que, para além do reembolso da quantia que tinha sido voluntária e indevidamente paga, seria ainda devido o pagamento de juros indemnizatórios.

            A este respeito dispõe o artigo 43.º, n.º 1 da LGT que “[s]ão devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.

            Tendo-se determinado, nos presentes autos, que os atos em crise não estão viciadas por qualquer ilegalidade, fica prejudicada a apreciação do pedido de relativo aos juros indemnizatórios.

Finalmente,

DO PEDIDO SUBSIDIÁRIO DE REENVIO PREJUDICIAL:

 

A título subsidiário, a Requerente solicita o reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça, em relação à consideração do valor das amortizações financeiras no cálculo da percentagem de dedução aplicada ao IVA incorrido nos recursos de utilização mista.

Na verdade, a questão de interpretação do Direito Europeu discutida nos autos foi especificamente clarificada pela jurisprudência do Tribunal de Justiça a propósito do caso Banco Mais, C-183/13, conforme ficou acima referenciado.

De acordo com o entendimento do Tribunal de Justiça, a partir do acórdão Cilfit, a obrigação de suscitar a questão prejudicial de interpretação pode ser dispensada quando:

 

  1. A questão não for necessária, nem pertinente para o julgamento do litígio principal; ou

 

  1. O Tribunal de Justiça já se tiver pronunciado de forma firme sobre a questão a reenviar, ou quando já exista jurisprudência sua consolidada sobre a mesma; ou

 

  1. O juiz nacional não tenha dúvidas razoáveis quanto à solução a dar à questão de Direito da União, por o sentido da norma em causa ser claro e evidente.  

 

No caso sub judice, verifica-se o preenchimento dos requisitos previstos nas alíneas b) e c), podendo afirmar-se que o “acto” em questão está devidamente aclarado pela jurisprudência do Tribunal de Justiça que já se pronunciou de forma firme, como o tem entendido também a jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Administrativo supra referida, pelo que actualmente não se suscitam dúvidas, nem há fundamento, para suscitar o reenvio prejudicial.

Pelo que, à semelhança do que vem sendo decidido por outros tribunais arbitrais constituídos neste CAAD que se têm debruçado sobre o tema [2], o Tribunal considera desnecessário o reenvio prejudicial atendendo a que a Jurisprudência do TJUE sobre esta matéria fornece os elementos suficientes para a aplicação do direito europeu a este litígio.

 

DECISÃO

 

Nestes termos e com a fundamentação supra, decide-se:

- Indeferir o pedido subsidiário de reenvio prejudicial para o TJUE;

-  Julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral;

- Fixar o montante das custas em 11.322,00€ (onze mil trezentos e vinte de dois euros), em face do valor fixado no segmento saneador e do modo de designação de árbitros e nos termos do artigo 22.º, n.º 4 do RJAT e da Tabela I anexa ao RCPAT, e condenar a Requerente a suportá-las integralmente, de acordo com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 do RJAT, 4.º, n.º 4 do RCPAT.

 

Notifique-se.

 

Porto e CAAD, aos 11 de Abril de 2023,

 

O Árbitro Presidente,

 

(Prof. Doutor Rui Duarte Morais)

 

O Árbitro Auxiliar,

 

(Prof. Doutor Carlos Lobo)

 

A Árbitro Auxiliar (relatora)

 

(Prof.ª Doutora Eva Dias Costa)



[1] Cf.  “IVA, Pro rata e Locação Financeira”, Cadernos IVA 2020, p. 523

[2] Cf. as decisões proferidas no Proc. 637/2020-T, no Proc. 278/2020-T e 276/2020-T, entre outras.